Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÉRGIO CORVACHO | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA CRIME CONTINUADO ARMA | ||
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Data do Acordão: | 10/08/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I - O bem jurídico especialmente tutelado pela norma que prevê e pune os atentados contra a integridade física de outrem é de natureza eminentemente pessoal, pelo que está afastada a punição como um único crime continuado de atos reiterados dessa natureza, ainda que cometidos sobre a mesma pessoa. II - A agravação prevista no n.º3 do artigo 85.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, opera pelo mero porte da arma pelo agente ou por um dos agentes, não sendo necessário, para tanto, que dela se faça algum tipo de utilização, quanto mais não seja a sua simples exibição, mesmo que o agente esteja legitimado a deter a arma, no caso um machado, que é um instrumento de aplicação definida. III – O que a justifica a agravação é a perigosidade objetiva do objeto (arma), que tem o condão de potenciar a danosidade da conduta integradora do crime. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I - Relatório Por acórdão do Tribunal Colectivo proferido em 4/4/2019 no Processo Comum nº 36/18.5GDFTR, que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, foi decidido: a) Absolver o arguido NG pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica na pessoa de EN, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, condenando-o como autor material na prática, em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada na pessoa de EN, ambos p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.ºs 1 e 2 alínea b), do Código Penal, condenando-o na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão relativamente a cada um desses crimes; b) Unificar as penas fixadas na alínea a), condenando o arguido NG na pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão efectiva; c) Absolver a arguida EN pela prática, como autora material, de um crime de violência doméstica na pessoa de NG, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, condenando-a como autora material na prática, em concurso efectivo, de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa de NG, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão e de um crime de ofensa à integridade física qualificada agravado na pessoa de NG, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal e ao artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 3 (três) anos de prisão; d) Unificar as penas fixadas na alínea c), condenando a arguida EN na pena única de 4 (quatro) anos de prisão efectiva; Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados: 1. Os arguidos NG e EN viveram em união de mesa, cama e habitação desde o ano de 2010 até Janeiro de 2015. 2. Na constância desta união de facto, nasceu a 8 de Setembro de 2010, BG. 3. Em data não concretamente apurada, mas que se situa no mês de Junho de 2018, os arguidos voltaram a viver em união de mesa, cama e habitação. 4. Para tal fixaram residência na casa sita…, em Seda, propriedade de BN. 5. Em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos com uma cadência semanal, os arguidos discutiam entre si, no interior do domicílio comum. 6. Nessas circunstâncias, a arguida EN apelidava o arguido NG de “frouxo”. 7. E o arguido NG chamava à arguida EN “puta”. 8. No dia 25 de Agosto de 2018 os arguidos, quando se dirigiam para a sua residência começaram a discutir por motivo não concretamente apurado. 9. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, os arguidos começaram a gritar um com o outro e bateram-se mutuamente atingindo o corpo um do outro. 10. No dia 3 de Setembro de 2018, junto ao portão de entrada da Tapada onde residem, os arguidos começaram a discutir por motivo não concretamente apurado. 11. Durante esta discussão, os arguidos bateram-se e empurraram-se mutuamente, o que provocou a queda da arguida no chão. 12. Após, o arguido NG foi para a vila de Seda e de seguida a arguida EN entrou no interior do veículo automóvel de matrícula LA e foi atrás do arguido NG. 13. Chegada à paragem de autocarros da vila de Seda, sita na Estrada dos Espinheiros, a arguida EN viu o arguido NG e imobilizou o seu veículo automóvel, em frente ao veículo automóvel deste, vedando-lhe a passagem. 14. De seguida, a arguida saiu de dentro do seu veículo automóvel, os arguidos envolveram-se novamente, batendo no corpo um do outro e, então, a arguida retirou da sua viatura um machado, com cabo de madeira de cerca de 13 centímetros de lâmina e brandiu-o enquanto andava na direcção do arguido. 15. Vendo a arguida com o machado nas mãos, o arguido começou a fugir à volta do veículo automóvel. 16. A determinada altura, o arguido conseguiu deitar mãos ao machado e puxou-o logrando retirá-lo à arguida. 17. Em consequência da retirada do machado, a arguida caiu ao solo e ficou com um ferimento na zona do queixo. 18. A arguida EN não quis receber auxílio médico. 19. Em consequência das agressões físicas atrás descritas nos pontos 6 a 9, os arguidos ficaram com dores nas zonas atingidas e a arguida com hematomas no corpo na face, nos braços e nas pernas. 20. Os arguidos são consumidores de produtos estupefacientes e de bebidas alcoólicas. 21. O arguido NG foi condenado no processo número --/15.6GDFTR, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Fronteira, Comarca de Portalegre, na pena de 3 anos de prisão, suspensa, pela prática do crime de violência doméstica sobre a arguida EN, transitada em julgado a 4 de Julho de 2016. 22. A arguida EN foi condenada no processo número --/15.0GDFTR, que correu termos na Instância Central de Portalegre, Juiz 3, na pena de 4 anos e dois meses, suspensos, pela prática sobre o arguido NG do crime de ofensas à integridade física grave agravada, já transitada em julgado a 18 de Janeiro de 2017. 23. Ao actuar do modo acima descrito, o arguido NG quis atingir o corpo de EN, provocando-lhe lesões físicas e dores, humilhando-a, ofendendo-a e fazendo-a temer pela sua integridade física, o que efectivamente conseguiu, bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar naquela marcas que afectaram o seu equilíbrio emocional. 24. Ao actuar do modo acima descrito, a arguida EN quis atingir o corpo de NG, provocando-lhe lesões físicas e dores, humilhando-o, ofendendo-o e fazendo-o temer pela sua integridade física, o que efectivamente conseguiu e bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar naquele marcas que afectaram o seu equilíbrio emocional. 25. Agiram sempre os arguidos de forma livre, voluntária e consciente e bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei. Mais se provou quanto à arguida EN: 26. A subsistência económica do agregado da arguida era assegurada pelos rendimentos provenientes do subsídio de desemprego recebido por NG e outros rendimentos variáveis provenientes do salário de EN, trabalhadora rural eventual e pelo apoio económico e logístico por parte da progenitora de EN, auxiliar de acção directa. EN iniciou a união de facto com o pai da filha, há cerca de dez anos, quando tinha 16 anos, e segundo a mesma foi desde o início pautada por grandes dificuldades de relacionamento com episódios graves de violência doméstica que deram origem a processos judiciais e rupturas temporárias constantes. Desta relação nasceu uma filha, actualmente com 8 anos de idade. A arguida evidencia ligação afectiva à filha. A vivência conjunta e dinâmica familiar é descrita não só por conflitos e violência constantes, mas também por elevada dependência afectiva. Na sequência do agravamento dos conflitos, e após a última separação do casal foram reguladas as responsabilidades parentais relativas à filha de ambos que ficou entregue aos cuidados da mãe (arguida), com a atribuição de uma prestação de alimentos da responsabilidade do pai. 27. EN é a mais nova de duas filhas de um casal com hábitos de trabalho e inserido socialmente na comunidade. O pai faleceu há cerca de 5 anos vítima de doença súbita, facto que acentuou a irreverência da arguida e provocou alguma desestabilização económica no agregado. Descreve uma infância feliz num contexto familiar tradicional, com vínculos afectivos. A arguida concluiu o 9º ano, e abandonou a escolaridade por desinteresse pelas actividades lectivas, absentismo, irreverência e iniciando o percurso laboral com irregularidade, primeiramente junto do progenitor, numa empresa de construção civil e depois no sector da restauração e hotelaria como indiferenciada e também em campanhas sazonais da agricultura. Está habilitada com um curso de formação na área da estética – manicura. EN iniciou comportamentos aditivos na fase da adolescência, designadamente consumo regular de substâncias estupefacientes e de bebidas alcoólicas, hábitos que diz ter abandonado após o cumprimento da medida de coação em curso. No âmbito do presente processo, a arguida evidenciou um comportamento compatível com as regras a execução da medida de coação de obrigação de permanência na habitação. 28. Em termos de projecto de vida, a arguida pretende inserir-se profissionalmente, ponderando também a possibilidade da prossecução dos estudo e da formação profissional, por forma a conseguir recursos para proporcionar estabilidade e uma boa educação à filha. Paralelamente, refere a intenção de não reatar a vida em comum com o pai da filha, situação que considera nefasta para si e para a filha, expostas constantemente a conflitos. No meio comunitário de residência, EN é detentora de uma imagem social conotada com comportamentos aditivos e integração em grupo de pares com problemáticas idênticas, pese embora não se registe hostilidade à sua presença. A arguida evidencia consumos regulares de haxixe que refere ter interrompido, pelo que não equaciona tratamento a este nível. EN dispõe do apoio da mãe com quem reside e que se constitui como seu suporte afectivo e material, bem como da sua filha. 29. A arguida, para além da condenação descrita no ponto 22, tem os seguintes antecedentes criminais: - No Processo n.º ---/07.4PBPTG, do 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de Portalegre, foi condenada por dois crimes de furto qualificado praticados em 14 de Fevereiro de 2008, em pena de trabalho a favor da comunidade. O acórdão foi proferido em 17 de Outubro de 2008. Tal pena já foi declarada extinta. - No Processo n.º ---/09.0GBPTG, do Tribunal da Comarca de Fronteira, foi condenada por um crime de furto qualificado praticado em 14 de Março de 2009, na pena de 1 ano e 5 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período. A sentença foi proferida em 23 de Novembro de 2009. Tal pena já foi declarada extinta. - No Processo n.º ---/09.3GCFTR, do Tribunal da Comarca de Fronteira, foi condenada por um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de consumo de estupefacientes, praticados em 26 de Junho de 2009, nas penas de 5 meses de prisão e 2 meses e 15 dias de prisão, respectivamente, e em cúmulo jurídico que englobou também a pena do processo --/09.0GBPTG, na pena única de 20 meses de prisão suspensa na execução por igual período. A sentença foi proferida em 16 de Julho de 2010. Tal pena já foi declarada extinta. - No Processo n.º --/11.1GBPSR, do Tribunal da comarca de Ponte de Sôr, foi condenada por um crime de condução sem habilitação legal praticado em 5 de Fevereiro de 2011, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5 euros. A sentença foi proferida em 7 de Fevereiro de 2011. Tal pena já foi declarada extinta. Mais se provou quanto ao arguido NG: 30. À data dos factos, NG desempenhava regularmente trabalhos eventuais na agricultura ou construção civil, estando à data dos factos inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional, sendo beneficiário do subsídio de desemprego. Simultaneamente fazia pequenos trabalhos eventuais por conta própria. A subsistência económica do agregado era assegurada pelo montante referente à prestação de subsídio de desemprego atribuído ao arguido, pelos rendimentos variáveis provenientes do vencimento da companheira, trabalhadora rural eventual e pelo apoio económico e logístico por parte da progenitora desta, como auxiliar de acção directa. 31. NG iniciou a união de facto com a mãe da filha, há cerca de dez anos, pautada desde o início por grandes dificuldades de relacionamento com episódios de violência que deram origem a intervenção judicial. A relação caracteriza-se por rupturas frequentes mas também por elevada dependência afectiva. 32. A mãe de NG suicidou-se quando este tinha seis anos de idade, de seguida foi integrado num agregado familiar do pai, disfuncional e residente na área da grande Lisboa. Posteriormente ficou a cargo da avó paterna, elemento de referência no seu trajecto vivencial. Relativamente ao progenitor os vínculos parecem pouco consistentes. NG frequentou o ensino escolar, tendo concluído o 9º ano de escolaridade, com 17 anos, após institucionalização na Casa Pia. Posteriormente, ingressou na Escola Profissional Agrícola, em regime de internato, frequentou o curso profissional de “Técnico de Gestão de Ambiente”, onde permaneceu durante 3 anos, sem concluir o referido curso, que lhe daria equivalência ao 12º ano, o qual veio a concluir, já em adulto, no ensino nocturno, com cerca de 26 anos. Com 20 anos, o arguido passou a residir com a avó na localidade de Seda e iniciou actividade laboral na área agrícola, em campanhas sazonais e também na construção civil. No ano seguinte iniciou a união de facto com a mãe da sua filha e co-arguida no presente processo. Na sequência do agravamento dos conflitos, e após a última separação do casal foram reguladas as responsabilidades parentais relativas à filha de ambos, que ficou entregue aos cuidados da mãe, com a atribuição de uma prestação de alimentos da responsabilidade do pai. NG iniciou comportamentos aditivos na adolescência e mais tarde bebidas alcoólicas. Após o início da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE), no âmbito do presente processo, foi encaminhado para o Centro de Respostas integradas de Portalegre (CRI), acompanhamento a que aderiu. Em 07jul2017 foi remetido ao tribunal relatório de anomalias dando conta da falta de adesão de NG ao acompanhamento da DGRSP, no âmbito do processo nº --/15.6GDFTR. Encontra-se em curso a execução deste processo aguardando o arguido a sua inserção no programa PAVD, que ficou suspensa por determinação judicial até ao desfecho do presente processo. No meio comunitário de residência, o arguido tem uma imagem que não lhe é desfavorável, embora seja conhecido pela sua problemática aditiva. 33. Em termos de projecto de vida, o arguido pretende reinserir-se profissionalmente podendo dessa forma cumprir o estipulado no processo de regulação das responsabilidades parentais da filha e manter um acompanhamento activo no seu processo educativo. Paralelamente, denotou disponibilidade e interesse em dar cumprimento ao determinado na sentença em execução, designadamente, a frequência do programa para agressores de violência doméstica. NG tem apoio da avó paterna, em termos logísticos, afectivos e económicos. Equaciona no entanto a possibilidade de afastamento do meio residencial onde se insere, eventualmente na zona da grande Lisboa onde a avó possui habitação. 34. O arguido, para além da condenação descrita no ponto 21, tem os seguintes antecedentes criminais: - No Processo n.º --/09.3GCFTR, do Tribunal da Comarca de Fronteira, por sentença proferida em16/07/2010, transitada em julgado em 07/10/2010, foi condenado por um crime de ofensa à integridade física qualificada, praticado em 26 de Junho de 2009, na pena de 4 meses de prisão substituída por 120 dias de multa à taxa diária de €5,50. Esta pena foi declarada extinta. - No Processo n.º --/11.0 GBPSR, do Tribunal da Comarca de Ponte de Sôr, por sentença proferida em 23/01/2014, transitada em julgado em 24/02/2014, foi condenado por um crime de consumo de estupefacientes, praticado em 05/02/2011, na pena de 4 meses de prisão suspensa na execução por um ano. Esta pena foi declarada extinta. O mesmo acórdão julgou os seguintes factos não provados: a) No circunstancialismo descrito na acusação a arguida EN apelidou o arguido NG de “cabrão” e o arguido NG chamou “vaca” à arguida EN. b) No dia 24 de Agosto de 2018, quando as moléstias físicas começaram, a menor BG ainda estava dentro do domicílio comum, de onde foi retirada pela avó materna BN. c) A discussão ocorrida no dia 3 de Setembro de 2018 teve início no interior do domicílio comum do casal. d) Nessa ocasião, os arguidos desferiram chapadas e pontapés no corpo um do outro. e) Em consequência da conduta da arguida o arguido NG ficou com hematomas na face, nos braços e nas pernas f) No circunstancialismo descrito no ponto 14 a arguida perguntou ao arguido NG se agora “não lhe batia” g) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido NG quis maltratar EN, ofendendo-a na sua dignidade pessoal, o que efectivamente conseguiu. h) Ao actuar do modo acima descrito, a arguida EN quis maltratar NG, ofendendo-o na sua dignidade pessoal, o que efectivamente conseguiu. Da referida sentença interpôs recurso a arguida EN, com a devida motivação, tendo formulado as seguintes conclusões: a) A factologia dada como provada resulta fundamental e unicamente na valoração que o Tribunal a quo fez das declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório de arguido detido e reproduzidas em sede de audiência. b) Com exceção das declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório de arguido detido e reproduzidas em sede de audiência, não existem quaisquer outros elementos probatórios que permitam sustentar a factologia dada como provada e consequentemente a condenação da arguida. c) Resulta assim que a condenação da arguida se funda exclusivamente na valoração que o Tribunal a quo faz das declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório de arguido detido e reproduzidas em sede de audiência ou seja tudo indica que as valorou como confissão, violando dessa forma o disposto no nº2 do artigo 357º do C. P. P. d) Legalmente afastada que a valoração, das declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório de arguido detido e reproduzidas em sede de audiência, como confissão, resta-nos a sua valoração ao abrigo da livre apreciação da prova de que o Tribunal se encontra investido. e) Compulsando as declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório de arguido detido e reproduzidas em sede de audiência, constata-se que ambos se acusam mutuamente imputando-se factos suscetíveis de consubstanciarem a prática do crime pelo qual foram condenados. f) Considerando o interesse que cada um tem em imputar ao outro o cometimento de tais factos e não estando nenhum deles vinculado à obrigação de verdade, jamais poderemos dar a essas declarações, a necessária credibilidade para sustentar a condenação que através do presente se impugna. g) Assim condenar a arguida com base exclusivamente nas declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório de arguido detido e reproduzidas em sede de audiência, sem qualquer credibilidade e valoradas ao abrigo do principio da livre apreciação da prova, é, seguramente levar longe demais o exercício de tal princípio. h) Do acórdão ora recorrido consta que a arguida foi condenada por dois crimes de ofensa à integridade física qualifica sendo um deles, o ocorrido posteriormente, agravado pelo disposto no artigo 86º nº3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23/02, por a arguida ter alegadamente empunhado um machado. i) Sem conceder a valoração feita pelo Tribunal à quo, as declarações anteriormente prestadas pelos arguidos e reproduzidas em audiência, das mesmas não consta a prática de qualquer facto suscetível de consubstanciar o cometimento do crime que à arguida é imputado ou qualquer outro, com recurso ao uso desse machado. j) Efetivamente dessas mesmas declarações apenas se pode extrair que a arguida empunhou o machado em sua defesa e quanto muito como tentativa de dissuadir o arguido NG de voltar a agredi-la, mas não que com ele tenha praticado qualquer agressão sobre o mesmo. k) Salvo lapso da defesa, das declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório de arguido detido e reproduzidas em sede de audiência quanto ao episódio eventualmente ocorrido junto à paragem de autocarros da vila de Seda, sita na Estrada dos Espinheiros, não resulta que aí tenham ocorrido quaisquer agressões. l) Acresce que nem o machado consubstancia uma arma aparente nem se encontrava oculto no sentido de intencionalmente escondido com intenção de fazer e fazer mesmo uso dele na prática da agressão que à arguida é imputada e pela qual foi condenada. m) Resulta assim não se verificar o agravamento do crime em causa porquanto não subsumível ao estatuído no artigo 86º nº3 e 4 da Lei 5/2006 de 23/02. n) Acresce ainda que os dois crimes pelos quais a arguida foi condenada ocorreram num curto espaço temporal e visam a proteção do mesmo bem jurídico. o) Considerando que os mesmos foram executados por forma essencialmente homogénea e num quadro de uma mesma solicitação exterior, agressão da vítima sobre a arguida e não apresentação de queixa por aquela, encontra-se assim diminuída consideravelmente a culpa desta. P) Resulta assim estarmos na presença de um crime continuado e na de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, impondo-se uma significativa redução da respetiva pena por força do disposto no nº2 do artigo 30 do C. Penal. Termos estes os expostos em que deverá ser dado provimento ao presente, revogando-se o douto acórdão e em consequência absolver-se a arguida do crime de que vinha acusada por manifesta falta ou errada valoração da prova produzida. Caso assim não entendam os venerandos desembargadores, deverão considerar não verificada a condição de agravamento do segundo crime imputado à arguida por manifesta falta dos requisitos estatuído no artigo 86º nº3 e 4 da Lei 5/2006 de 23/02, operando-se uma significativa redução na respetiva pena, a qual não deverá exceder os dois anos, assim se respeitando os princípios da proporcionalidade e adequação. Caso ainda assim não entendam os venerandos desembargadores, deverão considerar que a situação dos autos é subsumível ao disposto no nº2 do artigo 30º do C. Penal e consequentemente ser a arguida condenada por um crime continuado, operando-se, em conformidade, uma significativa redução na respetiva pena, a qual não deverá exceder os dois anos, assim se respeitando, igualmente, os princípios da proporcionalidade e adequação. Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, ao decidirem, farão, como sempre JUSTIÇA O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo. O MP respondeu à motivação do recurso, formulando as seguintes conclusões: 1. A decisão do Tribunal “a quo” não violou qualquer norma legal e foi correctamente aplicada face à prova existente. 2. Não existindo qualquer erro na apreciação da matéria de facto provada. 3. Nem violação do princípio da livre apreciação da prova. 4. Como sobressai da fundamentação do acórdão, de forma clara, que a actuação da arguida não se enquadra na figura do crime continuado. 5. Pelo que inexiste qualquer violação do preceituado no artigo 30.º do Código Penal. 6. Revelando a douta decisão ora recorrida cuidadosa fundamentação, quer quanto à matéria de facto quer no que concerne à matéria de direito. 7. Expressando uma acertada subsunção dos factos à lei. 8. E optando por uma pena que se julga justa e adequada face aos critérios consignados nos artigos 40.º, 70.º, 71.º e 77.º do Código Penal. Louvando-nos, pois, no bem fundado do douto acórdão recorrido somos de parecer que o recurso dele interposto não merece provimento. V. Ex.as, porém, com superior apreciação e critério, farão, certamente, Justiça. Pelo Digno Procurador-Geral Adjunto em funções junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito do recurso interposto no sentido da sua improcedência. O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, nada tendo respondido. Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência. II. Fundamentação Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra. A sindicância do acórdão sob recurso, tal como transparece das conclusões da arguida recorrente, desdobra-se nas seguintes questões: a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto; b) Subsunção dos crimes por que a recorrente responde num único crime continuado, nos termos do art. 30º nº 2 do CP; c) Não agravação da conduta incriminada, nos termos do art. 86º nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23/2. A ordem por que enunciámos as questões suscitadas pela recorrente é aquela que nos parece ser a da prioridade lógica da sua apreciação e não aquela pela qual a arguida as expôs. A propósito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, convirá recordar que tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre esta matéria não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deduzida pela recorrente, comporta, por sua vez, duas vertentes. Por um lado, a recorrente vem arguir a invalidade da valoração, em sede de acórdão, das declarações prestadas pelos arguidos, aquando do respectivo primeiro interrogatório judicial, em situação de detenção, por violação do disposto no nº 2 do art. 357º do CPP. Como adiante melhor se verá, foi a valoração conjunta das declarações, cuja validade agora se impugna, que serviu de fundamento à convicção probatória do Tribunal Colectivo, relativamente aos factos dos pontos 1 a 20 da matéria assente. Por outro lado, argumenta a recorrente que as referidas declarações não são merecedoras de credibilidade, por não estarem os declarantes sujeitos ao dever de verdade e terem interesse em imputar um ao outro a prática de crimes, e delas não resulta que, aquando do episódio ocorrido junto da paragem de autocarro da vila de Seda, tenha havido agressões e que a arguida tenha empunhado o machado com o propósito de com ele atingir o também arguido NG, mas apenas para se defender dele ou de o dissuadir de continuar a agredi-la (pontos 13, 14, 15 e 16 da matéria provada). Para fundamentação do juízo probatório nele emitido, o acórdão recorrido expende (transcrição com diferente tipo de letra): 1.3. CONVICÇÃO DO TRIBUNAL E EXAME CRÍTICO DAS PROVAS: O Tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, bem como da prova documental que consta dos autos, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127º do C.P.P.. No caso em apreço, perante o silêncio dos arguidos na audiência de julgamento, atendendo a que a testemunha BN recusou-se a prestar depoimento ao abrigo do artigo 134.º, alínea a), do Código de Processo Penal e na ausência de testemunhas presenciais dos factos descritos na acusação, a convicção do Tribunal baseou-se, fundamentalmente, nas declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório judicial, nos termos e em conformidade com o previsto no artigo 141.º, n.º 4, al. b) do citado diploma processual penal. Assim, tendo por base a valoração crítica das referidas declarações prestadas pelos arguidos em sede de primeiro interrogatório e reproduzidas em sede de audiência de julgamento, o Tribunal deu como provada a factualidade vertida nos pontos 1 a 20 dos factos provados. Com efeito, o arguido NG referiu que regressou ao Alentejo para dar apoio à avó e à filha, tendo reatado a relação sentimental com a arguida EN em Junho/Julho de 2018; referiu a existência de discussões várias entre o casal, motivada pelos ciúmes da arguida, pelo estilo de vida que esta possui, pelo temperamento da arguida e por questões monetárias, mencionado ainda que nessas discussões a arguida grita e lhe chama frouxo, tentando o arguido pôr termo às discussões saindo momentaneamente de casa, mas que a arguida persiste nessas discussões seguindo-o, como ocorreu no dia 03.09.2018, descrevendo que nessa data a discussão entre o casal começou junto ao portão da quinta onde residem, que ocorreram empurrões mútuos e que a EN escorregou, arranhou-se um bocado, nas costas e nos braços e nas pernas, tendo o arguido abandonado esse local na sua viatura, dirigindo-se para a Vila de Seda; de seguida a arguida na sua viatura seguiu-o e junto à paragem do autocarro bloqueou o carro do arguido, tirou a machada da bagageira do carro dela e foi em direcção ao arguido com a machada para a usar no arguido, que andava à volta do carro, até que conseguiu puxar-lhe a machada das mãos, o que fez com que a arguida caísse ao chão e ficasse com um ferimento no queixo; então, o arguido atirou a machada para o quintal de uma habitação próxima daquele local; o arguido relatou ainda a situação ocorrida no dia 25 de agosto, afirmando que nesse dia a arguida vinha do trabalho no campo (segundo o arguido, apesar da arguida sair do trabalho às 2 horas da tarde, só chegou a casa às 7 porque fora “dar na coca”, juntamente com um amigo para um bairro na cidade de Abrantes); quando chegou a casa a arguida começou a gritar, dizendo ao arguido que ele é um frouxo e que queria cerveja, sempre com maus modos; o arguido acabou por ir buscar cerveja com ela, mas ela foi sempre a “moer-lhe” o juízo, até que se envolveram os dois em agressões físicas. Já a arguida EN, em sede de interrogatório judicial, referiu que reatou a sua relação amorosa com NG em Julho de 2018, passando ambos a viver na casa da mãe da arguida, sita em Seda, mas que sempre tiveram muitas discussões, com uma periodicidade quase diária, ocasiões em que o arguido lhe chamava puta, e outros nomes (que não concretizou), disse ainda que o arguido não quer que ela frequente o café e que as discussões eram motivadas por ciúmes da arguida, dizendo ainda que se bateu no arguido foi para se defender; no que se refere ao episódio situado no dia 3 de Setembro a arguida disse que estava a chegar a casa, no caminho velho, e disse-lhe “mentiste-me”, ele agarrou-a pelos braços e mandou-a ao chão e desferiu-lhe pontapés na cabeça, após o arguido abandonou o local e a arguida foi atrás dele, chegada à paragem do autocarro parou a sua viatura barrando o veículo do arguido, este bateu-lhe e arguida bateu-lhe também para se defender e tirou a machada que trazia na bagageira do seu carro e disse que lhe partia o carro todo acrescentando “ tu não gozas com a minha cara e hoje se a guarda vier é a tua avó que os vai chamar”, entretanto ele tirou a machada das mãos da arguida e atirou-a para local que a arguida não logrou identificar. Disse ainda a arguida que as suas pernas estão negras, que tem “altos” na cabeça e os joelhos cheios de arranhões. Cotejada a versão de cada um dos arguidos e tendo em consideração que ambos têm, evidentemente, um interesse directo e pessoal nas situações relatadas, circunstância que, como é lógico, eiva de particular subjectividade e parcialidade as respectivas descrições dos factos, o que não pode deixar de ser ponderado pelo Tribunal em sede de valoração crítica dessas declarações, importa identificar concretamente que factos são relatados de forma uniforme e consentânea entre si por cada um dos arguidos e que são os seguintes: factualidade descrita nos pontos 1 a 5 e 10, 12 a 13, 14 (em parte), 15 a 18 dos factos provados a versão dos arguidos é absolutamente consensual, além de ser igualmente corroborada pelo teor dos documentos juntos aos autos a fls. 35/36 (cópia do assento de nascimento de BG), 37/40 (cópias dos assentos de nascimento dos arguidos), 158/160 (fotografias), 161 (auto de apreensão) e pelas declarações da testemunha EB, militar da GNR que efectuou a apreensão do machado, pelo que, se concluiu pela sua verificação. No mais as declarações prestadas pelos arguidos não foram inteiramente coincidentes, não porque as versões apresentadas pelos arguidos fossem dissonantes ou inconciliáveis, mas porque se tratam de factos referidos apenas por um dos arguidos, concretamente quanto à factualidade vertida nos pontos 6 e 7, relatada apenas pelo arguido. Todavia, afigura-se absolutamente crível que, face à exaltação do momento e até à motivação subjacente a algumas das discussões havidas entre o casal, que nessas ocasiões a arguida se dirigisse ao arguido apelidando-o de frouxo enquanto este apelidava aquela de puta, como foi aliás confirmado pelo arguido quer enquanto autor quer enquanto ofendido. Já a prova da factualidade referente ao episódio situado no dia 25 de Setembro resultou apenas das declarações do arguido, na medida em que apenas este mencionou a existência de uma discussão nesse dia, seguido de agressões mútuas entre os arguidos. Este episódio foi descrito pelo arguido de forma coerente e circunstanciada, sendo a sua descrição condizente com a natureza e com o temperamento próprio da relação do casal, i. e., sempre marcada por acesas discussões, elevada emotividade, ciúme e uma particular intensidade e dependência relacional. Assim, face a esta versão e na falta de outra prova em sentido contrário, o Tribunal concluiu que a versão do arguido foi suficientemente credível para sustentar a prova dos factos descritos nos pontos 8 e 9. A principal divergência detectada entre a versão de cada um dos arguidos radica, fundamentalmente, na descrição relativa ao episódio ocorrido no dia 03.09.2018, junto ao portão da quinta onde residiam os arguidos e depois, num segundo momento, junto à paragem do autocarro. De acordo com o arguido NG, naquele primeiro momento, a arguida caiu após empurrões mútuos; já a arguida refere que, num primeiro momento, junto ao portão da tapada, na sequência de uma discussão, o arguido agarrou-a pelos braços e atirou-a ao chão, pontapeando-a e que depois, junto à paragem do autocarro o arguido bateu-lhe e arguida bateu-lhe também para se defender. Perante estas declarações que, como acima já se salientou, estão naturalmente eivadas de parcialidade e subjectividade próprias dos intervenientes dos factos, o Tribunal, mais uma vez, teve de ponderar na natureza e agressividade que sempre marcou esta relação e os foros de certeza que deve presidir o espírito do julgador na apreciação da prova, nesta perspectiva, não havendo nenhuma outra prova quanto a esta matéria, apenas foi possível concluir que também nesta ocasião, junto ao portão da quinta, os arguidos se agrediram e empurraram mutuamente, o que provocou a queda da arguida e que, no segundo momento, junto à paragem do autocarro, os arguidos envolveram-se novamente, batendo no corpo um do outro, conforme decorre dos pontos 11 e 14 dos factos provados. A prova dos factos vertidos em 19 teve por base as regras da experiência comum, à luz das quais as agressões perpetradas contra cada um dos arguidos são idóneas a causar ferimentos dores na respectiva vítima, tendo ainda sido considerado o teor das fotografias constantes de fls. 510/514. De salientar que concretamente quanto esta factualidade, foram igualmente consideradas as declarações da testemunha HN, militar de GNR que no exercício das suas funções se dirigiu à habitação dos arguidos no dia 25/08/2018, tenha mencionado que nessa data observou hematomas no corpo da arguida, não tendo detectado qualquer ferimento no corpo do arguido NG. No que tange ao elemento subjectivo enformador das condutas em análise, os factos descritos nos pontos 23 a 25 resultam do cotejo da matéria objectiva dada como provada, que permitiram a este Tribunal inferir a sua verificação, com base em regras de experiência comum e recorrendo a princípios lógico-racionais. Com efeito, face à factualidade objectiva provada não existe qualquer dúvida quanto à actuação livre e voluntária dos arguidos, e quanto à sua intenção de ofender o corpo e integridade física do visado. Por último, para a determinação da situação pessoal e familiar dos arguidos, bem como a prova dos factos vertido no ponto 20, fundou-se o Tribunal no teor dos relatórios sociais junto aos autos. Foi ainda considerada o teor dos CRC de fls. 605/612 para a prova dos antecedentes criminais dos arguidos e da factualidade vertida em 21 e 22. O nº 2 do art. 357º do CPP, cuja transgressão a recorrente invoca, dispõe: As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º. Por sua vez, o art. 344º do CPP é do seguinte teor 1 - No caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas. 2 - A confissão integral e sem reservas implica: a) Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados; b) Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, à determinação da sanção aplicável; e c) Redução da taxa de justiça em metade. 3 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os casos em que: a) Houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles; b) O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou c) O crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos. 4 - Verificando-se a confissão integral e sem reservas nos casos do número anterior ou a confissão parcial ou com reservas, o tribunal decide, em sua livre convicção, se deve ter lugar e em que medida, quanto aos factos confessados, a produção da prova. Da conjugação dos normativos acabados de transcrever resulta claro que o nº 2 do art. 357º não enuncia qualquer proibição de valoração probatória, mas antes determina que a eventual confissão integral e sem reservas, feita pelo arguido em declarações prestadas em momento processual anterior ao da audiência de julgamento, não dá origem a qualquer das consequências previstas no art. 344º, em que avulta, na perspectiva do interesse do arguido confitente, a redução da taxa de justiça, prescrita pela al. c) do nº 2. A valoração probatória em julgamento de declarações prestadas pelo arguido em fase processual anterior, independentemente da sua vontade, é regulada pelo nº 1 al. b) do art. 357º do CPP: A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida: a)…; ou b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º. A al. b) do nº 4 do art. 141º do CPP, para que remete o normativo antecedente, estatui: b) De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova. As declarações, reproduzidas em audiência e valoradas no acórdão recorrido, foram prestadas aquando do seu primeiro interrogatório judicial, em 13/9/2018 (vd. acta de julgamento a fls. 661 a 663). Do auto que formalizou o primeiro interrogatório dos arguidos, junto a fls. 115 a 122, resulta que cada um deles foi assistido, nesse acto, pela ilustre advogada que assumia então o patrocínio da respectiva defesa, tendo sido comunicadas a ambos as advertências impostas pela al. b) do nº 4 do art. 141º do CPP. Nestas condições, mostram-se reunidos os requisitos de validade da valoração, em sede de decisão final, das declarações anteriormente prestadas pelos arguidos, a qual se encontra sujeita à regra geral da livre apreciação Procedemos à audição do registo auditivo dos elementos de prova pessoal relevantes para a impugnação em apreço. A recorrente pugna por uma descredibilização geral das declarações prestados pelos arguidos em primeiro interrogatório, incluindo, algo paradoxalmente, as que ela própria prestou, pois tal desvalorização, no actual estado do processo, seria vantajosa à sua estratégia de defesa. No trecho do acórdão recorrido, dedicado à motivação do juízo probatório, o Tribunal Colectivo efectuou uma análise crítica aprofundada dos únicos elementos prova pessoal disponíveis. Tal análise crítica não passa ao lado daqueles aspectos que, no entender da recorrente seriam justificativos da denegação de poder de convicção aos meios de prova examinados, como seja não estarem os arguidos sujeitos ao dever de verdade, ocuparem ambos os declarantes, simultaneamente, a posição de arguido e de ofendido no processo, terem óbvio interesse no desfecho deste e terem produzido declarações fortemente moldadas pelo seu interesse processual, mas também pelas emoções do conflito entre os dois, subjacente ao procedimento criminal dos autos. Ainda assim, o Tribunal não optou por rejeitar em bloco o conteúdo das declarações em causa, o que garantiria a impunidade aos dois arguidos (proporcionando uma saída «salomónica» para o processo, estando em causa crimes recíprocos), mas antes logrou selecionar, mediante um juízo lógico, racional e não arbitrário, os factos que lhe mereciam crédito e aqueles que lho não mereciam. Semelhante operação não passou pela adesão do Tribunal de julgamento a alguma das versões em confronto ou pelo apuramento de uma espécie de média aritmética entre as duas. Nesta conformidade, o exame crítico de prova, elaborado pelo Tribunal «a quo» não nos merece censura, do ponto vista dos critérios que devem orientar a livre apreciação da prova, nos termos do art. 127º do CPP, mormente, a experiência comum, a normalidade das coisas e a lógica geralmente aceite, tendo presente que é apanágio a primeira instância a imediação no contactos com os meios de prova pessoal. Por isso, impõe-se confirmar o juízo de prova impugnado. De resto, também a recorrente carece de razão quando alega que não resulta das declarações dos arguidos que tenha havido agressões, aquando do episódio descrito nos pontos 13 e 14 da matéria assente. No que se refere ao uso do machado, a arguida prestou declarações em primeiro interrogatório, que não se ajustam totalmente à versão dos factos que veio defender em sede de recurso, pois afirmou que foi o arguido NG quem empunhou o machado contra ela, pelo que carece de apoio probatório a tese da recorrente. Consequentemente, teremos de concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deduzida pela arguida EN. Seguidamente, conheceremos das questões jurídicas suscitadas pela recorrente. Em matéria de unidade pluralidade de infracções, rege o art. 30º do CP: 1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais. A arguida recorrente foi condenada em primeira instância pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 145º nºs 1 al. a) e 2 e 132º nº 1 e 2 al. b) do CP, ambos na pessoa do mesmo ofendido, sendo um deles agravado, nos termos do art. 86º nº s 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23/2. Independentemente de saber se estão reunidos os pressupostos do crime continuado, previstos no nº 2 do art. 30º do CP, a aplicação dessa figura jurídico-penal às condutas por que a recorrente responde mostra-se excluída à partida, por força do disposto no nº 3 do mesmo normativo. Na verdade, o bem jurídico especialmente tutelado pela norma incriminadora das infracções, por cuja prática a arguida foi condenada, é a integridade física, a qual se caracteriza, sem sombra de dúvida, como um valor eminentemente pessoal. De resto, os crimes de ofensa à integridade física integram, na sistemática do Código Penal, a categoria dos «crimes contra as pessoas», tratada no Título I do Livro II. Assim, e sem necessidade de ulteriores considerações, terá a pretensão recursiva de fracassar, nesta parte. No que se refere à agravação de um dos crimes, a mesma encontra-se prevista nos nºs 3 e 4 do art. 86º da Lei nº 5/2006 de 23/2: 3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. 4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente. Com eventual relevo para o caso concreto, temos a al. d) do nº 1 do mesmo artigo, que reza: d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias. A definição legal de «arma branca», para os efeitos previstos na Lei nº 5/2006 de 23/2, é fornecida pela al. m) do nº 1 do art. 2º desse diploma legal: «Arma branca» todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm (…). Por sua vez, a al. ab) do n.º 2 do art. 3º da Lei a que nos reportamos é do seguinte teor: ab) As armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse. A agravação do segundo crime praticado pela arguida EN contra NG baseou-se em ter ela empunhado contra este um machado, nas condições descritas nos pontos 14 a 16 da matéria provada. Independentemente de definições legais, um machado corresponde ao conceito corrente (que não técnico-jurídico), que temos de «arma branca». Concretamente, o machado empunhado pela arguida EN, no circunstancialismo apurado nos autos, integra também o conceito legal de arma branca, relevante para a agravação que nos ocupa, desde logo em razão da dimensão da sua lâmina. Ainda assim, o machado é um instrumento com aplicação definida, é normalmente utilizado em actividades agrícolas ou florestais e a arguida, nas declarações que prestou, afirmou que o usava para «ir à lenha». Nestas condições, não é pelo menos claro se, no momento em que a arguida empunha o machado contra NG, se encontrava fora do local do normal emprego desse instrumento. Foi este contexto fáctico-jurídico, que levou o MP a não deduzir acusação contra a arguida EN, por um eventual crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23/2, conforme despacho de arquivamento a fls. 604 e 605. Contudo, a agravação, que agora nos interessa, não depende da censurabilidade criminal autónoma da detenção da arma, pois ocorre mesmo que o agente se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente. Nos termos do disposto no nº 4 do art. 86º da Lei nº 5/2006 de 23/2, a agravação do crime tem lugar se o agente ou um dos agentes for detentor de arma «aparente ou oculta». Como é sabido, tal locução consta da al. f) do nº 2 do art. 204º do CP como circunstância agravante qualificativa do crime de furto tipificado no art. 203º. Ora, temos vindo a entender que a referida formulação implica que a agravação opere pelo mero porte da arma pelo agente ou por um dos agentes, não sendo necessário, para tanto, que faça dela algum tipo de utilização, quanto mais não seja a sua simples exibição. Nesta ordem de ideias, teremos de concluir que a agravação prevista nº 3 do art. 86º da Lei nº 5/2006 de 23/2 deve funcionar, mesmo quando o agente esteja legitimado a deter a arma, como parece ser o caso, pois aquilo que a justifica é a perigosidade objectiva do objecto (arma), que tem o condão de potenciar a danosidade da conduta integradora do crime sujeito à agravação. Consequentemente, carece a recorrente de razão, também quanto à questão agora em apreço, improcedendo o recurso por inteiro. III. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça. Notifique. Évora, 8-10-19 (processado e revisto pelo relator) (Sérgio Bruno Povoas Corvacho) (João Manuel Monteiro Amaro) |