Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
873/22.6T8BJA.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
CAUSALIDADE ADEQUADA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O facto que actuou como condição do dano pode deixar de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas.
2. Se está demonstrado que o lesado sofreu em acidente de viação lesões físicas que, isoladas, não eram adequadas para produzir a morte, mas estas facilitaram o aparecimento de complicações, como pneumonia e insuficiência respiratória, que correspondem a causas adequadas para produzir a morte, não pode ser estabelecido o nexo causal se está demonstrado que tais complicações surgiram porque o lesado tinha uma idade avançada e padecia de diversas patologias graves, aptas por si só a provocar a morte.
3. Visto que as complicações surgiram porque essas graves patologias também estavam presentes, tal constitui uma circunstância excepcional que interrompe o processo causal que poderia ligar as lesões ocorridas no acidente à morte do lesado.
4. Ademais, tal nexo não pode ser estabelecido se ocorreram interrupções na conexão de factos entre o acidente e a morte, de tal modo que não se pode afirmar, naturalisticamente, que este seja consequência daquele.
5. É o que sucede com a sucessão de vários períodos intervalados de internamento hospitalar, seguidos de alta e permanência em casa ou acolhimento em lar residencial, com a morte a ocorrer cerca de quatro meses após o acidente, e se no último internamento é verificada uma lesão – fractura dos arcos costais – não provocada no acidente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)



Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Central Cível e Criminal de Beja, (…), (…), (…) e (…), propuseram acção declarativa comum contra Crédito (…) – Companhia de Seguros de Ramos (…), S.A., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia total de € 200.000,00, acrescida de juros.
A causa de pedir funda-se em acidente de viação que terá vitimado mortalmente (…). Os valores pedidos são: € 50.000,00 para ressarcimento do direito à vida; € 50.000,00 para ressarcimento do sofrimento do falecido; € 40.000,00 para a 1ª Autora-viúva; € 30.000,00 para a 2ª Autora-filha; e € 15.000,00 para cada um dos 3º e 4ºs Autores-netos.
Na sua contestação, a Ré reconhece a ocorrência do acidente e a responsabilidade do seu segurado, mas afirma que não existe nexo de causalidade entre esse facto e a morte de (…) – este terá falecido em consequência de infecção respiratória no âmbito da fibrose pulmonar de que padecia, no quadro de outras comorbilidades.
Após recolha de diversos elementos clínicos, foi solicitado parecer médico-legal ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., e também se solicitou consulta técnico-científica ao Conselho Médico-Legal.
Realizado julgamento, a sentença julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré no pagamento:
a) a todos os AA. a quantia de € 50.000,00 a título de dano morte e € 40.000,00 a título dos demais danos não patrimoniais de (…);
b) à 1ª A. a quantia de € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais próprios;
c) à 2ª A. a quantia de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais próprios;
d) aos 3º e 4º AA. a quantia de € 5.000,00 para cada um, a título de danos não patrimoniais próprios;
e) tudo acrescido dos juros de mora, contados desde a data da sentença e até integral pagamento.

Inconformada, a Ré recorre e conclui:
I. Não decidiu correctamente o Tribunal a quo, ao condenar a Ré, ora Recorrente, no pagamento de uma indemnização aos Autores, ora Recorridos, pelos danos causados pela morte de (…) na sequência de um acidente de viação, pois o mesmo não faleceu na sequência de tal acidente, mas sim em resultado de uma infecção respiratória contraída posteriormente, agravada por doença pulmonar grave e insuficiência cardíaca de que já padecia anteriormente.
II. O derrame pleural mencionado no ponto 5 da matéria de facto provada, que foi identificado no dia 09 de Maio de 2021, na sequência de uma TC torácica realizada a 07.05.2021, localizava-se à esquerda, e não à direita, conforme resulta expressamente da Nota de Alta relativa ao internamento de (…) entre os dias 09.05.2021 e 31.05.2021, junta aos autos a 28.10.2022, pela Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE, a fls. …, pelo que a matéria de facto constante do ponto 5 deve ser alterada nos seguintes termos: 5. No dia 07 de Maio de 2021, surge ligeira quantidade de líquido pleural à esquerda [líquido dentro do espaço pleural].
III. É verdade que (…) sofreu um derrame pleural à direita, mas o mesmo apenas surgiu um mês depois de ter tido alta do hospital, num internamento posterior, por pneumonia, a 07.06.2021 (cfr. Nota de Alta relativa ao internamento de… entre os dias 07.06.2021 a 15.06.2021, igualmente junta aos autos, a 28.10.2022, pela Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE, a fls. …), pelo que deve ser também alterada a redacção do ponto 8 dos factos provados, nos seguintes termos: 8. Tendo sido identificado derrame pleural direito; já não apresentava nem o pneumotórax nem o derrame pleural à esquerda identificados no internamento anterior (subsequente ao acidente de viação).
IV. (…), previamente ao acidente, já sofria de Fibrose Pulmonar Bilateral Difusa grave, Hipertensão Arterial, Diabetes tipo 2 – Insulino-tratado, Dislipidemia, Adenocarcinoma da Próstata e Hiperosteose Esquelética Idiopática Difusa, bem como de Insuficiência Cardíaca e Cardiopatia Isquémica, pelo que deveria ser alterada a redacção do ponto 15 dos factos provados, nos seguintes termos: 15. À data do acidente de viação referido em 1, (…) já sofria de Fibrose pulmonar bilateral difusa grave, hipertensão arterial, Diabetes tipo 2 – Insulino tratado, Dislipidemia, Adenocarcinoma da Próstata, Hiperosteose esquelética idiopática difusa, Insuficiência Cardíaca e Cardiopatia Isquémica.
V. Não obstante os peritos médicos do Conselho Médico-Legal do INML terem considerado que as lesões resultantes do acidente de viação (fractura da D8 e pneumotórax) agravaram as alterações pulmonares de que (…) sofria e facilitaram o aparecimento de complicações como a pneumonia, referiram também expressamente que tais lesões “não foram adequadas para produzir a morte do mesmo” e que “não estiveram na origem da morte de (…)” (cfr. Consulta técnico-científica, junta aos autos a 08.08.2023 pelo Conselho Médico-Legal do INML, a fls. …), factos estes que a sentença omite, não obstante a questão fundamental em causa nos presentes autos ser, precisamente, a causa da morte de (…).
VI. A ausência deste nexo causal naturalístico entre as lesões resultantes do acidente de viação e a morte do mesmo, foi corroborada pelo perito do INML que realizou a perícia ordenada nos presentes autos, quando, no respectivo relatório médico legal, à pergunta “As referidas lesões (fractura vertebral D8 e Pneumotórax à direita) foram adequadas a produzir a morte do (…)?”, respondeu claramente que “Não” – cfr. Relatório de Perícia Médico-Legal do INML de 26.01.2023, junta aos autos a fls. ….
VII. Tendo concluído também nesse sentido a médica que elaborou o Certificado de Óbito de (…), a Dra. (…), que aí identificou como causas da morte: “a) Infecção respiratória; Fibrose Pulmonar; Insuficiência cardíaca, diabetes, hipertensão arterial” – cfr. doc. 3 junto com a Contestação, sem qualquer referência, portanto, às lesões resultantes do acidente de viação,
VIII. Concretizando tal médica no âmbito do seu depoimento em Tribunal (cuja gravação se encontra disponível no sistema habilus/ citius no Ficheiro áudio “Diligencia_873-22.6T8BJA_2024-11-14_11-03-05”) que não lhe pareceu que as lesões resultantes do acidente de viação – por estarem tratadas à data da alta relativa ao primeiro internamento – tivessem contribuído para a morte de (…).
IX. Depoimento esse em linha também com as conclusões do Dr. (…) – médico que prestou serviços para a Ré e que ainda avaliou (…) em vida (cuja gravação se encontra disponível no sistema habilus/ citius no Ficheiro áudio “Diligencia_873-22.6T8BJA_2024-11-14_11-40-49”).
X. Até mesmo o Dr. (…) – médico consultado pelos Recorridos antes da presente acção e único favorável à existência de nexo causal entre as lesões do acidente e a morte – (cuja gravação se encontra disponível no sistema habilus/ citius no Ficheiro áudio “Diligencia_873-22.6T8BJA_2024-11-14_10-29-48”) acabou por reconhecer a irrelevância das lesões causadas pelo acidente face às circunstâncias de saúde prévias de (…), deixando claro que a simples ida às urgências para fazer um exame cautelar teria originado a morte de (…).
XI. Ou seja, não existe qualquer nexo causal (naturalístico) entre as lesões resultantes do acidente e a morte de (…), que faleceu de uma pneumonia num contexto de comorbilidades graves, designadamente pulmonares e cardíacas, prévias ao acidente, motivo pelo qual, a ora Recorrente entende que devem ser acrescentados os seguintes factos novos à matéria de facto provada: 15-A. As lesões mencionadas em 4 não estiveram na origem da morte de (…) nem foram, isoladas, adequadas para produzir a morte do mesmo, apenas vieram agravar as alterações pulmonares de que (…) sofria e condicionar o aparecimento de complicações, como pneumonias e alterações ventilatórias. 15-B. A causa directa da morte de (…) foi uma Infecção Respiratória em contexto de Fibrose Pulmonar e Insuficiência Cardíaca.
XII. Para que um facto seja causa adequada de um determinado evento, “não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano”, sendo essencial que o “facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como vulgarmente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano” – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 2ª Edição, 1973, págs. 744 e 756.
XIII. Conforme se pode ler no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2022, proferido no processo n.º 4571/18.7T8CBR.C1, “O problema do nexo de causalidade resolve-se, à luz da formulação negativa do art. 563º citado, através da resposta à questão da probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão – o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto –, que não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que, admite, não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano – neste sentido, por ex., os Acórdãos do STJ de 06.11.2002, 29.06.04, 20.10.2005, 07.04.2005, 13-03-2008 e 18.12.2013 procs. 02B1750, 03B4474, 05B2286, 05B294, 08A369 e 1749/06.0TBSTS.P1.S1, todos pesquisáveis em www.dgsi.pt. Ou seja, o facto só deixa de ser causa adequada do dano quando se mostre, por sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais. Ou seja, significa que a conduta ilícita do condutor veículo automóvel de matrícula (…), segurado na Ré/Apelante, só deixa de ser considerada causa adequada da produção do dano morte, quando este comportamento se tenha revelado de todo indiferente para a produção do dano.”
XIV. Embora o primeiro internamento de (…) referenciado nos autos tenha sido motivado pelo acidente, a sua morte, ocorrida quase quatro meses depois, nada tem que ver com este nem pode ser visto como causa dela, para efeitos da "teoria da causalidade adequada", pois a verdadeira causa da morte – a pneumonia – não foi causada pelo acidente.
XV. Pela tese da causalidade adequada, mesmo na sua formulação negativa – mais ampla –, não é possível imputar o dano morte ao acidente de viação e às lesões causais (fractura da R8 e pneumotórax), sendo forçoso concluir que a morte, causada por uma bactéria, vírus ou fungo (pneumonia) contraída em contexto hospitalar ou mesmo no dia-a-dia do falecido (…) após ter tido alta do internamento causado pelo acidente de viação, que causou complicações de saúde que o mesmo não aguentou, fruto das comorbilidades de que já padecia, não constitui um resultado típico, normal, expectável ou previsto, antes surgindo como um resultado totalmente inesperado, anormal, anómalo e excepcional, para o que foram determinantes circunstâncias inesperadas, anómalas, anormais, excepcionais e extraordinárias.
XVI. Considerando que, à data da sua morte, (…) tinha uma cônjuge (a Recorrida …) e duas filhas (… e a Recorrida …), são apenas essas as pessoas que, ao abrigo do artigo 496.º do Código Civil e conforme jurisprudência unânime nesse sentido – veja-se o acórdão do STJ de 11.12.2019, proferido no processo n.º 107/15.0GAMTL.E1.S2 – têm direito a uma indemnização por danos não patrimoniais, e já não os seus netos, os aqui Recorridos (…) e (…).
XVII. O facto de os netos surgirem nos presentes autos porque a respectiva mãe repudiou a herança de (…), em nada altera tal conclusão, pois, conforme é actualmente pacífico na jurisprudência, a indemnização prevista no artigo 496.º nada tem que ver com a herança do de cujus (ou com a respectiva sucessão), mas sim com um direito próprio que nasce na esfera jurídica das pessoas que o legislador entendeu que, pela sua proximidade natural, mais sofrem com a morte da vítima. Nesse sentido, veja-se, designadamente, o acórdão do STJ de 01.03.2018, proferido no processo n.º 1608/15.5T8LRA.C1.S1.
XVIII. Sem prejuízo da dor, tristeza e desgosto que os tratamentos e internamentos causaram a (…), a quantia de € 40.000,00 fixada a título de indemnização pelo chamado “dano intercalar” é excessiva perante a ausência de matéria de facto que a sustente e viola do princípio da equidade previsto no artigo 4.º do Código Civil, sendo mais adequada uma indemnização não superior a € 10.000,00.
XIX. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, na sentença recorrida, violou, pois, designadamente, o disposto nos artigos 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, e 4.º, 496.º, 563.º do Código Civil.

Na resposta sustenta-se a manutenção do decidido.
Os AA. aproveitam para deduzir recurso subordinado, mas este não foi admitido, em decisão não reclamada.
Cumpre-nos agora decidir.

Da impugnação da matéria de facto
O artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao artigo 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Reconhecendo, preliminarmente, que a Recorrente cumpriu o ónus de impugnação fáctica a que se refere o artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, e consignando que se procedeu à audição da prova gravada e à análise da documentação anexa aos autos, analisemos a matéria de facto impugnada.
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Quanto aos pontos 5 e 8, a Recorrente sustenta que, no dia 07.05.2021, o derrame pleural era à esquerda, conforme a nota de alta, que menciona: “Existe agora de novo ligeira quantidade de líquido pleural à esquerda no actual contexto em provável reacção com hemotórax e fina lâmina direita”.
Ora, o hemotórax era à direita, e o Conselho Médico-Legal interpretou esse documento e concluiu que “logo no dia 07 de Maio, está relatado o aparecimento de derrame pleural direito” – resposta ao 1.º quesito.
Estando em causa uma avaliação pericial altamente credível, apenas podemos concluir que a nota da alta contém um lapso material, tanto mais que no segundo internamento, que ocorre de 07.06.2021 a 15.06.2021, se declara tratar-se de “Doente com persistência de derrame pleural direito após traumatismo torácico a 5 de Maio de 2021”.
Deste modo, a impugnação dirigida aos pontos 5 e 8 é desatendida.
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Quanto ao ponto 15, e consequente aditamento de dois novos pontos, com os n.ºs 15-A e 15-B, a Recorrente pretende que se especifiquem as patologias que já afectavam a vítima na data do acidente, e que as lesões neste ocorridas – pneumotórax à direita e fractura de D8 – não estiveram na origem da morte nem foram, isoladas, adequadas para produzir a morte, e apenas vieram agravar as alterações pulmonares e condicionar o aparecimento de complicações, como pneumonias e alterações ventilatórias.
Mais pretende que se declare provado que a causa directa da morte foi uma infecção respiratória, em contexto de fibrose pulmonar e insuficiência cardíaca.
Acerca dos antecedentes da vítima e da causa da morte, pronunciou-se o Conselho Médico-Legal e, para além de revelar, na resposta ao quesito 1º, que na data do último internamento – a 29.08.2021 – a vítima apresentava “sequelas de fracturas de arcos costais, não relatados em TAC anterior”, certamente não produzidas no acidente dos autos, na resposta aos quesitos 2º e 3º esclarece que as lesões produzidas no acidente, “isoladas, não foram adequadas para produzir a morte, mas facilitaram o aparecimento de complicações, como pneumonia e insuficiência respiratória num doente com patologia pulmonar grave”.
Importando que a matéria de facto retracte, com fidelidade, as conclusões obtidas por aquele Conselho, dada a sua especial autoridade e credibilidade, a impugnação procede, nos seguintes termos:
- o ponto 15 passará a ter a seguinte redacção: “À data do acidente, (…) sofria de fibrose pulmonar grave, insuficiência cardíaca classe 2, cardiopatia isquémica por doença coronária, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, dislipidemia e adenocarcinoma da próstata, submetido a radioterapia”;
- aditar um ponto 15-A, com a seguinte redacção: “As lesões produzidas no acidente – pneumotórax à direita e fractura de D8 – isoladas, não foram adequadas para produzir a morte, mas facilitaram o aparecimento de complicações, como pneumonia e insuficiência respiratória num doente com patologia pulmonar grave, como a fibrose pulmonar e outras comorbilidades, como hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia e adenocarcinoma da próstata. Estas complicações, sobretudo infecciosas, como pneumonia, correspondem a causas adequadas para produzir a morte de (…)”;
- aditar um ponto 15-B, com a seguinte redacção: “A causa directa da morte foi: a) infecção respiratória; b) fibrose pulmonar; e, c) insuficiência cardíaca, diabetes e hipertensão arterial”.

O elenco fáctico provado fica assim estabelecido:
1. No dia 05 de Maio de 2021, pelas 18h00m, na Estrada Municipal, n.º (…), em Beja, ocorreu uma colisão entre o veículo de matrícula (…), e o veículo de matrícula (…), conduzido pelo (…).
2. A responsabilidade civil emergente de acidentes causados pelo veículo automóvel com a matrícula (…) encontrava-se, à data do acidente, transferida para a Ré, a coberto da apólice n º (…).
3. A Ré assumiu a responsabilidade pela ocorrência do sinistro supra descrito.
4. Na sequência do sinistro, (…) foi transportado para o hospital de Beja, com pneumotórax [entrada de ar para a pleura] à direita e trauma da coluna dorsal com fractura de D8.
5. No dia 07 de Maio de 2021, surge derrame pleural direito [líquido dentro do espaço pleural].
6. Foi tratado, vigiado e assistido no referido hospital, de onde teve alta no dia 31 de Maio de 2021.
7. No dia 07 de Junho de 2021, (…) voltou a dar entrada no hospital de Beja, por pneumonia com insuficiência respiratória.
8. Mantinha derrame pleural direito; já não apresentava pneumotórax.
9. Foi tratado, vigiado e assistido no referido hospital, de onde teve alta no dia 15 de Junho de 2021.
10. No dia 09 de Julho de 2021, deu entrada no hospital da Luz, em Setúbal, por pneumonia com dificuldade respiratória.
11. Mantinha derrame pleural à direita.
12. Foi tratado, vigiado e assistido no referido hospital, de onde teve alta no dia 20 de Julho de 2021.
13. A partir desta data, o (…) foi aconselhado a efectuar reabilitação em ambiente institucional, razão pela qual recorreu ao apoio de uma instituição, o Lar Residencial Associação de Beneficência de (…), em (…), onde permaneceu para que lhe prestassem os cuidados de fisioterapia e reabilitação necessários.
14. No dia 29 de Agosto de 2021, deu entrada no hospital de Beja, por pneumonia, derrame pleural e insuficiência cardíaca descompensada, apresentando sequelas de fracturas de arcos costais, tendo vindo a falecer no dia 30 de Agosto de 2021.
15. À data do acidente, (…) sofria de fibrose pulmonar grave, insuficiência cardíaca classe 2, cardiopatia isquémica por doença coronária, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, dislipidemia e adenocarcinoma da próstata, submetido a radioterapia.
15-A. As lesões produzidas no acidente – pneumotórax à direita e fractura de D8 – isoladas, não foram adequadas para produzir a morte, mas facilitaram o aparecimento de complicações, como pneumonia e insuficiência respiratória num doente com patologia pulmonar grave, como a fibrose pulmonar e outras comorbilidades, como hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia e adenocarcinoma da próstata. Estas complicações, sobretudo infecciosas, como pneumonia, correspondem a causas adequadas para produzir a morte de (…).
15-B. A causa directa da morte foi: a) infecção respiratória; b) fibrose pulmonar; e, c) insuficiência cardíaca, diabetes e hipertensão arterial.”
16. (…) nasceu em 07 de Novembro de 1938.
17. (…) mantinha uma vida autónoma, feliz e realizada, passeando com frequência, convivendo com família e amigos.
18. O acidente em si, os tratamentos e os internamentos provocaram a (…), dor, forte tristeza e desgosto.
19. A morte de (…) causou aos Autores, um profundo desgosto, dor e sofrimento.
20. A 1ª Autora é herdeira habilitada do falecido (…) enquanto cônjuge.
21. A 2ª Autora é herdeira habilitada do falecido (…), enquanto filha.
22. Os 3º e 4ºs Autores são herdeiros habilitados do falecido (…), enquanto netos, por repúdio da sua mãe (…).

Aplicando o Direito.
Do nexo de causalidade
A questão essencial em discussão no recurso consiste no apuramento do nexo de causalidade entre as lesões verificadas no momento do acidente – pneumotórax à direita e fractura de D8 – e a morte da vítima, verificada quase quatro meses depois, após vários períodos intervalados de internamento hospitalar, de permanência em casa e de acolhimento num lar residencial.
A propósito da regra contida no artigo 563.º do Código Civil – “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” – Antunes Varela[1] ensina que esta norma acolheu a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, segundo a qual o estabelecimento do nexo de causalidade, juridicamente relevante para efeito da imputação de responsabilidade, pressupõe que o facto ilícito (acto ou omissão) praticado pelo agente tenha actuado como condição da verificação de certo dano, ou seja, que não foi de todo indiferente para a produção do dano, apresentando-se este como consequência normal, típica ou provável daquele.
Conforme o insigne Mestre, “para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano.”[2] Acresce que “a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. É esse processo concreto que há-de caber na aptidão geral e abstracta do facto para produzir o dano.”[3]
O Supremo Tribunal de Justiça, no seu AUJ n.º 6/2024, de 17/04, afirma o seguinte: “Reconhecendo a generalidade da doutrina mais moderna que pode haver causalidade naturalística sem que exista imputação, tal como esta pode existir independentemente daquela, a dificuldade está em harmonizar a tensão que neste âmbito se evidencia entre dois polos: i) por um lado, libertar a obrigação de indemnizar de um critério naturalístico de causalidade; ii) por outro, a impossibilidade de o ordenamento jurídico agir como se pudesse construir um mundo paralelo, desconectado da realidade da vida”.
E acrescenta o seguinte: “(…) um importante sector da doutrina portuguesa nega hoje que o Código Civil tenha consagrado a teoria da causalidade adequada (…). Mas mesmo quem continua a defender que a causalidade adequada foi adoptada no nosso Código Civil defende também que se deve adoptar a formulação negativa e que, tendo o lesado provado o dano, deveria o lesante invocar que o mesmo se ficou a dever a um outro factor que não a sua conduta, factor esse imprevisível e excepcional”.
Nesta Relação de Évora, discutindo o nexo causal entre o dano e o resultado morte, decidiu-se o seguinte:
· Acórdão de 08.05.2014 (Proc. n.º 1071/10.7TBSTR.E1, publicado na DGSI): “Em face do disposto no artigo 563.º do CC o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, para efeitos indemnizatórios, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto. Por isso, mesmo que existisse um esforço acrescido decorrente da actividade que potenciou o eclodir do evento não se poderia deixar de considerar que esse esforço acrescido, sem a predisposição decorrente da doença, não seria apto para produzir o resultado (morte), pelo que nessa medida, também, não se poderia responsabilizar a demandada pela obrigação de indemnizar a coberto do contrato de seguro”;
· Acórdão de 10.10.2019 (Proc. n.º 3465/16.5T8ENT.E1, publicado no mesmo local): “Não se pode considerar que o stress resultante de um acidente de viação foi causa adequada do enfarte do miocárdio sofrido pelo autor, se o referido stress concorreu com outras causas alheias ao acidente, como os hábitos tabágicos do autor, a sua hipertensão arterial, obesidade e sedentarismo, sendo estas condições, por si só, susceptíveis de provocar um enfarte do miocárdio e não sendo sequer possível quantificar o contributo do stress para a ocorrência do enfarte”.
Neste mesmo sentido, se pronunciou o Acórdão da Relação de Coimbra de 12.07.2022 (Proc. n.º 4571/18.7T8CBR.C1, também publicado na DGSI): “Se, após acidente de viação, a morte do lesado resultou da medicação que lhe foi prescrita, não para tratamento das lesões decorrentes do acidente, mas para obstar a reacção ocorrida a medicamentos destinados ao tratamento de complicações intestinais – óbito causado por uma bactéria que surgiu no intestino na sequência da toma de antibiótico, provocando complicações de saúde que o lesado não aguentou, fruto das comorbilidades de que já padecia –, é de afastar o nexo de causalidade entre o acidente e a morte”.
A sentença recorrida – notavelmente bem fundamentada, reconheça-se – estabelece o nexo causal nos seguintes termos:
Corresponde este, indiscutível, nexo, a uma causalidade adequada para efeitos do artigo 563.º do C.C., nos termos da análise dogmática supramencionada?
Cremos que sim.
Passa o primeiro crivo do pressuposto sine qua non: sem o sinistro não teriam ocorrido as lesões traumáticas [fractura do D8 e pneumotórax] e, sem estas lesões, o falecido não teria ficado num estado de fragilidade e, sem este estado clínico, não teria sucumbido à agressão externa desenvolvida em pneumonia e insuficiência respiratória que, por fim, conduziram à morte.
Ou seja, sem as primeiras lesões, não há morte [pelo menos, claro, de acordo com a informação conhecida e com um grau de probabilidade, nunca se podendo ascender, naturalmente, a uma convicção firmada de acordo com uma certeza exacta, apenas possível, admita-se, na ciência matemática, escapando como patamar probatório a qualquer outra ciência, por mais “exacta” que seja, como a física, a biologia, a medicina, etc.].
Então, era ou não expectável, no sentido de apetência-idoneidade, que o sinistro [o facto ilícito e culposo] viesse a causar o resultado «morte», por via das lesões provocadas e complicações clínicas surgidas das mesmas em (...), pessoa, ademais, de avançada idade? Claro que sim, aplicando o critério do homem médio [bonus pater familiae] que não pode desconhecer a possibilidade de suceder tal conexão de factos, uma vez que, amiúde, tal sucede.
Não tem de lhe ser possível antever se a morte será imediata com o embate ou se vão surgir complicações, e, surgindo estas complicações, de que tipo serão [respiratórias, cardíacas ou outras] e de que, em concreto, como última causa, virá a falecer o lesado [se de uma pneumonia, de um acidente vascular, etc.].
Caso fosse necessário, para que houvesse idoneidade da conduta do lesante, que este pudesse antever o concreto desenrolar dos acontecimentos, na verdade, quase ou nunca, então, haveria nexo, tornando-se a teoria da causalidade adequada totalmente imprestável na vida judiciária.
Não é essa a perspectiva, tão restrita, da causalidade prevista no artigo 563.º do Código Civil.
Como supradito, o nexo pode ser «mediato-indirecto» e «não exclusivo».
É o que sucedeu sub judice, uma e outra características [as lesões iniciais surgem numa cadência de causa-efeitos; para o resultado final contribuem factores adicionais, como sejam as patologias prévias de (…) e o microrganismo que o mesmo contraiu]”.

No entanto, é preciso atender que os factos apurados demonstram o seguinte:
- a vítima já padecia de comorbilidades muito graves – entre elas, fibrose pulmonar grave – num contexto de idade avançada (82 anos);
- as lesões produzidas no acidente – pneumotórax à direita e fractura de D8 – isoladas, não foram adequadas para produzir a morte;
- mas facilitaram o aparecimento de complicações, como pneumonia e insuficiência respiratória num doente com patologia pulmonar grave, como a fibrose pulmonar e outras comorbilidades, como hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, dislipidemia e adenocarcinoma da próstata;
- estas complicações, sobretudo infecciosas, como pneumonia, correspondem a causas adequadas para produzir a morte;
- a causa directa da morte foi: a) infecção respiratória; b) fibrose pulmonar; e, c) insuficiência cardíaca, diabetes e hipertensão arterial;
- decorreu um longo período entre a data do acidente e a morte – de 5 de Maio a 30 de Agosto de 2021 – com quatro internamentos hospitalares intervalados com períodos de permanência em casa e acolhimento num lar residencial;
- na data do último internamento hospitalar, a 29 de Agosto, data anterior ao óbito, o sinistrado apresentava sequelas de fracturas de arcos costais, lesão não detectada anteriormente.
Ora, relembrando “a impossibilidade de o ordenamento jurídico agir como se pudesse construir um mundo paralelo, desconectado da realidade da vida” (AUJ n.º 6/2024), a prova produzida não demonstra que as lesões produzidas no acidente – pneumotórax à direita e fractura de D8 – isoladas, fossem adequadas para produzir a morte. O parecer do Conselho Médico-Legal é incisivo: tais lesões “não estiveram na origem da morte de (…)”.
O que sucedeu foi que facilitaram o aparecimento de complicações, que normalmente não surgiriam num indivíduo saudável. E tais complicações apenas surgiram porque a vítima, para além da idade avançada, padecia de patologias bastante graves e aptas, cada uma delas, a provocar a morte: a fibrose pulmonar, a hipertensão arterial, a diabetes mellitus, a dislipidemia e o adenocarcinoma da próstata.
As complicações surgem porque essas graves patologias também estavam presentes, e tal constitui uma circunstância excepcional que interrompe o processo causal que poderia ligar as lesões ocorridas no acidente à morte da vítima.
Ademais, não se pode olvidar que ocorreram interrupções na conexão de factos entre o acidente e a morte, de tal modo que não se pode afirmar, naturalisticamente, que este seja consequência daquele.
Temos o primeiro período de internamento – de 5 a 31.05.2021 – com a alta concedida face às lesões ocorridas no acidente. O segundo período de internamento – de 7 a 15.06.2021 – onde é diagnosticada e tratada a pneumonia. O terceiro período de internamento – de 9 a 20.07.2021 – com pneumonia e dificuldade respiratória, seguindo-se nova alta e o acolhimento num lar residencial. Finalmente, o internamento a 29.08.2021 e o óbito no dia seguinte, sendo a causa directa da morte a infecção respiratória, a fibrose pulmonar, a insuficiência cardíaca, a diabetes e a hipertensão arterial.
E temos uma ocorrência estranha ao processo causal entre o acidente e a morte, a fractura dos arcos costais, que apenas surge a 29.08.2021, sinal de uma intervenção externa em período temporal próximo à data do óbito.
Neste contexto fáctico, concluímos que o nexo naturalístico entre o acidente e o óbito de (…) não está demonstrado, e tal importa que os AA. apenas tenham direito a ser ressarcidos, enquanto herdeiros, pelas lesões físicas sofridas pela vítima no acidente (a fractura de D8 e o pneumotórax) e pelo período de internamento que se lhe seguiu – de 5 a 31.05.2021 – ressarcíveis face ao artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, perante os quais, aplicando critérios de equidade, se atribui uma indemnização de € 15.000,00.
Quanto aos danos não patrimoniais próprios invocados pelos AA., o AUJ n.º 6/2014, de 09/01, fixou a seguinte jurisprudência: “Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.
Escreve-se o seguinte neste aresto:
(…) entendemos dever reservar a extensão compensatória apenas para os casos de particular gravidade.
Decerto que, com esta posição, fica uma linha delimitadora algo incerta. Nalguns casos a subsunção é evidente, mas noutros será sempre exigido esforço jurisprudencial. Contudo, cremos não poder, nem dever ir mais além na tentativa, que seria vã, de procurar nitidez. O que cremos dever ser precisada é a exigência de particular gravidade em duas vertentes: uma, quanto aos ferimentos da vítima sobrevivente e outra quanto ao sofrimento do cônjuge.
Geralmente uma determina a outra mas pode assim não ser e a argumentação no sentido da interpretação actualista só se concebe, verificadas as duas”.
Sucede que, no caso dos autos, os danos não patrimoniais reflexos dos AA. apenas foram alegados e provados quanto ao desgosto, dor e sofrimento decorrentes do óbito de (...).
Porém, não tendo sido possível estabelecer o nexo causal entre o acidente e a ocorrência do óbito, tais danos não podem ser indemnizados pela Seguradora, pelo que também esta parte do pedido decai.

Decisão.
Destarte, concede-se provimento ao recurso, na medida em que se revoga a sentença recorrida e se condena a Ré a pagar aos AA., apenas, a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos por (…) e enquanto seus herdeiros, acrescida de juros de mora desde a data da sentença e até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento.
Évora, 2 de Outubro de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Maria Domingas Simões
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] In Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., 2000, pág. 900.
[2] Loc. cit., pág. 894.
[3] Idem, pág. 896.