Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2766/25.6JAPRT-A.E1
Relator: MARIA JOSÉ CORTES
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: I - O perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, para ser fundamento de aplicação da prisão preventiva (artigo 204º, al. c), do C. P. Penal), exige a verificação de circunstâncias particulares que, em concreto, tornem previsível a alteração da ordem e tranquilidade públicas, não bastando a convicção de que certo tipo de crimes poderá, em abstrato, causar emoção ou perturbação públicas.
II - Subjacente a tal perigo não poderão, pois, estar questões ligadas à prevenção geral positiva, que se reconduzem às finalidades próprias das penas, sob pena de, a entender-se o contrário, se atribuírem às medidas de coação em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais (como exige o disposto no artigo 191º, nº 1, do C. P. Penal).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, as Juízas que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO

1.1. No âmbito do processo n.º 2766/25.6JAPRT, por decisão de 30 de maio de 2025, a Exa. Senhora Juiz de Instrução determinou que o recorrente P, devidamente identificado no auto de primeiro interrogatório, aguardaria os ulteriores termos do processo sujeito à medida coativa de prisão preventiva, cumulada com a medida proibição de contactos com as ofendidas e com a testemunha M, por se mostrar indiciada a prática de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), 4 a 6, do Código Penal; 1 (um) crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), 4 a 6, do Código Penal; 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 3, alínea b), e art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal; 79 (setenta e nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, e art.º 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2 e artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
*
1.2. Não se conformando com esta decisão, o arguido dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
I – O Mmo juiz “a quo” aplicou a medida de coação mais gravosa prisão preventiva.
II – As finalidades pretendidas com a prisão preventiva poderão ser com a aplicação da Obrigação de Permanência na habitação (OPH), com ou sem vigilância electrónica, cumulada com a proibição de contactos.
III – Os perigos de continuação da actividade criminosa, perturbação do inquérito e aquisição, conservação e veracidade da prova e perigo de fuga, se acaso existirem, estarão totalmente prevenidos com a aplicação da aludida OPH, cumulada com a proibição de contactos.
IV – Nenhum dos perigos convocados como fundamento para a prisão preventiva existem em concreto, nem são avançados no despacho recorrido quaisquer dados da existência concreta desses perigos, como exigido pelo art.º 204.º do CPP.
V – A OPH conjugada com a proibição de contactos, é também, além de uma medida adequada, proporcional e suficiente a medida que financeiramente representa um menor encargo para o Estado, sem que com isso haja qualquer ferimento das finalidades processuais.
VI – Ao aplicar a prisão preventiva em detrimento da OPH, a Mma. JIC violou os art. 193.º, 201.º e 204.º do CPP.
*
1.3. Notificado da interposição do recurso, respondeu o Ministério Público, com os fundamentos explanados na respetiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (transcrição):
1- O presente recurso é interposto do douto despacho do Meritíssimo Juiz de Instrução que aplicou ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva.
2- O recorrente alega que o despacho recorrido violou os requisitos legais para a aplicação da medida de coacção mais gravosa – a prisão preventiva – por não se mostrar indiciados os perigos a que alude o disposto no artigo 204º do Código de Processo Penal.
3- O recorrente contraditoriamente, não colocando em causa a forte indiciação dos factos que constituem crimes de violência doméstica e de abusos sexuais agravados contra crianças (neste segmento nem sequer é objecto de recurso), pugna pela revogação do despacho recorrido que aplicou a prisão preventiva e a sua substituição por outro que lhe aplique a medida de coacção de OPHVE, sendo certo que refere que não estão indiciados quaisquer dos perigos a que alude o artigo 204º do Código de Processo Penal, que aliás entende ter sido violado pelo douto despacho a quo.
4- Não é de descurar que estando fortemente indiciados os factos e os perigos de continuação da actividade criminosa, atenta a personalidade violenta, agressiva e impulsiva do recorrente, a bem da protecção e segurança da vitima, a simples medida menos gravosa de proibição de contactos com aquela, ainda com vigilância electrónica, não é adequada nem eficaz para assegurar e salvaguardar os perigos que se fazem sentir.
5- Assim, a única medida de coacção que tem a virtualidade de o conseguir, é a prisão preventiva, pelo que a douta decisão não merece qualquer censura.
6- Contudo, sempre se dirá o seguinte: sendo, patente que subsiste um sério e grave perigo de continuação da actividade criminosa por parte do recorrente que a medida de coacção OPH, ainda que com vigilância electrónica, não acautela nem previne eficazmente, posto que nada impede que o mesmo possa desde casa, importunar as ofendidas através do uso de tecnologias de telecomunicação, ou durante saídas autorizadas para trabalhar, possa estar com elas e praticar actos de violência física, psicológica e ou sexual, como os fortemente indiciados, colocando em causa as suas vida e integridades físicas e sexual.
7- Deste modo, deverá o presente recurso ser declarado improcedente, mantendo-se, nos seus precisos termos, a douta decisão ora em recurso.”
*
1.4. Foi aberta vista, nos termos do art.º 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo o Exo. Procurador Geral Adjunto proferido douto parecer no qual pugna pela improcedência do recurso.
*
1.5. Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelo recorrente ao parecer do Exo. Procurador Geral.
*
1.6. Colhidos os vistos e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
**
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Dispõe o art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
As conclusões constituem, pois, o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Dito de outro modo e tendo em conta o disposto nos art.ºs 402.º e 403.º, do Código de Processo Penal, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, já que são nelas que sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são, sem prejuízo das de conhecimento oficioso:
1.ª Da (in)existência dos perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e a tranquilidade públicas;
2.ª Determinar se o despacho recorrido violou os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade, e subsidiariedade por suficiência de outras medidas coativas, com a consequente substituição da medida de prisão preventiva pela aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, ainda que cumulada com a proibição de contatos.
*
2.2. A decisão recorrida
2.2.1. Factos que o tribunal recorrido considerou fortemente indiciados e fundamentação de facto:

(………………………………………)

2.2.2. Fundamentação da opção do tribunal recorrido pela aplicação da medida de coação de prisão preventiva:
Considera-se fortemente indiciada a prática pelo arguido de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), 4, a 6, do Código Penal – na pessoa da ofendida T (factos 8 a 10); 1 (um) crime de violência doméstica agravado, p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), 4, a 6, do Código Penal – na pessoa da menor S (factos 11 a 13); 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea b), e artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal- na pessoa da menor S (factos 14 a 18); 79 (setenta e nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, e artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal- na pessoa da menor S (factos 23 a 26); e 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1, e 2, e artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal- na pessoa da menor S (factos 19 a 22 e 27), sublinhando-se que na parte relativa aos crimes de natureza sexual a cada ato corresponderá um crime e sempre seria assim porque não há qualquer contexto exterior que diminua a culpa do agente.
*
Entendemos que se verifica o perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de fuga e de perturbação do inquérito na modalidade de aquisição e conservação da prova e da ordem e tranquilidade pública.
Quanto ao perigo de fuga, é certo que o perigo de fuga não pode ser afirmado em abstrato, mas também não se pode exigir que haja atos concretos de tentativa de fuga para se poder afirmar esse perigo, o perigo de fuga existe se por força da facilidade de deslocação, de contacto, meios, mobilidade e previsíveis sanções expetável que o arguido se possa ausentar para parte incerta. É o que ocorre no caso dos autos, o arguido reside e trabalha na Holanda, tendo facilidade de mobilidade não só no espaço Schengen, mas como para fora dele, sendo que a moldura para os crimes imputados é grave.
Quanto à perturbação da prova, uma vez que o arguido demostra, pelos factos indiciados, uma personalidade violenta, tendo com a ofendida T uma relação duradoura, havendo o risco que este possa influenciar no depoimento desta e também da ofendida S, pressionando-as a alterar o seu depoimento ou até mesmo a não prestarem declarações como já terá feito relativamente a testemunha M (é o que resulta do depoimento desta).
Quanto ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, dado o forte impacto e sentimento de insegurança e desproteção que este tipo de criminalidade sexual sobre crianças provoca na comunidade.
Quanto de continuação da atividade criminosa, os factos indiciados denotam que o arguido tem uma personalidade com sinais de perturbações de natureza sexual, com características de compulsividade.
*
A aplicação de medidas segue um sistema gravativo em função da sua necessidade e proporcionalidade, só sendo de aplicar a medida mais gravosa se a inferior não satisfazer as exigências de prevenção reservando-se a medida de prisão preventiva como medida residual para os casos que nenhuma das outras medidas resolve essas exigências e desde que seja legalmente admissível a sua aplicação.
No caso dos autos, entendemos que a gravidade dos facto indiciados, a sua reiteração no tempo impõem aplicação de medida detentiva, tendo em conta as sanções que previsivelmente lhe venham a ser aplicadas ao arguido e as apontadas exigência cautelares, nenhuma medida não detentiva é suscetível de assegurar com eficácia os perigos atrás afirmados, nomeadamente o de fuga, porque o arguido podia se deslocar livremente, o de perturbação da prova, porque poderia exercer pressão sobre as testemunhas e o de continuação da atividade criminosa uma vez que o arguido em liberdade poderia cometer contras estas vitimas, em especial nos crimes sexuais ou, contra outras, crimes idênticos.
Não obstante a preferência, dentro das medidas detentivas por Obrigação de Permanência na Habitação, entendemos que no caso não é viável aplicação dessa medida, também por referência as afirmadas exigência cautelares, em parte pelas razões explicitadas pelo Ministério Público, parte dos factos ocorreram por meio eletrónico, noutra parte porque os outos ocorreram na residência precisamente do arguido, havendo, portanto, o risco destes se repetirem.
Em cumulação com a medida de prisão preventiva, a proibição de contactos com as ofendidas e a testemunha justifica-se plenamente, atendendo ao perigo de perturbação do inquérito.
**
2.3. Apreciação do recurso
1.ª Questão
Da (in)existência do perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e a tranquilidade públicas
O recorrente não questiona a verificação da existência de fortes indícios da prática dos factos que lhe são imputados, integráveis nos crimes de violência doméstica agravado e de abuso sexual de menores agravado.
Coloca em crise a verificação concreta dos perigos de fuga, de perturbação do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e a tranquilidade públicas
Vejamos.
De acordo com o disposto no art.º 191.º, n.º 1, do Código Processo Penal, as medidas de coação visam dar resposta a necessidades processuais de natureza cautelar, que resultam da existência dos perigos ou de algum dos perigos enunciados nas três alíneas do art.º 204.º, daquele mesmo diploma, a saber:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
O perigo é sempre uma probabilidade de acontecimento, e não um facto histórico, e por isso, a sua afirmação tem que, em cada caso, ser inferida de factos suficientemente indiciados.
Para a imposição da medida coativa de prisão preventiva é necessário que ocorra, pelo menos (alternativamente), uma das circunstâncias previstas no art.º 204.º, do Código Processo Penal.
Com a consagração do perigo de fuga entre as circunstâncias justificadoras da aplicação das medidas de coação em geral e da prisão preventiva em particular, visa-se assegurar a presença do arguido no decurso do processo e a execução de decisão final.
Como escreve Germano Marques da Silva “Importa ter bem presente que a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções, v.g. da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação da fuga” [Curso de Processo Penal II volume, 1999, p. 243].
Tal não significa, porém, que a gravidade dos factos, aferida pela moldura penal aplicável, deixe de constituir circunstância da maior relevância na formação do juízo de prognose sobre eventual perigo de fuga, na generalidade dos casos, e que só a indiciação de factos que revelem preparação da fuga constitui suporte factual da prognose sobre o perigo de fuga.
Quanto ao primeiro aspeto (relevância de provável condenação em pena concreta elevada), parece-nos inegável que a forte indiciação de que o arguido praticou factos que levarão, com elevada probabilidade, à sua condenação em pena de prisão efetiva, como sucede in casu, é, as mais das vezes, condição ponderosa para que se encare com seriedade a hipótese de fuga como forma de o arguido evitar a execução da pena provável, ainda que o caso concreto possa ditar o contrário.
Quanto ao segundo aspeto (nem só a preparação de fuga indicia perigo de fuga), nada na lei, nos princípios ou nas regras da experiência, permite restringir a prognose positiva sobre a fuga aos casos em que há já uma intenção do arguido materializada em atos preparatórios da mesma, sendo particularmente evidente a desadequação desse entendimento na generalidade dos casos em que é apreciada a necessidade e adequação de medida de coação – máxime da prisão preventiva – logo no início do procedimento criminal.
No caso concreto, entendemos ser fundado o receio de fuga, essencialmente pelas razões já aludidas na decisão sob recurso. Ou seja, da factualidade indiciada e da personalidade do arguido evidenciada nessa factualidade, havendo facilidade de deslocação, como há, uma vez que o recorrente reside e trabalha nos Países Baixos, tendo demonstrado em concreto, facilidade de mobilidade dentro do espaço Shengen e fora desse espaço, sendo que é conhecido do arguido a moldura penal abstratamente aplicável aos crimes imputados ao mesmo.
Ora é de todo expectável, resultando das regras da experiência comum e da vida, que o mesmo se possa ausentar para parte incerta, então aí sim, existe um concreto perigo de fuga que importa debelar com a aplicação de uma medida de coação mais gravosa que o termo de identidade e residência.
Alega o recorrente que tal perigo não existe, por ter essa facilidade de mobilidade por morar e trabalhar nos Países Baixos, na medida em que a acontecer tal fuga, facilmente, através da emissão de mandados de detenção europeu (MDE) ou mandados de detenção internacional (MDI), seria logo detido e extraditado para Portugal, podendo ser agravado o estatuto coativo para a prisão preventiva.
Como bem refere o Ministério Público na sua resposta “Efectivamente, sendo verdade que em caso de fuga, os instrumentos de cooperação internacional como as MDE e MDI podem ajudar a recapturar o fugitivo e sujeita-lo à acção da justiça, também não é menos verdade, que face à facilidade de mobilidade geográfica do recorrente indiciado nos autos, designadamente para fora do espaço Shengen, o mesmo, temendo pela futura condenação a pena de prisão efectiva, atentas as molduras penais superiores a 5 anos de prisão aplicáveis aos crimes que lhe forma imputados, seria de esperar, que o mesmo se sentisse tentado em fugir para um país que não tem qualquer acordo de cooperação internacional em matéria penal com Portugal, inviabilizando-se assim, qualquer extradição para o nosso país. Estava encontrada a forma de conseguir a sua impunidade, desde que não regressasse a Portugal.”
Pois bem, entendemos estar verificado, em concreto, o perigo de fuga do recorrente a que se reporta o art.º 204.º, alínea a), do Código de Processo Penal, mantendo-se o aí decidido a este propósito.
Quanto ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, entendendo-se, na decisão sob censura que ele se verifica, ali se escreveu que “[u]ma vez que o arguido demostra, pelos factos indiciados, uma personalidade violenta, tendo com a ofendida T uma relação duradoura, havendo o risco que este possa influenciar no depoimento desta e também da ofendida S, pressionando-as a alterar o seu depoimento ou até mesmo a não prestarem declarações como já terá feito relativamente a testemunha M (é o que resulta do depoimento desta)” .
Realce-se que aquando da sua inquirição, a testemunha M declarou que foi pressionada pelo arguido a alterar o seu depoimento, sendo, portanto expectável, face às regras da experiência comum, que este tente coagir as vítimas T e S para que não prestem declarações ou que as alterem, se já as prestaram.
A vulnerabilidade das vítimas, advém, entre outros fatores, dessa dinâmica de manipulação e abuso de poder, que as leva, ora a denunciar o seu agressor, ora a encobri-lo ou a adulterar a verdade dos factos, ao sabor das promessas de mudança de comportamento, ou de atos de intimidação.
Desta constatação emerge, no caso, a verificação do perigo de perturbação do inquérito, ademais, atenta a fase processual atual, em pleno decurso da investigação e em face do perfil deste tipo de agressores em que o arguido se integra, o que postula um risco sério de que este tente adulterar a prova e obstaculizar a verdade material.
Verifica-se, também, este perigo.
No que ao perigo de continuação da atividade criminosa concerne, começamos por referir que a aplicação da prisão preventiva, como, aliás, a aplicação de qualquer medida de coação, no âmbito do perigo de que cuidamos, não tem como finalidade acautelar a prática de qualquer futuro crime, mas acautelar, apenas e só, a continuação da atividade delituosa que nos autos é indiciariamente imputada ao arguido [cf. Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 269).
Como se refere na decisão recorrida, os factos indiciados denotam que o arguido tem uma personalidade com sinais de perturbações de natureza sexual, com características de compulsividade.
Da factualidade indiciada evidencia-se, em especial no que concerne à menor S, uma reiteração criminosa. Dela resulta atos descritos como de abuso sexual por cerca de 80 vezes. E precisamente, por efeito dessa reiteração é que, também, existe perigo de continuação da atividade criminosa, sendo certo que o que o juízo de indiciação ilustra é que os abusos e a violência física e psicológica exercidas, em especial sobre a ofendida S, perdurou durante cerca de dois anos.
É preciso sublinhar que o crime de violência doméstica é sobre abuso físico, sexual, emocional e mental e é sobre poder e controlo sobre a vítima em todos os aspetos da sua vida.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido, ao considerar verificado o perigo em causa.
Quanto ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o recorrente não invoca qualquer argumento de onde se possa extrair que ele não existe.
Escreve-se na decisão recorrida:
“Entendemos que se verifica o perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de fuga e de perturbação do inquérito na modalidade de aquisição e conservação da prova e da ordem e tranquilidade pública.
(…)
Quanto ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, dado o forte impacto e sentimento de insegurança e desproteção que este tipo de criminalidade sexual sobre crianças provoca na comunidade.”
Quanto a este perigo exige-se a verificação de circunstâncias particulares que em cada caso concreto devem operar e que tornem previsível a alteração da ordem ou tranquilidade públicas, sendo apenas relevante aquele perigo que pode alterar negativamente a ordem pública, vista esta na dimensão da sociedade em geral e não na do grupo social a que pertence o arguido.
Maia Costa em comentário ao art.º 204.º, do Código de Processo Penal, escreve “para que a medida de coação não sirva finalidades de prevenção criminal ou (antecipadamente) punitivas), o perigo de perturbação da ordem ou tranquilidade públicas só poderá ser invocado em situações em que a libertação do arguido ponham em causa, com alto grau de probabilidade, e gravemente, a ordem ou a tranquilidade públicas, entendidas em termos gerais, embora a nível local, mas não de grupo ou estrato social” [Código de Processo Penal Comentado, 2.ª edição revista, 2016, Almedina, p. 823].
“Ora, se bem compreendemos o sentido e alcance do pressuposto ou requisito geral acolhido na primeira parte da al. c) do art. 204º do CPP, o perigo de perturbação da ordem pública de que aí se fala, sempre deve resultar de circunstâncias concretas e particulares, verificadas e aferidas em concreto, não se confundindo com a convicção – seja ela mais ou menos justificada - de que, em abstracto, certo tipo de crimes –v.g. o tráfico de estupefacientes – justifica sempre ou pelo menos em regra a aplicação de uma medida de coacção, maxime, a prisão preventiva, dado o seu carácter especialmente perigoso ou odioso.
(…)
O perigo de perturbação da ordem pública (…) faz depender as medidas de coação, reporta-se ao fundado risco de grave, concreta e previsível alteração da ordem e tranquilidade públicas, operando a medida de coação adequada - máxime a prisão preventiva - apenas como meio de esconjurar o risco de lesão significativa de bens jurídicos de natureza penal em resultado de alteração previsível, e apenas pelo tempo estritamente necessário” [acórdão deste TRE, de 26.06.2007].
Não basta pois a convicção de que certo tipo de crimes poderá, em abstrato, causar emoção, inquietação ou perturbação públicas; isto é, subjacente a tal perigo não poderão estar questões ligadas à prevenção geral positiva, que se reconduzem às finalidades próprias das penas, dado que daí resultaria a atribuição às medidas de coação em geral de finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais, como exige o art.º 191.º, do Código de Processo Penal [acórdão deste TRE, de 05.04.2022, relatado pela ora 1.ª Adjunta (Fátima Bernardes) – este disponível apenas sob a forma de sumário – e do TRC de 22.03.2023, relatado por Helena Bolieiro).
Por outro lado, esse perigo tem que estar baseado em factos que o evidenciem (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição, p. 602).
Ora, no caso concreto, da factualidade indiciada, acima elencada, não se retiram elementos reais e objetivos que permitam concluir com elevado grau de segurança que há um verdadeiro perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, pelo que se mostra preenchida a al. c) do art.º 204.º, do Código de Processo Penal, apenas quanto à continuação da atividade criminosa.
*
2.ª Questão
Determinar se o despacho recorrido violou os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade, e subsidiariedade por suficiência de outras medidas coativas, com a consequente substituição da medida de prisão preventiva pela aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, ainda que cumulada com a proibição de contatos
Entende o recorrente os perigos a que aludem a decisão recorrida, a existirem, acautelam-se com a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE), cumulada com a proibição de contatos com as ofendidas.
Vejamos.
Para a imposição da medida coativa de prisão preventiva é necessário que ocorra, pelo menos (alternativamente), uma das circunstâncias previstas no art.º 204.º, do Código Processo Penal.
A “aplicação de qualquer das medidas de coação se deve ter em linha de conta a gravidade do crime, a sanção aplicável e não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer” (Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora).
Devem, igualmente, ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que, num juízo de prognose em relação ao julgamento, virão, possivelmente, a ser aplicadas.
O art.º 193.º, do Código de Processo Penal, alude aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
O princípio da necessidade significa que a medida a aplicar deve ser indispensável para a satisfação das exigências cautelares.
O princípio da adequação das medidas de coação exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coação imposta ou a impor.
Afere-se por um critério de eficiência, partindo da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade de esta o neutralizar ou conter.
O princípio da proporcionalidade assenta na ponderação de que na medida a aplicar deve ser considerada a gravidade do crime e a pena que previsivelmente venha a ser aplicada.
No que respeita às medidas de coação de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação há, ainda, que observar o princípio da subsidiariedade nos termos do qual, i) só devem ser aplicadas quando nenhuma das demais medidas de coação se mostre adequada e suficiente para assegurar as exigências cautelares do caso concreto (art.ºs 193.º, n.ºs 2, 201.º, n.º 1 e 202.º, n.º 1, do Código Processo Penal) e, ii) quando as exigências cautelares do caso concreto impuserem a aplicação de medida de coação privativa da liberdade, a obrigação de permanência na habitação prefere à prisão preventiva, desde que se revele suficiente para satisfazer aquelas exigências (art.º 193.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Dito isto, assim se escreve na decisão recorrida:
“No caso dos autos, entendemos que a gravidade dos facto indiciados, a sua reiteração no tempo impõem aplicação de medida detentiva, tendo em conta as sanções que previsivelmente lhe venham a ser aplicadas ao arguido e as apontadas exigência cautelares, nenhuma medida não detentiva é suscetível de assegurar com eficácia os perigos atrás afirmados, nomeadamente o de fuga, porque o arguido podia se deslocar livremente, o de perturbação da prova, porque poderia exercer pressão sobre as testemunhas e o de continuação da atividade criminosa uma vez que o arguido em liberdade poderia cometer contras estas vitimas, em especial nos crimes sexuais ou, contra outras, crimes idênticos.
Não obstante a preferência, dentro das medidas detentivas por Obrigação de Permanência na Habitação, entendemos que no caso não é viável aplicação dessa medida, também por referência as afirmadas exigência cautelares, em parte pelas razões explicitadas pelo Ministério Público, parte dos factos ocorreram por meio eletrónico, noutra parte porque os outos ocorreram na residência precisamente do arguido, havendo, portanto, o risco destes se repetirem.
Em cumulação, com a medida de prisão preventiva a proibição de contactos com as ofendidas e a testemunha, justifica-se plenamente atendendo o perigo de perturbação do inquérito.”
Com efeito, como forma de consciencialização da necessidade de se manter fiel ao direito e de acautelar os perigos enunciados na decisão recorrida, entende-se que qualquer medida de coação não privativa da liberdade não se afigura no presente caso suficiente.
De facto, o nível de violência física, psíquica e sexual, sendo acompanhado de ameaças, o que, em conjugação e potenciado ainda pelo consumo de álcool e produto estupefaciente, por alguém que revela uma personalidade violenta e descontrolada, assumindo os factos uma gravidade elevada, não poderá levar a outra decisão que não seja a aplicação medida de coação mais gravosa.
Ainda se dirá que, a fundamentação de facto e de direito da medida de coação de prisão preventiva, assim como a sua necessidade no caso concreto, está amplamente expressa nos factos fortemente indiciados, que o recorrente não põe em causa, e nos perigos que daí advêm, que o Tribunal a quo, fundamentada e criticamente considerou fortemente e concretamente indiciados, como refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso “(…) face à factualidade fortemente indiciada, à personalidade violenta e possessiva do arguido, à sua compulsividade para a prática de actos sexuais com crianças e/ou com outras vitimas menores para satisfazer a sua líbido e desejo sexual por menores, que existem, em concreto e no caso sub iudex, os perigos de continuação da actividade criminosa, o perigo de fuga, e da perturbação do inquérito, da conservação da prova e da ordem pública, razões mais que suficientes para a aplicação de uma medida de coacção mais gravosa que o termo de identidade e residência.”
As demais medidas, designadamente a OPHVE, ainda que com proibição de contatos, revela-se insuficiente, na medida em que não obsta à continuidade da atividade criminosa e à perturbação do inquérito, sendo apenas a prisão preventiva, a única via que pode acautelar estes concretos perigos.
Sob prisma diverso, atento o número de crimes de cuja prática o arguido se mostra indiciado, a respetiva moldura penal e moldura penal do concurso, torna inviável formular um juízo de prognose positivo ainda que lhe fosse aplicada pena inferior a cinco anos, a mencionada medida de coação é adequada e proporcional.
A obrigação de permanência na habitação, prevista no art.º 201.º, do Código de Processo Penal, com ou sem vigilância eletrónica, é frequentemente considerada uma alternativa adequada à prisão preventiva. Contudo, essa presunção genérica soçobra diante de quadros criminais marcados pela alta intensidade emocional, impulsividade violenta e propensão à reincidência imediata, como sucede tipicamente nos crimes de violência doméstica e de abuso sexual de crianças.
In casu, também, em nosso entender, a medida de Obrigação de Permanência na Habitação ( OPHVE) não se revela adequada nem eficaz contra os perigos acima enunciados, sendo certo que a criminalidade de natureza passional e emotiva como a presente, pelos impulsos que a movem, revela-se pouco sensível a medidas de controlo meramente eletrónico ou remoto, sobretudo quando o arguido revela absoluta incapacidade de controlar os seus impulsos e de respeitar os mais elementares mandamentos legais, assim como tem hábitos adictos que agravarão o seu descontrolo pessoal.
A sua conduta evidencia não apenas insensibilidade penal, mas também inadequação estrutural a qualquer regime de coação meramente supervisionado, sendo previsível, com elevado grau de probabilidade, que violasse a obrigação de permanência na habitação ao mínimo estímulo externo e provocasse nova situação de agressividade.
A violência doméstica e o abuso sexual de crianças constituem uma tipologia criminosa particularmente sensível, precisamente pela constatação de que o agressor mantém com a vítima uma relação pessoal e emocional que multiplica o risco de revitimização. A natureza relacional destes tipos de crime impede que o mesmo se esgote num só momento, pois tende a ser reiterado, cíclico e regressivo, perpetuando-se no tempo mesmo após a rutura formal do vínculo afetivo.
Estudos criminológicos (v.g. Conselho da Europa, GREVIO Reports e Relatório do Observatório das Mulheres Assassinadas da UMAR) confirmam que o maior risco para a vítima ocorre no momento da denúncia e nos meses seguintes, sendo precisamente nesse período que a coação severa e direta, como a prisão preventiva, se impõe com maior acuidade. Permitir que o arguido permaneça na habitação, mesmo que sob vigilância eletrónica, constitui um fator de instabilidade, pois o impulso de contactar, coagir ou retaliar contra a(s) vítima(s) encontra-se ainda latente e inflamado.
O arguido, conforme fortemente indiciado nos autos, apresenta um padrão habitual de consumo de bebidas alcoólicas e substâncias estupefacientes, há vários anos, o que contribui significativamente para a perda de autocontrolo e para a intensificação de ações violentas.
O consumo habitual de substâncias psicotrópicas não apenas diminui a imputabilidade moral do agente, mas, mais gravemente para efeitos cautelares, dificulta qualquer prognose positiva de autocontenção em regime de liberdade condicionada.
A vigilância eletrónica não imobiliza o agressor, apenas o monitoriza passivamente, sendo incapaz de evitar um impulso súbito de agressão que se concretize em poucos minutos, como sucede tipicamente nos comportamentos afetivos.
É precisamente por isso que, mesmo após a implementação da vigilância eletrónica na medida de OPH, se têm verificado homicídios em contexto de violência doméstica, como alertam relatórios do Conselho Europeu e do Relatório de Segurança Interna português.
A medida de prisão preventiva mostra-se, assim, no presente momento, necessária, adequada, proporcional e legalmente admissível.
Neste conspecto, improcede o recurso.
**
III – DECISÃO
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, acordam, em conferência, as Juízas que integram a 2.ª Subsecção Criminal desta Relação, em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas criminais a cargo do recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III, anexa).
Notifique.
**
O presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas suas signatárias – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Évora, 30 de setembro de 2025

Maria José Cortes
Fátima Bernardes
Maria Gomes Bernardo Perquilhas