Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | NUNO GARCIA | ||
| Descritores: | REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO INDEFERIMENTO | ||
| Data do Acordão: | 09/27/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | A não exigência de formalidades especiais prevista logo no início do nº 2 do artº 287º do C.P.P., nada tem que ver com a necessidade da alegação de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, sejam eles integradores do elemento objectivo, sejam do elemento subjectivo, do tipo de crime em causa, sendo certo que a verificação destes últimos também é condição de aplicação de uma pena. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA RELATÓRIO No âmbito do processo 268/21.9GEALR foi proferido o seguinte despacho: “Veio o a assistente requerer a abertura de instrução, insurgindo-se contra o despacho de arquivamento proferido nestes autos, pelo M.P., invocando que devem as denunciadas serem pronunciadas pelos factos e ilícitos que constam elencados do RAI e requerendo a produção de outros meios de prova, não produzidos no inquérito. Conforme dispõe o Artigo 287º, nº 2 do C.P.P. “ o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar (…)”. Conforme o Artigo 286º, nº 1 do C.P.P. “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Num processo penal de estrutura acusatória e em que vigora o principio da vinculação temática, se o M.P. arquivar, é ao assistente que incumbe fixar o objecto do processo, no requerimento de abertura de instrução, elencando os factos que, a serem imputados ao arguido, fundados nos elementos probatórios recolhidos ou no inquérito ou na instrução, suficientemente indiciados, permitindo, assim, a imputação ao arguido de um qualquer ilícito criminal, mormente os imputados. O RAI tem como função, então, de algum modo, substituir-se a uma acusação do M.P. (que não existiu, in casu), por forma a permitir o prosseguimento dos autos. Claramente neste sentido, vai o artigo 287º, nº 2 do C.P.P. quando remete para as alíneas do Artigo 283º, nº 3 do mesmo diploma legal, mormente a al. b) – narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada -. A função do RAI tem que ser, assim, perspectivada atendendo-se ao que é a finalidade da instrução. Ora, a jurisprudência tem considerado que no âmbito do conceito de inadmissibilidade legal do RAI a que alude o Artigo 287º, nº 3 do C.P.P. se enquadra a situação presente, em que, arquivados os autos pelo M.P., o RAI não contêm a elencação dos factos a imputar ao arguido que preencham todos os elementos, objectivo e subjetivo do tipo de ilícito imputado, porquanto tal situação redonda numa impossibilidade de pronúncia do arguido. Neste sentido, entre muitos outros, o Ac. do TRG de 11/07/2017, no processo nº 649/16.0TBRG.G1, relatado por Jorge Bispo ou Ac. do TRL de 12/03/2019, relatado por Artur Varges no processo 5257/16.2T9SNTL1-5, em ambos se referindo que a jurisprudência maioritária dos nosso tribunais vai em tal sentido. Tais omissões ou patologias do RAI não são susceptiveis de despacho de aperfeiçoamento, conforme Ac. do STJ nº 7/2005, publicado no DR nº 212/2005, I-S de 04/11/2005 (Armindo dos Santos Monteiro), frisando-se que, de modo algum, a omissão de factos que integrem o elemento subjetivo (dolo, quer na sua vertente volitiva, quer na sua vertente intelectual), vontade consciente ou a consciência da ilicitude são passiveis de serem sanadas com a figura da alteração de factos, também conforme o Ac. do STJ nº 1/2015, publicado no DR nº 18/2015, I-S de 27/01/2015 (Rodrigues da Costa). Ora, o que ocorre no caso presente? Em primeiro lugar, a instrução consubstancia uma fase de controlo judicial do que foi o trabalho do M.P.. Não constitui uma continuação da investigação iniciada no inquérito, nem um início de investigação quanto a novos factos não previamente investigados. No caso presente, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente é perfeitamente omisso quanto a: - à concreta actuação imputada a AA, que integre um qualquer ilícito criminal, de que só se menciona ser titular da conta bancária para a qual as transferências eram realizadas (e genericamente dizendo que a mesma também fazia trabalhos espirituais); - quanto a datas, modos de actuação e agentes das condutas que a assistente qualifica como de acesso ilegítimo à sua conta bancária e telemóvel (sms), adulteração e apagamento de dados (que não identifica quais sejam) e avaria e dano do seu PC, afirmando a assistente desconhecer quem assim terá procedido (requer perícia para identificação dos autores dos “ataques informáticos”), não sendo possível requerer a abertura de instrução quanto a desconhecidos, mas somente quanto a pessoas concretas, agentes de ilícitos criminais imputados; - quanto aos factos atinentes ao dolo dos crimes imputados de sabotagem informática e dano relativo a programa ou dados informáticos (artigos 4º, nº 1 e 5º da Lei do Ciber Crime); - quanto a uma vontade livre, consciente e uma consciência da ilicitude quanto a todas as condutas imputadas, atinentes a todos os ilícitos imputados, sejam burla, sabotagem e dano relativo a programa ou dados informáticos; - quanto ao dolo atinente ao crime de burla, seja na sua vertente intelectual, seja na sua vertente volitiva - quanto a factos concretos de que derive a “astúcia” e o “engano” e o nexo causal entre ambos e a conduta realizada pela ofendida, que lhe terá causado prejuízo patrimonial, dado que o RAI só contém afirmações conclusivas quanto a tais elementos (v.g. “a assistente/ofendida foi astuciosa e ativamente induzida no erro de acreditar que (…) as denunciadas, pelos seus específicos “poderes” e pelas práticas que concretamente lhe fizeram crer que dominavam, iam curar a própria e em especial a sua filha dos males que espiritualmente alegadamente a dominavam”. Alude às razões da sua discordância com a acusação, mas não deduz nenhuma acusação autónoma, com as formalidades elencados no Artigo 283º do C.P.P., a qual possibilite a prossecução dos autos, fixando o objecto dos mesmos, permitindo a cabal defesa e contraditório por parte das denunciadas e um eventual despacho de pronúncia. Mais, o inquérito nunca investigou quaisquer problemas informáticos, acessos ilegítimos, danos em PC ou em programas, alteração e apagamento de dados. Tal não foi objecto de queixa (vide fls. 2 e segs. e fls. 37 e segs.), bem como não foi objecto do despacho de arquivamento, sendo que a instrução não pode versar sobre factos, novos, que não tenham sido objecto de prévia investigação e que não estivessem já contidos no objeto dos autos, o que implicaria a inadmissibilidade legal da instrução, por inadmissibilidade legal, por causa diversa da falta de alegação de factos. Assim sendo, há que não admitir o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do Artigo 287º, nº 3 do C.P.P.. DECISÃO: Termos em que, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente BB, ao abrigo do Artigo 287º, nº 3 do C.P.P.., por inadmissibilidade legal da instrução.”
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Inconformado com tal decisão, dela recorreu a assistente BB, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões: “1-Os atos de inquérito não são apenas suscetíveis de reclamação hierárquica, terão sempre que ser sindicados, quanto à sua legalidade, pelo juiz de instrução, quando tal seja solicitado. 2– A decisão recorrida procede a uma errada aplicação do direito, dado que põe termo ao processo quando a lei determina que tenha lugar a fase instrutória, gerando os presentes autos uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, por omissão da fase de instrução num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade. 3 – A decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução não está na discricionariedade do tribunal, antes sendo admissível apenas nos casos expressamente previstos na lei. 4– O n.º 2 do art.º 287 do CPP dispõe que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de não acusação, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas al.ªs b) e c) do n.º 3 do art.º 283 do CPP, sendo todas as referidas normas legais violadas pelo despacho em crise. 5 – Por força desta remissão, o RAI deve ainda conter a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo., se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e deve ainda indicar as disposições legais aplicáveis. 6– O RAI apresentado observou todos os requisitos e formalidades acima identificados, dado que a assistente fez saber quais as razões pelas quais não concordada com o despacho de arquivamento, descrevendo quais os concretos comportamentos dos denunciados suscetíveis de integrar a prática do crime de burla. 7 – O tribunal recorrido, antecipando um juízo de prognose – que, nos termos da lei, apenas tem lugar no final da fase de instrução (art.º 308 do CPP) – optou por indeferir liminarmente o requerimento de abertura de instrução e consequentemente impossibilitar a realização de prova pericial requerida no RAI, fundamental para a cabal descoberta da verdade material. 8 – A decisão recorrida procedeu a uma errada aplicação do direito, rejeitando o requerimento de abertura de instrução num caso em que a lei não permite tal rejeição. 9 – Dispõe o n.º 3 do art.º 287 do CPP - que o despacho em crise viola frontalmente – que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. 10 – O tribunal a quo considerou que no conceito de inadmissibilidade legal de instrução se inclui a omissão dos elementos previstos nas al.ªs b) e c) do n.º 3 do art.º 283 do CPP - trata-se de uma interpretação errada da lei. 11 – Em primeiro lugar porque em parte alguma do n.º 2 do art.º 287 se refere que esses elementos são obrigatórios, sob pena de rejeição do requerimento, pelo contrário, a letra da lei tem uma tónica claramente indicativa e ordenadora. 12 – Em segundo lugar, porque resulta evidente que a lei quis ser específica, concreta e taxativa no que diz respeito aos fundamentos de rejeição do requerimento de abertura de instrução; e não faria sentido estipular no art.º 287 n.º 3 do CPP que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, ou seja, em três casos específicos e taxativos, e depois interpretar o último desses casos de rejeição como abarcando toda e qualquer situação em que se entendesse que o requerimento de abertura de instrução não contém as menções previstas na lei, sobretudo quando do próprio texto da lei, e para o MP, que tem poderes de investigação que estão vedados ao assistente, se inclui a expressão “se possível” (art.º 283 n.º 2 al.ª c)). 13 – Pelo que, in casu, e ao arrepio da lei, o Mm.º JIC entendeu que a assistente, que não tem poderes de investigação, nem para obtenção de meios de prova essenciais, mormente prova pericial teria um dever de circunstanciar o RAI, acima mesmo do que a lei exige ao titular do inquérito, que é o MP, MP que, no caso, decidiu não investigar, ao que parece, com beneplácito, ilegal, diga-se, do Mm.º JIC. 14 – Por último, resulta evidente que, ao incluir a inadmissibilidade legal nos três fundamentos taxativos de rejeição do requerimento de abertura de instrução, o artigo 287 n.º 3 do CPP se refere, exclusivamente, aos casos em que a instrução não ´é admissível, por não caber na forma de processo em causa ou ser requerida por quem não tem legitimidade para tal. 15 – Acresce que a doutrina e a jurisprudência são unânimes na interpretação restritiva que fazem deste fundamento legal de rejeição do RAI, precisamente de modo a evitar que o tribunal antecipe, para a fase de admissão a instrução, um juízo de prognose que apenas pode e deve existir no final da mesma. 16 – O tribunal recorrido, ao subsumir o caso vertente a uma hipótese de inadmissibilidade legal do RAI, justificativa da sua rejeição, fez uma incorreta e errada aplicação do direito. 17 – Tal traduz uma antecipação ilegítima do juízo de prognose que se relega para o final da fase de instrução, durante a qual, além da análise da prova produzida e do eventual oferecimento de novos meios de prova, terá, obrigatoriamente, lugar o debate instrutório, e apenas no terminus da mesma ocorrerá a comprovação judicial da decisão tomada no final do inquérito. 18 – Por força da prolação da decisão recorrida encontram-se os autos feridos de nulidade insanável, prevista na al.ª d) do art.º 119 do CPP, a qual é de conhecimento oficioso e deverá ser declarada, com todos os efeitos legais, por omissão da fase de instrução num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade. 19 – O tribunal a quo esqueceu, igualmente, ou pelo menos ignorou por completo, o contexto em que foi requerida a abertura da instrução, ainda que tal constasse do RAI; como aí referido, a assistente, desconhecendo os nomes completos dos denunciados relativas aos crimes de dano relativo a programas ou dados informáticos e/ou sabotagem informática, logrou proceder, à indicação dos meios de prova que revestiam importância acrescida para a descoberta da verdade e que só a JIC poderia, por ter poder para tal, ordenar e juntar aos autos, não competindo, de forma alguma, à assistente especular questões e soluções . 20 – Pese embora a diligência com que a assistente atuou, revelando sempre uma atitude colaboradora com o MP, tendo requerido a realização do rastreamento das suas contas bancárias e das suas comunicações na fase de inquérito, este demonstrou, indubitavelmente, um desinteresse na causa e no apuramento da verdade, não cumprindo o dever funcional que se lhe impunha em prol da descoberta da verdade. 21– Ademais, não se pode conceber que tudo o que a assistente vem, insistentemente, alegando, seja grosseiramente ignorado, não só pelo MP, como agora pelo Juiz de Instrução. 22 – Impondo-se, por tudo o exposto, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que, por estarem preenchidos os requisitos legalmente previstos para o efeito, determine a abertura de instrução, nos termos requeridos pela assistente, com as legais consequências, pois que aquela decisão, como acima referido e demonstrado, viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos art.ºs 283 n.º 3, 287 n.º 3 e 119 al.ª d), todos do CPP. 23 – Termos em que, julgando o recurso procedente e decidindo de acordo com as conclusões supra enunciadas, se respeitará o Direito. 24-Analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, conclui-se que o mesmo avança as razões da sua discordância com o despacho final de arquivamento. 25-A assistente fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, suscetíveis de integrarem a prática por concretos indivíduos de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. 26-O requerimento para a abertura de instrução apresentado pela assistente inclui de modo claro e objetivo, os factos que integram o ilícito ou ilícitos pelos quais se pretende que as denunciadas sejam pronunciadas, a narração dos factos e a imputação jurídico-penal… garantindo assim outros direitos fundamentais do direito processual penal, como sejam a estrutura acusatória do processo penal e o direito de defesa das denunciadas. Termos em que, julgando o recurso procedente e decidindo de acordo com as conclusões supra enunciadas, se respeitará o Direito.” # O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões (as conclusões 1ª e 2ª contêm lapso evidente, uma vez que a assistente é BB e não CC… Lda):
“1ª – A questão que importa dirimir no âmbito do recurso interposto pela assistente CC… Lda consiste em apurar se deve o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado por aquela considerar-se como legalmente admissível e, por isso, não enquadrável no estatuído no art. 287º, nº 3 do CPP, devendo em consequência ser admitido, com todas as decorrências legais inerentes a essa admissão? 2 ª - Está em causa o douto despacho proferido em 03.11.2021, referência 88225616, o qual não admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente CC… Lda, ao abrigo do estabelecido no art. 287º, nº3 do CPP, por inadmissibilidade legal. 3ª - O mencionado despacho fundou-se na circunstância de o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente ser omisso quanto aos seguintes aspetos: - datas e locais dos factos; - intervenientes nos mesmos e modos de atuação respetivos; - consequências das suas eventuais condutas; - factos dos quais resulte a consciência da ilicitude, uma vontade livre e consciente, uma conduta dolosa, na sua vertente intelectual e volitiva. 4ª – Mais se fundou o mencionado despacho recorrido no facto de o requerimento de abertura de instrução não conter nenhuma acusação autónoma, deduzida com as formalidades elencadas no art. 283º do CPP, a qual permitisse a prossecução dos autos, com a fixação do seu objeto, possibilitando a cabal defesa e contraditório por parte dos arguidos e viabilizando, a final, a eventual prolação de despacho de pronúncia. 5ª - Concluiu o referido douto despacho recorrido que o requerimento de abertura de instrução não permitia a imputação da prática de algum crime aos denunciados. 6ª - Quando a fase de instrução é requerida pelo assistente não basta apresentar as razões de discordância, sendo ainda necessário que o requerimento de abertura de instrução contenha uma verdadeira acusação que aquele requerente entende deveria ter sido formulada por parte do Ministério Público. 7ª – Nessa medida, tal parte do requerimento de abertura de instrução é, pois, fundamental dado que delimita o objeto do processo e, por conseguinte, o cerne da instrução, da defesa do arguido e ainda consubstancia aquele que será o substrato à prolação do despacho instrutório, que o assistente pretende que seja de pronúncia, razão de ser da sua pretensão e do seu requerimento de abertura de instrução. 8ª – Assim, a lei estipula expressa e adicionalmente para o requerimento do assistente a necessidade de cumprimento de certos requisitos, tal como se estabelece no art. 287º, nºs 2 e 3 do CPP que regula o requerimento de abertura de instrução, destacando-se a necessidade de observância das alíneas b) e d) do nº 3 do art. 283º do CPP. 9ª - Da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente ora recorrente resulta que o mesmo não obedece às mencionadas exigências legais. 10ª O RAI da assistente deveria conter a enunciação dos factos e a sua imputação aos denunciados nos moldes pelos quais aquele pretendia ver deduzida a acusação concretamente em relação a cada uma delas, com a descrição dos elementos objetivos e subjetivos das suas condutas. 11ª - É nessa parte que o requerimento de abertura de instrução em apreço se apresenta como realmente omisso, uma vez que não especifica: - que atuação concreta imputa à arguida AA com relevância jurídico – penal, pois que tão só se alude à circunstância de a mesma ser titular de conta bancária para a qual as transferências bancárias eram realizadas, referindo-se que a visada também fazia trabalhos espirituais; - quais as datas, modos de atuação e agentes no que respeita aos alegados acessos ilegítimos de conta bancária e telemóvel (sms), adulteração e apagamento de dados (que não identificou quais fossem) e avaria e dano do seu PC, desconhecendo a assistente a autoria desses factos (requer perícia para identificação dos autores dos “ataques informáticos”), acrescendo não ser possível requerer a abertura de instrução contra desconhecidos; - factos atinentes aos crimes imputados de sabotagem informática e de dano relativo a programa ou dados informáticos (arts. 4º, nº1 e 5º da Lei do Cibercrime); - uma vontade livre e consciente e consciência da ilicitude em relação a todas as condutas imputadas: burla, sabotagem e dano relativo a programa ou dados informáticos; - dolo respeitante ao crime de burla, quer na vertente intelectual quer na vertente volitiva; - factos concretos de que derivasse a “astúcia” e o “engano” e o nexo causal entre ambos e a conduta realizada pela ofendida, que alegadamente lhe causou prejuízo patrimonial – quanto a estes elementos o RAI apenas contém afirmações conclusivas. 12ª – Nesta medida, forçoso é concluir-se que o RAI em apreço não contém uma acusação autónoma, obedecendo aos critérios definidos no art. 283º do CPP, ou seja, em termos que permitissem a prossecução da instrução, com a fixação do seu objeto, permitindo às denunciadas a cabal defesa e contraditório e a formulação de um eventual despacho de pronúncia. 13ª - Era, por conseguinte, necessário que no requerimento de abertura de instrução a assistente tivesse identificado as agentes dos factos, concretizado factualmente as datas e locais dos mesmos, especificasse que situações factuais foram praticadas por cada uma das denunciadas, quais a consequências das suas condutas e ainda quais os factos de que emanasse a respetiva consciência da ilicitude, uma vontade livre e consciente, uma conduta dolosa, quer na sua dimensão intelectual e volitiva e, bem assim, a sua culpa. 14ª - Não contendo tais elementos objetivos e subjetivos dos tipos de crimes imputados aos denunciados o requerimento de abertura de instrução não pode delimitar o objeto da instrução, permitir a defesa cabal daqueles e o seu exercício de contraditório nem pode servir de substrato à eventual prolação de um despacho de pronúncia, uma vez que, por contraponto ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a assistente não deduziu uma acusação autónoma no dito requerimento. 15ª - Tal situação inviabiliza desse modo, o alcançar do desiderato da fase de instrução requerida pela assistente, isto é, não permite fundamentar uma dedução de despacho de pronúncia. 16ª - Não menos relevante é a circunstância de a assistente ter chamado à colação no RAI problemas informáticos, acessos ilegítimos, danos em PC ou em programas, alteração e apagamento de dados (na queixa que originou os autos a assistente apenas refere ter sido alvo de pirataria informática pois que transferiu quantias mais elevadas do que aquelas que constam do seu extrato bancário, situação que não se mostra conforme às regras da normalidade da vida), os quais não foram investigados em sede de inquérito sendo que a instrução não pode incidir sobre factos novos, que anteriormente não integrassem o objeto dos autos. 17ª - Consequentemente, também não é despiciendo que em relação a estas matérias a assistente tenha requerido a abertura de instrução contra desconhecidos. 18ª - A fase de instrução não sendo uma fase de investigação, mas de comprovação judicial no que tange aos elementos probatórios anteriormente recolhidos no domínio do inquérito e à sua leitura, não é, pela sua natureza e desiderato, compatível com a introdução de matérias novas em relação ao que constituiu o objeto do inquérito ou com o desconhecimento dos agentes dos factos. 19ª - Logo, forçoso é concluir pela inadmissibilidade legal da fase de instrução nos termos em que a assistente a requereu dado ser de antever que não poderá alcançar-se a finalidade subjacente a essa fase processual que antes de mais é a de comprovar ou não a decisão do Ministério Público de deduzir acusação ou de, ao invés, arquivar o inquérito. 20ª - Em face do exposto conclui-se que bem andou a Mª JIC a quo ao não admitir o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da fase de instrução nos termos em que foi requerida pela assistente não tendo sido violado o disposto no art. 287º, nº 3 do CPP pelo que inexiste fundamento para revogação do douto despacho recorrido, em concreto o despacho proferido em 22.02.2021, referência 89274062. 21ª - Nestes termos, deve ser mantido o douto despacho recorrido e improceder o recurso interposto pela assistente pois aquele não violou qualquer preceito legal. No entanto, Vossas Excelências melhor decidirão conforme for de JUSTIÇA!” # Também a arguida AA respondeu ao recurso, aderindo à resposta apresentada pelo Ministério Público e pugnando pela improcedência do recurso. # Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta # APRECIAÇÃO O que importa apreciar no presente recurso é apenas saber se o r.a.i. em causa preenche os requisitos necessários para não ser rejeitado, como foi pela decisão recorrida. # O despacho de arquivamento do MºPº é do seguinte teor: “DO ARQUIVAMENTO O presente Inquérito teve origem na queixa apresentada por BB contra AA e DD, invocando em síntese que as denunciadas a fizeram acreditar, primeiro que a sua viatura tinha uma energia negra, e posteriormente que a sua filha menor se encontrava muito mal, que alguém lhe teria feito mal espiritualmente, sendo que para tal teria de fazer uma “limpeza”. Em troca dessa “limpeza” a denunciante fez transferências bancárias para a conta da denunciada AA de várias quantias em dinheiro, e ainda entregou, em mão, à denunciada DD a quantia de 450€, perfazendo um total de cerca de 4 000€. Os factos acima referidos, consubstanciam, em abstracto, a prática do tipo legal do crime de Burla p. e p. pelos artigos 217º n.º 1 do Código Penal. * Procedeu-se a inquérito com a realização das diligências consideradas úteis e pertinentes ao apuramento da verdade dos factos. Foi inquirida, na qualidade de ofendida, BB, que no essencial, confirmou os factos descritos no auto de denuncia – cfr. fls.37, 38. Foi junto aos autos, pela denunciante, os extratos bancários onde constam as transferências realizadas - cfr. fls.7 a 19. Foi junto ainda print das conversas entre a denunciante e a denunciada AA – cfr. fls.20 a 34. Foi inquirida na qualidade de testemunha, EE, que referiu ter trabalhado com a DD e a denunciante na … “…”, sita em … desconhecendo a denunciada AA. Declarou que desconhece se as mesmas fazem “tratamento espiritual”, desconhecendo os factos e não sabe porque foi indicada como testemunha – cfr. fls.40. A denunciante indicou uma outra ex-colega de trabalho, FF, como testemunha, todavia, a mesma também referiu que nada sabe – cfr. fls.39. * Atentos os factos acima referidos e os documentos carreados para os autos conjugados com a prova indiciária recolhida temos, desde já, que concluir que da conduta participada não resulta a existência de um crime de burla. * Dispõe o artigo 217.º, do Código Penal, sob a epigrafe, “Burla”, que: “1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2 - A tentativa é punível. 3 - O procedimento criminal depende de queixa. 4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.º” Deste modo o primeiro pressuposto da burla é o erro ou engano astuciosamente provocado, pois este ilícito mais não é do que uma forma sofisticada de crime patrimonial sem recurso à violência física ou à ameaça intimidativa. Não é por vezes fácil a distinção entre o erro e o engano, mas ambos conduzem a, como diz Marques Borges (Crimes contra o património em geral, pág. 22) «falsas representações da realidade que levam o burlado a representar mentalmente os factos que lhe são apresentados, por forma diversa do que eles têm na realidade». Surge, portanto, um falso consentimento da realidade através da utilização de astúcia, de ardis, do que na tradição penal portuguesa anterior a este código se denominava "artifícios fraudulentos". Assim, mantém ainda actualidade a lição do Prof. Beleza dos Santos (in R.L.J. ano 76, pág. 328, num estudo aos artigos 451º e 456º do Código Penal de 1886, referindo-se ao "artifício fraudulento"): «Artifício não é qualquer mentira; é uma mentira com habilidade, com astúcia. E este entendimento natural do texto que tentamos interpretar harmoniza-se com a sua razão de ser, que é punirem-se como burla apenas processos de enganar que atingem uma certa gravidade: os mais engenhosos, os que traduzem uma culpabilidade e um perigo maior do delinquente, o qual, empregando-as ameaça mais grave e extensamente as pessoas de boa fé, mesmo razoavelmente acauteladas». «Artifício não quer dizer apenas maquinação por factos materiais, mas um meio de enganar com astúcia, com especial habilidade». «O agente (...) pode mentir pura e simplesmente. Nesta hipótese não existirá artifício fraudulento. É o caso de um indivíduo que pretende um empréstimo de dinheiro e a quem perguntam se tem bens, limitando-se a responder afirmativamente, mentindo. (...) Não basta qualquer mentira, sendo necessário que ela tenha um carácter artificioso, que seja reforçada habilmente com factos, atitudes, aproveitamento de circunstâncias que a tornem particularmente crível». «(...) nem todos os meios que determinam ou podem determinar aqueles erros e seus efeitos parecem merecer a qualificação de crimes e consequentemente legitimar a imposição de penas aos responsáveis. Em alguns casos pode tratar-se de exagero ou deformação de factos ou de valorações que são normais no trato comercial». O erro ou engano devem, por isso, ter sido provocados, no dizer de Maia Gonçalves (in Código Penal Anotado, 1990, Almedina, pág. 617) "astuciosamente pelo agente da infracção, isto é, usando de um meio engenhoso para enganar ou induzir um erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo". Ou seja: o elemento astuciosamente é limitativo em relação ao dolo específico - ao elemento específico da ilicitude - deste tipo legal. Ora é este primeiro pressuposto da burla - o erro ou engano astuciosamente provocado - que faz surgir um falso consentimento da realidade através da utilização de astúcia, de ardis, que não se pode considerar ter existido na situação em análise. Isto porque se entende que as falsidades ou enganos, normalmente utilizadas pelos videntes, espiritas, médiuns, bruxas, curandeiros, endireitas, astrólogos e outros prestadores de serviços equivalentes (situações do tipo da considerada no caso vertente) são bem conhecidas da sociedade, e veiculadas pelos mass media, donde não podem ter-se como idóneas e com virtualidades intrínsecas para persuadir a pessoa visada ao ser abordada a ter um comportamento contra a sua própria vontade. Tem de considerar-se que as pessoas – consideradas sob o prisma do homem médio – têm um conhecimento adequado sobre o tipo de «risco» inerente a serem consultadas, aconselhadas ou acompanhadas de qualquer forma por esse tipo de actividades marginais à ciência e que são normalmente consideradas como efectuadas por impostores, intrujões e charlatões que apenas visam obter o lucro fácil explorando os sentimentos, as crendices e as superstições alheias. Lembre-se que é a pessoa – cliente na perspectiva do «charlatão» – que recorre a esse tipo serviço (que quer acreditar nele e ser convencida de algo) quem paga voluntariamente esse serviço sem se poder considerar que esteja a cair num embuste inesperado. Daí decorre que, embora sendo essas condutas moralmente censuráveis e inaceitáveis – de acordo com os padrões de conduta geralmente aceites pela comunidade – não se visiona possível configurar o crime de burla nas mesmas. De facto, não se afigura fácil estabelecer com exactidão qual o engano astucioso (dado por uma conduta ilegal do agente que presta o serviço e solicita as sucessivas entregas de quantias monetárias) desconhecido por parte daquele que é enganado. Como nos ditam as regras de experiência as pessoas que recorrem a esses tipos de actividades fazem-no com plena liberdade e por um acto de vontade, porventura subestimando qual o real valor do resultado da conduta da pessoa a quem estão a pagar. Assim sendo, não se visiona qual tenha sido o artifício - i. é., o erro ou engano astuciosamente provocado, exigido pelo tipo legal respectivo - utilizado pelas suspeitas para convencer a ofendida a entregar-lhe as aludidas entregas de dinheiro. Por isso, entendemos que não se mostram minimamente indiciados os elementos típicos exigidos para o exacto preenchimento do crime de burla. Por tudo o que foi exposto resulta a ideia de que os factos, tais como são configurados na participação, e de acordo com a prova indiciária recolhida, não são susceptíveis de serem enquadrados em nenhum ilícito penal, mas antes devem ser analisados no âmbito do Direito Civil. Porém, não incumbe ao processo penal a discussão de questões de semelhante natureza jurídica. * Nesta conformidade, por existência de prova bastante de não se ter verificado qualquer ilícito penal, determino o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 277º, do Código de Processo Penal.” # O r.a.i. sobre o qual recaiu o despacho recorrido é do seguinte teor (na parte que interessa): “(…) A) Da constituição de assistente 1º BB, denunciante/ofendida nos presentes autos, vem, nos termos do artigo 68º nºs 1 al. a) e 3 al. b) do C.P.P. requerer a V. Exª. Se digne admitir a sua intervenção no processo como assistente. 2º A ofendida requereu apoio judiciário nas modalidades de nomeação e pagamento de compensação a patrono e de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo que lhe foi deferido, conforme ofício da Segurança social já junto aos autos a fls.. B) - Do requerimento de Abertura de instrução 3º A assistente/ofendida trabalhou desde o ano de 2001, até final do ano 2019 no … denominado “…”, sito em …, no Largo…. 4º No ano de 2017, em data que não consegue precisar com exatidão, começou a trabalhar no supra identificado … a denunciada DD, melhor identificada nos autos. 5º A relação de trabalho entre ambas evoluiu para uma suposta amizade, até que no ano de 2018, a denunciada DD começou a dizer à assistente/ofendida que “esta traz uma magia negra no seu carro e que seria melhor tratar disso”. 6º Tendo-lhe explicado o procedimento de limpeza”, e 7º em contrapartida pela sobredita “limpeza” pediu-lhe a entrega de €:150,00 (cento e cinquenta Euros). 8º Montante esse que foi pela assistente/ofendida transferido para a conta Iban nº … titulada por AA, com quem supostamente a denunciada DD estaria a aprender as ditas “limpezas”. 9º Aproveitando as informações obtidas com a suposta relação de amizade, a denunciada DD foi tomando conhecimento da vida pessoal e dos problemas quotidianos da assistente/ofendida, que com a mesma, por nela confiar muito desabafava e, já no mês de junho do ano de 2018, 10º a denunciada DD começou a dizer à assistente/ofendida que a sua filha menor, à data com … anos de idade “se encontrava muito mal, que alguém lhe teria feito muito mal espiritualmente e que precisa de tratar da menina”. 11º Pedindo-lhe em contrapartida o montante de €: 250,00 (duzentos e cinquenta Euros), para a realização do trabalho. 12º Pedido a que a assistente, acedeu, tendo efetuado a transferência bancária desse valor para a conta identificada em 8º da presente 13º Daí em diante, até ao mês de setembro de 2020 (indicar data da última transferência), foram por varias ocasiões, pelas denunciadas DD e AA, enviadas mensagens escritas, as denominadas sms para o nº…, do qual a assistente/ofendida é a titular, a pedir dinheiro para tratar a sua filha espiritualmente, em montantes nunca inferiores a 250,00€ (duzentos e cinquenta Euros), e enfatizando que era preço especial de amiga, pois para desconhecidos o valor cobrado nunca seria inferior a 500,00€(quinhentos Euros). 14º A assistente/ofendida foi sempre entregando os montantes pedidos através de transferências bancárias e em duas ocasiões entregou em mão à denunciada DD, no montante total de €: 450,00 (quatrocentos e cinquenta Euros). 15º Acresce que a data altura do ano de 2019 começou a notar problemas informáticos no acesso ao seu PC e concretamente dificuldades no acesso ao seu Home Banking da sua conta que detém no …, a conta com Iban nº …. 16º Tendo notado no final do ano de 2020, num dos últimos acessos que fez ao home banking que o valor da primeira transferência bancária referida em 7º e 8º do presente, aparecia com um montante alterado de apenas €:100,00 (cem euros). 17º Não tendo conseguido, entretanto mais aceder ao home banking, em virtude de o o seu PC ter, subitamente avariado e deixado de funcionar. 18º Foi de imediato às instalações do balcão do …, sitas em …, onde alertou o gestor, e solicitou de imediato todos os extratos bancários no período temporal dos factos em questão, e que se encontram juntos aos autos, tendo verificado que os valores transferidos nas datas de 17.03.2018, 26.07.2018, 24.08.2018, 4.11.2018, 16.12.2018, 03.05.2019 e 2.07.2019, nos montantes respetivos de 100,00€, 175,00€, 125,00€, 200,00€, 200,00€, 175,00€ e 200,00€ se encontram todos eles alterados. 19º Pois foram sempre transferidos valores superiores aos que vêm nos referidos extratos. 20º Tendo concluído que terá ocorrido um acesso ilegítimo e indevido à sua conta bancária, com alteração de dados relativos às concretas transferências bancárias indicadas em 18º do presente, e ao acesso ilegítimo a dados seus pessoais e privados da mesma conta bancária constantes, identificada em 1º do presente, através de meios informáticos que desconhece. 21º Também algumas sms foram literalmente apagadas do telemóvel da assistente/ofendida, com o nº identificado em 13º da presente, por meios que desconhece, mas que supõe terem tido como móbil apagar eventuais elementos de prova. 22º Em suma os autos revelam que a assistente/ofendida foi astuciosa e ativamente induzida em erro de acreditar que não quaisquer “trabalhos espirituais”, mas sim as denunciadas, pelos seus específicos “poderes” e pelas práticas que concretamente lhe fizeram crer que dominavam, iam curar a própria e em especial a sua filha dos males que espiritualmente alegadamente a dominavam. 23º E foi sempre nesse convencimento, no período compreendido entre o mês de Março do ano de 2018 até ao mês de Setembro de 2020 e, até notar que a sua conta bancária e mensagens de telemóvel haviam sido alterados, com acessos desconhecidos e indevidos, que a assistente foi sempre entregando quantias em dinheiro às denunciadas, em percentagens de dinheiro pedias pelas mesmas a um ritmo vertiginoso, sob o pretexto do tratamento e limpeza da sua filha, mas sempre sob a condição de continuação do dito “tratamento” e que aquela satisfez , também sempre, convicta de que só através desses poderes , rituais e práticas das denunciadas sua filha se curaria. 24º Tendo-se apropriado desta forma as denunciadas de um montante nunca inferior a €: 3.200,00 (três mim e duzentos e Euros). 25º Logo se conclui encontrarem-se preenchidos os elementos do tipo legal de Burla p. e p. pelo artº 217º, nº 1 do Código Penal. Ademais, 26º O acesso ou intromissão sem permissão legal a conta bancária da assistente, e a alteração de dados constantes da mesma, conjugada com o apagão de SMS no seu número de telemóvel, a par das súbitas avarias que danificaram o computador pessoal da assistente, que se encontra inutilizado, impedindo a assistente objetivamente de o utilizar desde então, é susceptível de integrar a prática de dois crimes de dano relativo a programas ou dados informáticos p.e p. pelo artº 4º,nº1, e/ou sabotagem informática p. ep. pelo artº5º todos da Lei do Cibercrime, aprovada pela Lei nº 109/2009 de 15 de setembro. 27º Nos termos conjugados dos artºs 286º artº 287º, nº 1, al.b) do Código de Processo Penal o requerimento de abertura de instrução pode ser requerido pelo assistente relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. (…)” # Tem sido uniformemente afirmado pela jurisprudência que quando o r.a.i. é apresentado pelo assistente, o mesmo deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo de forma completa os factos da vida real imputados ao arguido e os factos que constituem o elemento subjectivo do crime respectivo. É isso mesmo que resulta da remissão para a al. b) do nº 3 do artº 283º do C.P.P., feita na última parte do nº 2 do artº 287º do mesmo Código. Nos termos daquela al. b), o r.a.i. deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neste teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. Um r.a.i. bem estruturado, e em obediência a todo o nº 2 do artº 287º do C.P.P., deve (em casos como o destes autos) conter uma primeira parte com as razões relativas à discordância quanto ao arquivamento, com os actos de instrução que se pretendem levar a cabo, com os meios de prova e com a indicação dos factos que com eles se pretendem provar; e uma segunda parte com uma verdadeira acusação que servirá de vinculação temática para o tribunal e será indispensável para o exercício de verdadeiro contraditório por parte do arguido. (a este propósito, entre muitos outros, ac. da rel. de Lisboa de 4/6/2013). A não exigência de formalidades especiais prevista logo no início do nº 2 do artº 287º do C.P.P., nada tem que ver com a necessidade da alegação de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, sejam eles integradores do elemento objectivo, sejam do elemento subjectivo, do tipo de crime em causa, sendo certo que a verificação destes últimos também é condição de aplicação de uma pena. A relevância de uma clara narração dos factos é também evidente face ao que dispõe o artº 309º, nº 1, do C.P.P., o qual dispõe que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos (…) no requerimento para abertura da instrução. Quanto ao elemento subjectivo, não é necessário que se utilizem as palavras “habituais”, mas com essas ou outras com o mesmo significado, têm que ser alegados os factos que consubstanciam tal elemento, sabendo-se que não deve haver “presunções de dolo”. Como refere o Prof. Figueiredo Dias “… a ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo” – [cf. R.L.J., 105, pág. 142]. Se o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, após abstenção do MºPº em deduzir acusação, não é legalmente apelidado de acusação, substancialmente é isso que ele deve ser e daí a remissão do artº 287º, nº 2, para o artº 283º, nº 3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (neste sentido: Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 167). É que a não ser assim, teria que ser o juiz de instrução a substituir-se ao assistente, na pesquisa dos factos potencialmente criminosos, o que seria clara violação do princípio do acusatório, constitucional e legalmente previsto. O juiz de instrução investiga autonomamente os factos (artºs 289º e 291º, nº 1, do C.P.P.), mas sempre dentro dos limites definidos no requerimento de abertura de instrução. “Uma instrução concebida como suplemento investigatório seria absolutamente incongruente com a repartição de funções entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial que constituiu a pedra de toque do modelo processual no Código de 1987 e do mesmo passo constituiria um desvio incompreensível à dimensão material da estrutura acusatória de que o mesmo reveste, em observância do preceituado no nº 5 do artº 32º da Constituição” - Nuno Brandão, A Reforma do Direito Processual Penal Português em Perspetival Teórico-prática, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, pág. 229 e 230. Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, C.R.P.Anot., 4ª edição, vol. I, pág. 522, “a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulação orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também órgão de acusação.” A “acusação” que o requerimento para abertura da instrução deve conter tem que ser auto-suficiente, não sendo admissível (tal como não é para a acusação formulada pelo MºPº) a remissão, ou qualquer outra forma de referência, feita para outra peça processual ou para documentos. Estes servem para provar os factos que se alegam e não para suprir a obrigação de os alegar. E é preciso distinguir bem os factos das provas que os sustentam. O que se verifica no caso dos autos é precisamente o que bem se referiu no despacho recorrido que de forma assaz clara e sintética (mas completa) indicou o que “falta” para que a instrução pudesse ser declarada aberta: - nenhum facto concreto é imputado à arguida AA que possa ser considerado, eventualmente, penalmente censurável; - nenhuma indicação concreta é feita quanto à questão do alegado acesso ilegítimo à conta bancária da assistente, sendo certo que, como bem se refere no despacho recorrido, não há instrução contra desconhecidos, nem compete ao J.I.C. proceder a investigações relativamente a circunstâncias que não foram abordadas no inquérito; - nada se alega quanto ao elemento subjectivo de qualquer dos crimes potencialmente em causa; - nada se alega de concreto, como também bem se refere no despacho recorrido, quando ao “engano” e “astúcia”, e nexo causal dos mesmos com a conduta da assistente (e foram estas as razões que, no fundo, levaram ao arquivamento do inquérito). Por tudo o referido, há que concluir que bem andou o tribunal recorrido ao não admitir o requerimento para abertura de instrução, restando acrescentar que nos termos do Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/05, D.R. de 4/11/05, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artº 287º, nº 2, do C.P.P., quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”. A reforma operada ao C.P.P. pela L. 48/07 de 29/8, em nada alterou qualquer dos preceitos legais pertinentes, designadamente o nº 2 do artº 287º do C.P.P., pelo que inexistem quaisquer razões para não seguir o decidido no referido Ac. de Fixação de Jurisprudência. Por último, refira-se que o T.C. já rejeitou a inconstitucionalidade do nº 2 do artº 287º, quando exige, sob pena de rejeição, que o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, contenha os elementos referidos no artº 283º, nº3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (Ac. do T.C. nº 358/04, D.R. IIª série de 28/6/04). Assim sendo, por inadmissibilidade legal da instrução, por virtude de ocorrência de nulidade do r.a.i., deve o mesmo ser, como foi, rejeitado (cfr. artºs 287º, nºs 2, parte final, e 3, e 383º, nº 3, al. b), do C.P.P.), sendo certo que a lei não admite que se proceda a instrução com base num r.a.i. com o que foi apresentado. Tudo o ora decidido não põe em causa, como é evidente, o eventual recurso aos meios civis para ressarcimento dos prejuízos alegadamente causados à assistente, caso se entenda existirem fundamentos para isso. # DECISÃO Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente. # Atendo o decaimento no recurso, deverá a assistente suportas as custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs (artº 515º, nº 1, al. b), do C.P.P.). # Évora, 27 de Setembro de 2022 Nuno Garcia António Condesso Edgar Valente |