Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3121/21.2T8FAR.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - a legitimidade processual, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada pelo autor, afirmando-se perante os sujeitos da pretensão tal como é formulada, sob pena de absolvição do réu da instância;
- a legitimidade material ou substantiva contende com a apreciação do mérito da causa, decorrente da afirmação da titularidade de um direito por quem dele se arroga, sob pena de absolvição do réu do pedido;
- a prova dos requisitos atinentes ao enriquecimento sem causa, designadamente de que a A. é a entidade à custa de quem as RR. injustificadamente enriqueceram, tem lugar em sede de instrução da causa, atividade processual que tem em vista demonstrar os factos necessitados de prova;
- na fase intermédia do processo, em sede de despacho saneador, o conhecimento do mérito da causa só pode ter lugar desde que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas;
- nos casos em que a prova documental não seja, só por si, apta a provar os factos controvertidos, alcançando-se do teor dos articulados existir complexidade circunstancial que consinta a produção de outros meios de prova que permitam definir os contornos da prova documental já produzida, há que concluir não permitir o estado do processo o conhecimento imediato do mérito da causa.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Aurora: (…) International Group UK, Limited
Recorridas / Rés: (…), Handling de Portugal, SA
XL (…) Company, SE (Sucursal Francesa)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual a A. peticionou que as RR. sejam condenadas a pagar-lhe o montante de USD 2.461.810,88 (dois milhões, quatrocentos e sessenta e um, oitocentos e dez dólares americanos e oitenta e oito cêntimos), à taxa de câmbio do dia de 0,86175, totalizando € 2.121.530,00 (dois milhões, cento e vinte e um mil, quinhentos e trinta euros) acrescido de juros de mora à taxa legal, contabilizados desde 20/10/2014, vencidos até à data da entrada da presente ação em juízo (28/10/2021) que computam na quantia de € 596.353,36 (quinhentos e noventa e seis mil, trezentos e cinquenta e três euros e trinta e seis cêntimos) e os vincendos até integral pagamento.
Para tanto, a A. invoca ter celebrado, na sua qualidade de seguradora, com a “International (…), Limited” (IJC/segurada), um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...04, consigo como líder e com as seguintes seguradoras e proporções:
- 50 % para a “(…) UK, Limited”;
- 20 % para a “(…) (...), Agents Ltd.”, em nome do (…), Syndicate CVS 1919;
- 30 % para a “(…) (…) Underwriting, Managers”, representando: 44,96% para a “(…) Reinsurance SE” (anteriormente, … Reinsurance UK ); 23,39% para a “(…) International Insurance Limited”; 12,37% para a “(…) Europe”; 10.00% para a “(…) Risks S.A.”; e, 9,28% (…), Insurance Company (Europe) Limited.

O referido contrato garantia a totalidade dos danos ocorridos, entre outras, com a aeronave ..., modelo ... G450 com o número de série ...37 e Matrícula ... (doravante designada apenas por aeronave), nomeadamente o casco, incluindo perda total deste e perdas diretas e indiretas decorrentes de acidentes ocorridos com a aeronave e, bem assim, a responsabilidade civil perante terceiros e passageiros (doc. n.º 1 que constitui fls. 13 verso e segts.).
A aeronave sofreu danos que foram integralmente pagos pela IJC/segurada e que foram por si integralmente reembolsados, referentes ao sinistro (deslocação do tapete de carga) ocorrido em 24/10/2011, no aeroporto ..., cuja responsabilidade ficou a dever-se, não apenas à ação do vento forte que se fez sentir no local, mas, principalmente, ao facto deste equipamento não se encontrar imobilizado de forma segura, devidamente travado e calçado e com o tapete rolante propriamente dito, devidamente descido, atuação que é diretamente imputável à Ré (…), na qualidade de proprietária do referido tapete.
A A. e JIC/segurada propuseram a ação judicial que correu termos pelo Juízo Central ... com o n.º 3061/17...., com vista ao exercício do seu direito a ser indemnizada por danos causados pela Ré (…), ação que culminou na absolvição da Ré dos pedidos com fundamento na confissão feita pelo legal representante da (…) Jet Club Limited de que não tinha qualquer prejuízo que não tivesse sido pago pela seguradora “(…) Europe, Limited”, que segurava os riscos da aeronave.
A A pretende fazer operar o instituto do enriquecimento sem causa com vista a obter os montantes por si reembolsados à sua segurada/JIC, pelos quais a Ré (…) é responsável (devido à omissão culposa dos deveres de vigilância e manutenção do equipamento que se encontrava no local), sob pena de se verificar um enriquecimento ilegítimo daquelas, à sua custa.
Em sede de contestação, a R. XL invocou a ilegitimidade da A. para ação, salientando que a seguradora líder (com participação de 50%) tem a designação de (…) UK, Limited, entidade que não se confunde com a autora. Mais invocou que, por força do decidido no âmbito do processo que correu termos sob o n.º ...61, a obrigação foi declarada prescrita.
A R. (…), por sua vez, sustentou, para além da prescrição da obrigação, verificar-se a exceção perentória de ilegitimidade substantiva da A para a ação, que não é a seguradora na apólice em causa, nem esclareceu, por qualquer meio ou forma, a existência de qualquer relação com a seguradora líder aí identificada, a (…) UK, Limited.
Em resposta, a A. juntou documento, alegando que do mesmo resulta comprovada a alteração da denominação social da sociedade (…) UK, Limited para … (American International Group Europe, Limited).
Pronunciando-se sobre o teor do aludido documento, cada uma das RR mantém tratar-se de sociedades distintas, invocando a R. (…) que (…), Europe, Limited se extinguiu em 5/12/2018, e a R. XL que a sociedade (…), Europe, Limited possui o registo n.º ...60 e a sociedade (…), UK, Limited possui o registo n.º ...70.
A A., desde 12/5/2022, foi apresentando sucessivos requerimentos para concessão de prazo para comprovar documentalmente a sua legitimidade para a presente ação, o que veio a ser deferido.
Por despacho de 26/7/2023, foi decidido indeferir a prorrogação de prazo para junção de novos documentos.
As partes foram auscultadas sobre a intenção de apreciação do mérito da ação, no sentido da procedência da exceção de ilegitimidade substantiva.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, designadamente a junção de documentos pelas partes, foi proferido saneador-sentença com o seguinte segmento decisório:
«Em conformidade com o exposto, decido julgar verificada a exceção de ilegitimidade material ativa e, consequentemente, absolvo as rés do pedido.»
Mais consta de tal decisão, designadamente, o seguinte:
«Aqui chegados cumpre ainda tecer uma última consideração atinente à invocação da exceção de prescrição do direito que a autora exerce através da presente ação e que, em nosso entender e aderindo à argumentação jurídica expandida pelas rés, sempre conduziria ao insucesso da presente ação.
(…)
a ré XL sustenta a impossibilidade da autora exercer o seu direito com fundamento no enriquecimento sem causa, ancorando-se nos ensinamentos de Vaz Serra que, indo um pouco mais além do que aqueles autores, defende o seguinte: “Quanto ao direito fundado em enriquecimento sem causa e que teria subsistido após a prescrição do direito de indemnização, ele não seria admissível, pois, para haver um tal direito, seria necessário que o enriquecimento fosse desprovido de causa jurídica, e não é esse o caso quando o devedor se libera por prescrição (o enriquecimento tem, então, uma causa jurídica, que é a prescrição). A prescrição, tal como a usucapião e a caducidade, tem o fim de dar segurança jurídica aos direitos, sendo, por isso, contrário a essa finalidade que o prejudicado com a prescrição pudesse exercer um direito de enriquecimento contra o prescribente. (…) Assim, o enriquecimento derivado da usucapião, da prescrição ou do decurso de um prazo de caducidade tem causa justificativa, que é constituída por esses institutos, cujo fim é garantir a segurança jurídica.
(…)
Portanto, uma vez operada a prescrição, o valor assim obtido pelo devedor tem causa justificativa e não pode, por isso, ser objecto de uma pretensão fundada em enriquecimento sem causa.
(…) a prescrição do direito de indemnização não determina a prescrição do direito de restituição por enriquecimento sem causa se a este houver lugar (como no mesmo n.º 4 do art. 498.º se acentua); ora, não há lugar a esse direito pelo simples facto de a obrigação de indemnização do devedor ter prescrito, conforme se disse já” (transcreve-se da contestação, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110, n.º 3591 (1977), págs. 83-88).
Salvo o devido respeito por opinião contrária e aderindo àquela posição doutrinal, designadamente às razões de certeza e segurança jurídica que a sustentam, consideramos que, ainda que a autora comprovasse a sua qualidade de seguradora e, nessa qualidade, ter sido ela a empobrecida à custa dos pagamentos efetuados, não lhe assistira a possibilidade de interposição da presente ação com fundamento no referido instituto jurídico, por via da prescrição do seu direito, já declarado por sentença transitada em julgado.»

Inconformada, a A apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine a sua legitimidade e ordene o prosseguimento dos autos. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«i) A Autora é parte legítima nos autos, legitimidade que se encontra provada documental e inequivocamente nos autos mediante documentos juntos para prova de tal facto de onde a legitimidade resulta clara e inequívoca.
ii) Não existe qualquer confusão entre as sociedades (…) do mesmo grupo: sendo inquestionável a existência jurídica de três sociedades:
1) a sociedade (…) Europe, Limited, número da matrícula ... agora extinta;
2) a sociedade (…) International Group, UK, Limited, com o número de matrícula registado ...) a aqui autora e apelante;
3) a sociedade (…) Europe, Limited, Societé Anonime com o número de registo luxemburguês ...06 Sendo que a primeira vendeu a totalidade do seu negócio às segunda e terceira, especificadamente o negócio no Reino Unido (onde se encontra a apólice de seguro da segurada IJC em causa nos autos) à segunda e o negócio na Europa à terceira.
iii) Ao absolver as Rés do pedido o tribunal viola a lei dado que a exceção de ilegitimidade de parte é exceção dilatória, não perentória, o que sempre levaria apenas à absolvição das Rés da instância e não à absolvição do pedido;
iv) A sentença recorrida enferma de vício de excesso de pronúncia ao pronunciar-se sobre a exceção de prescrição do direito da autora, (sem, no entanto, proferir sentença) dado que com a decisão procedência da exceção de ilegitimidade da Autora, o tribunal fica impedido da possibilidade de se pronunciar sobre qualquer outra questão dado que esta fica prejudicada pela primeira decisão.
v) ainda que não se entenda que existe excesso de pronúncia que determina a nulidade desta nesse trecho, sempre se dirá que não se aceita a posição do tribunal relativamente à exceção de prescrição devendo considerar-se que o direito da autora não se encontra prescrito.»
A Recorrida XL (…) Company apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por acertada, já que da prova documental junta aos autos não resulta que a Recorrente celebrou o contrato de seguro em causa, a prova produzida não suporta a causa de pedir (que não pode ser modificada, no caso) no que respeita à titularidade do direito invocado pela A. Relativamente à prescrição, sustenta que o Tribunal conheceu questão que foi suscitada pelas partes e que deve ter lugar o conhecimento do mérito da causa com fundamento na prescrição, que deverá ser declarada.
A Recorrida (…), Handling de Portugal, SA, pugnou igualmente pela improcedência do recurso, mantendo-se a sentença proferida nos seus exatos termos. Sustentou que a Recorrente não demonstrou a titularidade da apólice em causa nem que haja enriquecimento ilegítimo das Recorridas à custa da Recorrente, que a sentença não enferma de nulidade por excesso de pronúncia, uma vez que apenas em sede de fundamentação se pronunciou o Tribunal, esclarecendo as partes quanto ao seu entendimento. Em todo o caso, alinhou argumentos com vista à declaração da prescrição do direito de que se arroga a Recorrente.

Das questões a apreciar
As conclusões da alegação do recurso é que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso – cfr. artigos 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de obter o julgamento ex novo das questões, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha. Constituem meio processual de modificar decisões e não de criar novas decisões, que não foram proferidas pelo tribunal de que se recorre. Tem em vista a reapreciação ou a reponderação das questões submetidas a litígio, já apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido e não a decisão, em primeira mão, pelo tribunal de recurso.
Ora, a prescrição do direito exercitado pela Recorrente nesta ação não foi objeto de decisão. Embora tenha sido suscitada pelas partes, cujos argumentos foram apreciados no despacho recorrido, certo é que a decisão proferida foi a de absolvição das RR do pedido com fundamento na ilegitimidade material ativa.
Importa ainda notar que, a propósito da prescrição o direito da A. a exercitar o enriquecimento sem causa, a 1.ª Instância considerou que a prescrição do direito a reembolso da indemnização, já declarada no proc. n.º 3061/17...., implica, não a prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa, mas antes que não haja lugar à restituição por enriquecimento por força do regime inserto no artigo 474.º do CC.
Certo é que a mencionada apreciação não culminou na prolação de decisão sujeita a reexame pelo tribunal de recurso.
Por outro lado, nas conclusões da alegação do recurso não vem invocado que a prescrição devia ter sido objeto de decisão, caso em que o Tribunal de recurso estaria adstrito a apreciar tal questão.
Assim, atento o objeto da decisão recorrida e em face das conclusões da alegação do recurso, a questão a apreciar consiste em saber se é desprovida de fundamento a decisão de absolvição das RR do pedido por ilegitimidade material ativa.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar
Os acima relatados, sendo certo que a decisão de mérito proferida em 1.ª Instância não contempla a enunciação de factos provados.
O que constitui nulidade da sentença (cfr. art. 615.º/1/al. b), do CPC), de conhecimento oficioso, que, no entanto, não inviabiliza o conhecimento da apelação (cfr. art. 665º/1 do CPC).
Assim, retira-se da sentença proferida em 1.ª Instância que a mesma assentou nos seguintes pressupostos de facto:
- a celebração com a (…) Jet Club, Limited de um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...04 com as seguintes seguradoras e proporções:
- 50% para a (…) UK, Limited, na posição de líder;
- 20% para a Starr Underwriting Agents Ltd, em nome do Lloyd's Syndicate CVS 1919;
- 30% para a (…) Aerospace Underwriting Managers;
- a falta de prova, pelos documentos que foram sendo juntos, de que a A. tenha sucedido na posição que (…) Ins., UK Limited ocupava no contrato de seguro em causa;
- a alteração de denominação da seguradora (…) Insurance UK Limited para (…) Europe Limited e, posteriormente, para (…) Europe Limited;
- (…) Europe Limited foi demandada no processo que correu termos sob o nº 3061/17.... tendo-se apurado naquele processo que reembolsou a empresa IJC pelos danos e despesas em que incorreu;
- a extinção de (…), Europe Limited em 5/12/2018;
- os distintos números de registo/matrícula das sociedades: a (…) Europe Limited, o n.º ...; e a (…) Group UK Limited (ora A), o n.º ...;
- a menção da apólice de seguro em causa nos documentos que titulam a realização dos reembolsos (fls. 54 verso e segts.), dos quais não consta referência à A. como a entidade que os realizou;
- a falta de prova, pela A., de ter recebido a apólice de seguro em causa e ser a sua atual titular (ainda que na posição de líder).

B – A questão do Recurso
A decisão objeto de recurso consiste na absolvição das RR do pedido por ilegitimidade material ativa. Consubstancia decisão de mérito que, atestando não ser a A. titular do direito que se apresentou a exercer, implica na absolvição do pedido.
Já a ilegitimidade processual de alguma das partes constitui exceção dilatória que dá lugar à absolvição da instância – cfr. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º do CPC.
“A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objeto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. A legitimidade material, substantiva ou ad actum consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.”[1]
É que, “uma coisa é saber se as partes são sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista. Outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objeto e a sua perduração.
A primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da ação.”[2]
Enquanto pressuposto processual, a legitimidade, nos termos do disposto no artigo 30.º do CPC, vai aferir-se a legitimidade pela titularidade do interesse direto em demandar (legitimidade ativa) e pelo interesse direto em contradizer (legitimidade passiva). Este interesse tem por base a posição subjetiva da pessoa perante a relação controvertida ou seja, a relação do sujeito com o concreto objeto da causa, pelo que se distingue do mero interesse (objetivo) em agir «traduzido na necessidade objetivamente justificada de recorrer à ação judicial.»[3]
Na configuração dada pela Autora à ação, está é que procedeu aos pagamentos indemnizatórios, ficou empobrecida e é titular do direito a obter das RR aquilo com que estas, sem causa justificativa, se locupletaram. Donde, a A. apresenta-se como parte processualmente legítima para instaurar e fazer prosseguir a ação.
Não assiste, assim, direito à Recorrente quando sustenta que a ilegitimidade apreciada em 1.ª Instância constitui exceção dilatória que levaria apenas à absolvição das RR. da instância.
Apreciemos, pois, o (des)acerto da decisão proferida no sentido da absolvição das RR. do pedido por ilegitimidade material ativa, em sede de despacho saneador, sem que tenha tido lugar a fase da instrução da causa.
A decisão alicerça-se na circunstância de a A não ter logrado demonstrar ser a titular da apólice de seguro mencionada nos autos nem ser aquela que procedeu aos pagamentos cujo reembolso vem peticionar a coberto do instituto do enriquecimento sem causa.
Nos termos do disposto no artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil, aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. Pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
- que haja um enriquecimento de alguém;
- que o enriquecimento careça de causa justificativa;
- que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
O enriquecimento consiste, na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial concreta, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo, desde logo, traduzir-se no aumento do ativo patrimonial. Já a falta de causa justificativa traduz-se na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento[4], o que redunda na inexistência de causa jurídica para a receção da prestação que foi realizada[5]. Vem sendo apontado pela doutrina que o enriquecimento não terá causa justificativa quando, segundo os princípios legais, não haja razão de ser para ele[6], quando, segundo o sistema jurídico, deva pertencer a outrem e não ao efetivo enriquecido[7] ou quando inexistam normas que determinem a manutenção do enriquecimento.[8] A falta de causa justificativa, tal como os demais requisitos, terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342.º do Código Civil, por quem pede a restituição.[9]
Ora, a prova dos requisitos atinentes ao enriquecimento sem causa, designadamente de que a Autora é a entidade à custa de quem as Rés injustificadamente enriqueceram, tem lugar em sede de instrução da causa.
Nos termos do disposto no artigo 410.º do CPC, a instrução consiste na atividade processual que tem em vista demonstrar os factos necessitados de prova, ou seja, os “factos que ainda não possam ter-se como demonstrados na fase intermédia do processo (excluídos estão os factos admitidos por acordo, em virtude de falta de impugnação, os confessados e os provados por documentos).[10] A prova de índole documental pode ser produzida até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mediante o pagamento de multa (cfr. artigo 423.º/2, do CPC), sendo nesta audiência que, em regra, tem lugar a produção da demais prova (cfr. artigo 604.º/3, do CPC), assistindo aos advogados o direito às alegações orais, designadamente para exposição das conclusões que hajam extraído da prova produzida (cfr. alínea e) do n.º 3 do artigo 604.º do CPC).
Na fase intermédia do processo, em sede de despacho saneador, o conhecimento do mérito da causa só pode ter lugar desde que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas (cfr. artigo 595.º/1, alínea b), do CPC), ou seja, desde que não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração dos temas da prova e a realização da audiência final. É pertinente a apreciação do mérito da causa quando toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento, quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos, e ainda quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental, sendo o saneador-sentença precedido do convite à junção de tais documentos, uma vez que a audiência final não se destina no essencial à apresentação de documentos, antes à produção de outros meios de prova, sujeitos a livre apreciação.[11]
Nos casos em que a prova documental não seja, só por si, apta a provar os factos controvertidos, alcançando-se do teor dos articulados existir complexidade circunstancial que consinta a produção de outros meios de prova que permitam definir os contornos da prova documental já produzida, há que concluir não permitir o estado do processo o conhecimento imediato do mérito da causa.
Assim se passa no caso em apreço.
O facto de a Autora não ter ainda logrado provar que foi à sua custa que as RR. injustificadamente enriqueceram, por ser seu o património que está diminuído com os pagamentos realizados à segurada IJC, não determina a improcedência da ação decorrente da afirmação de que a Autora não é titular do direito à restituição por enriquecimento sem causa. Determina, antes, a prossecução dos autos para instrução do processo, com vista a que cada uma das partes promova a produção da prova requerida nos articulados, salvo se outro fundamento a isso obstar.

Procedem, nestes termos, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre as Recorridas – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Vai dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, já que a complexidade das questões suscitadas no presente recurso e a retidão da conduta processual das partes não reclama sejam impostos, nesta instância, outros custos – cfr. artigos 1.º/2 e 6.º/7, do RCP.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se a prossecução dos autos com vista à instrução do processo, se a isso outro fundamento não obstar.
Custas pelas Recorridas, dispensando-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
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Évora, 9 de maio de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Emília Ramos Costa
Maria Domingas Simões
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[1] Ac. do STJ de 18/10/2018 (Bernardo Domingos).
[2] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 134.
[3] Antunes Varela, ob. e loc. citados.
[4] Ac. STJ de 14/01/1972, Ac. STJ de 02/07/2009 (Serra Baptista).
[5] Ac. do STJ de 02/07/2009, já citado.
[6] Galvão Telles, Obrigações, pág. 200, Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. I, 4.ª edição, págs. 455/456.
[7] Leite de Campos, ROA 42, pág. 43.
[8] Menezes Cordeiro, Obrigações, 2.º vol., págs. 46 e 56.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 456.
[10] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição, pág. 726.
[11] Seguindo-se de perto a anotação por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., págs. 721 e 722.