Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
399/22.8GESLV.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
TRADUÇÃO DA ACUSAÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
ARGUIDO ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A omissão de entrega a um arguido estrangeiro de tradução da acusação na sua língua materna, quando o mesmo foi assistido por intérprete no momento em que foi ouvido no inquérito, configura nulidade insanável.
II - Todo o processado, posterior à referida omissão, enferma do mesmo vício (nulidade insanável), cabendo aos serviços do Ministério Público a correção da nulidade cometida, com tradução da acusação para a língua materna do cidadão em causa e subsequente notificação da mesma, devidamente traduzida, a tal cidadão.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 399/22.8GESLV, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Silves – Juiz 1, recorre o Ministério Público do despacho proferido em 09-10-2023, pela Mmª Juiz nos presentes autos, que declarou: “nula a notificação do despacho de acusação proferido a fls. 103 e seguintes e o processado subsequente, porque dele dependente, e determina-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para que este proceda à tradução do mesmo”.

Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões (transcrição):
1. A M.ma Juiz recorrida entendeu declarar a nulidade da notificação efectuada ao arguido, bem como o processado subsequente porque dele dependente, bem como determinar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para que procedam à tradução da acusação, bem como à notificação regular do arguido para essa acusação;
2. Ora, é nosso entendimento que à M.ma Juiz recorrido não assiste razão;
3. Em primeiro lugar não resulta dos autos em lugar algum que o arguido não perceba, ou não entenda, a língua portuguesa, escrita ou falada, não podendo retirar-se tal conclusão do facto de o arguido ter sido assistido por intérprete no acto de constituição de arguido;
4. Em segundo lugar, discordamos da interpretação extensiva que a M.ma Juiz recorrida faz do preceituado pelo art. 120º, nº2, al. c), do C.P.P.,
5. Invocou a M.ma Juiz recorrida a este título, as Directivas do Parlamento Europeu e do Conselho nºs 2010/64/EU, de 20-10, e 2012/13/EU, de 22 de Dezembro, mas sem qualquer necessidade, já que nesta matéria o que é exigido pelo direito comunitário está em total conformidade com a lei nacional aplicável (Acórdão de 10-09-2019, do Tribunal da Relação de Lisboa, disponível in www.dgsi.pt,);
6. No sentido de que a falta de notificação do arguido não constitui uma nulidade sanável, mas antes e apenas uma mera irregularidade, podem-se ver os doutos Acórdãos de 17 de Janeiro de 1995, do Tribunal da Relação de Lisboa, in CJ, Ano XX, Tomo I, pág. 155, e de 31 de Janeiro de 2007, do Tribunal da Relação do Porto, disponível in www.dgsi.pt.;
7. Em terceiro lugar, e por último, tendo a M.ma Juiz recorrida constatado a omissão da notificação do arguido com a apresentação da tradução da peça da acusação, e determinado a invalidade dessa notificação, nada impedia que tivesse ordenado a sua sanação nos termos previstos pelo art. 122º, do C.P.P., sendo eu essa sanação pode ocorrer pelos próprios serviços da Seção de processos, sem necessidade alguma de dar sem efeito a distribuição já ocorrida, e sem ordenar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para reparar tal invalidade;
8. De facto, o art. 123º, nº2, do C.P.P., prevê a possibilidade de, oficiosamente, se reparar qualquer invalidade/irregularidade, quando dela se tomar conhecimento, se esta afectar o valor do acto praticado;
9. Quando este preceito legal prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinado que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público.
10. Neste sentido, e para salvaguarda dos princípios da economia processual, e do respeito pelo princípio do juiz natural, pode-se ver Paulo Pinto de Albuquerque, (in “Comentário ao Código de Processo Penal, UCE, 2ª Edição actualizada, pág. 790), e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 05-12-2016 e de 06-02-2017, do Tribunal da Relação de Évora de 07-03-2017 (processos nº 874/15.GCFAR. E1 e 89/15.8T9ABF.E1), do Tribunal da Relação do Porto, de 11-04-2018, e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08-09-2020 e 13-01-2021, todos disponíveis in www.dgsi.pt.;
11. Atenta a fundamentação que vai supra exposta, deverá a douta decisão recorrida ser substituída por outra que receba a acusação e ordene aos próprios serviços da Secção a reparação da irregularidade julgada como verificada, considerando-se assim que foi violado o disposto pelos arts. 123º, nº2, e 311 e 312º, todos do C.P.P.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a reparação da invocada irregularidade pelos serviços da Seção de Processos, com o oportuno cumprimento do disposto pelo art. 312º, nº 1, do C.P.P.
Com o que se fará inteira Justiça.
V. Exas., como sempre, melhor decidirão.

Inexistem respostas ao recurso interposto.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a acompanhar a fundamentação do recurso interposto, pugnando pela sua procedência.
Procedeu-se a exame preliminar.
Cumpridos os vistos legais, foi realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B –
O despacho de 09-10-2023, ora recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):
“Da nulidade do processado por falta de tradução da acusação.
Por despacho de 28 de Abril de 2023, foi o A acusado da prática, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº1, al. a, e nº 2, conjugado com os arts. 143º, nº 1, e 132º, nº2, al. h), todos do Código Penal, aprovado pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 283º, nº 5, e 277º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal, a acusação é comunicada às pessoas indicadas nesse nº 3, entre elas se contando, desde logo, o Arguido.
Essa comunicação é feita nos termos do nº 4 do referido artigo 277º, pelo que, no respeita ao arguido, a regra é a da que o seja “por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registado”.
No entanto o acto em crise - acusação pública deduzida - respeita a um cidadão estrangeiro (indiano) que foi assistido por intérprete no momento em que foi ouvido no inquérito e, a despeito de tal, foi utilizada a língua portuguesa, não tendo sido entregue ao Arguido a tradução da acusação na língua que o Arguido perceba e domine.
Ora, estabelece o nº1 do artigo 92º do Código de Processo Penal que “nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.”.
No entanto, acautelando as situações de intervenção no processo de pessoa que não conheça ou não domine a língua portuguesa, o nº 2 dispõe que “… é nomeado, sem encargo para ela (para essa pessoa), intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada”.
Ademais resulta do artigo 61º nº 1 al. j) do Código de Processo Penal que “O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de: (…) tradução e interpretação, nos termos dos artigos 92º e 93º.”.
No vertente caso, o Arguido deveria, assim, ter sido notificado do teor do despacho de acusação na sua língua materna, o que não se verificou. Resta, pois, apurar a consequência de uma tal omissão.
Neste domínio, vigora entre nós o princípio da legalidade, definido no 118º do Código de Processo Penal, cujo nº 1, estabelece que “a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, estatuindo o seu nº 2 que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.
Inexistindo norma especial que comine expressamente com nulidade a omissão de entrega ao notificando estrangeiro de tradução da acusação na sua língua materna, importa atentar ao disposto nos artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal, onde consta o elenco das situações que integram, respectivamente, a categoria das nulidades insanáveis e a das nulidades dependentes de arguição ou sanáveis.
Dispõe o artigo 120º al. c) do nº 2 do Código de Processo Penal que constitui nulidade dependente de arguição “a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória”, aqui se incluindo, naturalmente, todos os actos orais ou escritos que importe traduzir para a língua de algum dos intervenientes, em harmonia, de resto, com o estabelecido no acima referido artigo 92º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Todavia, a este nível, importa ainda considerar as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, respectivamente, nº 2010/64/EU de 20-10 e nº 2012/13/EU de 22-12, que regulamentam o direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos actos processuais aos arguidos estrangeiros e ao direito à informação em processo penal.
Neste sentido, a primeira dela, nos seus art.s 1 a 3 refere o seguinte:
Artigo 1º
Objeto e âmbito de aplicação
1. A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.
2. O direito a que se refere o nº 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.
3. Caso a lei de um Estado-Membro determine que, no caso de infrações de menor gravidade, as sanções são impostas por uma autoridade que não é um tribunal competente em matéria penal e que a imposição dessa sanção é passível de recurso para um tribunal com essas características, a presente diretiva só se aplica à ação que correr termos nesse tribunal na sequência do recurso.
4. A presente diretiva não afeta o direito nacional no que diz respeito à presença de um defensor legal durante todas as fases do processo penal, nem no que diz respeito ao direito de acesso dos suspeitos ou acusados aos documentos do referido processo.
Artigo 2º
Direito à interpretação
1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias.
2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual.
3. O direito à interpretação referido nos nºs 1 e 2 inclui a assistência adequada a pessoas com deficiência auditiva ou da fala.
4. Os Estados-Membros asseguram a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete.
5. Os Estados Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Se for caso disso, pode recorrer-se a tecnologias de comunicação como a videoconferência, o telefone ou a Internet, a menos que a presença física do intérprete seja necessária para garantir a equidade do processo.
7. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes disponibilizem interpretação nos termos do presente artigo às pessoas submetidas a esses mandados que não falam ou não compreendem a língua do processo.
8. A interpretação disponibilizada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.
Artigo 3º
Direito à tradução dos documentos essenciais
1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.
2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.
3. As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial. O suspeito ou acusado ou o seu defensor legal podem apresentar um pedido fundamentado para esse efeito.
4. Não têm de ser traduzidas as passagens de documentos essenciais que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas.
5. Os Estados-Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a tradução de documentos ou passagens de documentos e, caso esta seja facultada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da tradução não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes facultem a tradução escrita do mandado de detenção europeu às pessoas submetidas a esses mandados que não compreendem a língua em que o mesmo é redigido ou a língua para a qual tenha sido traduzido pelo Estado-Membro de emissão.
7. Como exceção às regras gerais estabelecidas nos nºs 1, 2, 3 e 6, podem ser facultados uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo.
8. A renúncia ao direito à tradução de documentos previsto no presente artigo fica sujeita ao requisito de que o suspeito ou acusado tenha previamente recebido aconselhamento jurídico, ou obtido, por outra via, pleno conhecimento das consequências da sua renúncia, e de que essa renúncia seja inequívoca e voluntária.
9. A tradução facultada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.
Por sua vez, a Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu art. 3º, sobre o direito a ser informado sobre os direitos, a consagração, na sua al. d), do direito à interpretação e tradução.
É ainda seguro, que tais disposições têm por escopo garantir o direito dos acusados a um processo equitativo, tal como a CEDH estabelece, no seu nº 3 do seu artigo 6º quando “O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;
(…)
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo”.
Como se escreveu no Acórdão da Relação de Évora de 08-03-22, Proc. 53/1 “As Diretivas em referência - que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal - não se encontram transpostas no ordenamento jurídico português, sendo certo que se mostram esgotados os respetivos prazos de transposição, que terminaram, respetivamente, em 27-11-2013 e 02-06-2014.
Encontramos no Tratado de Funcionamento da União Europeia (T.F.U.E), concretamente no seu artigo 288º o princípio segundo o qual uma Diretiva, à partida, só produz efeitos na ordem interna do Estado-Membro após ser transposta, vinculando, porém, os Estados-Membros à sua transposição.
Todavia, para além da aplicabilidade direta a possibilidade de aplicação de uma norma comunitária na ordem jurídica dos Estados-Membros pode resultar do chamado efeito direto, que surge como uma “criação jurisprudencial” num primeiro momento relativa ao “direito comunitário originário” (Tratados) – expressamente reconhecido pela primeira vez no Acórdão Van Gend & Loos, de 05-02-1963 e, em 1964 (no quadro da afirmação do princípio do primado), no Acórdão Costa c. ENEL que tem sido estendido pela jurisprudência comunitária no que diz respeito ao efeito vertical, ao “direito comunitário derivado” onde se incluem as Diretivas.
Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (neste caso, o tribunal e o Estado português), existirá posto que se encontrem preenchidos cumulativamente determinados pressupostos, a saber:
- Que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta;
- Que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas;
- Que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares;
- Que esteja esgotado o prazo de transposição.
No que diz respeito à verificação destes requisitos relativamente às duas Diretivas acima identificadas, acompanhamos, sem hesitações, a posição defendida por João Gomes de Sousa no estudo acima citado e que pelo mesmo autor foi aplicada no Acórdão da Relação de Évora de 28-12-2018, no proc. nº 55/2017.9GBLGS.E1 por si relatado, disponível em www.dgsi.pt - no sentido de que os mesmos se encontram preenchidos, pelo que se impõe concluir pelo efeito direto dos dois atos da Direito da União que acima identificámos.
Assim e analisando mais de perto cada um dos mencionados requisitos, verificamos que o primeiro e o último se encontram indiscutivelmente preenchidos, pois que, conforme já demos nota, nenhuma das duas Diretivas foi transposta para o ordenamento jurídico português, encontrando-se há muito esgotados os prazos fixados para as suas transposições (o que ocorreu, respetivamente, em 27-11-2013 e 02-06-2014). No que diz respeito ao terceiro requisito que enunciámos, nenhuma dúvida pode igualmente subsistir relativamente à sua verificação, uma vez que as duas Diretivas em referência, nas normas aplicáveis à situação dos autos, conferem indiscutivelmente direitos a particulares, concretamente o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal.
Finalmente, no que tange ao preenchimento do segundo critério definido - que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas - e que se apresenta como o que gera maior dificuldade de verificação, fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal de Justiça, convocamos, atenta a sua clareza e assertividade, o Acórdão do Tribunal de Justiça Susanne Gassmayr c. Bundesminister für Wissenschaft und Forschung de 1 de julho de 2010 (Processo C-194/08)[6], no qual podemos ler:
“(…) 44 - Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em todos os casos em que, tendo em conta o seu conteúdo, as disposições de uma diretiva sejam incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado nos tribunais nacionais, quer quando este não tenha feito a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva quer quando tenha feito uma transposição incorrecta (…).
45 - Uma disposição de direito da União é incondicional quando prevê uma obrigação que não é acompanhada de condições nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à intervenção de qualquer ato das instituições da União ou dos Estados-Membros. Uma disposição é suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (…)”.
Assim sendo, encontrando-se verificados todos os critérios/requisitos dos quais depende a atribuição de efeito directo vertical às aludidas Directivas - uma vez que as mesmas não foram transpostas para o ordenamento jurídico nacional nos prazos fixados para o efeito, contêm normas que conferem direitos a particulares e que são claras, precisas e incondicionais e respeitando o primado do Direito da União Europeia, constitucionalmente reconhecido pelo art. 8º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, teremos de concluir que as referenciadas normativas (nº 2010/64/EU e nº 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho), nos preceitos transcritos, têm efeito directo vertical na ordem jurídica nacional, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno.
Assim, a imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas e da Jurisprudência do TJ, atendendo ao princípio do primado do Direito da União reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União, o que, no que à economia do caso dos autos diz respeito, determina a desaplicação do regime da sanação das nulidades estabelecido pelo citado artigo 120º, nº 3 do Código de Processo Penal, em virtude de o mesmo se não revelar compatível com os direitos fundamentais a um processo equitativo e com o respeito pelos direitos de defesa decorrentes dos artigos 47° e 48°, n° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 6° da CEDH, à luz dos quais deverão ser interpretados os artigos 2°, n° 1, e 3°, n° 1 da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3º, nº 1, da Diretiva 2012/13”. [neste sentido vejam-se os Acórdãos da Relação de Évora de 8 de Março de 2022 e de 25 de Outubro de 2022, Processos nºs 53/19.8GACUB-B.E1 e 128/22.6GDFAR.E1].
Na verdade, decorre do Acórdão do TJUE, no Proc. C-242/22 PPU, de 01-08-22 na sequência de um pedido de decisão prejudicial apresentado pela Relação de Évora no âmbito do Processo nº 53/19.8GACUB.B.E1 que:
O artigo 2°, n° 1, e o artigo 3°, n° 1, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, bem como o artigo 3°, n° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47° e do artigo 48°, n° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados”.
Em face do exposto, declara-se nula a notificação do despacho de acusação proferido a fls. 103 e seguintes e o processado subsequente, porque dele dependente, e determina-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para que este proceda à tradução do mesmo, nos termos que resultam do supra exposto.”.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:
- A revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que proceda à reparação da invocada irregularidade - relacionada com a tradução da acusação proferida – seguida do oportuno cumprimento do disposto pelo artigo 312º nº 1 do Código de Processo Penal.


2 - Apreciando e decidindo:

A questão suscitada nos presentes autos, foi recentemente objecto de decisão deste Tribunal da Relação de Évora, proferida no Processo nº 428/21.2GESLV.E1, prolatada pelo Exmo. Juiz Desembargador Relator Renato Barroso e no qual tive intervenção na qualidade de Juiz Adjunto.
Assim, sem necessidade de outros considerandos, sobre a efectiva actuação do Ministério Público, no cumprimento dos seus deveres constitucionais, relacionados com o princípio da legalidade, vamos dar aqui por integralmente reproduzida a fundamentação constante da referida decisão por nós então subscrita.
A questão em discussão é eminentemente jurídica e de fácil resolução, atenta a jurisprudência recente do TJUE, e vai no sentido apontado no douto despacho recorrido que supra se transcreveu, na esteira também de um entendimento já defendido pelo aqui relator e então adjunto, em aresto de 15-10-22, no Proc. 128/22.6GDFAR.E1, deste Tribunal da Relação de Évora.
Nos presentes autos, trata-se de um cidadão estrangeiro (indiano) que foi assistido por intérprete no momento em que foi ouvido no inquérito, pelo que não faz sentido questionar se o mesmo entende, ou não, a língua portuguesa, já que, enquanto não se provar o contrário, a necessidade de lhe traduzir os documentos relevantes para a sua defesa, como a acusação, é evidente.
Isso mesmo aliás, foi reconhecido pelo próprio Ministério Público, quando, em sede de inquérito, o interrogou com a presença de intérprete.
O arguido é de nacionalidade indiana e apesar de, como se disse, ter sido assistido, em inquérito, quando foi ouvido, por um intérprete, nos termos do artigo 92º nº 2 do Código de Processo Penal, não foi a acusação proferida pelo Ministério Público objecto de qualquer tradução, não tendo sido entregue ao arguido a sua tradução na língua que o mesmo comprovadamente entenda e domine.
Importa assim saber se este quadro revela alguma nulidade e qual o seu regime, e ainda, se devem ser aplicadas as normas decorrentes do Direito da União Europeia, em função da sua produção de efeitos na ordem jurídica interna.
Ora, a este nível, importa referenciar as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, respectivamente, nº 2010/64/EU de 20-10 e nº 2012/13/EU de 22-12, que regulamentam o direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos actos processuais aos arguidos estrangeiros e ao direito à informação em processo penal, referidas no despacho recorrido.
Neste sentido, a primeira delas, nos seus arts. 1º a 3º refere o seguinte:
“Artigo 1º
Objeto e âmbito de aplicação
1. A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.
2. O direito a que se refere o nº 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.
3. Caso a lei de um Estado-Membro determine que, no caso de infrações de menor gravidade, as sanções são impostas por uma autoridade que não é um tribunal competente em matéria penal e que a imposição dessa sanção é passível de recurso para um tribunal com essas características, a presente diretiva só se aplica à ação que correr termos nesse tribunal na sequência do recurso.
4. A presente diretiva não afeta o direito nacional no que diz respeito à presença de um defensor legal durante todas as fases do processo penal, nem no que diz respeito ao direito de acesso dos suspeitos ou acusados aos documentos do referido processo.
Artigo 2º
Direito à interpretação
1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias.
2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual.
3. O direito à interpretação referido nos nºs 1 e 2 inclui a assistência adequada a pessoas com deficiência auditiva ou da fala.
4. Os Estados-Membros asseguram a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete.
5. Os Estados Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Se for caso disso, pode recorrer-se a tecnologias de comunicação como a videoconferência, o telefone ou a Internet, a menos que a presença física do intérprete seja necessária para garantir a equidade do processo.
7. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes disponibilizem interpretação nos termos do presente artigo às pessoas submetidas a esses mandados que não falam ou não compreendem a língua do processo.
8. A interpretação disponibilizada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.
Artigo 3º
Direito à tradução dos documentos essenciais
1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.
2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.
3. As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial. O suspeito ou acusado ou o seu defensor legal podem apresentar um pedido fundamentado para esse efeito.
4. Não têm de ser traduzidas as passagens de documentos essenciais que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas.
5. Os Estados-Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a tradução de documentos ou passagens de documentos e, caso esta seja facultada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da tradução não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes facultem a tradução escrita do mandado de detenção europeu às pessoas submetidas a esses mandados que não compreendem a língua em que o mesmo é redigido ou a língua para a qual tenha sido traduzido pelo Estado-Membro de emissão.
7. Como exceção às regras gerais estabelecidas nos nºs 1, 2, 3 e 6, podem ser facultados uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo.
8. A renúncia ao direito à tradução de documentos previsto no presente artigo fica sujeita ao requisito de que o suspeito ou acusado tenha previamente recebido aconselhamento jurídico, ou obtido, por outra via, pleno conhecimento das consequências da sua renúncia, e de que essa renúncia seja inequívoca e voluntária.
9. A tradução facultada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.”
Por sua vez, a Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu art. 3º, sobre o direito a ser informado sobre os direitos, a consagração, na sua alínea d), do direito à interpretação e tradução.
É ainda seguro, que tais disposições têm por escopo garantir o direito dos acusados a um processo equitativo, tal como a CEDH estabelece, no seu nº 3 do seu artigo 6º quando afirma que:
“O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;
(…)
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo”
Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 08-03-22, Proc. 53/19.8GACUB.B.E1:
“As Diretivas em referência – que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal – não se encontram transpostas no ordenamento jurídico português, sendo certo que se mostram esgotados os respetivos prazos de transposição, que terminaram, respetivamente, em 27-11-2013 e 02-06-2014.
Encontramos no Tratado de Funcionamento da União Europeia (T.F.U.E), concretamente no seu artigo 288º o princípio segundo o qual uma Diretiva, à partida, só produz efeitos na ordem interna do Estado-Membro após ser transposta, vinculando, porém, os Estados-Membros à sua transposição.
Todavia, para além da aplicabilidade direta a possibilidade de aplicação de uma norma comunitária na ordem jurídica dos Estados-Membros pode resultar do chamado efeito direto, que surge como uma “criação jurisprudencial” num primeiro momento relativa ao “direito comunitário originário” (Tratados) – expressamente reconhecido pela primeira vez no acórdão Van Gend & Loos, de 05-02-1963 e, em 1964 (no quadro da afirmação do princípio do primado), no Acórdão Costa c. ENEL – que tem sido estendido pela jurisprudência comunitária, no que diz respeito ao efeito direto vertical, ao “direito comunitário derivado”, onde se incluem as Diretivas.
Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (neste caso, o tribunal e o Estado português), existirá posto que se encontrem preenchidos cumulativamente determinados pressupostos, a saber:
- Que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta;
- Que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas;
- Que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares
particulares;
- Que esteja esgotado o prazo de transposição.
No que diz respeito à verificação destes requisitos relativamente às duas Diretivas acima identificadas, acompanhamos, sem hesitações, a posição defendida por João Gomes de Sousa no estudo acima citado – e que pelo mesmo autor foi aplicada no Acórdão da Relação de Évora de 28-12-2018, no proc. nº 55/2017.9GBLGS.E1 por si relatado, disponível em www.dgsi.pt – no sentido de que os mesmos se encontram preenchidos, pelo que se impõe concluir pelo efeito direto dos dois atos da Direito da União que acima identificámos.
Assim e analisando mais de perto cada um dos mencionados requisitos, verificamos que o primeiro e o último se encontram indiscutivelmente preenchidos, pois que, conforme já demos nota, nenhuma das duas Diretivas foi transposta para o ordenamento jurídico português, encontrando-se há muito esgotados os prazos fixados para as suas transposições (o que ocorreu, respetivamente, em 27-11-2013 e 02-06-2014). No que diz respeito ao terceiro requisito que enunciámos, nenhuma dúvida pode igualmente subsistir relativamente à sua verificação, uma vez que as duas Diretivas em referência, nas normas aplicáveis à situação dos autos, conferem indiscutivelmente direitos a particulares, concretamente o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal.
Finalmente, no que tange ao preenchimento do segundo critério definido – que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas – e que se apresenta como o que gera maior dificuldade de verificação, fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal de Justiça, convocamos, atenta a sua clareza e assertividade, o acórdão do Tribunal de Justiça Susanne Gassmayr c. Bundesminister für Wissenschaft und Forschung de 1 de julho de 2010 (Processo C-194/08)[6], no qual podemos ler:
“(…) 44 - Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em todos os casos em que, tendo em conta o seu conteúdo, as disposições de uma diretiva sejam incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado nos tribunais nacionais, quer quando este não tenha feito a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva quer quando tenha feito uma transposição incorreta (…)
45 - Uma disposição de direito da União é incondicional quando prevê uma obrigação que não é acompanhada de condições nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à intervenção de qualquer ato das instituições da União ou dos Estados-Membros. Uma disposição é suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (…).”
Assim sendo, encontrando-se verificados todos os critérios/requisitos dos quais depende a atribuição de efeito directo vertical às aludidas Directivas, uma vez que as mesmas não foram transpostas para o ordenamento jurídico nacional nos prazos fixados para o efeito, contêm normas que conferem direitos a particulares e que são claras, precisas e incondicionais e respeitando o primado do Direito da União Europeia, constitucionalmente reconhecido pelo art. 8º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, teremos de concluir - como muito acertadamente o tribunal a quo - que as referenciadas normativas (nº 2010/64/EU e nº 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho), nos preceitos transcritos, têm efeito directo vertical na ordem jurídica nacional, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno.
Nessa medida, citando ainda o aludido aresto:
“Todos os atos processuais levados a efeito nas fases preliminares do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir.
(…)
A imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas e da Jurisprudência do TJ, atendendo ao princípio do primado do Direito da União reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União, o que, no que à economia do caso dos autos diz respeito, determina a desaplicação do regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120º, nº 3 do CPP aplicado na decisão recorrida, em virtude de o mesmo se não revelar compatível com os direitos fundamentais a um processo equitativo e com o respeito pelos direitos de defesa decorrentes dos artigos 47° e 48°, n° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 6° da CEDH, à luz dos quais deverão ser interpretados os artigos 2°, n° 1, e 3°, n° 1 da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3°, n° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13.”
Na verdade, o Acórdão do TJUE, no Proc. C–242/22 PPU, de 01-08-22 – na sequência, aliás, de um pedido de decisão prejudicial apresentado por esta Relação no âmbito do Processo nº 53/19 acima referido, é claríssimo sobre esta matéria, quando plasma o seguinte:
“O artigo 2°, n° 1, e o artigo 3°, n° 1, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, bem como o artigo 3°, n° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47° e do artigo 48°, n° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados.”
A análise jurídica efectuada pela Mmª Juiz “a quo”, ao contrário do afirmado pelo recorrente, não merece, por isso, qualquer censura, pois mais não faz do que dar cumprimento ao citado Acórdão do TJUE, o qual, recorde-se, vincula os órgão jurisdicionais a que seja submetido problema idêntico e, no quadro do direito da UE, enquanto direito que produz efeitos na ordem jurídica interna, como, evidentemente, é o caso, ficando assim prejudicada a argumentação recursiva no sentido de ser a secção do processos a corrigir a alegada nulidade, procedendo à tradução em falta.
Por outro lado, não se trata de qualquer formalismo excessivo ou desadequado, mas apenas o cumprimento de legislação imperativa à qual, com o devido respeito, não se pode escapar.
Atentas as normas comunitárias invocadas, o seu primado sobre a norma interna e o que supra se escreveu, nada mais resta a esta instância que - dando cumprimento a este Acórdão do TJUE, o qual vincula os órgãos jurisdicionais portugueses e no quadro do Direito da União Europeia que produz efeitos na ordem jurídica interna portuguesa e prevalece sobre o nosso direito interno - não aplicar o regime decorrente do art. 120º nº 2 al. c) do Código de Processo Penal, mas antes, confirmando o douto despacho recorrido, considerar o processado como nulo, desde a notificação do despacho de acusação, porque dele dependente, nulidade essa insanável, cabendo naturalmente aos serviços do Ministério Público a correcção da nulidade por si cometida, procedendo à tradução da acusação para língua que o arguido domine e compreenda e a sua correspondente notificação ao arguido.
Assim, atenta a evidente falta de fundamento legal, terá o recurso interposto pelo Ministério Público de improceder, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público, artigo 522º, do Código de Processo Penal.


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, manter na íntegra o despacho recorrido, que declarou a nulidade da notificação do despacho de acusação proferido a fls. 103 e seguintes e o processado subsequente, porque dele dependente, determinando-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para que este proceda à respectiva tradução e subsequente notificação do despacho de acusação ao arguido.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público, artigo 522º, do Código de Processo Penal.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 21-05-2024
Fernando Pina
Fátima Bernardes
Carlos de Campos Lobo