Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
234/22.7T8ETZ-F.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESTITUIÇÃO DE BENS
VALOR REAL E CORRENTE DOS BENS
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os contratos de locação financeira estão sujeitos ao regime inserto no artigo 102.º/3, do CIRE, com as adaptações referidas no artigo 104.º/5, do mesmo diploma.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Credora Reclamante: Banco (…), SA
Recorrida: Massa Insolvente de Transportes (…), Unipessoal, Lda.

No âmbito do processo de insolvência, decorridos os trâmites processuais constantes dos autos, a Administradora da Insolvência apresentou a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos.
Foram apresentadas impugnações à lista de créditos reconhecidos, designadamente pelo Banco (…), S.A., pugnando pelo reconhecimento de crédito no montante total de € 9.800,08 (nove mil e oitocentos euros e oito cêntimos), de natureza comum, decorrente do contrato de locação financeira mobiliária celebrado com a sociedade declarada insolvente, mediante o qual deu em locação duas viaturas; à data da declaração de insolvência, o contrato ainda não se encontrava resolvido, mas já se encontrava em incumprimento; a sra. Administradora da Insolvência recusou o cumprimento do contrato, entregou-lhe os veículos objeto do mesmo; o valor dos veículos não pode ser tido em consideração para a redução da dívida, uma vez que são de sua propriedade.
Ao que respondeu a AI, sustentando que, como o credor não indica o valor dos bens à data da recusa do cumprimento, o que é essencial para aferir do valor do crédito sobre a insolvência, mantém a posição já assumida de não reconhecimento do crédito.
Na sequência do envio de documentação pelo Credor Reclamante Banco (…), S.A. à AI, apresentou-se a mesma a invocar que o credor impugnante apenas tem direito ao valor de € 2.268,11 (dois mil e duzentos e sessenta e oito euros e onze cêntimos).

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos.
Relativamente ao credor reclamante Banco (…), SA, foi proferida a seguinte decisão:
«ao Credor Impugnante Banco (…), S.A. deve ser reconhecido um crédito no valor de € 2.156,05 (dois mil e cento e cinquenta e seis euros e cinco cêntimos), com natureza comum, improcedendo, por isso, parcialmente a impugnação deste Credor Banco (…), S.A..»
Inconformado, o Banco (…), SA apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que reconheça o seu crédito nos termos em que foi reclamado e versado no mapa atualizado, sem que haja lugar a dedução do valor dos bens objeto do contrato de locação financeira que foram restituídos. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. A decisão recorrida reconheceu ao Banco (…), S.A., apenas um crédito no montante de € 2.419,66, quando a pretensão deduzida pelo recorrente ascendia a € 9.054,66, valor correspondente à soma das prestações vencidas e da indemnização contratual pela cessação antecipada do contrato de locação financeira.
2. Tal diferença, na ordem de € 6.635,00, configura uma redução substancial e gravosa da posição creditória do Banco, determinando uma sucumbência que legitima e torna admissível o presente recurso.
3. A decisão recorrida não se limitou a um mero apuramento quantitativo neutro, antes implicou a exclusão de parte relevante do crédito reclamado, com impacto direto na graduação e satisfação do crédito no processo de insolvência.
4. O Banco (...) reclamou inicialmente o crédito com base nos valores vencidos e vincendos, em momento em que a administradora da insolvência ainda não havia manifestado a sua posição quanto ao cumprimento do contrato, tendo atuado com prudência e rigor contabilístico.
5. Após a recusa de cumprimento comunicada pela administradora, consolidou-se o vencimento antecipado das prestações e tornou-se exigível a indemnização contratual prevista, tendo o Banco atualizado o crédito nos precisos termos previstos no contrato, sem qualquer cumulação indevida.
6. A decisão recorrida entendeu que o valor dos bens objeto do contrato deveria ser abatido ao crédito reclamado, por suposta analogia com o regime jurídico dos contratos com reserva de propriedade, entendimento que se revela incorreto e desprovido de fundamento adequado.
7. Nos contratos de locação financeira, os bens locados mantêm-se em permanência na propriedade do locador até ao termo do contrato, não integrando o património do locatário insolvente, nem a massa insolvente.
8. A apreensão decretada na insolvência incide apenas sobre bens pertencentes ao devedor, não sobre bens de terceiros que se encontrem na posse do insolvente, sendo a restituição ao locador apenas uma reposição da sua esfera jurídica, sem constituir pagamento parcial da dívida.
9. Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16-12-2014, mesmo que as rendas se destinem a amortizar o custo de aquisição e a margem de lucro, tal circunstância não descaracteriza a natureza de locação do contrato, devendo aplicar-se o regime do artigo 108.º do CIRE.
10. O artigo 108.º do CIRE prevê que, em caso de recusa do cumprimento pelo administrador da insolvência, se torne exigível a restituição do bem e o pagamento das rendas vencidas e vincendas, não havendo qualquer suporte legal que imponha a dedução do valor do bem ao crédito do locador.
11. A decisão recorrida desconsiderou que a restituição do bem ao Banco (...) não correspondeu a qualquer contrapartida pecuniária recebida pelo credor, não integrando a massa insolvente qualquer vantagem patrimonial suscetível de compensar a dívida.
12. Este entendimento transfere indevidamente para o credor o ónus económico de “pagar” parte da dívida do locatário, impondo-lhe uma redução patrimonial que a lei não prevê, e desvirtua a função garantística da locação financeira.
13. Acresce que a demora da administradora da insolvência na recusa do cumprimento determinou a acumulação de prestações vencidas adicionais, situação que não pode ser imputada ao Banco e que justificou a atualização do crédito, devidamente comunicada ao processo.
14. A decisão recorrida tratou de forma indiferenciada as prestações vencidas pela inércia processual e a indemnização contratual, concluindo por uma dedução que não tem fundamento jurídico no regime próprio da locação financeira.
15. Por tudo quanto se expôs, a decisão recorrida enferma de erro de julgamento que contamina de forma decisiva a solução jurídica adotada, devendo ser revogada na parte impugnada.
16. Deve ser reconhecido ao Banco (…), S.A., o crédito reclamado, nos exatos termos constantes da reclamação inicial e do mapa atualizado, sem que sobre o mesmo recaia qualquer dedução do valor dos bens objeto do contrato de locação financeira.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se o montante do crédito reclamado por Banco (…), SA ascende a € 9.054,66.

III – Fundamentos
A - Os factos provados em 1.ª Instância
Com relevo para a questão em apreço, mostram-se provados os seguintes factos:
1. Transportes (…), Unipessoal, Lda., pessoa coletiva (…), com sede na Zona Industrial dos (…), lote 8, freguesia dos (…), concelho de Estremoz, foi declarada insolvente por sentença de 16/09/2022, transitada em julgado.
(…)
4. O credor impugnante Banco (…), S.A., no exercício da sua atividade, celebrou com a Insolvente, em 28/04/2021, um acordo denominado de «locação financeira mobiliária» com o n.º (…), mediante o qual concedeu à Insolvente o gozo de duas viaturas marca (…), com as matrículas (…) e (…).
5. O acordo foi celebrado pelo prazo de 48 meses.
6. A insolvente não procedeu ao pagamento da prestação que se venceu em 05/06/2022, nem as que se venceram posteriormente.
7. O credor impugnante reclamou o pagamento da quantia de € 30.137,30 (trinta mil e cento e trinta e sete euros e trinta cêntimos), a título de capital que incluía as rendas vencidas e não pagas e o capital vincendo.
8. A sra. Administradora de Insolvência optou por não cumprir o acordo, tendo procedido à entrega dos veículos objeto do acordo ao credor impugnante.
9. À data da declaração de insolvência o crédito do credor impugnante ascendia a quantia de € 9.800,08, o qual se decompõe da seguinte forma:
• € 2.146,38 (dois mil e cento e quarenta e seis euros e trinta e oito cêntimos), a título de capital;
• € 9,67 (nove euros e sessenta e sete cêntimos), a título de juros de mora;
• € 112,05 (cento e doze euros e cinco cêntimos), a título de comissões e despesas;
• € 7.531,97 (sete mil e quinhentos e trinta e um euros e noventa e sete cêntimos), a título de indemnização contratual.
10. À data da declaração de insolvência o capital vincendo ascendia a € 27.990,92.
11. À data da entrega do veículo com a matrícula (…), o mesmo tinha o valor de € 27.800,00 (vinte e sete mil e oitocentos euros).
12. À data da entrega do veículo com a matrícula (…), o mesmo tinha o valor de € 29.600,00 (vinte e nove mil e seiscentos euros).

B – A questão do recurso
Tal como sustentou na impugnação apresentada à lista de credores reconhecidos, reitera aqui o Recorrente que o valor dos bens locados e restituídos não pode ser considerado para efeitos do apuramento do montante do crédito de que é titular, uma vez que tais bens são, e sempre foram, de sua propriedade.
A decisão recorrida alicerça-se no facto de o reclamado crédito se encontrar sujeito ao regime inserto nos artigos 102.º e 104.º do CIRE, pelo que nada mais pode o credor locador exigir para além do que resulta dos n.ºs 3 do artigo 102.º e 5 do artigo 104.º do CIRE.
Na verdade, assim é.
Vem exarado na sentença o seguinte:
«Ora, a declaração de insolvência tem efeitos sobre os negócios em curso do insolvente, estabelecendo o artigo 102.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o princípio geral da suspensão do cumprimento quanto a negócios ainda não cumpridos até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.
Este direito (potestativo) de opção do administrador da insolvência está perfeitamente enquadrado no conjunto de funções típicas do administrador enquanto representante da massa insolvente e tem como finalidade a satisfação, coletiva e paritária, dos direitos e interesses dos credores.
In casu, é pacífico que entre a insolvente e o credor impugnante foi celebrado um contrato de locação financeira, o qual se define como aquele pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado, ou determinável mediante simples aplicação de critérios aritméticos nele fixados – artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95.
Resulta da factualidade dada como provada no ponto 8 que a Administradora da Insolvência recusou o cumprimento do contrato de locação financeira mobiliária que a insolvente celebrou com o credor impugnante Banco (…), S.A..
Assim, cumpre, desde logo, chamar a colação o artigo 102.º, n.º 3, alínea c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, segundo o qual, sem prejuízo do direito à separação da coisa, se confere à outra parte o direito de exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente ao que ainda não tenha sido realizada.
Contudo, como o contrato celebrado entre a Insolvente e aquele credor impugnante é qualificado juridicamente como contrato de locação financeira mobiliária, importa, ainda, atentar no preceituado no artigo 104.º, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, de acordo com o qual:
«Os efeitos da recusa do cumprimento pelo administrador, quando admissível, são os previstos no n.º 3 do artigo 102.º, entendendo-se que o direito consignado na respetiva alínea c) tem por objeto o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença, se positiva, entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato, atualizadas à data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o valor da coisa na data da recusa, se a outra parte for o vendedor ou locador.»
De realçar que, as normas que fixam as compensações a que têm direito os credores de insolventes, em caso de resolução de contratos, como o ora em apreço, são imperativas (artigo 119.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.03.2014, proferido no proc. n.º 3468/12.9TJCBR-B.C1, disponível em www.dgsi.pt, refere que «A imperatividade das referidas normas previstas na legislação insolvencial vindas de analisar impede o autor ora recorrente de lançar mão do clausulado nos referidos contratos de locação financeira a propósito da resolução dos mesmos, estando a reclamação de créditos por ele formulada sujeita a estas normas, conforme resulta do disposto no citado artigo 119.º, n.º 2, do CIRE.»
Defendo o citado acórdão que «A recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência de contrato de locação financeira celebrado pelo insolvente tem como efeitos o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença positiva que exista entre o montante das prestações ou rendas previstas até final desse contrato e o valor da coisa na data da recusa.»
Assim, o credor impugnante tem, desde logo, direito a exigir como crédito sobre a Insolvente o valor de € 2.146,38 (dois mil e cento e quarenta e seis euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros, no montante de € 9,67 (nove euros e sessenta e sete cêntimos).
Por outro lado, quanto às comissões e despesas, bem como relativamente à indemnização contratual (correspondente a 20% das prestações vincendas, com sobretaxa de 3%), a imperatividade das normas previstas no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, acima citadas impede o credor impugnante de lançar mão do clausulado no contrato de locação financeira mobiliária a propósito da resolução do mesmo, conforme artigo 119.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Por último, importa aquilatar se o credor impugnante tem direito a algum crédito em virtude da recusa do cumprimento do contrato pela Sra. Administradora da Insolvência.
Ora, da factualidade dada como provada resulta que à data da declaração de insolvência o capital vincendo ascendia a € 27.990,92 e que à data da entrega o veículo com a matrícula (…) tinha o valor de € 27.800,00 (vinte e sete mil, oitocentos euros), enquanto que o veículo com a matrícula (…) tinha o valor de € 29.600,00 (vinte e nove mil e seiscentos euros).
Nos termos do artigo 104.º, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, importa aferir se a diferença entre o montante das prestações ou rendas previstas até ao final do contrato, atualizadas para a data da declaração de insolvência e o valor da coisa à data da recusa é positiva, uma vez que o credor impugnante é o locador.
Assim, ao valor de € 27.990,92 (capital vincendo) há que subtrair o montante € 57.400,00 (valor das coisas à data da recusa), o que dá – € 29.409,08, ou seja, o credor impugnante não tem direito ao crédito consignado na alínea c) do n.º 3 do artigo 102.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»
Fundamentação que subscrevemos, nos seus precisos termos.
Fundamentação que não resulta colocada em crise pelos fundamentos esgrimidos na alegação de recurso, no sentido de que é incorreta e desprovida de fundamento adequado a aplicação do regime jurídico dos contratos com reserva de propriedade, pois os bens locados mantêm-se no património do locador até ao termo do contrato; de que a restituição dos bens não constitui pagamento integral da dívida; de que se deve aplicar o regime inserto no artigo 108.º do CIRE.
A aplicação das disposições conjugadas dos artigos 102.º/3 e 104.º/5, do CIRE aos contratos de locação financeira em que o locatário é o insolvente[1], em vez de os submeter à disciplina do artigo 108.º do CIRE, constitui já entendimento generalizado na doutrina[2] e jurisprudência[3].
Tal regime é compatível com os casos em que os bens são restituídos à outra parte, ao locador, tal como resulta do n.º 3 do artigo 102.º do CIRE, que salvaguarda o direito à separação da coisa.
Termos em que se conclui não assistir ao Credor Recorrente direito a obter pagamento que exceda o montante que decorre da aplicação do regime versado no artigo 102.º/3, com as adaptações referidas no artigo 104.º/5, do CIRE.[4]

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
*
Évora, 2 de outubro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite



__________________________________________________
[1] Não consta que se trate de locação financeira restitutiva ou lease-back, caso em que pode excluir-se do âmbito de aplicação do artigo 104.º do CIRE – Pestana de Vasconcelos, A Cessão, págs. 241-242, nota 517.
[2] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª edição, pág. 468; Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 11.ª edição, pág. 194; Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 4.ª edição, págs. 255 e 258.
[3] Cfr. Acs. o TRG de 09/10/2008 (Conceição Bucho); TRC de 07/09/2021 (Maria João Areias); STJ de 17/10/2023 (Barateiro Martins); TRP de 21/05/2024 (Anabela Dias da Silva).
[4] Cfr. Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., pág. 258.