Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
30070/20.9YIPRT.E1
Relator: ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
Descritores: EMPREITADA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
DENÚNCIA DOS DEFEITOS
NULIDADE DA SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- a alegada contradição entre factos provados e factos não provados não configura nulidade da sentença, para os termos do art. 615º n.º1 al. c) do CPC.


- a alegada nulidade decorrente da omissão de notificação de auto inserido na tramitação do processo não constitui uma nulidade da sentença e não pode ser invocada em sede de recurso.


- a falta de cumprimento das exigências legais opostas à impugnação da decisão sobre a matéria de facto determina a rejeição da impugnação.


- a invocação da excepção de não cumprimento, em caso de cumprimento defeituoso de contrato de empreitada depende da prévia denúncia dos defeitos pelo dono da obra e da indicação de qual o direito, derivado daquele cumprimento defeituoso, que este dono da obra pretende exercer.

Decisão Texto Integral: Proc. 30070/20.9YIPRT

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I. Cozinhas 125 Comércio e Montagem de Cozinhas, Lda., intentou procedimento de injunção contra AA, pedindo o pagamento de 7.400 euros (capital, juros e taxa de justiça).


Alegou para tanto que prestou serviços de carpintaria ao requerido, estando em falta o pagamento de 7.060 euros, a que acrescem juros de mora contados desde a data das facturas que indica.


O requerido deduziu oposição, afirmando, em síntese, que contratou com a requerente a construção, montagem e instalação de uma cozinha e electrodomésticos, sendo a instalação defeituosa e tendo a requerente danificado o chão da cozinha e paredes de acesso à cozinha, do que reclamou sucessivamente. Aceita pagar o valor em dívida depois de corrigidos os defeitos.


Remetido o procedimento à distribuição, e na sequência de despacho de aperfeiçoamento, a requerente esclareceu quais os serviços efectivamente acordados.


Não foi apresentada resposta.


Na sequência de despacho, a requerente respondeu à excepção deduzida, afirmando, no que aqui releva, que não existem defeitos, que o requerido aceitou a obra e que deveria ter denunciado tempestivamente os defeitos nos termos dos art. 1218º e ss. do CC, o que não fez, caducando o direito.


Após o julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo o R. da totalidade do pedido.


Desta sentença foi interposto recurso pela requerente (agora recorrente), tendo, após convite, formulado as seguintes conclusões:


I. Não concorda o Recorrente com a decisão do Tribunal a quo – que determinou a absolvição do recorrido.


II. A sentença proferida padece de nulidade, porquanto existe clara oposição entre factos provados e não provados, mormente por o Recorrido em sede de oposição injuntiva, admitir que devia o valor de 7.060,00€, o que levaria a que tal facto constasse “obrigatoriamente” dos factos provados.


III. Ademais, existe ambiguidade, inviabilizando a solução jurídica dada ao presente caso, dado que por um lado dá-se como provado que as portas dos móveis da cozinha tinham de ter a mesma tonalidade, mas ao mesmo tempo dá como não provado que todos os móveis da cozinha (incluindo obviamente as portas), tinham que ter a mesma cor e tonalidade de cor por dentro e por fora, em todas as suas partes.


IV. Há, igualmente, uma contradição notória, pois o tribunal dá como provado que foi contratado que a cozinha tinha de ter determinado aspecto, e a mesmo tempo dá como não provado que foi contratado que a cozinha tinha de ter determinado aspecto.


V. Existe uma clara contradição e daí a violação da al. c) do artigo 651, nº1 do CPC, sendo a sentença nula, o que se alega para todos os efeitos legais.


VI. Padece a sentença ainda do vício de omissão de pronúncia, no que concerne à admissão e valorização do documento junto pela testemunha arrolada pelo réu, BB, namorada do Réu (comunicação dos defeitos), porquanto o Recorrente arguiu a falsidade de tal documento (por o mesmo nunca ter sido enviado) não tendo o tribunal efectuado qualquer abordagem sobre o mesmo e encetado diligências no que concerne a tal “prova documental”, a qual foi fulcral para ter sido dado como provado o ponto 17 dos factos - há manifesta falta de pronúncia sobre esta falsidade, a qual não foi devidamente apreciada, sendo por via disso a sentença nula, o que se alega para todos os efeitos legais.


VII. Acresce que o Tribunal a quo, não notificou as partes para se pronunciarem, relativamente ao Auto da Inspecção Judicial realizada, o que consubstancia, iguaçmente nulidade que ora se suscita.


VIII. Entende o Recorrente que mal andou o tribunal a quo ao ter absolvido o Recorrido do pedido, pois o mesmo confessou que ficou a dever os 7.060,00€.


IX. Devem os factos provados de 14 a 18 ser remetidos para a esfera dos factos dados como não provados, primeiramente porque o Recorrente não foi notificado do auto de inspecção judicial, logo esta prova não podia ter sido valorada; secundariamente no que concerne à denúncia dos alegados defeitos - porque a denúncia dos defeitos não ocorreu e, mesmo que assim se considere (o que não se concede) sempre teria de ser feita de forma inequívoca e concreta.


X. O tribunal a quo ainda considerou, mal a nosso ver, dar como provado o envio do “email” (que não ocorreu) em 02.03.2020, pelas 16:40hrs., correspondente à dénuncia dos defeitos, contudo sempre seria extemporanea (após 30 dias, caducidade), porquanto o Recorrido aceitou a obra; tanto aceitou que a mesma se desenvolveu em 3 fases: 1º roupeiros; 2º portas; 3º cozinha, logo esta prova não podia ter sido, igualmente, valorada.


XI. Resulta das declarações prestadas em sede de julgamento que de seguida se transcrevem que os Pontos 15, 16 e 17 e não deviam constar dos factos dados como provados, não tendo existido prova que permita tal conclusão;


XII. O Ponto 18 deve igualmente ser revisto, porquanto o “cesto do lixo” da cozinha que não tenha sido colocado (contudo o mesmo não se encontra faturado sequer) tal objecto não pode comprometer a obra no seu todo e considerar que a obra não está concluída por se encontrar por faltar um “um cesto do lixo”, no universo de uma obra no valor de cerca de 13.000,00€.


XIII. O Recorrente afiançou que: “terminámos tudo”. Aliás, nem o réu demonstrou ter gasto um único centimo de euro, para reparar fosse o que quer que fosse, ou ter contratado alguém para concluir trabalhos/serviços, ou ainda, alguém para fornecer artigos ou electrodomésticos.


XIV. Os pontos 1, 5 e 6 (factualidade dada como não provada), devem ser dados como provados e, em consequência, ser o Recorrido condenado a pagar ao Recorrente o valor de 7.060,00€, pelos serviços e bens prestados.


(...) [1].


XV. O Recorrido não denunciou os defeitos como lhe competia, logo se não denunciou -aceitou, (artº 1218, nº 1 e 5 do C.C.).


XVI. O art. 1220º/1 do CC dispõe que «o dono da obra deve, sob pena de caducidade dos direitos conferidos nos artigos seguintes, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos 30 dias seguintes ao seu descobrimento». E o seu nº 2 refere que «equivale à denúncia o reconhecimento, por parte do empreiteiro, da existência do defeito».


XVII. Considerando também a já referida norma do nº 2 do art. 1220º, que se relaciona com a genérica em matéria de caducidade contida no art. 331º CC, onde, depois do seu nº 1 enunciar que «só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo», o seu nº 2 estabelece que, «quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido».


XVIII. O Recorrente não concorda, mesmo que se considere que não foi “entregue um cesto de lixo”, numa obra de cerca de 13.000,00€, o tribunal a quo absolva o recorrido do valor de 7.000,00€ e por esta falta, é atentatório da razoabilidade, bom senso e da boa-fé negocial e que se levantam inevitavelmente sim, outras razões, por ora, desconhecidas do recorrente.


XIX. Sem dúvida, mal andou o tribunal a quo ao considerar que o Recorrente não alegou, nem provou a excepção de caducidade.


XX. Relativamente ao alegado “ónus da prova”, sempre se deverá ter em atenção que, tendo o Recorrente provado a existência do contrato de empreitada, incumbia ao Recorrido o ónus da prova do facto impeditivo do invocado direito de crédito, ou seja, de que aquele não realizou a obra também acordada ou que, pelo menos, não procedeu à sua entrega, o que não se verificou, cfr. supra se alegou.


XXI. Deverá ser revogada a decisão que absolveu o Recorrido do pedido e em consequência condenar-se o mesmo no pagamento do valor peticionado no requerimento injuntivo.


XXII. Foram violadas as seguintes disposições legais 1207º, 1220º 1224º do CC e 342º todos do Código Civil.


XXIII. Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que a sentença do tribunal a quo deve ser revogada e substituída por outra que condene o Recorrido a pagar ao Recorrente os montantes peticionados no requerimento de injunção.


Não foi apresentada resposta.


Não foi realizada a apreciação das nulidades invocadas pelo tribunal recorrido


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar:


- as nulidades invocadas pela recorrente.


- a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


- o direito do da recorrente a receber a parte do preço que reclama, mormente à luz da aceitação da obra pelo recorrido, da caducidade dos direitos emergentes dos defeitos em causa ou do relevo da excepção de não cumprimento.


III.1. A recorrente começa por imputar várias nulidades à sentença.


Nos termos do art. 615º n.º1 al. b) do CPC:


1 - É nula a sentença quando:


a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;


d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;


e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.


Pese embora o tribunal recorrido não tenha dado cumprimento ao disposto no art. 617º n.º1 do CPC, a fragilidade da argumentação dispensa, no caso (e à luz das vicissitudes do processo), aquela pronúncia (art. 617º n.º5 do CPC).


2. Em primeiro lugar, a recorrente invoca a existência de contradição entre factos provados e não provados (al. a) das alegações, com reflexos nas conclusões).


Neste ponto, a recorrente começa por afirmar que o recorrido admitiu que devia 7.060 euros, o que devia ter sido dado como provado. A alegação é, do ponto de vista da nulidade invocada, inconcludente pois não só a recorrente não explicita onde existe a contradição como não se vê onde ela possa radicar: o próprio objecto da alegação (omissão de facto) torna incompreensível a alegação pois é logicamente impossível existir contradição intrínseca (i. é, contradição nos termos da própria sentença) entre um facto nela descrito e um facto que dela não consta. É evidente que inexiste qualquer nulidade. A eventual omissão de facto relevante tem tratamento em outra sede.


3. Ainda neste ponto, a recorrente concretiza depois uma alegada contradição, estabelecida entre o facto provado descrito em 16 e o facto não provado descrito em 2, assimilando essa contradição à previsão da referida al. c) do n.º1 do art. 615º do CPC. Pese embora a alegação não seja clara (a recorrente tanto invoca a ambiguidade como invoca a contradição, referindo depois a alternativa contradição ou obscuridade, sempre figuras distintas), seguro é que a nulidade se não verifica.


De um lado, na referida al. c), supõe-se que o decidido (a parte decisória da sentença, o dispositivo) está em contradição lógica com os fundamentos invocados para o sustentar, ou que não é inteligível, o seu sentido não é apreensível. Os polos da nulidade são sempre a fundamentação e a decisão. O que pode discutir-se é se aquela fundamentação seria apenas a fundamentação jurídica (de direito) ou também a fundamentação de facto (máxime os factos provados). Como quer que seja, é sempre seguro que a contradição entre factos provados e factos não provados não integra a previsão legal invocada.


O que se compreende pois tal contradição acaba por constituir um erro de julgamento, e não um vício interno da decisão, mormente o vício que a recorrente invoca [2], e àquele erro (à contradição da decisão sobre pontos concretos da matéria de facto) assinala a lei processual outro efeito, qual seja a correcção, mesmo oficiosa, da decisão ou a sua anulação quando o processo não contenha os elementos que permitam aquela correcção, nos termos do art. 662º n.º2 al. c) do CPC. Regime este que, contudo, também não se justifica fazer operar pois não se verifica qualquer contradição ou, sequer, ambiguidade.


Os pontos de facto em causa são os seguintes:


Facto provado 16:


Foi contratado com a Autora que as portas dos móveis da cozinha tinham que ser todas da mesma cor e tonalidades.


Facto não provado 3:


Foi contratado com a Autora que todos os móveis da cozinha tinham que ter a mesma cor e tonalidade de cor por dentro e por fora, em todas as suas partes.


A contradição pressupõe a afirmação de realidades incompatíveis entre si, que mutuamente se excluem, ao ponto de, na situação, um certo dado ser tido por provado e simultaneamente por não provado.


Ora, uma leitura articulada, racional e, na verdade, literal revela que as descrições se reportam a realidades diferentes. Assim:


- dá-se como provado que os móveis tinham que a ter a mesma cor e tonalidade mas apenas nas portas.


e simetricamente,


- dá-se como não provado que tais móveis tinham que ter a mesma cor e tonalidade por dentro e por fora, em todas as suas partes (e não apenas nas portas).


É patente que as descrições factuais se reportam a realidades distintas: de um lado, temos as portas dos móveis (que tinham que ter a mesma cor e tonalidade); de outro lado, temos os móveis em toda a sua extensão, abrangendo quer as suas partes que excedem as portas quer também o seu interior (as quais já não tinham que ter a mesma cor). Afirmar que os móveis (em toda a extensão e por dentro e por fora) não tinham que ter a mesma cor mas as portas já tinham que a ter [3] não envolve qualquer incoerência. Ao invés, é até consistente entre si, surgindo a segunda afirmação (portas) como excepção ou restrição à primeira (móveis em si). A diferenciação é clara.


Inexiste, pois, qualquer contradição.


4. Em segundo lugar, a recorrente invoca a nulidade decorrente da omissão de pronúncia por o tribunal não se ter pronunciado sobre a falsidade de certo documento.


A omissão de pronúncia ocorre quando o tribunal deixe de apreciar questões que, nos termos do art. 608º n.º2 do CPC, devia ter conhecido. A noção destas questões tende a equivaler às questões de direito correspondentes aos pedidos, causas de pedir e excepções formuladas (ou, nas excepções, também as oficiosamente cognoscíveis), mas abrangendo quer a causa principal quer os incidentes suscitados.


A falsidade de documento dá lugar a um incidente probatório típico, nos termos dos art. 446º e ss. do CPC. Como a matéria do incidente deve ser julgada juntamente com o julgamento da causa (art. 449º n.º3 do CPC), a falta de decisão sobre o incidente poderia constituir omissão de pronúncia por referência ao incidente. Sucede que, ao contrário do alegado pela recorrente, esta não suscitou o incidente pois nunca invocou a aludida falsidade. Com efeito, a recorrente, na sequência da junção do documento que agora reputa falso, apresentou requerimento no qual se pronunciou sobre os documentos, mas nunca invocou expressamente, em termos processuais civis, a sua falsidade (ao invés, apenas declarou impugnar os documentos apresentados: art. 1º e 6º do requerimento), nem muito menos pretendeu sustentá-la. Terminou, é certo, o requerimento afirmando que «tais documentos levantam sérias dúvidas quanto à sua veracidade, autenticidade pelo que se requer que seja extraída certidão e se proceda à remessa aos Serviços Ministério Público (...) Com vista à abertura de inquérito sobre tais factos, porquanto os mesmos consubstanciam a prática de crime de falsificação de documento e crime de falsidade de testemunho». Obviamente, tal afirmação não constitui qualquer invocação de falsidade processualmente relevante, mas apenas o pedido de emissão de certidão. Aliás, nem se afirma a falsidade mas apenas a existência de (sérias) dúvidas. Acresce que esta pretensão vem ainda separada da avaliação probatória dos documentos que efectuou, tendo a recorrente contraposto esta pretensão (extra-processual) à sua atitude intra-processual, na qual se limita a impugnar os documentos. Inexiste, pois, incidente cuja decisão tenha sido omitida.


As demais considerações tecidas pela recorrente nada adiantam para a questão (nulidade) suscitada. Anotando-se apenas que: i. a falta de determinação de extracção da certidão é irrelevante nesta sede - actuação que apenas é obrigatória quando o magistrado tomou conhecimento de crime no exercício das suas funções e por causa delas (art. 242º n.º1 al. b) do CPC), conhecimento de crime este que está longe de estar verificado e em relação ao qual a posição do Mmo. Juiz, valorando o documento, até revela que este não considerou existirem indícios de qualquer crime; ii. a afirmação de que se usou «prova nula» apenas se compreende em função da falsidade agora invocada, não demonstrada, sendo por isso igualmente irrelevante.


Inexiste, pois, a nulidade invocada.


5. Em terceiro lugar, a recorrente invoca nulidade assente na falta de notificação do auto de inspecção. Pese embora a recorrente subordine a invocação às nulidades da sentença (também integra esta nulidade no ponto I do recurso, que intitula «Das Nulidades da Sentença», vindo esta inserida neste ponto I como sua al. c)) é evidente que não está em causa qualquer vício formal da própria sentença, dela intrínseco e assente em erro de actividade ou de procedimento da sentença face à disciplina legal (atinente à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão). Estaria em causa, antes, vício do próprio processo, externo e prévio à sentença, embora a pudesse inquinar por força do efeito anulatório dos actos subsequentes ao vício atinente à tramitação cometido.


O que estaria em causa, pois, seria a omissão de um acto (notificação de auto) que seria, de acordo com a recorrente, imposto pela lei, o que corresponderia, como se referiu, a um vício de tramitação (prévio e externo à sentença), cujo relevo se alcançaria através do regime das nulidades processuais, a partir do princípio geral constante do art. 195º n.º1 do CPC. Poderia discutir-se a necessidade legal da realização de tal notificação mas a questão irreleva porquanto objecções formais afastam o relevo da alegação.


De um lado, a invocação não poderia ser, em princípio, considerada nesta sede. Com efeito, a estar em causa uma nulidade processual, nos termos do art. 195º n.º1 do CPC, por o tribunal ter omitido um acto devido, cabia à parte invocar a nulidade perante o tribunal (reclamar), e fazê-lo no prazo legal de 10 dias (art. 197º n.º1, 199º n.º1 e 149º n.º1 do CPC). Já não poderia invocar a nulidade nesta sede pois as nulidades processuais não podem ser, em princípio, invocadas no recurso da decisão final. Na verdade, como a avaliação do tribunal de recurso incide sobre decisões, que são impugnadas, e não sobre actos processuais, aquele tribunal só pode apreciar a decisão que o tribunal inferior haja proferido sobre a arguição da nulidade; não pode ocupar-se directamente, e em primeira via, da nulidade cometida (na formulação de A. dos Reis). Assim, «o tribunal de recurso não tem competência (funcional) para apreciar, em primeira instância, esse vício, porque o meio de impugnação adequado de qualquer nulidade processual é, sempre e apenas, a reclamação para o próprio tribunal do processo» (T. de Sousa). Só poderá não ser assim quando a nulidade seja incorporada ou coberta por uma decisão judicial (caso em que não se reclama da nulidade mas se impugna, através do recurso, a decisão viciada), ou quando a nulidade é revelada através da própria sentença (caso das decisões-surpresa). Mas não é esse o caso. Não está em causa decisão-surpresa, e verifica-se inteira autonomia da omissão verificada, não coberta por nenhuma decisão judicial. Aliás, a sentença não depende da existência de tal notificação nem é sequer seguro que o Mmo. Juiz tivesse, aquando da prolação, conhecimento da falta de notificação, o que revela que a alegada omissão não está coberta pela sentença. Haveria, assim, que invocar a nulidade (reclamação) e impugnar, em recurso, a decisão que a desatendesse (se tal fosse admissível, nos termos do art. 630º n.º2 do CPC). A invocação do vício perante o tribunal recorrido seria, aliás, a única forma de respeitar o referido prazo legal de invocação da nulidade. Donde que não se poderia, por esta via, conhecer nesta sede aquela nulidade (limitação do objecto legal do recurso, embora, na verdade, a impropriedade do procedimento adoptado possa acarretar outras consequências, como a sanação do vício por falta de tempestiva e adequada invocação).


Para justificar a alegação da nulidade «nesta fase» (o que só pode significar estar a reportar-se ao recurso interposto), a recorrente alega que apenas teria tido conhecimento do teor do auto de inspecção com a notificação da sentença, depreendendo-se que com isso quer significar que só nessa altura teve conhecimento da omissão da notificação do auto (e, depreende-se igualmente dos demais termos do recurso, que só nessa altura soube que o auto estava junto ao processo). Tal alegação é, de todo o modo, irrelevante porque ela não altera os termos do exposto. Com efeito, e mesmo admitindo a bondade da alegação, mantém-se a regra da necessidade de invocação da nulidade perante o juiz do processo, na primeira instância. O facto de a sentença já ter sido proferida não tem qualquer relevo próprio na questão, não alterando os termos do regime - sendo que a nulidade, a ser reconhecida, acabaria por invalidar sequencialmente a própria sentença, a ser caso disso, por força do art. 195º n.º2 do CPC. E a única norma que, no caso, podia alterar o exposto não aproveita à recorrente. Tal norma corresponde ao art. 199º n.º3 do CPC, do qual decorre que «se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo referido neste artigo, pode a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição». Esta norma visa os casos em que o prazo de invocação da nulidade (10 dias, como referido) ainda está em curso quando o processo é expedido para o tribunal superior. Ora, mesmo segundo os termos da alegação da recorrente, esta teve conhecimento da nulidade (rectius, da alegada omissão de acto devido) com a notificação da sentença, que ocorreu em 13.12.2024, pelo que o prazo de reclamação da nulidade estaria há muito ultrapassado quando o processo subiu ao tribunal superior (em 16.06.2025). Pelo que a norma não tem aplicação. Acresce que, como nota T. de Sousa, a norma visa a arguição da nulidade perante o tribunal superior, e já não permitir interpor um recurso para este tribunal com fundamento na nulidade [4]. Pelo que não pode a recorrente invocar a nulidade em sede de recurso.


Acresce que a própria alegação justificativa da recorrente, na qual assenta a pretensa admissibilidade da invocação da nulidade nesta sede, não poderia ter o efeito que lhe atribui. Com efeito, a recorrente sustenta a admissibilidade da sua conduta processual com base na circunstância de apenas ter tido conhecimento do teor do auto com a notificação da sentença por, pese embora tenha consultado anteriormente o processo, e «Pese embora conste no histórico do citius que o auto foi colocado no dia 16.05.2022, a verdade é que o Recorrente, nem o seu mandatário têm a ideia de a terem visualizado aquando da consulta dos autos» - curiosamente, nem sustenta verdadeiramente a omissão do acto, apenas coloca essa possibilidade (tem a «ideia»), nunca passando, assim, do patamar da dúvida. Como quer que seja, a afirmação é inconsequente. O auto tem a data de 16 de Maio, consta no processo electrónico na mesma data e está assinado pelo juiz em 20 de Maio. Trata-se de peça processual em formato electrónico (documento desmaterializado, inerente ao processo electrónico - art. 132º n.º1 do CPC), que deve ser equiparada a documento (art. 362º n.º1 do CC, actualizadamente interpretado) e tratada como documento digital. Nessa linha, constitui um documento autêntico, a partir da noção do art. 363º n.º2 do CC e considerando a assinatura do juiz, condição de validade e genuinidade do auto (art. 160º n.º2 do CPC) - esta natureza do acto processual digital enquanto documento autêntico tem refracção no art. 170º n.º5 do CPC, norma que atribui à certidão electrónica a natureza de documento autêntico, pois se tal certidão tem natureza autêntica, idêntica natureza terão, por maioria de razão, os actos processuais do tribunal a que a certidão respeita. Assim, dada esta natureza do auto, tal acto, e elementos inerentes, faz prova plena nos termos do art. 371º n.º1 do CC e apenas poderia ser colocado em causa através do incidente de falsidade (art. 371º n.º1 do CC e art. 451º n.º2 do CPC) [5], incidente que não foi suscitado (sendo, aliás, incompreensível que venha a recorrente, fora do incidente adequado e em sede de recurso, solicitar diligência probatória, claramente desajustada ao mecanismo recursório, que não o contempla). O que significa que, para todos os efeitos, o auto estava já no processo e assinado ao menos em 20 de Maio, antes da sessão da audiência de julgamento na qual foram realizadas as alegações (sessão realizada em 27 de Maio). Deve atender-se a que a recorrente (através do seu mandatário) esteve presente na inspecção, sabendo que a diligência existe e teria que ser reduzida auto (no prazo de 5 dias: art. 162º n.º1 do CPC), e que as alegações visam também discutir a prova produzida. Pelo que, na data da sua realização, a recorrente, ainda que não soubesse que o auto estava no processo e que faltaria a notificação (que julga devida), estaria ao menos em condições de o saber, se tivesse usado a diligência devida (na verdade, o mínimo de diligência justificada). O que significa que, dado o disposto no art. 199º n.º1, 2ª parte, do CPC, o prazo de invocação da nulidade se contaria daquele acto e estaria há muito esgotado. E, assim, não haveria razão para só agora suscitar o vício.


O pretendido envio de certidão ao DIAP não tem suporte pois inexiste regra legal que atribua às partes o direito a solicitar tal envio. Querendo, pode a recorrente diligenciar pela obtenção e envio de tal certidão. Quanto ao dever de ofício derivado do art. 242º n.º1 al. b) do CPP, inexistem, como referido, quaisquer indícios de actividade delitiva que permitam corporizar tal dever no caso.


IV.1. A recorrente impugna também a decisão sobre a matéria de facto. Esta impugnação está regulada no art. 640º n.º1 do CPC, o qual, na parte aqui relevante, determina que o recorrente deve especificar:


i. os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (art. 640º n.º1 al. a) do CPC),


ii. os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art. 640º n.º1 al. b) do CPC),


iii. a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640º n.º1 al. c) do CPC),


iv. a estar em causa prova gravada, deve indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (art. 640º n.º2 al. a) do CPC).


O incumprimento das imposições legais (verdadeiros ónus) deve conduzir à rejeição da impugnação. Tem, com efeito. sido entendido (de forma claramente dominante na jurisprudência [6]) que não cabe despacho de aperfeiçoamento da impugnação da matéria de facto em sede de recurso [7], com razões que se julgam fundadas, assentes: na sequência das intervenções legislativas, em sentido agregador de maior exigência; na letra da norma em causa, que inculca uma sanção imediata (art. 640º n.º1 in fine e, em particular, n.º2 al. a) do CPC); na contraposição sistemática e material face ao art. 639º n.º3 e ao art. 652º n.º1 al. a) do CPC, confirmando a referida asserção literal (quanto à imediata rejeição) derivada do art. 640º e indiciando quer o carácter específico (especial) do regime do art. 640º em causa, quer a existência de razões que distinguem aqueles regimes e explicam a diferença entre eles; razões estas ligadas ao tipo de recurso, no qual o tribunal ad quem intervém após a produção da prova e sobre questões factuais específicas (sem reavaliação de toda a prova produzida nem de toda a prova produzida), exigindo-se, por razões de coerência, inteligibilidade, funcionalidade e também derivadas da sujeição do recurso ao dispositivo e ao contraditório, que a intervenção do tribunal de recurso esteja devidamente balizada (condição da possibilidade da devida discussão), obviando do mesmo passo a recursos infundados, assentes em meras considerações gerais (derivando de razões de economia mas também, com o demais, sublinhando a auto-responsabilidade das partes) – assim, a exigência legal é condição da fixação precisa do objecto da impugnação, da sua inteligibilidade e da seriedade da impugnação, condições sem as quais o recurso não merece ser aproveitado; a própria concessão do prazo adicional de 10 dias para recorrer tempera o rigor da exigência, quanto à al. a) do n.º2 do art. 640º, mas tende também a justificar a dispensa legal do aperfeiçoamento (pois a parte teve tempo adicional para cumprir, e cumprir bem). Nesta medida, verificado fundamento de rejeição, não cabe qualquer medida paliativa prévia mas apenas operar o efeito legal.


2. A técnica impugnatória adoptada pela recorrente suscita algumas dificuldades.


Com efeito, a recorrente começa por impugnar os factos descritos em 14 a 18 (em termos, aliás, pouco claros, pois embora comece por afirmar que tais factos deveriam ser tidos por não provados, afirma depois, paradoxalmente e sem explicitação adicional, que os factos 14, 17 e 18 deveriam ver a sua redacção alterada, o que significa que deveriam, ainda que em parte, ser tidos por provados). Mas realiza esta impugnação de duas formas:


a) primeiro, impugna genericamente ou em conjunto todos aqueles factos, pois, após afirmar que deveriam ser tidos por não provados, passa a indicar um conjunto de elementos (probatórios ou argumentativos) que sustentariam uma alteração da decisão de facto, sendo estes elementos indicados em conjunto para todo o bloco de factos impugnados (sem associar a cada facto os meios de prova que sustentariam a sua alteração).


b) depois, passa a avaliar cada um dos factos em casa de per si ou autonomamente, indicando a redacção pretendida para cada facto, mas indicando também meios de prova (ou razões) relacionados com cada um desses factos (meios de prova ou razões que nem sempre coincidem com os invocados quando se refere em bloco a todos os factos impugnados).


3. Entende-se, a partir do art. 640º n.º1 al. a) e b) do CPC, que o ónus de impugnação especificada implica que a recorrente indique os meios de prova que determinam decisão diversa quanto a cada facto impugnado, isto é, relacionando a prova relevante com cada facto impugnado [8].


Admite-se, é certo e na linha da relativização do rigor dos ónus em causa (adoptando «um critério adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade»), que este ónus possa ser cumprido por referência a grupos de factos (e não a factos individuais) desde que estes estejam relacionados entre si, respeitando a uma mesma realidade, em termos tais que a impugnação de um envolva a mesma matéria que a impugnação dos demais. Nessa situação, a impugnação conjunta pode ser justificada.


Ora, o que se verifica, no caso, é que os factos descritos em 14 a 16 respeitam à descrição de situações anómalas (defeitos) enquanto o facto 17 respeita à sua denúncia e o facto 18 respeita à falta de elemento da obra (o que, relevando para a sua incompletude, pode constituir ainda um defeito em sentido amplo). O que se verifica, assim, é que o facto 17 respeita a realidade distinta e autónoma dos defeitos (nos quais ainda se poderia integrar o facto 18). Não seria, assim, legítima a sua impugnação conjunta, pois, contra a letra e o sentido da lei, acaba por devolver ao tribunal o papel de determinar, nos meios de prova indicados em conjunto pelo recorrente, quais os relevantes para cada ponto factual (veja-se que, quanto à prova gravada, não se percebe a que facto respeita cada uma das transcrições realizadas). Não deveria ser, assim, admitida a impugnação realizada na primeira forma indicada, nestes termos gerais, por contrariar a exigência do art. 640º n.º1 al. b) do CPC.


4. Não obstante, sempre se adianta que mesmo esta impugnação genérica não poderia proceder, atendendo aos argumentos da recorrente.


Assim, o argumento que retira da inaproveitabilidade do auto de inspecção (assente na falta de devida notificação) não pode proceder pois eventual vício (a existir, e já que, repete-se, a efectiva existência de tal vício aqui se não discute por prejudicada) estaria já sanado por falta de oportuna invocação.


As considerações sobre a forma «inequívoca e concreta» que a denúncia deveria revestir são irrelevantes em sede de matéria de facto: a comunicação de defeitos não se dá como não provada por não ser alegadamente «inequívoca e concreta» (essa é questão diversa, de valoração dos factos que forem, nessa parte, dados como provados). Também as considerações sobre a extemporaneidade da denúncia com base em alegada aceitação da obra são irrelevantes em sede de fixação dos factos relevantes.


A mera referência ao email, cujo envio entende que não teria realmente ocorrido, não releva porquanto, nesta sede (quando procede à impugnação de facto) a recorrente não invoca qualquer elemento probatório que sustente a sua afirmação. Mas a situação não se altera mesmo atendendo aos elementos que a recorrente discute quando invocou a omissão de pronúncia relacionada com a (suposta) falsidade do documento junto aos autos. Assim, da solicitação realizada (em tom informal, directamente dirigida à testemunha, sem ser vertida em despacho) não deriva com segurança que o email devesse ser reencaminhado (aliás, o Mmo. Juiz chega a referir-se à impressão do email e do documento anexo pela testemunha, impressão que é coisa distinta do reencaminhamento). Quanto à dilação na junção, a testemunha respeitou o prazo assinalado pelo Juiz. Quanto aos metadados do email e do documento, não são seguros nem, em particular, estão revelados de forma cabal. As considerações sobre o autor do documento (por não ser o interessado, o recorrido) são inconsequentes dada a sua ligação (muito) próxima ao recorrido e à própria obra. A opinião da recorrente sobre a postura do Juiz é irrelevante. Acresce que a decisão do tribunal sobre os factos se baseou também em declarações de parte do recorrido e em depoimentos testemunhais que a recorrente não se esforça por desmontar, mormente revelando a falta de credibilidade ou fiabilidade destas declarações/depoimentos (que o tribunal considerou «sinceras e honestas, e por isso convincentes»). Não basta à recorrente afirmar (já na parte final da impugnação, e em termos desligados de qualquer impugnação factual precisa) que discorda da apreciação efectuada pelo Juiz quanto às declarações de parte, e que as declarações do representante da recorrente é que foram objectivas e precisas. Trata-se de diferente valoração dos meios de prova que é, só por si, irrelevante em sede impugnatória pois não pode a recorrente pretender substituir, sem mais, a avaliação do tribunal pela sua: tal equivalia à desvirtuação da posição do juiz e da livre apreciação das provas que lhe incumbe. Assim, teria a recorrente, para além de discordar, que adiantar razões claras e convincentes, baseadas na própria prova e não apenas na valoração pessoal que faz dessa prova, que justificassem diferente avaliação e decisão. O que a recorrente não faz, limitando-se a afirmar, reportando-se já à prova testemunhal, que os depoentes teriam interesse na causa, ignorando que a mesma objecção seria oponível ao representante da recorrente, e que tal não invalida o meio de prova quando, como no caso, ainda assim o tribunal considerou as testemunhas «honestas».


Das transcrições realizadas pelo recorrente, genéricas, não se retiram dados bastantes para sustentar as alterações factuais propostas, e muito menos para as impor ou justificar, nem tal deriva da prova produzida.


Seriam estes, pois, dados absolutamente insuficientes para sustentar a impugnação realizada.


5. Quanto à segunda forma de impugnação, onde a recorrente individualiza cada facto impugnado e o associa a certos mecanismos probatórios, a impugnação deve ser avaliada para cada facto em causa.


Assim:


- facto 14 - a recorrente invoca genericamente as declarações/depoimentos e a prova documental admissível (excepto o email e a inspecção judicial). A menção a declarações/depoimentos não permite saber a quem se refere, não valendo as transcrições anteriormente efectuadas como forma de concretização dessas declarações/depoimentos, pois ignora-se se seriam relevantes, quanto a este facto, todas ou apenas algumas, e quais delas, e em que momento do transcrito relevariam para este facto. Acresce que a menção à prova documental é genérica, sem qualquer delimitação positiva, ignorando-se quais os documentos a que se reporta. Assim, esta invocação genérica contraria o disposto no art. 640º n.º1 al. c) do CPC, devendo a impugnação ser rejeitada.


- facto 15 - a recorrente invoca a falta de prova. Tal afirmação genérica é insuficiente, cabendo à recorrente explicitar porque a prova produzida não sustenta a afirmação (por exemplo, afirmando que nenhuma testemunha referiu o tema [9]), sobretudo quando a sentença indica meios de prova que sustentariam a afirmação do facto. A impugnação naqueles termos mostra-se genérica, sem indicação de meios de prova, devolvendo ao tribunal a avaliação de todos os meios de prova, contra a intenção do regime do art. 640º n.º1 al. c) do CPC. Devia, na forma como é realizada esta impugnação individualizada, ser rejeitada.


- facto 16 - a recorrente invoca a contradição entre este facto e o facto não provado 3. Não se trata de impugnação sujeita ao regime do art. 640º do CPC pois não se visa, a partir da valoração da prova, alterar a decisão sobre a matéria de facto. De qualquer, já se viu que a invocada contradição não existe


facto 17 - apenas invoca a falsidade do email, a qual, como se referiu, não está demonstrada.


facto 18 - invoca que a obra decorreu em 3 fases, o que é irrelevante para a afirmação, ou não, do facto em causa; invoca o facto de o cesto não estar facturado, o que, do ponto de vista probatório, é só por si irrelevante (de mais a mais quando a factura é realizada pela própria recorrente); a mera expressão «terminámos tudo» do representante da recorrente não basta para contrariar a prova contrária, plural, invocada na sentença recorrida (relevando mormente a corroboração das declarações de parte do recorrido que tende a derivar do primeiro documento junto com o articulado de aperfeiçoamento - fotografia com a menção ao cesto). Por fim, e incompreensivelmente, destes elementos pretende a recorrente retirar que o recorrido aceitou a obra, o que é manifestamente inviável por inexistir correlação lógica ou probatória entre aqueles dados e aquela aceitação: desde logo porque, ainda que concluída a obra, a aceitação é facto diferente dessa conclusão.


6. Por fim, impugna a recorrente os factos não provados descritos em 1, 5 e 6, que considera deverem ser dados como provados.


Os factos 1 e 5 respeitam à aceitação da obra. O facto 6 à inexistência de defeitos. Também aqui se trataria de realidades distintas, insusceptíveis de impugnação conjunta. Porém, e de forma determinante, o recorrente não indica aqui qualquer meio de prova que sustente a impugnação, limitando-se a tecer considerações sobre deveres do dono da obra. Deve, pois, ser rejeitada esta impugnação (art. 640º n.º1 al. b) do CPC).


V. Verifica-se contudo que, tal como a recorrente indica, o recorrido, na contestação, admitiu efectivamente que devia o valor reclamado (art. 4º do requerimento de injunção e art. 1º da oposição), sem que tal tenha directa tradução nos factos provados (obviamente, a mera emissão das facturas, descrita nos factos provados, não contém o reconhecimento do valor em causa). Acresce que dos factos provados não deriva qual o preço acordado, pelo que também não é possível fixar o valor ainda em dívida a partir desse preço acordado (dele descontando os pagamentos parciais dados como provados). Justifica-se assim, por estar em causa facto provado por acordo, que tal facto seja aditado ao elenco de factos provados, ao abrigo dos art. 574º n.º2 e 662º n.º1 do CPC, nos seguintes termos: Do preço acordado, o requerido não pagou 7.060 euros.


VI. Relevam os seguintes factos [10], incluindo o agora aditado:


1. A Autora Cozinhas 125 Comércio e Montagem de Cozinhas, Lda., dedica-se ao comercio e montagem de cozinhas.


2. No exercício da sua actividade, a Autora prestou diversos serviços de carpintaria ao Réu.


3. Os serviços prestados foram os especificados na descrição das facturas FAC A/847 e FAC A/848.


4. Os serviços prestados foram relativos ao fornecimento e montagem completa do seguinte:

a) fornecimento e montagem de portas das divisões do interior da casa do Réu;

b) fornecimento e montagem de móveis para a cozinha;

c) fornecimento e montagem de electrodomésticos para a cozinha;

d) fornecimento e montagem de móveis de roupeiros;

e) bancada para a cozinha/tampo em granito.

5. Para a execução dos trabalhos acima descritos, foram ainda fornecidas todas as ferragens, espuma poliuretano, selantes, carregar, transportar, descarregar, montagem e afinações.


6. Para efeito do referido em 4, foram efectuados os projectos com as medidas obtidas pela Autora no prédio, em conformidade com os documentos 1, 2 e 3 juntos com a petição aperfeiçoada, o Réu entregou o desenho que constitui o documento 5 também junto com a petição aperfeiçoada.


7. O Réu procedeu à escolha do material, estética, cores, marcas, modelos, incluindo electrodomésticos.


8. Aqueles serviços foram adjudicados pelo Réu.


9. Foram efectuados pelo Réu alguns pagamentos relativamente à adjudicação daqueles serviços.


10. Assim, o Réu pagou o valor de € 6.000,00 (seis mil euros), mediante dois pagamentos de € 3.000,00 (três mil euros) cada qual, o primeiro com a adjudicação, e o segundo no decorrer da execução dos trabalhos.


11. A Autora emitiu ao Réu a factura FAC A/847, de 24/10/2019, com menção do vencimento na mesma data, no valor de € 6.460,00 (seis mil quatrocentos e sessenta euros), correspondente a:
DESCRIÇÃOQUANTIDADEP. VENDA S/IVAVALOR LÍQUIDOIVA
FORNECIMENTO E MONTAGEM DE COZINHA COM PORTAS MODELO: TERMOLAMINADO ALTO BRILHO BRANCO

A COZINHA INCLUI:

- MÓVEIS SUPERIORES DE 90cm

- PUCHADORES INOX EMBUTIDOS

- RODAPÉ EM ALUMÍNIO

- GAVETAS DE EXTRAÇÃO TOTAL

- 1 PORTA TALHERES E 1 BUTELHEIRO

- PROTETOR DE ALUMÍNIO

- DOBRADIÇAS COM AMORTECEDOR

CHAMINÉ TEKA - DLH 986T INOX

1,003252,03 EUR3252,03 EUR23%
FRIGORIFICO LG - GSJ 361 DIDV1,001024,40 EUR1024,40 EUR23%
PLACA VITROCERÂMICA TEKA - TB 6415 /1,00170,73 EUR170,73 EUR23%
FORNO TEKA - HCB 64351,00219,51 EUR219,51 EUR23%
MICROONDAS TEKA - MS620BIH1,00170,73 EUR170,73 EUR23%
MÁQUINA LAVAR-LOUÇA ENCASTRE TEKA - DW855FI1,00325,20 EUR325,20 EUR23%
LAVA-LOUÇA RODI - BELEM 54x441,0089,43 EUR89,43 EUR23%
TOTAL LÍQUIDO 5 252,03 EUR


TOTAL IVA 1 207,97 EUR


TOTAL 6 460,00 EUR


12. A Autora emitiu ainda ao Réu a factura FAC A/848, de 25/10/2019, com menção do vencimento na mesma data, no valor de € 6.600,00 (seis mil e seiscentos euros), correspondente a:
DESCRIÇÃOQUANTIDADEP. VENDA S/IVAVALOR LÍQUIDOIVA
FORNECIMENTO E MONTAGEM DE

CARPINTARIAS: PORTAS INTERIORES MODELO LACADO BRANCO LISO

- 3 PORTAS DE 2,00x75x15

- 1 PORTA DE 2,00x80x18

- 1 PORTA DE 2,00x80x28

- 1 PORTA DE 2,00x80x28 (COM VIDRO)

- 1 PORTA DE 2,00x75x28

-1 PORTA DE 2,00x90x28 (COM VIDRO)

- 1 PORTA DE 2,00x80x28 (COM VIDRO)

1,002926,83 EUR2926,83 EUR23%
ROUPEIROS COM PORTAS DE CORRER LAÇADO BRANCO LISO, INCLUINDO 2 MÓDULOS DE 3 GAVETAS, DIVISÓRIAS, PORTA MALAS, PRATELEIRAS, VARÃO E PUCHADORES INOX.

- 1 ROUPEITO DE 2,16x2,40x64

- 2 ROUPEIROS DE 1,16x2,08x62

1,002439,02 EUR2439,02 EUR23%
TOTAL LÍQUIDO 5 365,85 EUR


TOTAL IVA 1 234,15 EUR


TOTAL 6 600,00 EUR


13. O Réu foi instado pela Autora para efectuar o pagamento do valor de € 7.060,00 (sete mil e sessenta euros), relativo às referidas facturas.


14. A execução dos trabalhos enferma do seguinte:


a) por deficiente montagem ficaram desnivelados o módulo superior de móveis da cozinha e portas, quer dos móveis da cozinha quer das divisões da casa, e


b) foram aplicadas portas dos móveis da cozinha com tonalidade de cor diferente de outras portas de móveis da cozinha.


15. Foram aplicadas portas dos móveis da cozinha de tonalidade de cor diferente dos interiores desses móveis.


16. Foi contratado com a Autora que as portas dos móveis da cozinha tinham que ser todas da mesma cor e tonalidades.


17. O Réu e a sua namorada, que acompanhou os trabalhos, exigiram que fossem corrigidos, por mensagem de correio electrónico enviada à Autora a 02/03/2020, com o seguinte teor:

“Correções cozinhas 125:

- Lixo cozinha

-Parafusos e tampas por dentro dos moveis

-Alumio por baixo do lavatório

-Acabamento em baixo do móvel de cima da cozinha de forma a deixar um

espaço por detrás para os LEDS

-Afinações da cozinha (portas e gavetas)

-Exaustor que faz faísca e não extrai o fumo

-Microondas não aquece a comida

-Interior dos móveis da cozinha estão de diferentes cores queimados do sol

-Peças da porta da sala colocar o que saltou

-Endireitar as portas que não estão de esquadria

-Frisos/moldura das portas com vidro substituir o que está marcado

-Portas e guarnições com cola

-Afinação das portas (abrem sozinhas e não fecham bem)

-Closet peça das calças apertar

-Afinação dos roupeiros (as gavetas)

-Vidro em um dos roupeiros do closet

-Soft Close dos roupeiros

-Roupeiro do outro quarto falta colocar o suporte das calças e as portas a abrirem e fecharem fazem barulho

-Interiores dos roupeiros danificados

-Chão da casa e paredes riscados e com cola nas zonas dos roupeiros e das portas”.

18. A obra acordada entre as partes não se encontra concluída, não tendo sido instalado o cesto para o lixo no interior de um dos móveis da cozinha.


19. Do preço acordado, o requerido não pagou 7.060 euros.


E foram tidos por não provados os seguintes factos:


1. O Réu aceitou os trabalhos sem reservas.


2. Foram aplicadas madeiras na cozinha.


3. Foi contratado com a Autora que todos os móveis da cozinha tinham que ter a mesma cor e tonalidade de cor por dentro e por fora, em todas as suas partes.


4. O Réu, a sua mãe e a namorada, que acompanharam os trabalhos, exigiram, em circunstâncias diferentes das que se referem no ponto 17 dos factos provados, que fossem corrigidas a montagem e aplicação dos módulos e portas desnivelados e a montagem e aplicação de cores e/ou tonalidades diferentes dos móveis e portas dos móveis da cozinha, quer ao funcionário da Autora no local a trabalhar, quer ao próprio gerente da Autora.


5. O Réu aceitou a obra.


6. A obra encontrava-se isenta de quaisquer defeitos.


VII.1. Está em causa um contrato de empreitada, qualificação que não foi controvertida e se mostra ajustada (atendendo, mormente, a que ambas as partes colocam a enfase do contrato na instalação dos bens). Tal contrato atribui ao empreiteiro o direito ao preço (art. 1207º do CC). É a parte deste preço que falta pagar que o recorrente, empreiteiro, reclama.


2. Inexistem dados que permitam falar em empreitada de consumo. Á data dos factos (atenta a data das facturas e da denúncia, necessariamente subsequentes à realização dos trabalhos) estava em vigor o DL 67/2003, de 08.04, dependendo a sua aplicação da existência de uma relação entre um profissional e um consumidor, sendo este definido como aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (v. art. 1º-A n.º2 e 1º-B al. a) daquele DL 67/2003). Não decorrendo dos factos que o bem se destinava a uso não profissional (ou melhor, que o recorrido pretendia destinar o bem a uso não profissional [11]), nem tal decorrendo da natureza do bem (o uso da cozinha depende do uso do imóvel e ignora-se qual seria este uso), fica por demonstrar a qualidade de consumidor do recorrido (demonstração que constituía ónus seu, a querer aproveitar-se deste regime). Vale, assim, exclusivamente o regime civil comum [aquele DL 67/2003 foi revogado pelo DL 84/2021, de 18.10, o qual só vale para contratos posteriores à sua vigência - art. 53º n.º1 (levando em conta que, apesar da norma se referir apenas a contratos de compra e venda, é este regime que vale para os contratos de empreitada, por força da extensão do art. 3º n.º1 al. b) do DL 84/2021; de todo o modo a solução não se alteraria, face à noção de consumidor deste diploma (art. 2º al. g)].


3. Anota-se que inexistem factos que revelem a aceitação da obra ou sequer a sua entrega material (e sem esta entrega nem se coloca, em rigor, uma questão de aceitação), pelo que a avaliação dos efeitos legais que daqueles actos poderiam derivar ficam prejudicados.


4. A sentença recorrida recusou a pretensão da recorrente em primeira linha por a aceitação da obra, condição legal da exigibilidade do preço (art. 1218º n.º2 do CC), não ter sido demonstrada, tendo-se ainda provado que a obra não estava concluída (por faltar o cesto do lixo). Não parece que a objecção devesse valer. Deriva, com efeito, daquele n.º2 do art. 1211º do CC que, na falta de convenção diversa ou usos em contrário, o vencimento da prestação do preço só ocorre com a aceitação da obra, a qual valeria, para os termos do art. 805º n.º1 do CC, como uma interpelação do dono da obra para efeitos de pagamento da quantia devida [12]. A norma em causa tem natureza supletiva, pois expressamente ressalva convenção diversa. E os factos revelam o seu afastamento pois, estando demonstrados pagamentos parcelares (facto 10), tal implica um acordo das partes discrepante da norma supletiva. E como aqueles pagamentos não são acompanhados de aceitações parcelares, isso revela que as partes separaram o pagamento do acto de aceitação da obra. Os pagamentos parcelares, nestes termos, são incompatíveis com o teor da regra supletiva, que reserva o pagamento, e todo o pagamento, apenas para um momento final, com a aceitação da obra. Aqueles pagamentos revelam assim que as partes acordaram em modalidade de pagamento distinta da que deriva da regra supletiva, assim acordando também, ainda que tacitamente, em afastar aquela regra supletiva (sendo que os factos não revelam a existência de acordo de realização da obra por fases, com aceitação e pagamento também por fases, caso em que a norma poderia ainda valer para o pagamento final). O que está, aliás, conforme à actuação do recorrido, que nunca invocou a inexigibilidade em sentido próprio do pagamento, tendo apenas invocado a existência de defeitos como fundamento da recusa de pagamento. Tal regra não podia, pois, ser invocada nem, por isso, servir para afastar a pretensão da recorrente.


Quanto à falta de instalação de um cesto do lixo, discrepante face ao acordo que decorre do facto 18 (é esse o sentido da afirmação de que a obra acordada não está concluída [13]), não se julga que possa valer como falta de conclusão da obra, no sentido invocado na sentença recorrida (isto é, como obra inacabada, interrompida).


Com efeito, a falta de elementos contratados pode, em si, constituir uma falta quantitativa (cumprimento parcial) ou qualitativa (cumprimento defeituoso em sentido estrito). Para operar a distinção, tende a dizer-se que se «está perante um defeito da obra quando o elemento material em falta não tem uma função própria, claramente individualizada, autónoma, específica, no conjunto de toda a obra, diluindo-se no conjunto dos materiais que a constituem, e dum incumprimento parcial nos outros casos, isto é, naqueles em que a porção de matéria em falta teria exercido uma função própria, claramente individualizada no vasto quadro complexo que integra toda a obra» [14]. O cesto não teria uma função autónoma, constituindo apenas um elemento integrador e complementador da cozinha, correspondendo assim a um cumprimento defeituoso.


A verdadeira falta de conclusão da obra (incompletude) existirá mais tipicamente nos casos em que a obra ainda estiver em execução, não terminada, com interrupção da prestação (incompleta) ou com o seu abandono (ou pelo surgimento de um incumprimento definitivo). Nada aponta nesse sentido (ao invés, as posições de ambas as partes claramente o excluem).


Donde estar em causa um problema de cumprimento defeituoso (ou ao menos de incumprimento parcial) e não de falta de conclusão da obra.


5. Neste quadro, a recorrente teria direito ao preço mediante interpelação ao devedor, por estar em causa obrigação pura, sem prazo, interpelação que poderia derivar da notificação para o procedimento (art. 805º n.º1 do CC).


6. O que o recorrido opôs à pretensão da recorrente foi a existência de defeitos, os quais lhe dariam direito a recusar o pagamento até à sua correcção (v. art. 11º da oposição), o que equivale à invocação da excepção de não cumprimento, prevista no art. 428º n.º1 do CC. Esta excepção não é de conhecimento oficioso. O recorrido não qualificou juridicamente a sua posição nem realizou uma invocação expressa da exceptio. Mas tal qualificação e invocação expressas não são indispensáveis, sendo apenas necessário que «resulte da alegação do réu que este não pretende realizar a prestação exigida pelo autor, até que a contraprestação seja efectuada» [15]. É notoriamente o caso.


A aplicação deste instituto aos casos de cumprimento defeituoso, mormente na empreitada, é pacificamente admitida, decorrendo mormente do facto de o cumprimento defeituoso, enquanto tipo ou modalidade do não cumprimento, se sujeita também às regras gerais das obrigações [16].


7. Do ponto de vista dos seus requisitos gerais, podem formular-se nos seguintes termos: i. existência de um contrato bilateral (sinalagmático), não sendo cumprida ou oferecida uma das prestações, ii. não existência de obrigação de cumprimento prévio por parte de quem invoca a excepção (e o não cumprimento ou não oferta de cumprimento pela contraparte); iii. não contrariedade à boa-fé da invocação da excepção.


É segura, no caso, a natureza bilateral do contrato de empreitada, envolvendo uma relação de correspectividade ou sinalagmática entre o direito ao preço, de um lado, e o direito à obra sem defeitos, de outro lado, o que torna oponível a invocação dos defeitos à exigência do preço. Em segundo lugar, os factos não revelam que a parte que invoca a exceptio, o recorrido, estava obrigado a realizar a sua prestação em primeiro lugar (ou seja, antes da realização da prestação do recorrente), não revelando igualmente que a contraparte (a recorrente) tenha oferecido a sua prestação (relativa aos defeitos). No que à boa fé concerne, revestindo especial acuidade no cumprimento defeituoso, é essencialmente associada a uma ideia de proporcionalidade, num duplo plano: de um lado, permite desconsiderar falhas de escassa importância; de outro lado, permite exigir adequação ou proporção entre a falha e a prestação recusada, ou a medida em que se recusa a prestação. Nesta sede inicial, importa apenas notar que as falhas diagnosticadas não são mínimas ao ponto de não servirem para sustentar a invocação da exceptio.


8. Esta exceptio convoca, porém, exigências adicionais no âmbito do contrato de empreitada em caso de cumprimento defeituoso. Pois, nesse âmbito, a invocação da exceptio supõe que o dono da obra tenha um direito próprio, derivado do cumprimento defeituoso, que possa exercer contra o empreiteiro. Tal direito consistirá, em função das circunstâncias, num dos direitos constantes dos art. 1221º e ss. do CC. Dada a circunstância de estes direitos dependerem da comunicação dos defeitos ao empreiteiro (a denúncia é facto constitutivo do direito, ou ao menos condição do seu exercício), de a determinação do direito em causa depender da opção do dono da obra (face às circunstâncias presentes), e de, em último termo, o empreiteiro não ter que antecipar a posição do dono da obra perante os defeitos (dono este que pode optar por outras vias, tenham ou não suporte jurídico e factual [17]), tendo antes que ter conhecimento preciso da prestação a que está vinculado (que lhe é exigida), tem sido entendido que a exceptio só pode ser invocada se tal invocação for precedida daquela denúncia e da indicação do direito concreto que se quer exercer. Pois só assim o empreiteiro sabe o que lhe é exigido em concreto, só desse modo sendo colocado em condições de cumprir ou recusar cumprir o direito em causa. Por isso se afirma que torna-se necessário que o devedor fique ciente da pretensão (ou pretensões) a que está adstrito. Nestes termos, após o credor ter indicado por qual ou quais dos direitos opta, é que nasce o crédito à pretensão e, só a partir desse momento, se pode deduzir a exceptio (P. Romano Martinez).


9. No caso, demonstram-se três situações enquadráveis como defeitos:

i. desnivelamento de módulo de móveis da cozinha e de portas.

ii. portas dos móveis da cozinha com cores diferentes entre si.

iii. falta de cesto do lixo.


A denúncia realizada, tal como consta dos factos provados e em relação com estes defeitos, contém:


- uma menção ao «lixo cozinha». No quadro do contratado, é perceptível que estaria em causa a falta do cesto do lixo. Existe denúncia deste defeito (referido em iii.).


- a menção a que as «portas não estão de esquadria», o que corresponde ao desnivelamento de portas apurado. Existe denúncia deste defeito (referido na segunda parte de i.).


Aquela denúncia já não se refere ao desnivelamento de módulo de móveis da cozinha (primeira parte de i.) nem às portas com cores diferentes entre si (referido em ii.). Quanto a estes, a denúncia ocorreria apenas com a oposição (ou a sua notificação), a assim se admitir.


A existência dos demais defeitos objecto da denúncia apurada não consta dos factos provados, sendo pois irrelevantes (sendo obviamente indiferente a denúncia de defeito cuja existência se não prova).


Não foi demonstrado que o recorrido comunicou à recorrente, empreiteiro, qual a sua pretensão, qual o direito que pretendia exercer. Tal apenas ocorreu com a oposição deduzida, na qual o recorrido expressou a sua pretensão de ver reparados os defeitos.


Tem sido jurisprudencialmente entendido, de forma consistente, que, para legitimar a invocação da exceptio, quer aquela denúncia quer também esta indicação do direito que se pretende exercer devem ser realizadas previamente perante o empreiteiro, não bastando a sua invocação na oposição/contestação. Cabe, pois, ao dono da obra demonstrar ter realizado a denúncia dos defeitos e ter manifestado a sua opção pelo direito que pretende exercer. Pois, sem tal comunicação prévia não se pode afirmar que o empreiteiro não ofereceu a sua prestação (v.g. de reparação) para legitimar o exercício da exceptio. E nesta fase judicial já não pode o dono da obra cumprir para poder reclamar o preço (porque já o reclamou), nem se pode afirmar que o direito à prestação do dono da obra já estava constituído em termos de ele poder então invocar a exceptio (quer por faltar a denúncia quanto a parte dos defeitos, quer por indeterminação do direito em causa) [18]. Deve atentar-se em que a exceptio opera não apenas perante um cumprimento defeituoso mas também perante a invocação de um direito específico que reage a esse cumprimento defeituoso (que visa superá-lo) e que por isso a exceptio só pode realmente funcionar não apenas perante o cumprimento defeituoso, mas perante a recusa de cumprir o direito exercido pelo dono da obra. O que torna o exercício em sede de oposição/contestação tardio.


Neste sentido, pode dizer-se que o empreiteiro conhecia (alguns) dos defeitos, mas não outros dos defeitos, e ainda ignorava o direito que o dono da obra queria exercer, e por isso não estava em incumprimento (no sentido de que não foi eficazmente definida a contra-prestação que lhe era exigível) quando reclamou, na acção, o pagamento do preço. Como dizia V. Serra. ainda que o empreiteiro conheça o defeito, ele «não fica a saber se o dono da obra lhe exige a eliminação dos defeitos dela, a redução do preço ou indemnização, nem se o contrato é resolvido, não havendo, por isso, não-cumprimento por parte do empreiteiro, e bem podendo até acontecer que o dono da obra renuncie a esses direitos ou se abstenha pura e simplesmente de os exercer» [19].


Nesta medida, a invocação da exceptio surge tardiamente, desacompanhada de requisitos prévios necessários, e não pode por isso valer.


Inexiste assim obstáculo ao requerido pagamento do preço.


10. Quanto aos juros de mora, a data das facturas é para o efeito irrelevante pois não está demonstrado que essa data foi acordada pelas partes [20] e inexiste regra legal que atribua ao autor da factura o poder de fixar unilateralmente o seu vencimento - fixação unilateral que, na falta da tal previsão contratual ou legal, é ineficaz, dado o disposto no art. 406º n.º1 do CC.


Assim, valem as regras supletivas, sendo os juros devidos desde a interpelação do devedor (pela citação) - art. 805º n.º1 do CC.


11. Porque decai, suporta o recorrido as custas da acção e do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


VIII. Pelo exposto, na procedência do recurso, condena-se o recorrido ao pagar à recorrente a quantia de 7.060 (sete mil e sessenta) euros, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data da citação do recorrido, até integral pagamento.


Custas, na acção e no recurso, pelo recorrido.


Notifique-se.


Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):


(…)

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).

António Marques da Silva - Relator

Maria João Sousa e Faro - Adjunta

Sónia Moura - Adjunta

____________________________________

1. Eliminou-se a reprodução de depoimentos/declarações, descabida em sede de conclusões.↩︎

2. Assim, v. Ac. do STJ proc. 3157/17.8T8VFX.L1.S1, de 03.03.2021, ou do TRP proc. 19656/15.3T8PRT.P1, de 24.01.2018 (estes e os demais Acórdãos citados estão disponíveis em 3w.dgdi.pt).↩︎

3. Pese embora, e em rigor, a afirmação de certo facto como não provado não equivalha à demonstração da sua negação, pelo que a afirmação do texto não é uma tradução exacta do sentido dos factos não provados, tal afirmação continua a valer pelo seu sentido explicativo.↩︎

4. In CPC online, anotação ao art. 199º do CPC.↩︎

5. A excepção respeita aos casos em que a falta de autenticidade é manifesta, pelos sinais exteriores do documento (art. 372º n.º3 do CC), o que não ocorre no caso.↩︎

6. V. por todos os Ac. do STJ proc. 2015/23.1T8AVR.P1.S1, proc. 21389/15.1T8LSB.E1.S1, proc. 4330/20.7T8OER.L1.S1, proc. 1680/19.9T8BGC.G1.S1, proc. 1229/18.0T8OLH.E1.S1, proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1 ou proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1 (3w.dgsi.pt), este com indicações doutrinais a que se podem aditar Henrique Antunes, Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto, Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina 2018, pág. 80 no sentido da inadmissibilidade legal do convite (embora com reservas face ao direito constitucional a um processo equitativo); e, no sentido oposto, L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 95 e 99 (também com outras indicações).↩︎

7. No sentido da constitucionalidade da solução, v. DS 256/2021 do TC (no site do TC).↩︎

8. V. A. Geraldes, O regime dos recursos no CC de 2013, in O Código de processo civil 10 anos depois, EUL 2023, pág. 243; sobre a constitucionalidade desta solução, v. Ac. 148/2025 do TC (disponível no site do TC), no qual se decidiu «Não julgar inconstitucional o artigo 640.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de que ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto se impõe o ónus suplementar de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que se indica para o evidenciar».↩︎

9. O que poderia era discutir-se se tinha ou não, que indicar pontos específicos do depoimento, o que só casuisticamente se avalia.↩︎

10. Em reprodução literal.↩︎

11. Trata-se, com efeito, de elemento subjectivo (na «mente» da pessoa) e não objectivo.↩︎

12. Segundo P. Romano Martinez, Comentário ao CC, Contratos em especial, UCP Editora, 2023, pág. 789.↩︎

13. Naturalmente, a afirmação de que a obra acordada não está concluída significa apenas que falta o cesto do lixo face ao acordado, já que a qualificação do significado da falta face à obra é questão jurídica, não factual.↩︎

14. V. J. Cura Mariano, Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, Almedina 2020, pág. 51/52, acompanhado por P. de Albuquerque e M. Assis Raimundo, Direito das obrigações, vol. II (contrato de empreitada), Almedina 2013, pág. 411.↩︎

15. A. Taveira da Fonseca, Da recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito, Almedina 2019, pág. 263.↩︎

16. O que não vem discutido, também por isso sendo dispensáveis esclarecimentos adicionais.↩︎

17. V.g., invocar o incumprimento definitivo por perda de interesse na prestação.↩︎

18. Assim, Acs. do STJ proc. 674/02.8TJVNF.S1 (2009), proc. 204/2000.C2.S1 de 03.12.2009 (apenas sumário) ou proc. 135/07.9YIVNG de 08.06.2010, Acs. do TRG proc. 131004/16.4YIPRT.C1 de 21.02.2018 ou proc. 372/11.1TBPTL.G1 de 04.10.2017, Acs. do TRP proc. 1509/15.7T8AVR-B.P1 de 26.10.2017, proc. 1272/12.3TVPRT.P1 de 13.10.2015 ou proc. 40421/19.3YIPRT.P1 de 15.12.2021, ou Acs do TRE proc. 1035/11.3TBLLE.E1 de 23.06.2016, proc. 408/05.5TBALR.E1 de 11.06.2015 ou proc. 17767/19.5YIPRT.E1 de 12-05-2022. Contra, porém, J. Cura Mariano, ob. cit., pág. 181.↩︎

19. V. Serra, Anot. in RLJ 105/283.↩︎

20. Sobre isto, v. Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, Almedina 1995, nota 565 já na pág. 690.↩︎