Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
142/17.3GTSTB.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: CONDUÇÃO SOB EFEITO DE ÁLCOOL
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE
Data do Acordão: 09/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - De harmonia com o disposto no artigo 156º, n.ºs 1 e 2, remetendo o n.º 1 para o artigo 153º, ambos do Código da Estrada, a regra é que a deteção e quantificação de álcool no sangue, do condutor que intervenha em acidente de trânsito, deve fazer-se através de pesquisa no ar expirado e apenas no caso de impossibilidade de realização do exame através desse método, é que deve ser feita a colheita de sangue ao condutor, para posterior realização de exame laboratorial, destinado a detetar e a quantificar a sua taxa de alcoolemia que possa apresentar.
II - A impossibilidade de realização do exame de deteção de álcool no sangue, através de pesquisa no ar expirado, deve resultar do concreto circunstancialismo verificado – abrangendo, não apenas as situações em que o condutor apresente lesões graves, que objetivamente o impeçam de realizar esse teste, como também aquelas em que, independentemente da gravidade da lesões, tenha havido a necessidade de transportar o condutor ao hospital para receber tratamento médico de que careça –, o qual terá de constar da matéria factual provada, para que se possa aferir da correção do procedimento seguido e da legalidade do exame efetuado e, consequentemente, da validade ou não, dessa prova.
III - No caso dos autos, não consta dos factos provados qual o tipo de exame realizado ao arguido para a deteção e quantificação de álcool no sangue, nem que procedimento foi seguido nesse domínio e o concreto circunstancialismo verificado, após a ocorrência do acidente, que determinou que fosse realizado o exame através do método e no momento temporal em que o foi.
IV - Esses elementos de facto revelam-se essenciais para que se possa aferir da correção do procedimento tendente a poder determinar a TAS que o arguido apresentava no momento da ocorrência do acidente e à apreciação da validade do exame de pesquisa e quantificação de álcool no sangue realizado.
V - A falta de apuramento desses factos, que deverão constar da matéria factual provada, integra o vício da insuficiência para a decisão da matéria factual provada, previsto na al. a) do nº. 2 do artigo 410º do CPP.
VI - A questão da inconstitucionalidade orgânica dos artigos 153º, n.º 8 e 156º, n.º 2, do Código da Estrada, na redação que lhes foi dada, respetivamente, pelos Decretos-Leis n.º 265-A/2001, de 28/09 e n.º 44/2005 do Decreto, de 23/02, diplomas estes aprovados pelo Governo sem prévia autorização legislativa, já foi, por diversas vezes, apreciada pelo Tribunal Constitucional, que, reiteradamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, decidiu não julgar organicamente inconstitucionais tais normas – cfr. Acórdãos do TC n.ºs 468/2010, 479/2010, 485/2010, 487/2010, 40/2011, 48/2011, 397/2011 e 424/2011.
VII - A lei não estabelece qualquer limite temporal, para a colheita de sangue, com vista à realização de análise para a deteção e quantificação de álcool no sangue, preceituando apenas, no artigo 5º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, que «é efetuada no mais curto prazo possível».
VIII - O período de tempo decorrido entre a ingestão de bebidas alcoólicas, o exercício da condução/ocorrência do acidente e a recolha de sangue para a análise, com vista à deteção e quantificação de álcool no sangue, por si só, não assume qualquer relevância legal, para efeitos do cometimento do crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal.
IX - E quando o método de pesquisa e de quantificação de álcool no sangue usado, for a análise sanguínea, o valor da taxa de álcool, no sangue (TAS), por esse meio apurado, é fidedigno, não havendo, nessa situação que deduzir o erro máximo admissível (EMA). A dedução desse erro apenas se impõe, quando o método de quantificação da TAS utilizado, tiver sido o do ar expirado e relativamente aos valores verificados nos alcoolímetros, conforme decorre da Portaria n.º 1556/2007, de 19 de dezembro.
X - De acordo com estudos científicos realizados, neste domínio, o pico máximo da TAS é, por norma, atingido cerca de 1 hora após a ingestão das bebidas alcoólicas, tendendo a partir daí a haver a diminuição da TAS (o mesmo é dizer a eliminação do álcool pelo organismo), a qual, embora seja variável de pessoa para pessoa – estando dependente da velocidade de degradação do álcool no fígado e das caraterísticas de cada individuo –, é, em média, 0,10 g/l de álcool no sangue, por hora.
XI - Tendo o arguido, necessariamente e sem margem para dúvidas - considerando o valor da TAS que acusou (1,48g/l), na análise ao sangue realizada - ingerido bebidas alcoólicas, em momento anterior ao da ocorrência do acidente, que se deu, pelas 02h:20m, do dia 02/12/2017, em quantidade suficiente para lhe poder determinar uma TAS da ordem daquela que apresentou e que resultou apurada, na análise de sangue, tendo a colheita deste último foi efetuada, pelas 05h:28m, daquele mesmo dia 02/12/2017, ou seja, três horas e oito minutos, após se ter dado o acidente, sendo que nessa altura, como decorre do que supra se deixou exposto, o organismo do arguido já havia eliminado parte do álcool ingerido, forçoso será concluir que o valor da TAS que o arguido apresentava, quando foi feita a colheita de sangue, é inferior à que apresentava no momento em que ocorreu o acidente.
X - Por conseguinte, estando afastada a hipótese de, no momento da ocorrência do acidente, o arguido apresentar uma TAS inferior àquela que, três horas e oito minutos depois do acidente, registou, de 1,48g/l, e que resultou da análise de sangue efetuada, ainda que, não esteja apurado o exato valor da TAS que o arguido apresentava, deve ser considerada a taxa de 1,48g/l.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Nestes autos de processo comum, n.º 142/17...., do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Local Criminal ..., foi submetido a julgamento, com a intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, melhor identificado nos autos, estando pronunciado da prática, como autor material, de: um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal e de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137º, n.ºs 1 e 2 e 69º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal por referência às contraordenações p. e p. pelos artigos 13º, n.º 1, 24º, n.º 1, 25º, n.ºs 1, alínea h) e 2, 145º, n.º 1 alíneas a) e e), 146º, alínea o), todos do Código da Estrada e 60º, n.º 1, do Regulamento da sinalização de trânsito, aprovado pelo Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 01/10; e, ainda, de uma contraordenação grave, p. e p. pelo artigo 145º, n.º 1, alínea a), com referência aos artigos 13º, n.º 1, 24º, n.º 1, 25º, n.ºs 1, alínea h) e 2, todos do Código da Estrada; e de uma contraordenação muito grave, p. e p. pelos artigos 146º, alínea o), do Código da Estrada, e 60º, n.º 1, do Regulamento da sinalização de trânsito, aprovado pelo Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 01/10.
1.2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 25/11/2021, depositada nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(...) julgo a acusação e a pronúncia procedente por provada e, em consequência:
a) – Declaro a prescrição do procedimento contra-ordenacional e, em virtude da mesma, julgo extinto o procedimento no que concerne às contra-ordenações imputadas ao arguido AA.
b) Condeno o arguido AA, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punidos nos termos do disposto nos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º , al a), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de 8€ (oito euros), o que perfaz o montante total de 480€ (quatrocentos e oitenta euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses;
c) – Condeno o arguido AA como autor material de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses;
e) – Em cúmulo jurídico das penas acessórias aplicadas, condeno o arguido na pena única de quatro meses de proibição de conduzir veículos motorizados;
f) - Condeno ainda o arguido no pagamento de 2 (duas) UC de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
(...).»
1.3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões:
«I - O presente recurso é interposto da decisão do Tribunal de 1.ª Instância que, para além do mais, condenou o arguido como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo limitado à apreciação do cometimento deste crime pelo arguido, sem prejuízo de, da decisão a proferir no presente recurso, terem que retirar-se todas as consequências em relação à totalidade da decisão;
II - O recorrente não se conforma com a sentença objecto do recurso na parte em que o condenou pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, porquanto entende que a mesma efectuou um incorrecto julgamento da matéria de facto nos pontos que infra se referirão, o que teve igualmente como consequência a incorrecta decisão de Direito, pelo que o recurso é de facto e de Direito;
III - O correcto julgamento quer de facto, quer de Direito, impõem a absolvição do arguido quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez;
IV - A decisão judicial recorrida, no que respeita aos pontos 10º, 17º e 22º da matéria de facto julgada como provada, considerando a prova produzida, está em desacordo com esta, pelo que o julgamento de tais factos não foi correcto; por considerar que existiu erro de julgamento quanto aos factos constantes de 10º, 17º e 22º da matéria de facto julgada como provada, o arguido submete o julgamento de tais pontos à apreciação do Tribunal ad quem, sendo estes os concretos pontos da matéria de facto que constituem objecto do presente recurso;
V - A taxa de álcool mencionada no facto 10º é o resultado do exame de sangue realizado ao arguido pelas 5:28h da manhã, mais de três horas após o acidente;
VI - Não consta quer da Acusação, quer da decisão, designadamente da matéria de facto julgada como provada, o motivo pelo qual não foi realizado ao arguido o exame por ar expirado; sequer resulta o estado de consciência do arguido após o acidente;
VII - A recolha de sangue ao arguido, para efeitos do exame quantitativo da TAS carecia do seu consentimento esclarecido, salvo estando demonstrado que este consentimento era impossível de prestar, o que não acontece in casu;
VIII - Considerando o que dispõe o artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17 de Maio, bem como os artigos 153.º, n.º 8 e 156.º do Código da Estrada, que a recolha de sangue constitui um método invasivo da integridade física do arguido e que este, para tanto, não deu consentimento, e que a impossibilidade de realização do teste através do ar expirado constitui um requisito para o recurso aos demais métodos de recolha de prova, expressamente se invoca a nulidade do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue realizado ao arguido, por constituir um meio de prova proibido, o que se faz ao abrigo do disposto no artigo 126.º do Código de Processo Penal;
IX - A colheita de sangue para efeitos de análise do grau de alcoolémia do condutor, ao abrigo do disposto nos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, sem possibilitar ao condutor a sua recusa, está ferida de inconstitucionalidade orgânica, que se invoca com todos os efeitos legais;
X - Dos autos sequer resulta o consentimento tácito do arguido;
XI - Assim, a concreta recolha de sangue realizada ao arguido, constante de fls. e que serviu de base para apurar o grau de alcoolémia, constitui prova ilegal, inválida ou nula, não podendo produzir efeitos em juízo, o que se invoca;
Sem conceder:
IX - A afirmação de que o arguido conduzia, no momento do acidente, “com uma taxa de álcool no sangue de 1,48 g/l”, constante de 10º dos factos provados, não tem sustentação na prova produzida;
X - Tal é reconhecido pelo próprio Tribunal recorrido na fundamentação do seu julgamento, ao afirmar que a taxa não foi apurada e mas sempre seria, pelo menos, de 1,29g/l;
XI - Não tendo a taxa de álcool presente no sangue no momento do acidente sido concretamente apurada, como não foi, não pode julgar-se como provado que o arguido conduzia com uma taxa de álcool de 1,48g/l;
XII - Não é possível determinar, com certeza e segurança, a taxa de álcool que o arguido alegadamente tinha no momento do acidente de viação;
XIII - O raciocínio utilizado pelo Tribunal parte de pressupostos que se desconhecem e que sequer estão demonstrados, a saber: que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas ao jantar; que o arguido saiu do jantar e dirigiu-se, conduzindo, directamente para o local do acidente; que entre a última ingestão, ao jantar, e o acidente decorreram menos de uma hora; ora, nenhum destes factos está provado;
XIV - Os pressupostos de que o Tribunal partiu não têm necessariamente que ter acontecido e não está provado que tenham acontecido, desconhecendo-se, na realidade, qual a taxa de álcool que o arguido tinha no momento do acidente;
XV - Tal dúvida, insanável, implica que se dê como provado, em 10º, que o arguido conduzia, no momento do acidente, com uma taxa de álcool no sangue não concretamente apurada;
XVI - Do exposto resulta igualmente o incorrecto julgamento da matéria de facto efectuada nos pontos 17º e 22º da matéria de facto constante da decisão recorrida;
XVII - Desconhecendo-se a taxa de álcool no sangue no momento do acidente e demonstrado que está que a mesma poderia ser inferior a 0,5 g/l (no exemplo que deixámos exposto na motivação seria de 0,38g/l), não pode afirmar-se como estando provado que o arguido “sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e em quantidades tais que determinar-lhe-iam necessariamente uma TAS superior a 1,2 g/l”, assim como não pode julgar-se como provado que “por esse facto, as suas faculdades psicológicas necessárias à condução daquele veículo estavam consideravelmente reduzidas, designadamente no que respeita à coordenação das funções de sensação e de percepção e à coordenação motora”, pelo que deve julgar-se como não provado o facto 17º da matéria de facto;
XVIII - Por outro lado, desconhecendo-se a taxa de álcool no sangue no momento do acidente, não é possível julgar como provado que o arguido quando “podia e devia ter-se abstido de o conduzir com referida taxa de álcool”, pois que esta se desconhece e desconhece-se até se era superior ou inferior ao limite mínimo legalmente estabelecido, pelo que deve alterar-se o julgamento de 22º da matéria de facto julgada como provada, de forma a subtrair da mesma tal segmento;
XIX - O correcto julgamento da matéria de facto, nos termos acima expostos, tem consequências na decisão de Direito, em face do tipo de crime constante do artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal e respectivos elementos constitutivos;
XX - A invocada nulidade do meio de prova utilizado para quantificação da taxa de álcool no sangue do arguido, como a inconstitucionalidade orgânica acima invocada, importam que se desconheça em absoluto da presença de álcool no momento do acidente, já que o meio de prova é inválido, facto que determina a absolvição do arguido do crime de que vem condenado em 1ª Instância; sem conceder,
XXI - Existe dúvida quanto à concreta taxa de álcool com que o arguido circulava no momento do acidente, sendo que, perante tal dúvida, que é insanável, sempre o Tribunal deverá julgar como provado que a concreta taxa de álcool no sangue não foi concretamente apurada, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo;
XXII - Sendo desconhecida a taxa de álcool que o arguido tinha no momento do exercício da condução e do acidente, como efectivamente ficou demonstrado que é, não se encontra preenchido um dos elementos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez: a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l - o arguido deve, pois, ser absolvido da prática deste crime , pelo qual vinha acusado, com todos os efeitos legais;
XXIII - Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 403.º do Código de Processo Penal, do julgamento anterior devem retirar-se as consequências necessárias quanto à restante matéria da decisão recorrida;
XXIV - A causa concreta do acidente de viação não foi apurada;
XXV - Apontando a decisão recorrida alguns factores que considera terem contribuído para a ocorrência do acidente, tendo ficado demonstrado que a taxa de álcool, no momento do acidente, é efectivamente desconhecida, podendo até ter sido inferior ao limite mínimo legalmente admissível, tal factor tem necessariamente que ser excluído, mesmo que como mero contributo para a produção do acidente;
XXVI – Deve, em conclusão, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por decisão que absolva o arguido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, bem como retire da inexistência de prova da TAS no momento da condução todas as demais consequências;
XXVII - Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, designadamente, o disposto no artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão,
Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por decisão que julgue a matéria de facto de acordo com o que acima se expôs e aplique o Direito igualmente como se concluiu, absolvendo o arguido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e retirando-se da inexistência de prova da TAS no momento da condução todas as demais consequências, com todos os efeitos legais.
Assim farão V.ªs Ex.ªs JUSTIÇA!».

1.4. O recurso foi regularmente admitido.
1.5. O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta, pugnando para que o recurso seja julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
«1. Veio o arguido recorrer da sentença proferida no dia 25.11.2021 que o condenou pela prática de um pela prática de um crime um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punidos nos termos do disposto nos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al a), do Código Penal, e um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal.
2. Resumidamente, entende o Recorrente que o arguido deveria ter sido absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez porquanto a colheita de sangue foi realizada 3 horas após o acidente, sem o consentimento do visado, configurando o mesmo uma prova nula, por proibida, aferida de inconstitucionalidade orgânica.
3. Alega ainda o Recorrente que o Tribunal deveria ter dado como não provada a factualidade constante dos factos 10º, 17º e 22 e consequentemente ter dado como provado que não foi apurada a TAS aquando da condução do veículo, levando assim, necessariamente, à absolvição do arguido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
4. Nesta mesma senda, entenda o Recorrente que, no que respeita ao crime de homicídio negligente o arguido também deveria ter sido absolvido porquanto, face à ausência da TAS, o Tribunal não está em condições de afirmar que foi o efeito do álcool a causa do acidente.
5. A jurisprudência já se pronunciou sobre tais temas, tendo considerado que não só a colheita de sangue ao interveniente em acidente de condução é obrigatória, como não necessita do seu consentimento.
6. Mais, tal meio de prova, ainda que realizado sem o consentimento, não constituiu uma prova nula aferida de inconstitucionalidade porquanto não existe qualquer violação da dignidade da pessoa do condutor, nem do seu direito ao bom nome, ou integridade física, sendo certo que a prova apenas se destina a impedir que um condutor, sobre o efeito de álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e integridade física própria e a de outros, pelo que se mostra necessário e adequado à salvaguarda desses bens jurídicos e à descoberta da verdade, a realização do mesmo. – vide acórdão do Tribunal Constitucional n.º 39/2014.
7. No que respeita ao hiato temporal decorrido entre o acidente e a recolha de sangue, pese embora a lei determine que a mesma deva ocorrer no mais curto de tempo possível, esse espaço temporal não é definido pela lei.
8. No entanto, e ainda assim, a circunstância de terem decorrido três horas entre o acidente e a colheita de sangue, não invalida, de modo algum, o valor do exame realizado, sendo que a única conclusão a extrair de tal facto é ter ocorrido a colheita de sangue num momento em que já se havia iniciado a curva descendente.
9. Assim, e uma vez que do organismo já tinha sido eliminado parte do álcool ingerido, cabe concluir, como decorre da sentença, que o arguido conduzia com uma TAS de, pelo menos 1,48 g/l.
10. Pelo acima exposto, não pode o arguido ser absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez uma vez que os elementos típicos do crime estão verificados.
11. Da mesma maneira, não pode o arguido ser absolvido da prática de crime de homicídio negligente porquanto o álcool não foi o único factor considerado pelo Tribunal na produção do acidente.
12. Assim, para a produção do mesmo concorreu também a circunstância do arguido não ter adoptado comportamentos adequados à segurança rodoviária. Veja-se que, para além do arguido estar a conduzir sob o efeito do álcool, este efectuou a curva invadindo a faixa de rodagem contrária, indo embater de frente no veículo que seguia na faixa contrária, sendo certo que apurou-se que o arguido conduzia em excesso de velocidade.
13. Ora, o recorrente põe em crise a forma como o Tribunal a quo apreciou a prova produzida em sede de audiência de julgamento, impugnando assim a convicção adquirida e pondo em causa a livre apreciação da prova.
14. Ora, todo o alegado pelo recorrente faz com que o Ministério Público entenda que a sua convicção pessoal sobre a prova produzida diverge da convicção que o tribunal a quo firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova.
15. Ao insurgir-se contra matéria de facto dada como provada, esquece o recorrente que no processo penal a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente para o julgamento (artigo 127º do CPP).
16. De acordo com o princípio da livre apreciação, o julgador dispõe de liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
17. Ao valorar livremente a prova, procurando através dela alcançar a verdade material, temo julgadora obrigação de ser claro, enunciando genericamente as suas motivações explanadas de forma racional, coerente, justa e fundamentada de modo a afastar o livre arbítrio, e bem assim justificar a confiança no julgador.
18. Assim, relativamente à globalidade da prova produzida, resulta uma assinalável coerência, no sentido da matéria de facto dada como provada.
Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, ser mantida a decisão recorrida, nos precisos termos em que a mesma foi proferida.
Porém, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA!.»

1.6. Neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente e integralmente confirmada a sentença recorrida.
1.7. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo o arguido recorrente exercido o direito de resposta, reiterando que o recurso deve ser julgado totalmente procedente, decidindo-se conforme peticionado.
1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. artigo 428º do C.P.P.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual); bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
Tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso apresentada, são as seguintes as questões suscitadas:
- Impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 10º, 17º e 22º;
- Nulidade do exame de pesquisa de álcool no sangue, através de análise ao sangue, realizado ao arguido;
- Inconstitucionalidade orgânica dos artigos 152º, n.º 3, 153º, n.º 8 e 156º, n.º 2, todos do Código da Estrada;
- Violação do princípio in dubio pro reo.

2.2. Da sentença recorrida
Por relevar para a apreciação das questões suscitadas transcreve-se o teor da sentença recorrida, nos segmentos que importa considerar:
«(…)
II Fundamentação
1. Matéria de facto provada
Da audiência de discussão e julgamento e com relevo para a decisão do mérito da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1.- No dia .../.../2017, pelas 02h20, ocorreu um acidente, no ...), ao KM 44,156, do concelho ..., da comarca ..., que consistiu numa colisão frontal-lateral oblíqua entre dois veículos automóveis:
1.1- o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., matrícula ..-PV-.., conduzido pelo arguido AA; e
1.2- o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca ..., matrícula ..-JR-.., conduzido por BB, nascido em .../.../1961.
2.- Ao tempo, a faixa de rodagem, onde ocorreu o acidente, do tipo betuminosa, e com 7,25 m de largura, era composta por duas vias de trânsito, uma afecta ao sentido .../... e outra ao sentido ..., com um sinal horizontal longitudinal contínuo (M1), a delimitar cada uma das referidas vias de trânsito, apresentava a configuração de uma curva em patamar à direita, considerando o sentido ..., e era delimitada por guias ... e com bermas em cada um dos lados da faixa, a berma do lado direito, considerando o sentido ..., com 2,20 m de largura, e a do lado esquerdo 2,17m largura.
3.- O limite de velocidade em vigor era da 90Km/hora.
4.- Era de noite, estava bom tempo, a faixa de rodagem encontrava-se seca, limpa e em bom estado de conservação, não dispunha de iluminação pública e o trânsito era pouco intenso.
5.- Ao tempo, o veículo ..-PV-.., conduzido pelo arguido AA, circulava no sentido ...; e o veículo ..-JR-.., conduzido por BB, circulava no sentido Grândola-Sines.
7.-No referido veículo ..-PV-.., apenas seguia AA.
8.- Por sua vez, no veículo ..-JR-.., além do condutor BB, seguiam ainda como passageiros, CC, no banco da frente, e DD e EE no banco traseiro, todos com cinto de segurança.
9.- Os veículos referidos não padeciam de quaisquer deficiências nos seus elementos de segurança e tinham a inspecção periódica em dia sem qualquer anomalia consignada - cfr auto de exame pericial aos órgãos do veículo a fls 65 a 67 e inspecção dos veículos a fls 97 a 101 a 106.
10.- Ao tempo e no local dos factos, AA conduzia o referido veículo a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 90km/hora, com uma taxa de álcool no sangue de 1,48 g/l, e, ao descrever a referida curva, perdeu o controle do veículo, entrando em despiste para à esquerda, considerando o sentido da sua marcha, e invadiu totalmente a via destinada à circulação em sentido contrário, onde circulava o veículo ..-JR-.., pela mão da sua marcha, a uma velocidade não concretamente apurada.
11.- Aquando o despiste e a invasão da via destinada à circulação em sentido contrário, AA não realizou qualquer manobra evasiva para evitar a colisão com o veículo ..-JR-.. que ali circulava, ou atenuar a suas consequências.
12.- Em contraponto, BB apercebeu-se da presença do aludido veículo na via de trânsito onde circulava e reagiu evasivamente, desviando a trajectória do veículo que conduzia para berma do lado direito, considerando o sentido da sua marcha, na tentativa de evitar a colisão.
13.- Contudo, a forma repentina e inesperada como o veículo ..-PV-.., conduzido pelo arguido AA, atravessou desgovernado a via de trânsito reservada à circulação em sentido contrário, ocupando-a quase na sua totalidade, não deu tempo, nem espaço suficiente a BB para que a manobra evasiva que empreendia surtisse efeito, tornando o embate inevitável.
14.- Da descrita conduta do arguido AA resultou um embate violento com a parte frontal do veículo por si conduzido na parte fontal lateral esquerda do veículo conduzido por BB.
15.- Como consequência directa e necessária de tal conduta:
15.1- BB sofreu as lesões melhor descritas no relatório de autópsia médico-legal realizado pelo INML a fls 40 a 42, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente lesões traumáticas crânio-meningeo-encefálicas, torácicas e abdominias que foram causa directa e necessária da sua morte verificada às 02h45 desse mesmo dia .../.../2017;
15.2- o veículo ..-PV-.. conduzido por AA ficou com a sua parte frontal praticamente destruída; o seu motor foi projectado para a faixa de rodagem, e percorreu uma distância superior à do veículo conduzido por BB desde o local do embate até ao local onde veio a imobilizar-se.
16.- O referido acidente deveu-se única e exclusivamente à actuação do arguido. Com efeito,
17.- AA sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e em quantidades tais que determinar-lhe-iam necessariamente uma TAS superior a 1,2 g/l e que, por esse facto, as suas faculdades psicológicas necessárias à condução daquele veículo estavam, consideravelmente reduzidas, designadamente no que respeita à coordenação das funções de sensação e de percepção e à coordenação motora.
18.- AA sabia também que devia circular dentro dos limites de velocidade estabelecidos, e regular especialmente a velocidade nas curvas, sobretudo, de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, pudesse em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade fosse de prever e, particularmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
19.- Sabia ainda que estava obrigado a circular pela metade direita da faixa de rodagem e que não podia transpor a linha longitudinal contínua.
20.- Estava de igual modo ciente que era proibido e punido por lei conduzir o referido veículo nas referidas condições, como tinha a necessária capacidade para se determinar de acordo com essa valoração e estava livre na sua vontade
21.- Representou ainda como possível que do exercício da sua condução nos termos e modos supra descritos podia resultar a colisão e os danos e lesões que se vieram a verificar, todavia, acreditou que tal não sucederia.
22.- Apesar disso, AA quis conduzir tal veículo, como o conduziu nos termos e modos supra descritos, quando podia e devia ter-se abstido de o conduzir com referida taxa de álcool, de exceder os limites de velocidade, de transpor a linha longitudinal contínua e invadir a via de trânsito destinada à circulação em sentido contrário, atento sentido da sua marcha.
23.- Violou assim, o arguido AA de modo consciente, livre e deliberado, o dever objectivo a que, naquelas circunstâncias, estava obrigado, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, e que era susceptível de causar os danos/leões que se vieram a verificar, embora acreditando que tal não sucederia, quando podia e devia ter adoptado uma conduta diferente que os evitasse, para tanto tinha a necessária capacidade para se autodeterminar em conformidade e estava livre na sua vontade
Mais se provou:
22 - O arguido não tem antecedentes criminais nem lhe são conhecidos outros processos pendentes contra si em tribunal.
23 - Vive com a namorada em casa arrendada, da qual pagam mensalmente a quantia de 380€.
24 - Aufere cerca de 1.590€ mensais e sua namorada cerca de 500€ mensais.
25 - Paga a título de empréstimo bancário a quantia de 146€.
26 - Estudou até ao 12º ano de escolaridade.
27 - Denota inserção social, no seu grupo e pares e familiar, com bom relacionamento no seio da sua família.
28 - É trabalhador reconhecido pela sua entidade patronal como bom trabalhador, mantendo uma relação profissional boa com colegas.

2. Matéria de facto não provada
Da acusação:
A – O veículo de matrícula ..-JR-.., conduzido por BB, circulava em velocidade inferior que o referido conduzido por AA.
B - O referido acidente deveu-se única e exclusivamente à ligeireza, temeridade, desatenção e leviandade do arguido AA, acto em que desprezou de modo flagrante e notório os mais elementares (básicos) deveres de precaução e respeito pelas normas da segurança estradal, que devem ser observadas.

3. Motivação da matéria de facto
Para a decisão quanto à matéria de facto acima descrita e assente, o tribunal fundou a sua convicção na análise e valoração crítica da prova produzida em audiência e da prova documental junta aos autos, nomeadamente:
Os factos dados como provados resultam da valoração conjunta dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento com os seguintes elementos periciais e documentais:
Auto de notícia de fls. 3 e segs., -
- Documento do INEM de fls. 6,
- Guia de entrega de cadáver de fls. 7,
- Certificado de óbito de fls. 10 e sgs.,
- Guia de transporte de fls. 13,
- Auto de interrogatório de arguido de fls. 26 e segs. e de fls. 144 e segs., que optou por não prestar declarações,
- Relatório de autópsia médico-legal de fls. 40 e segs. e de fls. 162 e segs.,
- Auto de participação de acidente de viação de fls. 49 e segs. e de fls. 72 e segs,,
- Croquis anexo de fls. 53,
- Auto de conhecimento e comparência no local de fls. 63,
- Auto de remoção de cadáver de fls. 64,
- Auto de avaliação de danos nos veículos de fls. 65,
- Auto de inspecção judiciária ao local de fls. 68,
- Análise para quantificação de TAS e substâncias psicotrópicas de fls. 75 e segs.,
- Cópia de documentos de viatura de fls. 80 e segs.,
- Registo individual de condutor, pesquisas nas bases de dados do IMTT de cartas de condução e pesquisas nas bases de dados dos veículos, consultas de homologação, consultas da última ficha de inspecção periódica, consultas de contratos de seguro, de fls. 94 e segs. de ambos os veículos intervenientes no acidente,
- Auto de inquirição de fls. 110 e segs., de DD,
- Auto de inquirição de fls. 115 e segs., de CC,
- Auto de inquirição de fls. 121 e segs., de EE,
- Informação dos Bombeiros de ... de fls. 131 e documentos anexos, informação a identificar duas testemunhas, informação do INEM de fls. 135
- Cota de fls. 136,
- Auto de inquirição de fls. 148 e segs., de FF,
- Auto de inquirição de fls. 151 e segs., de GG,
- Aditamento à participação de acidente de viação de fls. 155 e segs.,
- Relatório pericial toxicológico de fls. 156,
- Auto de inquirição de fls. 158 e segs., de HH,
- Relatório fotográfico de fls. 166 e segs. e respectivos croquis B e C (reconstituição do acidente),
- Relatório final de fls. 198 e segs.,
- CRC de fls. 213, de fls. 227 e de fls. 266,
- Aditamento ao relatório final de fls. 222 e segs.,
- Registo individual de condutor de fls. 268 e segs.,
- Assentos de nascimento de fls. 279 e segs.,
- O arguido prestou declarações, referindo não ter memória dos factos, porquanto em virtude do acidente de viação e das lesões por si sofridas sofre de perda de memória. A última memória que tem foi de estar em casa a tomar banho. Soube posteriormente, por amigos que lhe mostraram fotografias, que nessa dia esteve num jantar que teria sido organizado como jantar de despedida por colegas e amigos, uma vez que tinha aceite um convite de um amigo para um projecto de trabalho no estrangeiro. Nunca mais recuperou a memória dos acontecimentos. Referiu que era amigo do filho da vítima, que pertenciam ao mesmo grupo de amigos. Desde que recuperou do acidente tentou aproximar-se de novo do DD, mas este nunca o permitiu.
Ao longo da audiência de julgamento foram perceptíveis o abalo e comoção do arguido com relatar dos factos, ao longo do depoimento das testemunhas, demonstrando empatia com o sofrimento alheio e tristeza com a ocorrência do acidente.
- Foi inquirida a testemunha DD, filho da vítima, o qual seguia no veículo conduzido por esta e foi interveniente no acidente de viação. Refere que viajava com o seu pai, BB, juntamente com o CC e o EE. O seu pai era o condutor do veículo e a testemunha seguia no banco atrás do condutor. Naquele dia e hora, circulavam do ... para ..., tinham ido ver um jogo de futebol. Refere que quando ocorreu o acidente de viação vinha a dormir, tendo acordado com o embate, cheio de dores e a chamar pelo pai. Dormiu toda a viagem, não tendo qualquer percepção como ocorreu o acidente.
Foi ouvida a testemunha CC, o qual também seguia no veículo conduzido pela vítima, BB, era colega de trabalho deste, seguindo no banco ao lado do condutor. Quando iniciaram a viagem veio algum tempo acordado, vinham a ouvir os relatos do jogo e futebol e a conversar. Depois deixou-se dormir. Recorda-se que pararam nas bombas de combustível e quando estava perto das portagens de ... deixou-se novamente dormir. Acordou quando ouviu o colega BB dizer “O que é isto” e viu uns faróis na sua direcção. O Sr. BB ainda se desviou para a berma mas o veículo embateu-lhes. Com o embate bateu com o braço e a cabeça e perdeu os sentidos. Acordou depois com a vítima já com a cabeça encostada ao volante e com o DD a chamar pelo pai.
Foi inquirida a testemunha EE, o qual seguia no veículo conduzido pela vítima, no lugar atrás do chamado “pendura”. Referiu que fez a viagem toda acordado e que a viagem correu de forma normal. Ao chegarem ao local onde ocorreu o acidente de viação, descrito nos autos, viu um carro a invadir a faixa de rodagem em que circulavam em contra-mão, de forma gradual, não repentina. O sr. BB ainda se desviou para a berma, mas o carro embateu-lhes. Não teve percepção da velocidade a que seguia o mencionado veículo e referiu que o veículo conduzido por BB, seguia a uma velocidade normal entre os 90 km/h ou mais.
Foi inquirida a testemunha FF, o qual chegou ao local do acidente pouco depois do o mesmo ter ocorrido. Não presenciou os factos. Viu o carro do arguido no meio da estrada e que este estava ferido e sem conseguir falar. Viu depois o outro carro e ajudou a retirar as pessoas do seu interior.
Foi inquirida a testemunha HH, militar da GNR que foi chamado ao local na sequência do acidente de viação. Não presenciou a ocorrência do acidente de viação, quando chegou ao local já lá se encontravam as ambulâncias. Referiu que um dos veículos estava no meio da estrada e outro num talude. Pela posição dos veículos e danos percebeu que se tratou de um embate frontal. Indiciava que o condutor não terá feito a curva tendo invadido a faixa de rodagem contrária e indo embater no outro veículo junto à berma. Referiu que a curva é extensa e larga. O piso encontrava-se em boas condições e o local estava sinalizado Não viu quaisquer objectos na estrada que pudessem ter servido de obstáculo. Ficou no local até à retirada de todos os destroços que se encontravam no local e os indícios recolhidos no local permitiram concluir pelo local de embate.
Foi inquirida a testemunha II, militar do NICAVE que compareceu no local e procedeu às diligências que conduziram à elaboração do relatório final. Pronunciou-se quanto às diligências por si encetadas, relatórios, fotografias e croquis por si elaborado ou produzidos, descreveu o local do acidente, condições de via, tempo e trânsito, vestígios do local, posição final das viaturas e danos nas mesmas, quem se encontrava no local, exame das viaturas, como apurou o local provável do conflito ou embate, distâncias do mesmo às viaturas na sua posição final (4 m e 19m) e distâncias do ponto de conflito ao jante/pneumático (7,7m) e motor (15m), conclusões suas quanto à forma como o acidente se deu e as razões do croquis de reconstituição do acidente nos autos por si elaborado, bem como quanto às conclusões do relatório final que elaborou, afirmando que desconhece porque razão o marca ... invadiu a hemi-faixa do marca ... e embateu no mesmo, transpondo linha longitudinal contínua, podendo ser sonolência, distração, álcool ou doença súbita.
Nada apurou, por o arguido não ter falado, embora não tenha apurado indícios de doença súbita.
De igual modo, não pode dizer que a velocidade dos veículos foi causal do acidente, ou sequer qual era, embora seja sua convicção que excediam os 90Km/h permitidos, em face dos danos, posição final dos veículos e dispersão dos vestígios, ainda que a queda do motor e desprendimento da estrutura, se possa dever a procedimentos de segurança da marca e os 4m da posição final do marca ... foram condicionados pela sua posição final, no talude.
Quanto ao álcool, o arguido estaria afecto de TAS mais elevada do que veio a apurar-se dado que o teste foi feito 3 horas após o acidente, por contingências dos serviços e eventualmente ferimentos do próprio.
Mais referiu que não há reacção de recurso por parte do condutor do marca ..., ora arguido, mas somente do condutor do marca ... que ainda se tentou desviar para a direita.
Considera que a causa do acidente foi causa humana, por ter despistado as demais (condições de tempo, via, local) e mecânicas.
Da conjugação destes depoimentos com a demais prova junta aos autos o Tribunal formou a sua convicção na sequência dos factos que deu como provados, designadamente na forma como ocorreu o acidente de viação, os danos decorrentes do mesmo e que factores contribuíram para a ocorrência desse mesmo acidente.
Desde logo, no que concerne à velocidade que o arguido imprimia ao seu veículo o Tribunal fundou a sua convicção dos elementos e vestígios recolhidos no local e no relatório final que permitem chegar à conclusão que pelo menos o arguido seguia em velocidade superior a 90 km/h.
Esta afirmação resulta da posição final dos veículos, distância percorrida do ponto de conflito, danos nas mesmas, sobretudo de natureza frontal, tudo como atestam as fotografias juntas aos autos, ficando completamente destruída as frentes dos mesmos, a dispersão de vestígios, o facto de o motor e a jante/pneumática terem ficado às distâncias supramencionadas do ponto de conflito (7,7, e 15,), as próprias lesões no condutor falecido, que atestam a violência do embate, tudo em consonância do que é a normalidade da vida, da lógica e da experiência comum e, igualmente afirmado pela testemunha ouvida, ainda que salvaguardando ser a sua percepção pessoal, mas de pessoa qualificada, desde 2010 no Núcleo de Acidentes de Trânsito.
Não se apurou que a velocidade tenha sido causal do acidente, mas que concorreu para o mesmo, sendo que a velocidade sempre seria irrelevante na razão que determinou a invasão da hemi-faixa contrária, mas já não irrelevante no evitar do embate (quer permitindo que a manobra de recurso empreendida pelo marca ... resultasse), ou na realização atempada de uma manobra de recurso por parte do condutor do marca ... em que é relevante a velocidade do veículo e os tempos de reacção e de percepção do condutor.
No que concerne à presença de álcool no sangue do arguido, o Tribunal formou a sua convicção no resultado da amostra colhida ao arguido conjugado com a demais prova indirecta.
Na verdade, a prova produzida permite concluir que o arguido circulava com uma TAS não apurada (dada o lapso temporal em que o exame se realizou), mas de, pelo menos, de 1,48 g/l, dada a dedução a realizar.
O exame de pesquisa de álcool encontra-se previsto e regulado nos artigos 152.º, n.º 1, a), 153.º e 156.º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio), de onde decorre, a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores e peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, e as pessoas que se propuserem iniciar a condução.
O exame de sangue é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, sendo apenas admissível nos casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível.
Nos termos do nº 8 do artigo 153º “Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool”, dispondo o artigo 156.º que os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado ( nº1); quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas (nº2); se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas (nº3).
Alega o arguido que não se pode determinar que o arguido tivesse à data da ocorrência do acidente uma taxa de álcool superior a 1,20 g/l por a recolha ter sido efectuada cerca de 3 horas após a produção do acidente de viação.
Ora, dispõe o artigo 5º nº 1 da Lei nº 18/2007 de 17 de maio que “A colheita de sangue é efetuada no mais curto prazo possível, após o ato de fiscalização ou a ocorrência do acidente.”
Referindo-se a lei ao mais curto prazo possível, não estipula, contudo, qualquer prazo máximo para proceder à recolha de sangue, sendo certo que existe uma curva ascendente numa determinada altura do processo de absorção do álcool pelo organismo, certo sendo também que tal curva, atingido o pico, passa a ser descendente.
Com efeito "o álcool ingerido sob a forma de bebida alcoólica é absorvida pela mucosa gástrica para a corrente sanguínea, sendo depois distribuído por todo o organismo. Durante a absorção e distribuição aumenta a concentração do álcool no sangue segundo a curva ascendente, cujo pico máximo é alcançado cerca de 45 minutos a 90 minutos após a última ingestão. Atingida a concentração máxima, inicia-se uma curva descendente menos acentuada, que corresponde à metabolização e eliminação e que demora várias horas” – cfr. Apontamentos sobre Toxicologia Forense, edição CEI Novembro 2000.
Deste modo, a circunstância de terem decorrido três horas entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue para exame, não invalida, de modo algum, o valor do exame realizado, sendo que a única conclusão a extrair de tal facto é ter ocorrido a colheita do sangue num momento em que já se havia iniciado a curva descendente, tendo por isso sido já eliminada do organismo parte do álcool ingerido.
Dos meios de obtenção de prova e, com especial acuidade, dos exames, regem o Título III do Código de Processo Penal e Artº 171º e seguintes.
Para que uma pessoa possa apresentar vestígios de álcool, necessário é que o ingira, sendo consabido que a ingestão de bebidas alcoólicas provoca alterações de consciência e reflexos – que o próprio sente e nota.
O processo de absorção do álcool leva sessenta a setenta minutos a completar-se, atingindo um valor máximo no intervalo de uma hora após a última ingestão, sendo eliminado pelo corpo a uma média de 0,14g/l por hora – vd. ficha técnica “álcool, medicamentos e substâncias psicotrópicas”, disponível em www.imtt.pt.
Conjugando os dados expostos, resulta evidente que o arguido ingeriu álcool em quantidade necessariamente apta a elevar a taxa que ao final de três horas, após a ocorrência do acidente – e sabendo-se, como será bom de ver, que em tal período não mais ingeriu bebidas alcoólicas e o conceito de “no mais curto prazo possível” não encerra qualquer barreira ou limite temporal – apresentava, de pelo menos 1,48 g/l.
Veja-se que o arguido esteve num jantar, antes de iniciar a condução e que entre o momento em que ocorreu o acidente de viação e a colheita da amostra não ingeriu qualquer bebida alcoólica em virtude de se encontrar hospitalizado na sequência das lesões sofridas.
“O álcool é um dos factores que põem em risco a aptidão do condutor, através das perturbações que causa a nível das três áreas intervenientes na aptidão para conduzir (atitudes, percepção e motricidade). Na prática corrente da condução, estes efeitos traduzem-se em atitudes erradas e perigosas, na euforia da velocidade, da ultrapassagem, da sobrestima da máquina e das capacidades do “eu”, por interpretações erradas de uma informação sensorial alterada (diminuição do campo visual, da visão estereoscópica, da cor ...), por deficiente coordenação de movimentos, atraso dos tempos de reflexos, etc...” – cfr. Maria Lucília Mercês de Mello, José Barrias e João Breda, in Álcool e Problemas Ligados ao Álcool em Portugal, Edição Direcção Geral da Saúde, ISBN 972-9425-93-0, pág. 78.
Em se conhecendo tais premissas, constatadas a partir de factos objectivos – v.g., a taxa em concreto apresentada e os cientificamente documentados efeitos do álcool – é permitido ao Tribunal, por via indirecta, inferir e afirmar que o mesmo sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas lhe poderia determinar taxa de álcool superior à legal, ainda assim decidindo conduzir, sabendo que não o poderia fazer, em tais circunstâncias.
A prova indirecta assenta no concurso de circunstâncias concordantes, revelando os factos conhecidos, factos íntimos, insusceptíveis de perscrutar directamente, mas que se podem validamente inferir.
Por quanto se vem de dizer, se firmou a factualidade inscrita nos factos dados como provados.
Os demais factos dados como provados advêm por um lado das declarações do arguido no que concerne à sua situação económica, social, familiar e profissional, bem como resultam do depoimento das testemunhas JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ, no que concerne à inserção social, familiar e profissional do arguido e bem assim a forma como vivenciou o período posterior à ocorrência do acidente de viação e o impacto do mesmo na sua vida.
O Tribunal teve ainda em consideração o teor do CRC do arguido no que concerne à ausência de antecedentes criminais.
Os factos não provados ficaram a dever-se a ausência de prova sobre os mesmos.

4. Aspecto jurídico da causa.
a) - Enquadramento jurídico-penal.
Vem o arguido acusado da prática como autor material, na forma consumada e em concurso real de:
a)- um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º1, e 69.º, n.º1, alínea a), ambos do Código Penal; e
b)- um crime de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137.º, n.ºs 1 e 2, e 69.º, n.º1, alínea a), ambos do Código Penal por referência às contra-ordenações p. e p. pelos artigos 13.º, n.º 1, 24.º, n.º1, 25.º, n.ºs 1, alínea h) e 2, 145.º, n.º1 alíneas a) e), 146.º, alínea o), estes todos do Código da Estrada, e 60.º, n.º1, do Regulamento da sinalização de trânsito, aprovado pelo Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 01/10; e ainda
d)- uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 145.º, n.º1, alíneas a, com referência aos artigos 13.º, n.º 1, 24.º, n.º1, 25.º, n.ºs 1, alínea h) e 2, todos do Código da Estrada; e
e) – uma contra-ordenação muito grave, p. e p. pelos artigos1 46.º, alínea o), do Código da Estrada, e 60.º, n.º1, do Regulamento da sinalização de trânsito, aprovado pelo Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 01/10.
No que concerne às contra-ordenações, em virtude da prescrição as mesmas não serão apreciadas autonomamente mas apenas enquanto violações ao código da estrada que contribuíram para a ocorrência do acidente de viação.
No que concerne ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez:
O crime de condução de veículo em estado de embriaguez, é p. e p. pelos artigos 292º, n. 1, e 69º, n. 1, al. a), ambos do Código Penal.
Estabelece tal norma que “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber, por força de outra disposição legal”.
Para preenchimento do tipo legal basta, pelo lado objectivo, a condução na via pública ou equiparada com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20gl.
Trata-se de um crime de perigo abstracto.
E, pelo lado subjectivo, não é necessário o dolo ou intenção ou, sequer, a simples consciência de condução ilegal; o crime preenche-se mesmo a título de mera negligência.
Nesta modalidade de imputação subjectiva basta que o agente «não proceda com o cuidado, a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz».
Nomeadamente, «representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização», ou «não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto» – art.º 15.º do Código Penal.
Nestas duas hipóteses repousa a distinção entre negligência consciente e negligência inconsciente.
Ambas a demandarem, em todo o caso, a capacidade do agente para proceder com os cuidados que, segundo as circunstâncias, estariam indicados.
Em que se traduz essa capacidade? «Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido – mas só nessas condições – é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição».
Qualquer condutor, seja ele quem for, tem de ter certos cuidados básicos durante a condução e, mesmo, antes dela.
Sabendo que se trata de uma actividade perigosa, a neutralização do perigo – que tanto ameaça o próprio condutor, como terceiros – deve representar uma preocupação permanente, a ponto de, ao ingerir bebidas alcoólicas antes de a iniciar, dever ser especialmente cauteloso, nomeadamente prevenindo os efeitos do álcool no sangue.
E mesmo que, porventura, o agente não soubesse que o que bebeu iria provocar aquela concreta TAS, devia, ao menos, ter representado essa hipótese e ter agido em conformidade com essa representação, evitando beber ou, pelo menos, evitando conduzir depois de beber.
Se o agente não tinha consciência do seu estado, por erro indesculpável, o crime é-lhe imputado a título de negligência (...). Assim, a embriaguez pode ter sido casual, que nem por isso, o agente fica impune, desde que tome consciência ou devesse tomar do seu estado.
São elementos deste tipo de crime:
- condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada;
- com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l;
- com negligência ou dolo.
Da materialidade fáctica provada e fixada supra, mostram-se preenchidos todos os elementos constitutivos do ilícito em apreço.
Efectivamente o arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e em quantidades tais que determinar-lhe-iam necessariamente uma TAS superior a 1,2 g/l e que, por esse facto, as suas faculdades psicológicas necessárias à condução daquele veículo estavam consideravelmente reduzidas, designadamente no que respeita à coordenação das funções de sensação e de percepção e à coordenação motora. Apesar disso, AA quis conduzir tal veículo, como o conduziu nos termos e modos supra descritos, quando podia e devia ter-se abstido de o conduzir com referida taxa de álcool.
Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa. Cometeu, pois, o crime de que vem acusado.
No que concerne ao crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137º e 69º, nº 1, a) do Código Penal.:
Dispõe o artigo 137º, n.º 1, do Código Penal que 1 — Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
O artigo 137º, n.º 1 contempla o que comummente se designa por negligência simples, por contraposição à negligência grosseira, prevista no n.º 2 do mesmo normativo.
Com efeito, a factualidade dada como provada afasta, desde logo, a possibilidade de se colocar a hipótese de o comportamento do arguido ser jurídico-penalmente enquadrável no âmbito da negligência consciente (artigo 15º, al. a), do Código Penal), porquanto nesta modalidade de negligência exige-se da parte do agente a previsão do resultado como possível, tornando-se necessário que o agente tome a sério a possibilidade de violação de bens jurídicos.
Perante a factualidade apurada o arguido omitiu os deveres de diligência apontados e, em consequência disso, não previu, como podia, a realização do crime.
Partindo para a análise dos elementos do crime negligente, ao nível do tipo de ilícito exige-se, prioritariamente, a verificação do resultado típico.
No caso dos presentes autos, podemos, desde logo, afirmar a existência do resultado morte na vítima BB.
Depois, postula-se também que ocorra a omissão do cuidado exigível, isto é, a violação do dever objectivo de cuidado adequado a evitar a verificação do evento típico. È preciso, na realidade, que o agente não tenha cumprido o dever de advertir o perigo para o bem jurídico protegido, pois todas as precauções destinadas a evitar um dano dependem da percepção do perigo ameaçador.
O dever objectivo de cuidado vem a traduzir-se assim, na observância das condições por detrás das quais se realiza uma acção e o cálculo do nexo que seguirá, bem como na reflexão acerca do modo como evoluirá o perigo advertido e quais os seus efeitos (Jescheck, “Tratado de Derecho Penal”, 4ª ed., pág. 525).
Deve-se, assim, indagar quais são os comportamentos que a ordem jurídica exige numa determinada situação — só assim se poderá medir a conduta do agente, saber se ela corresponde à do homem avisado e prudente na situação concreta do agente.
Indiscutivelmente, as normas legais que regulam o trânsito podem constituir um importante ponto de partida para aferir da existência, no caso concreto, de um dever objectivo de cuidado.
No que concerne à actuação do arguido, dúvidas não subsistem que violou o disposto no artigo 13.º do Código da Estrada que sob a epígrafe “Posição de marcha” prevê o seguinte: “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.”
No que concerne à velocidade, dispõe o artigo 24º, n.º 1, do Código da Estrada:
1 - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Por seu turno, dispõe o artigo 25º, n.º 1, al h):
1 - Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:
h) Nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida
Ora, atentos os factos dados como provados, a não realização de qualquer manobra para evitar o embate e bem assim a velocidade a que circulava no local acompanhado de curva, outra conclusão não pode ser senão a de que o arguido com a sua conduta violou também estas normas estradais.
Acresce que, como se referiu acima o arguido conduzia influenciado pelo álcool.
Por conseguinte, em face da factualidade provada, pode asseverar-se que o arguido desenvolveu uma conduta culposa, não actuando com o cuidado exigível, sendo da sua única responsabilidade o deflagrar do acidente.
O terceiro elemento apontado a este nível vem a traduzir-se na imputação objectiva do resultado, o que obriga a que tenha de averiguar-se se é de concluir ou não pela sua previsibilidade objectiva.
Impõe-se assim, que um homem médio e normal, com as capacidades e qualidades do agente, pertencente à sua esfera de tráfico e na sua concreta posição, pudesse, através de um juízo “ex ante”, ter objectivamente previsto o perigo de verificação do resultado típico.
Na negligência inconsciente, o agente não capta o perigo ou, pelo menos, não o toma a sério, havendo que determinar a previsibilidade de acordo com o padrão de capacidade e de conhecimento de uma pessoa média e cuidadosa (Eduardo Correia, “Direito Criminal”, vol. I, págs. 425 a 427).
Além disso, o disposto no artigo 10º, n.º 1 reclama que se verifique um nexo de causalidade entre a omissão do dever de cuidado e a verificação do resultado típico, o que, in casu, e incontroverso, na medida em que a morte das vítimas, foram consequência directa e necessária das lesões decorrentes do embate, tal como resulta dos documentos médicos juntos aos autos.
Finalmente, é preciso afirmar a evitabilidade do resultado, o que vale por dizer exige-se que a realização do tipo negligente seja objectivamente evitável. E tal requisito ficou suficientemente demonstrado nas precedentes considerações.
Entretanto, agora na análise do tipo de culpa negligente, pode sumariamente, dizer-se que o dever de cuidado obriga o agente a advertir o perigo na sua gravidade aproximada.
A previsibilidade subjectiva representa a possibilidade de o agente, perante as suas capacidades individuais e as circunstâncias do caso, ter previsto os perigos da sua conduta e ter cumprido as exigências de cuidado adequadas a evitá-los. Atende-se, por isso, ao nível de indiferença e de falta de atenção do próprio agente.
É precisamente a existência deste dever que permite a punição da negligência inconsciente, uma vez que, nesta situação, há uma imprudente falta de previsão do perigo de verificação do resultado, quando este teria sido reconhecível pelo agente, se tivesse tomado as providências necessárias; ou seja, pune-se a infracção da norma de cuidado que obriga a advertir o risco.
A verificação deste elemento é, de igual modo, indubitável.
Em síntese: encontram-se plasmados todos os elementos que, em concreto, permitem afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar a respectiva punição.
Em face do exposto, não restam dúvidas que o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1, do Código Penal, cuja prática lhe foi imputada na acusação pública.
Não se apuraram causas que excluíssem a ilicitude ou a culpa.
(...)».

2.3. Conhecimento do mérito do recurso
Da impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 10, 17 e 22
O arguido/recorrente impugna a factualidade dada como provada nos pontos 10 – no segmento respeitante à TAS que apresentava no momento da ocorrência do acidente, 1,48 g/l –, 17 – «AA sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e em quantidades tais que determinar-lhe-iam necessariamente uma TAS superior a 1,2 g/l e que, por esse facto, as suas faculdades psicológicas necessárias à condução daquele veículo estavam consideravelmente reduzidas, designadamente no que respeita à coordenação das funções de sensação e de percepção e à coordenação motora» – e 22 no segmento «... de o arguido conduzir com a referida taxa de álcool ...» –, por, em seu entender, não ter sido produzida prova válida que permitisse ao Tribunal a quo, com a certeza e segurança que se impõe, dar como assente essa matéria factual.
Em relação ao ponto 10º, no segmento que é objeto de impugnação, sustenta o recorrente não poder a TAS de 1,48 g/l, ser considerada, por ter resultado do exame de pesquisa de álcool no sangue realizado ao arguido, mais de três horas depois do acidente.
Alega, por outro lado, o recorrente que não consta dos autos, nem é referido na decisão recorrida, o motivo pelo qual não foi realizado ao arguido o exame de pesquisa de álcool no sangue, através do ar expirado e se este se encontrava em estado consciente ou inconsciente, após o acidente.
No entender do recorrente esses elementos teriam de constar da matéria de facto provada, atento o disposto no artigo 4º, n.º 1, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio e nos artigos 153º, com especial relevância, no caso, o n.º 8 e 156º, ambos do Código da Estrada e considerando que a recolha de sangue ao arguido, com vista à realização do exame de pesquisa de álcool no sangue, carecia do seu consentimento esclarecido.
Defende o recorrente que não estando demonstrada a impossibilidade de ser prestado o seu consentimento, à recolha de sangue com aquela finalidade, o exame de para deteção e quantificação da TAS que foi realizado, no caso vertente, constitui prova proibida, nos termos do disposto no artigo 126º do CPP, não podendo ser utilizada, em juízo, para fundamentar a convicção do Tribunal.
Ressalvando a possibilidade de assim não ser entendido, considera o recorrente que tendo em conta a fundamentação exarada pelo tribunal a quo, na sentença recorrida, no segmento em que refere «... a prova produzida permite concluir que o arguido circulava com uma TAS não apurada (dado o lapso temporal em que o exame se realizou), mas, pelo menos, 1,29 gr/l, dada a dedução a realizar», nunca poderia dar-se como provado que o arguido conduzia com uma TAS de 1,48 g/l.
Em consonância com o raciocínio expresso pelo julgador, teria de dar-se como provado no ponto 10º, que o arguido conduzia com uma TAS de, pelo menos, 1,29g/l, o que, ainda assim, o recorrente não aceita, por não ser possível determinar, com certeza e segurança, a taxa de alcoolemia que o arguido apresentava no momento da ocorrência do acidente de viação, havendo que admitir que poderia ser inferior a 0,5 g/l.
Nessa decorrência, entende o recorrente que deve ser dada como não provada a factualidade vertida no ponto 17 e altera-se a redação do ponto 22, eliminando-se o segmento «... de o arguido conduzir com a referida taxa de álcool ...».
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que o Tribunal a quo apreciou corretamente as provas produzidas, sendo legal a colheita de sangue efetuada ao arguido/recorrente para pesquisa de álcool no sangue e mostrando-se válida a prova obtida, não merecendo a decisão do tribunal recorrido, qualquer censura, pelo que, deve ser mantida.
Vejamos:
Com referência ao n.º 10 dos factos dados por provados, o recorrente impugna o segmento reportado a que ao tempo e no local dos factos, conduzia o referido veículo, com uma taxa de álcool no sangue de 1,48 g/l.
Sustenta o recorrente que o exame de pesquisa e quantificação de álcool no sangue a que o tribunal recorrido atendeu, para dar como provado que, no momento da ocorrência do acidente de viação em causa nos autos, o arguido apresentava uma TAS de 1,48 g/l, não podia ser valorado, por constituir prova nula e proibida, nos termos do disposto no artigo 126º do CPP, por não ter existido consentimento, dado pelo arguido, para a recolha de sangue com essa finalidade e não estando demonstrada a impossibilidade de ter sido prestado. Por outro lado, alega o recorrente que tendo a recolha do sangue ao arguido, para a realização do aludido exame sido efetuada mais de três horas após o acidente, nunca poderia ser considerado o respetivo resultado para afirmar que o arguido apresentava a correspondente TAS, aquando da ocorrência do acidente.
Apreciando:
Sobre o procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e no referente aos exames em caso de acidente, o artigo 156º do Código da Estrada, dispõe:
«1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
4 - Os condutores e peões mortos devem também ser submetidos ao exame previsto no n.º 2.».
Na Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool, são previstos os procedimentos a observar para a avaliação do estado de influenciado pelo álcool e por substâncias psicotrópicas. O artigo 4º da mesma Lei, que tem por epígrafe “Impossibilidade de realização do teste no ar expirado”, estatui que:
«1 - Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue.
2 - Nos casos referidos no número anterior, sempre que se mostre necessário, o agente da entidade fiscalizadora assegura o transporte do indivíduo ao estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo para que lhe seja colhida uma amostra de sangue.
3 - A colheita referida no número anterior é sempre realizada nos estabelecimentos da rede pública de saúde que constem de lista a divulgar pelas administrações regionais de saúde ou, no caso das Regiões Autónomas, pelo respectivo Governo Regional.».
Pese embora decorra do disposto no artigo 156º, n.º 1, do Código da Estrada, que, em caso de acidente de trânsito, os condutores nele intervenientes devem ser obrigatoriamente submetidos, preferencialmente e sempre que o seu estado de saúde o permitir, a exame de deteção de álcool no sangue, através de pesquisa no ar expirado, nos termos previstos no artigo 153º do mesmo Código, o n.º 2 do enunciado artigo 156º preceitua que quando não tiver sido possível a realização do exame referido no n.º 1, «o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool (...).».
A regra é que a deteção e quantificação de álcool no sangue, do condutor que intervenha em acidente de trânsito, deve fazer-se através de pesquisa no ar expirado e apenas no caso de impossibilidade de realização do exame através desse método, é que deve ser feita a colheita de sangue ao condutor, para posterior realização de exame laboratorial, destinado a detetar e a quantificar a sua taxa de alcoolemia que possa apresentar.
A impossibilidade de realização do exame de deteção de álcool no sangue, através de pesquisa no ar expirado, ao condutor do veículo interveniente em acidente de trânsito deve resultar do concreto circunstancialismo verificado – abrangendo, não apenas as situações em que o condutor apresente lesões graves, que objetivamente o impeçam de realizar esse teste, como também aquelas em que, independentemente da gravidade da lesões, tenha havido a necessidade de transportar o condutor ao hospital para receber tratamento médico de que careça[1] –, o qual terá de constar da matéria factual provada, para que se possa aferir da correção do procedimento seguido e da legalidade do exame efetuado e, consequentemente, da legalidade ou não, dessa prova.
No caso dos autos, não consta dos factos provados, qual o tipo de exame realizado ao arguido para a deteção e quantificação de álcool no sangue, nem que procedimento foi seguido nesse domínio e o concreto circunstancialismo verificado, após a ocorrência do acidente, que determinou que fosse realizado o exame através do método e no momento temporal em que o foi.
Esses elementos de facto revelam-se essenciais para que se possa aferir da correção do procedimento tendente a poder determinar a TAS que o arguido apresentava no momento da ocorrência do acidente e à apreciação da validade do exame de pesquisa e quantificação de álcool no sangue realizado.
Neste circunspeto, a falta de apuramento desses factos, que deverão constar da matéria factual provada, integra o vício da insuficiência para a decisão da matéria factual provada, previsto na al. a) do nº. 2 do artigo 410º do CPP[2], o qual é de conhecimento oficioso e que se declara.
Tendo o recorrente impugnado a matéria de facto, no respeitante à TAS que apresentava, no momento da ocorrência do acidente, e considerando a prova documental que consta dos autos, sendo que a respeitante aos elementos clínicos insertos a fls. 476 e ss. foi junta a requerimento do arguido, ora recorrente – conforme decorre do teor da ata da sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 14/10/2011, com a Ref.ª Citius ... –, entendemos não ter de ser cumprido o contraditório. Por outro lado, como este Tribunal da Relação dispõe de elementos de prova, para poder sanar o assinalado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não ocorre necessidade de reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426º, n.º 1, do CPP.
Assim:
- Do teor do relatório da ocorrência dos bombeiros voluntários de ..., junto a fls. 131 a 133 dos autos, a que o Tribunal a quo atendeu, decorre que, à chegada ao local, pelas 02:33m, o ora arguido encontrava-se encarcerado no interior do veículo que conduzia, sendo necessário proceder ao seu desencarceramento, após o que foi estabilizado e, sendo um “ferido considerado grave”, foi transportado ao serviço de urgência do Hospital ....
- Nesse Hospital ..., foi efetuada colheita se sangue ao arguido com vista à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, pelas 05h:28m, desse mesmo dia .../.../2017, conforme decorre do teor do auto de colheita inserto a fls. 75 e do relatório de fls. 156, sendo o resultado desse exame de 1,48 g/l.
- Do teor relatório Clínico da Unidade Local de Saúde do Hospital ..., junto a fls. 476, decorre que o ora arguido foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos do mesmo Hospital, no dia .../.../2017, com o diagnóstico de politraumatismo severo, na sequência de acidente de viação, do qual resultaram traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento, traumatismo torácico fechado e traumatismo abdominal fechado, bem como fratura do fémur esquerdo, tendo ficado internado naquela unidade de cuidados intensivos até .../.2/2017, sendo depois transferido para o Serviço de Ortopedia do mesmo Hospital, tendo tido alta hospitalar no dia ... (cfr. nota da alta a fls. 478).
A prova documental junta aos autos e enunciada é bastante para que sejam dados como provados os factos que de seguida se enumeram e que são aditados à matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:
- Em resultado do referido acidente, o arguido AA sofreu lesões graves, designadamente, traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento, traumatismo torácico fechado e traumatismo abdominal fechado, bem como fratura do fémur esquerdo, tendo, após realizada a operação do seu desencarceramento do veículo que conduzia e depois de efetuada a sua estabilização no local do acidente, sido transportado, de ambulância, ao serviço de urgência do Hospital ...;
- No Hospital ..., foi efetuada colheita se sangue ao arguido com vista à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, pelas 05h:28m, do dia .../.../2017, sendo o resultado desse exame de 1,48 g/l.
- Para tratamento das lesões sofridas, o arguido ficou internado na Unidade de Cuidados Intensivos do referido Hospital até .../.2/2017.
Resulta inequivocamente demonstrado que o arguido, ora recorrente, sofreu lesões graves, em resultado do acidente de viação em que foi interveniente, designadamente, traumatismo crânio-encefálico, com perda de conhecimento e traumatismo torácico fechado, sendo transportado, em ambulância, ao serviço de urgência da Hospital ..., para ser assistido, tendo ficado internado nos cuidados intensivos.
No concreto circunstancialismo verificado, é de concluir, sem margem para qualquer dúvida, pela impossibilidade da realização do exame de deteção de álcool no sangue, através de pesquisa no ar expirado.
E, nessa situação, a colheita de sangue efetuada ao arguido, na referida Unidade Hospitalar, para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool, que veio a ser realizado e que se refere o relatório junto a fls. 156 dos autos, mesmo na ausência da prestação de consentimento pelo arguido a que essa colheita fosse efetuada, por o seu estado não lhe permitir prestá-lo ou recusá-lo, é legal e não afeta a validade da prova, por esse meio, obtida.
O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se nesta matéria, decidiu, no Acórdão n.º 418/2013[3], «não julgar não julgar inconstitucional a interpretação normativa, extraída da conjugação do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, e do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, segundo a qual o condutor, interveniente em acidente de viação, que se encontre fisicamente incapaz de realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser sujeito a colheita de amostra de sangue, por médico de estabelecimento oficial de saúde, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, nomeadamente para efeitos da sua responsabilização criminal, ainda que o seu estado não lhe permita prestar ou recusar o consentimento a tal colheita.».
Concluímos, assim, que o exame de pesquisa de álcool no sangue, através de análise ao sangue, efetuado ao arguido, constitui prova válida e pode ser judicialmente valorada.
Relativamente à inconstitucionalidade orgânica dos artigos 152º, n.º 3, 153º, n.º 8 e 156º, n.º 2, do Código da Estrada, invocada pelo recorrente:
Alega o recorrente que a colheita de sangue para efeitos de análise do grau de alcoolémia do condutor, ao abrigo do disposto nos artigos 152º, n.º 3, 153º, n.º 8 e 156º, n.º 2, do Código da Estrada, sem possibilitar ao condutor a sua recusa, está ferida de inconstitucionalidade orgânica.
Para sustentar a invocada inconstitucionalidade, o recorrente remete para a fundamentação do Ac. da RP de 09/12/2009[4] e no qual se decidiu que:
«I – Para o suprimento do direito de o condutor/sinistrado poder livremente recusar a colheita de sangue para efeitos de análise ao grau de alcoolémia do condutor, na medida em que esta alteração legislativa tem um conteúdo inovatório, necessitava o legislador governamental da autorização legislativa, pois que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, por força da alínea c) do n.º 1 do art. 165º da CRP.
II - Assim, a colheita de sangue para aqueles fins, ao abrigo dos actuais artigos 152º, n.º 3, 153º, n.º 8 e 156º, n.º 2, todos do Código da Estrada, na redacção dada pelo DL 44/2005, de 23 de Fevereiro – sendo este último preceito já desde a redacção dada pelo DL 265-A/2001, de 28 de Setembro – sem possibilitar ao condutor a sua recusa, está ferida de inconstitucionalidade orgânica.
(...)»
A questão da inconstitucionalidade orgânica dos artigos 153º, n.º 8 e 156º, n.º 2, do Código da Estrada, na redação que lhes foi dada, respetivamente, pelos Decretos-Leis n.º 265-A/2001, de 28/09 e n.º 44/2005 do Decreto, de 23/02, diplomas estes aprovados pelo Governo sem prévia autorização legislativa, já foi, por diversas vezes, apreciada pelo Tribunal Constitucional, que, reiteradamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, decidiu não julgar organicamente inconstitucionais tais normas – cfr. Acórdãos n.º 468/2010, 479/2010, 485/2010, 487/2010, 40/2011, 48/2011, 397/2011 e 424/2011[5].
O principal fundamento para que o TC decidisse nesse sentido foi o de que o regime previsto na referenciada Lei n.º 18/2007, ter, implicitamente, dado cobertura ao regime legal que decorre do disposto nos artigos 153º, n.º 8 e 156º, n.º 2, na redação que lhes foi dada, respetivamente, pelos referenciados Decretos-Lei n.ºs 265.º-A/2001 e 44/2005.
Nessa conformidade escreve-se no Acórdão do TC n.º 48/2011[6]:
«(...) a Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio (...) visou revogar e substituir o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro, que regulamentava o regime jurídico da fiscalização da condução sob a influência do álcool e de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, que então constava do Código da Estrada com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e, desse modo, toma implicitamente como base o novo regime legal que decorre das sucessivas alterações que foram introduzidas pelos diplomas legislativos posteriores, incluindo as resultantes dos Decretos-Lei n.º 265-A/2001 e n.º 44/2005.
Por outro lado, o novo Regulamento refere-se à «análise de sangue» como um dos métodos de detecção e quantificação da taxa de álcool (artigo 1.º, n.º 2), e especifica que há lugar à realização daquele exame médico «[q]uando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste» (artigo 4.º, n.º 1). Além de que assume ainda um carácter interpretativo relativamente às disposições do n.º 8 do artigo 153.º e do n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, ao estatuir no seu artigo 7.º o seguinte:
«1- Para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 153.º e no n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, considera-se não ser possível a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue quando, após repetidas tentativas, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente.
[…]
Deste modo, o legislador parlamentar esclarece que a impossibilidade de realização do exame de pesquisa de álcool no sangue se afere unicamente em função da impossibilidade médica de proceder à própria colheita de sangue em quantidade suficiente para permitir a sua análise, afastando a hipótese de o exame médico alternativo à colheita de sangue poder vir a ser efectuado com base na simples recusa do examinando, e dando, assim, implícita cobertura ao regime legal que decorre das disposições dos artigos 156.º, n.º 2, e 153.º, n.º 8, na redacção que lhes foi dada, respectivamente, pelos Decretos-Lei n.ºs 265.º-A/2001 e 44/2005), editados pelo Governo sem prévia autorização legislativa.
À norma do artigo 7.º da Lei n.º 18/2007 pode, por conseguinte, atribuir-se um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13.º do Código Civil, embora se não possa considerar a retroacção de efeitos à data da entrada em vigor das normas legais interpretadas, em face do princípio da não retroactividade da lei penal, que impede que possam ser qualificadas como crime condutas que, no momento da sua prática, eram tidas como irrelevantes - artigo 29.º, n.º 1, da CRP (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 245).
Cabe ainda notar que o Tribunal Constitucional já considerou que a inconstitucionalidade orgânica não é pertinentemente invocável quando a Assembleia da República, em processo de apreciação parlamentar de decreto-lei, manifesta inequívoca vontade política de manter na ordem jurídica as normas organicamente inconstitucionais que foram submetidas à sua apreciação (acórdão n.º 415/89), ou, de outro modo, quando revela uma vontade positiva através da aprovação de alterações ao diploma ou rejeição de propostas de alteração relativamente às normas cuja inconstitucionalidade orgânica vem questionada (acórdão n.º 786/96).
No caso vertente, não estamos perante um processo legislativo específico de aprovação parlamentar de diplomas emanados do Governo, a que se refere o procedimento do artigo 169.º da Constituição, pelo que não é directamente aplicável a referida jurisprudência constitucional. Mas, no presente contexto, não pode deixar de atribuir-se relevo à circunstância de a Assembleia da República, no uso da competência legislativa geral consagrada no artigo 161.º, alínea c), da Constituição, ter regulado as matérias da fiscalização da condução sob a influência do álcool, que, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do diploma preambular do Código da Estrada, se encontrava atribuído ao Governo.
Verificando-se, por outro lado, que o órgão parlamentar, através da emissão das referidas disposições dos artigos 4.º e 7.º do Regulamento aprovado pela Lei n.º 18/2007, veio consignar um regime jurídico consonante com a solução de direito que resultava já, segundo os critérios gerais da interpretação da lei, da referida disposição do artigo 156.º, n.º 2, do CE, deixa de haver motivo para manter a arguição de inconstitucionalidade orgânica, até porque por efeito da intervenção parlamentar se operou a novação da respectiva fonte.
(...).».
Deste modo, relativamente ao artigo 153º, n.º 8, do CE, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 26 de fevereiro e que se mantém em vigor, não se vislumbra existirem quaisquer razões válidas para divergir da jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional, no sentido da não inconstitucionalidade orgânica dessa norma.
No tocante ao artigo 156º, n.ºs 2 e 3, do Código da Estrada, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 72/2013, de 3 de setembro, em vigor à data dos factos em causa nos autos, emanada da Assembleia da República, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição da República Portuguesa, a questão da inconstitucionalidade orgânica, com os enunciados fundamentos, nem sequer se coloca.
Por último, no que diz respeito à norma ínsita no artigo 153º, n.º 3, do Código da Estrada, que prevê a punição por crime de desobediência das «pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas», uma vez que não foi aplicada no caso concreto, nem se coloca a questão da sua aplicação, não cabe apreciar da invocada inconstitucionalidade orgânica dessa norma.
Ainda assim, sempre se dirá que o TC, tendo sido chamado a pronunciar-se sobre essa matéria, decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 152º, n.º 3, do Código da Estrada, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro (cfr., entre outros, Ac. n.º 397/2014[7]).
Decidida a questão da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente e retomando a apreciação da impugnação da matéria de facto provada:
Defende o recorrente que a TAS que resultou apurada, no exame de pesquisa e quantificação de álcool no sangue, realizado, de 1,48g/l, tendo a colheita de sangue sido realizada mais de três horas após o acidente, não pode ser considerada, como sendo a TAS que o arguido apresentava no momento da ocorrência do acidente.
Entende o recorrente que, nessa situação, não sendo possível apurar com exatidão a TAS que o arguido apresentaria quando o acidente aconteceu, terá de considerar-se, até por aplicação do princípio in dubio pro reo, poder aquela ser inferior a 1,2 g/l ou mesmo a 0,5 g/l.
Vejamos:
Na motivação da decisão de facto exarada na sentença sob recurso, no segmento relativo à factualidade a que ora nos reportamos, consignou-se o seguinte:
«(…)
- Análise para quantificação de TAS e substâncias psicotrópicas de fls. 75 e segs.,
(...).
No que concerne à presença de álcool no sangue do arguido, o Tribunal formou a sua convicção no resultado da amostra colhida ao arguido conjugado com a demais prova indirecta.
Na verdade, a prova produzida permite concluir que o arguido circulava com uma TAS não apurada (dada o lapso temporal em que o exame se realizou), mas de, pelo menos, de 1,48 g/l, dada a dedução a realizar.
(...)
Alega o arguido que não se pode determinar que o arguido tivesse à data da ocorrência do acidente uma taxa de álcool superior a 1,20 g/l por a recolha ter sido efectuada cerca de 3 horas após a produção do acidente de viação.
Ora, dispõe o artigo 5º nº 1 da Lei nº 18/2007 de 17 de maio que “A colheita de sangue é efetuada no mais curto prazo possível, após o ato de fiscalização ou a ocorrência do acidente.”
Referindo-se a lei ao mais curto prazo possível, não estipula, contudo, qualquer prazo máximo para proceder à recolha de sangue, sendo certo que existe uma curva ascendente numa determinada altura do processo de absorção do álcool pelo organismo, certo sendo também que tal curva, atingido o pico, passa a ser descendente.
Com efeito "o álcool ingerido sob a forma de bebida alcoólica é absorvida pela mucosa gástrica para a corrente sanguínea, sendo depois distribuído por todo o organismo. Durante a absorção e distribuição aumenta a concentração do álcool no sangue segundo a curva ascendente, cujo pico máximo é alcançado cerca de 45 minutos a 90 minutos após a última ingestão. Atingida a concentração máxima, inicia-se uma curva descendente menos acentuada, que corresponde à metabolização e eliminação e que demora várias horas” – cfr. Apontamentos sobre Toxicologia Forense, edição CEI Novembro 2000.
Deste modo, a circunstância de terem decorrido três horas entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue para exame, não invalida, de modo algum, o valor do exame realizado, sendo que a única conclusão a extrair de tal facto é ter ocorrido a colheita do sangue num momento em que já se havia iniciado a curva descendente, tendo por isso sido já eliminada do organismo parte do álcool ingerido.
Dos meios de obtenção de prova e, com especial acuidade, dos exames, regem o Título III do Código de Processo Penal e Artº 171º e seguintes.
Para que uma pessoa possa apresentar vestígios de álcool, necessário é que o ingira, sendo consabido que a ingestão de bebidas alcoólicas provoca alterações de consciência e reflexos – que o próprio sente e nota.
O processo de absorção do álcool leva sessenta a setenta minutos a completar-se, atingindo um valor máximo no intervalo de uma hora após a última ingestão, sendo eliminado pelo corpo a uma média de 0,14g/l por hora – vd. ficha técnica “álcool, medicamentos e substâncias psicotrópicas”, disponível em www.imtt.pt.
Conjugando os dados expostos, resulta evidente que o arguido ingeriu álcool em quantidade necessariamente apta a elevar a taxa que ao final de três horas, após a ocorrência do acidente – e sabendo-se, como será bom de ver, que em tal período não mais ingeriu bebidas alcoólicas e o conceito de “no mais curto prazo possível” não encerra qualquer barreira ou limite temporal – apresentava, de pelo menos 1,48 g/l.
Veja-se que o arguido esteve num jantar, antes de iniciar a condução e que entre o momento em que ocorreu o acidente de viação e a colheita da amostra não ingeriu qualquer bebida alcoólica em virtude de se encontrar hospitalizado na sequência das lesões sofridas.
(...).»
Decorre dos factos provados que o acidente de viação em que o arguido foi interveniente ocorreu pelas 02h:20m, do dia .../.../2017 e foi efetuada colheita de sangue ao arguido com vista à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, pelas 05h:28m, desse mesmo dia .../.../2017, no Hospital ..., sendo o resultado desse exame de 1,48 g/l.
Relativamente ao momento temporal em que deve ser feita a recolha de sangue, com vista à realização de análise para a deteção e quantificação de álcool no sangue, dispõe o artigo 5º, n.º 1, da Lei nº 18/2007 de 17 de maio - Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas - que “A colheita de sangue é efetuada no mais curto prazo possível, após o ato de fiscalização ou a ocorrência do acidente.”
A lei não estabelece qualquer limite temporal, para a colheita de sangue, com a descrita finalidade, preceituando apenas que «é efetuada no mais curto prazo possível».
O período de tempo decorrido entre a ingestão de bebidas alcoólicas, o exercício da condução/ocorrência do acidente e a recolha de sangue para a análise, com vista à deteção e quantificação de álcool no sangue, por si só, não assume qualquer relevância legal, para efeitos do cometimento do crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal.
E quando o método de pesquisa e de quantificação de álcool no sangue usado, for a análise sanguínea, o valor da taxa de álcool, no sangue (TAS), por esse meio apurado, é fidedigno, não havendo, nessa situação – contrariamente ao que manifesta o recorrente referindo-se ao segmento da motivação da decisão de facto em que tal parece resultar –, que deduzir o erro máximo admissível (EMA). A dedução desse erro apenas se impõe, quando o método de quantificação da TAS utilizado, tiver sido o do ar expirado e relativamente aos valores verificados nos alcoolímetros, conforme decorre da Portaria n.º 1556/2007, de 19 de dezembro.
De acordo com estudos científicos realizados, neste domínio, o pico máximo da TAS é, por norma, atingido cerca de 1 hora após a ingestão das bebidas alcoólicas, tendendo a partir daí a haver a diminuição da TAS (o mesmo é dizer a eliminação do álcool pelo organismo), a qual, embora seja variável de pessoa para pessoa – estando dependente da velocidade de degradação do álcool no fígado e das caraterísticas de cada individuo[8] –, é, em média, 0,10 g/l de álcool no sangue, por hora[9].
Em consonância com o exposto, decidiu-se, nos Acórdãos desta RE, de:
- 24/01/2017[10], que «A taxa de álcool no sangue, medida cerca de duas horas após a condução, e sem que, entretanto, o arguido tenha ingerido bebidas alcoólicas, é, necessariamente, inferior à taxa de álcool no sangue verificada no momento da condução, pelo que pode (e deve) ser considerada para efeitos de verificação dos elementos típicos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.» e, de
- 23/03/2021[11], que «A circunstância de terem decorrido duas horas e vinte e oito minutos entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue para exame, não invalida, de modo algum, o valor do exame realizado, sendo que a única conclusão a extrair de tal facto é ter ocorrido a colheita do sangue num momento em que já se havia iniciado a curva descendente, tendo por isso sido já eliminada do organismo parte do álcool ingerido
No caso dos autos, tendo o arguido, necessariamente e sem margem para dúvidas - considerando o valor da TAS que acusou (1,48g/l), na análise ao sangue realizada - ingerido bebidas alcoólicas, em momento anterior ao da ocorrência do acidente, que se deu, pelas 02h:20m, do dia .../.../2017, em quantidade suficiente para lhe poder determinar uma TAS da ordem daquela que apresentou e que resultou apurada, na análise de sangue, tendo a colheita deste último foi efetuada, pelas 05h:28m, daquele mesmo dia .../.../2017, ou seja, três horas e oito minutos, após se ter dado o acidente, sendo que nessa altura, como decorre do que supra se deixou exposto, o organismo do arguido já havia eliminado parte do álcool ingerido, forçoso será concluir que o valor da TAS que o arguido apresentava, quando foi feita a colheita de sangue, é inferior à que apresentava no momento em que ocorreu o acidente.
Nesta conformidade, estando afastada a hipótese de, no momento da ocorrência do acidente, o arguido apresentar uma TAS inferior àquela que, três horas e oito minutos depois do acidente, registou, de 1,48g/l, e que resultou da análise de sangue efetuada, ainda que, não esteja apurado o exato valor da TAS que o arguido apresentava, deve ser considerada a taxa de 1,48g/l.
Não existe, assim, qualquer fundamento válido, para que, ao Tribunal a quo se suscitasse a dúvida a que o recorrente faz apelo, relativa ao valor da TAS que o arguido apresentava, no momento em que, exercendo a condução de veículo automóvel de seu o acidente, poder ser inferior a 1,2 g/l.
Por conseguinte, não foi violado o princípio in dubio pro reo e não merece censura a decisão do Tribunal a quo, ao dar como provado no ponto 10, que ao tempo e no local dos factos, o arguido, ora recorrente, conduzia o referido veículo, com uma taxa de álcool no sangue de 1,48 g/l.
Mantém-se, assim inalterada a factualidade dada como provada no ponto 10 e, porque diretamente com ela relacionada, também a do ponto 22, no segmento que é impugnado pelo recorrente.
Relativamente à matéria factual vertida no ponto 17, que é objeto de impugnação:
Estão em causa elementos subjetivos, atinentes ao dolo, que pertencem ao foro íntimo do agente e cuja prova, na ausência de confissão do arguido, terá de ser feita por recurso a ilações ou inferências, isto é, terá que resultar da conjugação da prova dos factos objetivos respeitantes à conduta assumida pelo arguido com as regras de normalidade e da experiência comum[12].
E foi essa operação que o Tribunal a quo realizou, com decorre da motivação da decisão e facto, mostrando-se as ilações extraídas pelo Tribunal a quo que o levaram a dar como provada a factualidade vertida no ponto 17, não nos merecem qualquer reparo, porque consentâneas com as regras da experiência comum e conformes aos princípios da lógica racional.
Nesta conformidade, improcedendo a impugnação da matéria de facto, mantém-se inalterada a factualidade fixada na 1ª instância.

*
Considerando a factualidade provada, não merece censura a qualificação jurídico-penal dos factos efetuada pelo Tribunal a quo, tendo o arguido com a sua descrita conduta preenchido os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, pelo que, é de manter, nos seus precisos termos, a condenação proferida em 1.ª instância.
*
Improcede, pois, o recurso.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:

a) Declarar que a sentença recorrida enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP) e procedendo-se à sanação desse vício, aditam-se aos factos provados os seguintes:
- Em resultado do referido acidente, o arguido AA sofreu lesões graves, designadamente, traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento, traumatismo torácico fechado e traumatismo abdominal fechado, bem como fratura do fémur esquerdo, tendo, após realizada a operação do seu desencarceramento do veículo que conduzia e depois de efetuada a sua estabilização no local do acidente, sido transportado, de ambulância, ao serviço de urgência do Hospital ...;
- No Hospital ..., foi efetuada colheita se sangue ao arguido com vista à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, pelas 05h:28m, do dia .../.../2017, sendo o resultado desse exame de 1,48 g/l.
- Para tratamento das lesões sofridas, o arguido ficou internado na Unidade de Cuidados Intensivos do referido Hospital até .../.2/2017.

b) No mais, negando provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (arts. 513º, nº. 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
Notifique.
Évora, 27 de setembro de 2022

Fátima Bernardes
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges


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[1] Cfr., entre outros, Ac.s da RG de 08/03/2020, proc. 91/18.GAVNH.G1 e de 26/04/2022, proc. 213/21.1GBGMR.G1 e Ac. da RP de 23/06/2021, proc. 185/18.0GBSTS.P1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, cf. Ac. da RC de 27/03/2019, proc. 34/17.6GTCBR.C1, acessível, in www.dgsi.pt.
[3] De 15/07/2013, acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130418.html
[4] Proferido no proc. 1421/08.6PTPRT.P1, disponível, in www.dgsi.pt.

[5] Todos acessíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ...html
[6] Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110048.html
[7] Acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110152.html
[8] Cfr. Sónia Maria Marques Teixeira Mendonça Gouveia, Avaliação de efeitos do álcool no tempo de reacção, FEUP 2010, pág. 11, acessível in https://repositorio-aberto.up.pt
[9] Cfr. Álcool Verdades e Mitos, Ministério da Saúde, disponível in https://ucccb.pt/wp
[10] Proc. 340/14.1GBPSR.E1, in www.dgsi.pt
[11] Proc. 22/20.5GCLGS.E1, in www.dgsi.pt
[12] Neste sentido, cfr. Ac. da RE de 20/01/1087, in BMJ n.º 365, pág. 713, em cujo sumário - citado pelos Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado, Vol. I, 4ª edição, 2014, Rei dos Livros, pág. 246-247 - se escreve: «A representação mental do resultado e a conformação com ele pertencem ao foro interno do agente, devendo o julgador partir de factos materiais consumados e daí retirar o grau de pré-figuração do resultado pelo agente, segundo a experiência comum.»