Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
279/22.7Y4LSB.E1
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: ESTADO DE EMERGÊNCIA
PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
SUSPENSÃO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Data do Acordão: 12/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. As Leis n.º 1-A/2020, de 19 de março, e n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, estabelecendo medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais nos processos de contraordenação que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um desses diplomas;
II. No domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal e contraordenacional, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido;
III. A aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição, não se lobrigando qualquer argumento para o afastar no domínio contraordenacional, quando se invoca para tal, tão só o interesse patrimonial sem qualquer fundamentação jurídica adicional.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA, NA 2ª SUBSECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

Nos presentes autos que seguiram a forma de recurso de impugnação Judicial interposto por Clube Albufeira- Gestão Imobiliária e Turistica , Ldª, da decisão da Secretaria-Geral do Ministério da Administração interna, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, juízo local de Albufeira- Juiz 3, veio o MºPº recorrer da decisão / despacho nos termos do artº 64º nº1 e 2 do RGCO, através da qual, declarou extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional contra Clube Albufeira —Gestão Imobiliária e Turística, Lda.

O MºPº não se conformando com tal decisão veio interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da decisão de declarar extinto o procedimento contra-ordenacional por prescrição;

2. No caso dos autos, o procedimento por contra-ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contra-ordenação, tenham decorrido 3 anos, cfr. art. 27.º, al. b) do RGCO;

3. Ressalva-se contudo, os períodos em que o procedimento contra-ordenacional estiver suspenso, cfr. disposto no art. 27.º-A do RGCO e as interrupções, cujas causas se encontram plasmadas no art. 28.º do mesmo diploma legal;

4. Contudo, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, no caso, 4 anos e 6 meses;

5. No período compreendido entre 09.03.2020 e 03.06.2020 (86 dias) e de 22.01.2021 e 06.04.2021 (73 dias), cf. artigos 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05 e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.05, tudo no total de 160 dias, ou seja, 5 meses e 10 dias, ocorreu a suspensão do prazo de prescrição, porquanto tais normas impuseram a paragem também deste procedimento contra-ordenacional e prazos em curso, quer na Administração, no Ministério Público e nos Tribunais;

6. Tal imposição pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e posteriormente, pela Lei nº 4-B/2021, configura uma causa suspensiva da prescrição, por falta de autorização legal para o processo continuar, nos termos dos art. 27º-A, n.º 1, al. a), do RGCO;

7. Saliente-se pois, que tal causa já era contemplada na lei em momento anterior à prática dos factos, não colocando assim em causa o princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem se sobrepondo à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido, devendo aqui ser aplicada;

8. Pelo que, o Tribunal a quo ao não considerar como causa de suspensão a imposição legal de paragem do procedimento contra-ordenacional, violou o critério contido no art. 27.º-A, n.º 1, al. a) do RGCO;

9. Deverá pois, nesta parte, ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que considere verificada tal causa suspensiva e seja ordenada a prossecução dos autos para julgamento.

O recurso foi admitido na 1ª instância através de despacho judicial com a referência citius nº 129553534.

A arguida respondeu nos termos legais em 12/10/2023.

Remetidos os autos para o Tribunal da Relação de Lisboa, a Digna Procuradora Geral Adjunta junto deste Tribunal, proferiu parecer com a referência citius nº 8641395, pugnando pela procedência do recurso deduzido pelo MºPº na instância.

O processo prosseguiu nos termos legais, tendo sido cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o presente recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma, cumprindo agora apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379° do mesmo diploma legal. Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).

O objecto do recurso interposto, o qual é delimitado pelo teor das suas conclusões, suscita o conhecimento das seguintes questão:

- A causa de suspensão da prescrição já era comtemplada na lei em momento anterior à prática dos factos, não colocando assim em causa o princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem se sobrepondo à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido, devendo aqui ser aplicada;

- O Tribunal a quo ao não considerar como causa de suspensão a imposição legal de paragem do procedimento contra-ordenacional, violou o critério contido no art. 27.º-A, n.º 1, al. a) do RGCO, devendo tal despacho ser revogado e os autos prosseguirem para julgamento;

Conhecendo, dir-se-á desde já:

É do seguinte teor o despacho / sentença recorrido:

Decisão por despacho

Art. 64º nos 1 e 2 do RGCO

CLUBE ALBUFEIRA — GESTÃO IMOBILIÁRIA E TURÍSTICA, LDA interpôs, nos termos de fls. 70,

Recurso de impugnação judicial da decisão da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) que, em 20/01/2022, a condenou pela prática em 02/05/2018, de contra-ordenações, previstas e punidas pelos artigos 37º nº 1 al. c), 21º nº 1, 37º nº 1 al. h), 27º nº 5, da Lei 34/2013, da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio (regime do exercício da actividade de segurança privada).

Apresentado o recurso, a autoridade administrativa enviou os autos ao Ministério Público, que os tornou presentes ao juiz.

Os elementos do processo são suficientes para, no momento presente, decidir a causa.

Prescrição do procedimento

De acordo com o art. 27º do Decreto-Lei nº 433/82 de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações, RGCO) o procedimento por contra-ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contra-ordenação, tenham decorrido os seguintes prazos:

a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a (euro) 49.879,79;

b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a (euro) 24.93,99 e inferior a (euro) 49879,79;

c) Um ano, nos restantes casos.

Lê-se, no que ora importa, no art. 28º do RGCO, o seguinte:

1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:

a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;

b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;

c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;

d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.

Como é sabido, depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição, com a duração normal (arts. 32º do RGCO e 121º nº 2 do Código Penal).

Estatui por seu lado o art. 27º-A do RGCO que a prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se (para além dos casos especialmente previstos na lei) durante o tempo em que o procedimento (alínea a) não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal; (alínea b) estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público para prossecução de crime até à sua devolução à autoridade administrativa (nos termos do artigo 40º daquele diploma); e (alínea c) estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso. Nos últimos dois casos a suspensão não pode ultrapassar seis meses (nº 2 do referido preceito legal).


*

Assinale-se que as normas supervenientes aos factos respeitantes à pandemia COVID-19 (designadamente as da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março), sobre suspensão de prazos não influem no caso sub iudice, uma vez que os factos imputados ao arguido não ocorreram no período de vigência desse diploma.

Ao caso tem aplicação, outrossim, a regra geral do art. 3º nº 2 do RGCO sobre a sucessão de leis no tempo, que impõe que, havendo norma com alcance contraordenacional superveniente, se aplicará ao caso o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao visado do processo. À data dos factos imputados (02/05/2018) o prazo de prescrição do procedimento não ficava suspenso, pois inexistia então a Lei nº 1-A/2020 — eram-lhe aplicáveis tão-somente as causas de suspensão do art. art. 27º-A do RGCO. Posteriormente passou a haver uma causa superveniente de suspensão da prescrição, imposta pela Lei nº 1-A/2020 (não prevista antes no mencionado art. 27º-A do RGCO).

No confronto entre os distintos regimes suspensivos, manda a regra que rege a sucessão de normas contraordenacionais no tempo que se aplique ao caso o regime anterior, que é concretamente mais favorável ao Recorrente.

Sufragando entendimento semelhante, na jurisprudência1, cfr. por exemplo os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa2 de 21/07/2020 e 24/07/2020.

1 Para casos penais, assinale-se, mas cujos fundamentos podem ser transpostos, mutatis mutandis, para as contraordenações, ante a manifesta identidade de regimes de aplicação temporal das leis que regem um e outro campo do direito.

Sublinhe-se ainda que, quanto à questão, não colhe o argumento aventado pelo Ministério Público a fls. 322, no sentido que as normas suspensivas supervenientes se enquadram no estatuído no (vigente à data dos factos) artigo 27º-A nº 1 al. a) do RGCO (A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se [...] durante o tempo em que o procedimento [...] não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal). Com efeito, a seguir-se tal entendimento está-se, de forma muito evidente, a acolher uma nova causa suspensiva introduzida pelo legislador supervenientemente aos factos. Além disso o entendimento defendido pelo Ministério Público implica necessariamente, também, a escolha selectiva de normas dos dois regimes temporais distintos —normas antigas (o art. 27º-A nº 1 al. a) do RGCO que daria abrigo formal ao entendimento por ser anterior aos factos) e normas novas (as normas dos diplomas do tempo da pandemia COVID-19)— para encontrar o cálculo do regime do prazo de prescrição. Ora, como é sabido, os regimes temporalmente distintos aplicam-se sempre “em bloco” (posição há muito pacificada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça; cfr, por exemplo os acórdãos de 02/04/1986, 15/02/1989 e 14/03/1996, tirados respectivamente nos processos nº 038317, 038546, e 96P601), não permitindo a lei que se seleccione normas de um e outro regime para estabelecer um regime legal que, na verdade, nunca vigorou (e esta proibição vale inclusivamente para os casos em que o “regime selectivo” seja mais favorável ao arguido). Ora, assim sendo, logo se conclui que, usando “em bloco” um e outro regime, a única forma de se concluir como a fls. 322 seria, evidentemente, a aplicação do regime novo, mais desfavorável. Solução que é repudiada pelo art. 3º nº 2 do RGCO.


*

No caso dos autos, considerando as infracções em causa (sendo a coima máxima de € 44.500 euros), constata-se que o prazo de prescrição normal do procedimento, ressalvadas as suspensões, é de 3 anos, sendo o prazo máximo peremptório (ou seja, caso haja interrupções), sempre ressalvadas as suspensões, de 4 anos e 6 meses.

Depois do dia dos factos identificam-se nos autos as seguintes causas de interrupção do prazo de prescrição do procedimento:

notificação a 30/08/2018 (fls. 13),

notificação a 37/03/2019 (fls. 14),

inquirição de testemunha a 06/11/2019 (fls. 35),

inquirição de testemunha a 04/02/2020 (fls. 43),

decisão administrativa em 20/01/2022 (fls. 45),

notificação da decisão condenatória em 07/02/2022 (fls. 63).

Por seu lado, com aptidão a suspender o prazo prescricional em questão, nos autos apenas se respiga a notificação do despacho de recebimento do Juízo Local Criminal de Lisboa de fls. 262, que ocorreu a 03/06/2022, como se extrai do sistema citius.

Posto o que precede, verifica-se que o prazo de prescrição do procedimento em causa nos autos:

Se iniciou em 02/05/2018 (uma vez que a conclusão será a mesma, na contagem que fazemos agora ignoraremos a questão suscitada pela Recorrente acerca de datas ainda muito anteriores para início de contagem da prescrição),

Foi interrompido várias vezes (nunca se completando um período ininterrupto de 3 anos), a última das quais em 07/02/2022,

Suspendeu-se em 03/06/2022, data em que se mostravam decorridos 4 anos, 1 mês, e 1 dia desde os factos,

Retomou o seu curso a 03/12/2022 (art. 27º-A nº 2 do RGCO), Concluiu-se (decorridos os 4 meses e 29 dias que faltavam para atingir o prazo peremptório máximo de 4 anos e 6 meses) em 11/05/2023.

Cumprirá, pois, declarar a prescrição do procedimento.


*

A conclusão que antecede prejudica todas as demais questões em causa no recurso (arts. 41º do RGCO e 368º nº 2 do CPP).

* * *

Pelos fundamentos expostos, e nos termos das normas legais citadas, declaro extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional contra Clube Albufeira —Gestão Imobiliária e Turística, Lda.

(…)

Decidindo diremos “brevitatis causa” o seguinte:

Compulsados os presentes autos e concretamente o recurso que foi interposto verifica-se a seguinte situação: Sabemos por certo que a este respeito a Jurisprudência que brotou de tal questão não aponta toda num mesmo sentido, havendo uma certa dissidência e ainda bem, dizemos nós, a qual está bem explicitada no Acórdão do TRP de 08/03/2023 que se passar a transcrever alguns excertos e que explana os argumentos relativos a esta mesma questão:

(…)”Tal como acima já deixámos exposto, a questão que importa, agora, analisar é a de saber se as normas que estabeleceram as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal introduzidas pelo artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020 – que vigorou sem alterações desde o dia 9 de março de 2020 (artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2020) até ao dia 3 de junho de 2020 (artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020), bem como as introduzidas pelo artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que vigorou sem alterações desde o dia 22 de janeiro de 2021 (artigo 4.º, da Lei n.º 4-B/2021) até ao dia 6 de abril de 2021 (artigo 7.º da Lei n.º 13-B/2021) – podem aplicar-se aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência. A questão tem sido colocada nos nossos Tribunais, não havendo, porém, entendimento unânime, na doutrina e jurisprudência. A posição que defende que quer o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021, são aplicáveis aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, fundamenta-se, resumidamente, no facto de a suspensão em causa constituir uma medida legislativa excecional e aprovada num quadro de elevada excecionalidade. Com efeito, por força da referida pandemia, como é facto público e notório, o país e o mundo quase pararam, facto esse que, aqui, levou à implementação das medidas excecionais fixadas pela Lei n.º 1-A/2020, com reflexos, também, nos procedimentos processuais de natureza penal, pelo que, a suspensão dos prazos, em todos prazos e procedimentos, é justificada, desde logo, pelo facto de as diligências processuais, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais. Os defensores desta posição argumentam que entendimento diverso, seria conceder-se um injustificável benefício ao arguido, colhendo este, proveitos de uma interpretação da Lei n.º 1-A/2020 e da Lei 4-B/2021 que atentaria não só contra a sua letra, como, também, contra o seu espírito. Com efeito, o prazo de prescrição do procedimento criminal não se suspenderia e o arguido, também tinha a certeza, por outro lado, de que, por força da mesma lei, diligências processuais não poderiam, entretanto, ser desencadeadas. Acresce que a finalidade do instituto da prescrição reside “também [na] responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 500/2021, de 9 de junho de 2021 (disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210500.html). Ora, relativamente ao regime imposto, a não realização de atos ou diligências processuais, não se ficou a dever, contudo, a uma inércia ou incapacidade do Estado em as desencadear, mas antes, a uma situação absolutamente excecional que levou a que o Estado, a bem da preservação da saúde pública dos cidadãos, se abstivesse de praticar atos e diligências processuais que pudessem colocar em causa, os esforços no controlo da pandemia. No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais. Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser. Foi, pois, neste contexto especial e excecional, que se fixou um regime transitório e temporário de suspensão dos prazos de prescrição, designadamente, do procedimento criminal, o qual cessou assim que deixaram de subsistir as circunstâncias que o determinaram, pelo que, “(…) não se está, aqui, perante uma sucessão de leis penais, mas, antes, perante um ‘regime temporário de exceção’ (…)”, conforme referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Lisboa de 11-02-2021 (Proc. 89/10.4PTAMD-A.L1-9, in www.dgsi.pt).

Por sua vez, a posição contrária defende que a causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal estabelecida nas Leis n.º 1-A/2020 e n.º 4-B/2021 apenas se aplica aos factos praticados durante a sua vigência, porquanto, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais aos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um daqueles diplomas, pois no domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem se sobrepor à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido. Para a defesa da sua posição, argumentam que são, no essencial, razões de natureza substancial que justificam a ocorrência da prescrição do procedimento criminal, particularmente as que se relacionam com os fins das penas. Não sendo, a partir de determinada altura, o direito penal (ultima ratio de intervenção estadual) capaz de cumprir qualquer das suas funções, apagando o decurso do tempo a utilidade preventiva geral e preventiva especial das penas, limitando o Estado, através do instituto da prescrição, o seu poder punitivo, contribuindo o respetivo regime para a definição da responsabilidade criminal do arguido, impõe-se concluir estarmos perante normas de natureza substancial/material ou, pelo menos, de natureza mista (substantiva e processual), o que conduz, perante uma sucessão de normas, à aplicação daquela – melhor dizendo do “regime” - mais favorável ao agente. Assentando, assim, na natureza material das normas que enformam o instituto da prescrição, a sua aplicação retroativa só poderá acontecer se mais favorável ao arguido. A determinação do regime mais favorável demanda um procedimento metodológico mais ou menos complexo, levando à consideração de uma panóplia de elementos, como sejam o tempo da prescrição, mas também os resultantes da conjugação deste com os atos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a sua contagem. Com efeito, repercutindo-se as causas de interrupção e/ou de suspensão na contagem do tempo da prescrição do procedimento criminal, a consideração da lei mais favorável, ou da não aplicação retroativa da lei que expanda o poder punitivo do Estado, não pode dispensar a ponderação das mesmas. Conclui, por isso, esta posição da Doutrina e da Jurisprudência que não se poderá deixar de encarar as normas contidas nos artigos 7.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020 e 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021 como verdadeiras causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal, logo de natureza substantiva, repercutindo-se as mesmas no termo do respetivo prazo, dilatando-o, conduzindo a sua aplicação ao afastamento da prescrição e, assim, a um agravamento da responsabilidade penal dos arguidos, razão pela qual a sua consideração quanto a factos anteriores ao respetivo período de vigência consubstanciará violação ao artigo 2.º do Código Penal (emanação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4 da CRP), enquanto, salvaguardando, tão só, a ponderação do “regime mais favorável ao agente”, proíbe a aplicação retroativa da lei penal. Acresce que o princípio da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido é valorado de uma forma especial pelo nosso legislador constituinte, sendo tão importante que nem em situação de estado de sítio ou de emergência pode ser suspendido no que respeita a matéria criminal, como decorre do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição(…).

Efectivamente perfilhamos a decisão recorrida bem como os seus fundamentos,( bem como os antecedentes que se referem apenas ao direito Penal, mas entendendo-se extensivos às contraordenações), a qual se mostra assertivamente formulada com o necessário respaldo legal, o que desde já se declara.

Versando igualmente este tema, vide o acórdão do TRL de 5/04/2022, in www.dgsi.pt onde se pode ler a propósito do tema recursivo destes autos, o voto de vencido da Srª Juíza Desembargadora Alda Casimiro, onde ali se refere que: “(…) Consideraria já ter ocorrido a prescriçãoÉ verdade que nos termos das Leis 1-A/2020, de 19 de Março, e 4-B/2021, de 01.02, se definiu que a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19 constitui causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, mais se referindo que tal prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional.

É inquestionável que estas determinações daquelas leis, porquanto respeitam a prescrição, são estatuições de lei processual penal material (cfr. Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, pág. 213), ou, quando muito, lei em que existe uma concepção mista de âmbito substancial/material e processual (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 700), em relação às quais deve ser sempre aplicado o princípio da maior favorabilidade para o arguido.

Ainda que as Leis 1-A/2020 e 4-B/2021 sejam leis temporárias, na medida em que tiveram em vista vigorar durante um período determinado e excepcional, o que se discute é se o ali disposto se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, em face do disposto no nº 4 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa que proíbe a aplicação retroactiva de leis penais mais gravosas para os arguidos – e aqui cabe dizer que entendemos estarem abrangidas leis penais in lato sensu, ou seja, também, leis contraordenacionais.

Ora independentemente de estarmos perante uma lei temporária, defendo que essa lei não pode afectar os prazos de natureza substantiva ou material em curso, designadamente, os prazos de prescrição do procedimento criminal/contraordenacional e da pena, alargando-os (repare-se ainda que o nº 6 do art. 19º da Constituição da República Portuguesa expressamente consagra que a “declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar (...)a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos (...)”.

Pelo que entendo que a previsão das Leis em causa, com referência a prazos de prescrição, só pode vigorar para o futuro, ou seja, para factos praticados durante a sua vigência”(fim de citação).

Ora de forma clara e sintética temos aqui a nossa posição.

Aliás discordamos, data vénia, com a posição adoptada no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 660/2021 de 29/07/2023, tendo-se aqui decidido depois de se trazer à colação os ecos da Jurisprudência do TJUE e do TEDH quanto ao ponto da evolução da compreensão do direito da União em matéria de Direito Criminal no “ nicho” da comumente Saga Tarico e para o demais que ali consta, e vide, nomeadamente no penúltimo parágrafo infra, que para melhor compreensão se passa a transcrever (em parte e citando) este mesmo aresto : “Além disso, a solução propugnada encontra eco na jurisprudência do TJUE e do TEDH.

Um importante ponto de evolução da compreensão do direito da União em matéria de direito criminal encontra-se na comumente designada Saga Taricco.

Na origem do Acórdão Taricco, de 8/09/2015 (processo C-105/14), está um pedido de reenvio prejudicial colocado pelo Tribunal de Cuneo, que levantou questões acerca da compatibilidade de norma reguladora da prescrição do procedimento criminal, aplicável à criminalidade fiscal em Itália, com os artigos 101.º, 107.º e 119.º do TFUE e o artigo 158.º, n.º 2, da Diretiva 2006/112, perguntando se o Direito da União se opõe à disposição de direito nacional. O TJUE afirmou, nessa decisão, que as medidas tomadas pelos Estados-Membros, para assegurar que casos graves de fraude dos interesses financeiros da União sejam punidos com sanções efetivas e dissuasoras, devem ser as mesmas que os Estados-Membros tomam para combater os casos de fraude do mesmo grau de gravidade que seja lesiva dos seus próprios interesses financeiros (cfr. Acórdão do TJUE de 8 de setembro de 2015, Processo C-105/14, ponto 43); e que a consagração de uma regra como a do artigo 160.º do Código Penal Italiano que limita, em caso de interrupção da prescrição, o prolongamento do prazo máximo até um quarto da duração inicial, quando aplicável a casos de fraude grave, que possa acarretar a não punição dos respetivos factos, dada a complexidade e a duração do procedimentos penais, há que considerar que as medidas previstas pelo direito nacional para combater a fraude e qualquer outra atividade ilegal lesivas dos interesses financeiros da União não podem ser tidas como efetivas e dissuasoras, o que é incompatível com o artigo 325.º, n.º 1, TFUE, com o artigo 2.º, n.º 1, da Convenção PIF e com a Diretiva 2006/112, lida em conjugação com o artigo 4.º, n.º 3, TUE (cfr. pontos 46 e 47).

Ainda que o TJUE tenha evidenciado que a desaplicação do direito nacional deverá ser materializada com respeito pelos direitos fundamentais dos visados, decorre da decisão preconizada que, neste caso, o afastamento das regras sobre prescrição do procedimento, em particular sobre prazos interrompidos, não viola o artigo 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Com evidencia João Miguel Cabral, partindo da premissa de que a aplicação das normas do ordenamento jurídico italiano sobre prescrição conduziria à impunidade de tais ilícitos, o TJUE considera que a sua desaplicação não acarreta um encurtamento do prazo prescricional geral aplicável aos procedimentos criminais pendentes. Por essa razão, na ótica daquele Tribunal, não se verifica uma violação do princípio da legalidade pois que a conduta assacada aos arguidos preenchia, à data do seu cometimento, o mesmíssimo tipo incriminatório ora imputado e era já então passível de penalização com sanções equivalentes às atualmente previstas (cfr. “A Saga Taricco entre a Efetividade do Direito da União e da Tutela dos Direitos Fundamentais”, in “Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Joaquim Sousa Ribeiro”, Volume I Direito Constitucional, 2019, Tribunal Constitucional, Almedina, pág. 776).

Subsequentemente, por se suscitarem pertinentes dúvidas no seio dos tribunais italianos, com respeito à solução acolhida pelo TJUE, que poderia acarretar uma preterição do princípio da legalidade criminal, porquanto poderia obrigar à aplicação de prazos de prescrição mais longos do que aqueles que se encontravam inicialmente previstos antes do Acórdão Taricco, o Tribunal Constitucional Italiano formulou um novo pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, questionando se a fórmula resultante do Acórdão Taricco (i) se acha suficientemente precisa; (ii) se contraria o princípio da legalidade, assumindo que o Estado-Membro categorize a prescrição como direito penal substantivo e (iii) se contraria os princípios supremos da ordem constitucional italiana (cfr. ponto 20 do Acórdão de 5/12/2017).

A resposta do TJUE deu origem ao Acórdão M.A.S. e M.B. (ou Taricco II), de 5 de dezembro de 2017 (processo C-42/17), no qual – apesar de pacificar tal diferendo, admitindo que o juiz nacional não tem obrigação de desaplicar disposições internas sobre prescrição no caso de concluir que as mesmas conflituam com direitos dos arguidos, em razão da falta de precisão da lei aplicável ou devido à aplicação retroativa de uma legislação que impõe condições de incriminação mais severas do que as vigentes no momento em que a infração foi cometida – reitera o entendimento de que a aplicação imediata da fórmula Taricco pelo juiz nacional, prorrogando um prazo de prescrição com consequente abrangência dos factos ainda nãos prescritos, não acarretará uma violação do princípio da legalidade (cfr. pontos 40 a 43).

Sobre o princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 49.º da CDFUE, que, nos termos do n.º 3 do artigo 52.º, da Carta, tem o mesmo sentido e âmbito que o direito garantido pela CEDH, no respetivo artigo 7.º, n.º 1, o mesmo obriga a que as disposições penais respeitem certas exigências de acessibilidade e de previsibilidade, quanto à definição da infração e à determinação da medida de pena; e, no tocante ao princípio da não retroatividade da lei penal, opõe-se ao sancionamento criminal de um comportamento que não seja proibido por uma regra nacional adotada antes de a infração imputada ser cometida ou agravar o regime de responsabilidade penal de quem é objeto desse processo (cfr. pontos 55 a 57 do Acórdão, onde se faz expressa menção à jurisprudência do TEDH mobilizada no caso concreto; e Cabral, João Miguel, Ob. Cit., pág. 802).

A construção perfilhada pelo TJUE, nos dois arestos da Saga Taricco, posiciona-se na mesma linha jurisprudencial do TEDH, no sentido de a proibição da retroatividade em matéria de prescrição poder ter por referência o terminus do prazo de prescrição, previsto na lei em vigor à data da prática dos factos, uma vez que o artigo 7.º da CEDH não impede a aplicação imediata aos procedimentos em curso das leis que estendem prazos de prescrição, quando os factos imputados ainda não tenham prescrito e quando essa extensão não seja arbitrária (cfr. Acórdão de 22 de junho de 2000, proferido no Caso Coëme and Others v. Belgium; Acórdão de 8 de dezembro de 2009, proferido no Caso Cesare Preveti v. l’Italie; ponto 22 do Acórdão n.º 500/2021; e Gatta, Gian Luigi, Ob. Cit. pág. 316).

2.3.3. Muito embora a apreciação da conformidade constitucional da aplicação da causa de suspensão da prescrição prevista nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 aos procedimentos em curso se tenha feito por referência à sua natureza criminal, os argumentos que sustentam o presente juízo de não inconstitucionalidade são replicáveis para os procedimentos de natureza contraordenacional.

Com efeito, e não obstante a jurisprudência do Tribunal se encontrar estabilizada no sentido de os princípios constitucionais com relevo em matéria penal não serem transponíveis, com a mesma extensão e intensidade, para o domínio contraordenacional (cfr. entre outros Acórdãos n.ºs 344/93, 278/99, 160/04, 537/2011, 85/2012, 76/2016, 297/2016 e 175/2021), é para nós claro, na senda do decidido no Acórdão n.º 500/2021, que, “no que diz respeito à proibição constitucional da retroatividade in pejus, isso significa que ela se estenderá ao direito contraordenacional somente enquanto manifestação nuclear da função de garantia do princípio da legalidade, exigida pela ideia de Estado de Direito e oponível ao arbítrio ex post facto”.

Assim, pelos fundamentos e considerações jurídicas acima expendidas, concluímos que a interpretação extraída do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido de ser aplicável a causa de suspensão da prescrição do procedimento aí prevista aos procedimentos contraordenacionais pendentes aquando da entrada em vigor daquele diploma, não viola o princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal in malam partem, consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da CRP.”( fim de citação)

Este Acórdão tem um voto de vencido da Srª Juíza Conselheira Fátima de Mata Mouros ( quanto a esta temática) só no que respeita ao direito penal e não às contraordenações e apesar de se concordar parcialmente com douto voto de vencido e com os argumentos e fundamentos ai expendidos, não concordamos porém com o afastamento de tal regime à contagem do prazo da prescrição quanto às contraordenações que, “data venia” iremos transcrever, no nosso próprio entendimento, e interpretação deste “quid pro quo”.

Assim, ali doutamente se deixa bem expresso:

“1. Votei a decisão do presente acórdão, mas não posso acompanhar a sua fundamentação.

Tal como a maioria, entendo que não é inconstitucional a interpretação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido «de que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram já em curso».

No entanto, afasto-me da fundamentação do presente acórdão, por considerar que a referida norma só não é inconstitucional porque se inscreve no âmbito de um processo contraordenacional, está enquadrada por uma situação excecional de emergência e corresponde a uma situação em que a lei nova se aplica a um prazo já em curso, mas ainda não completado.

Com efeito, o contexto de estado de exceção que vivemos justifica a aplicabilidade da nova causa de suspensão do prazo de prescrição a processos por contraordenações iniciados antes da sua vigência (i.e., por factos cometidos antes do início da vigência da lei que prevê a nova causa de suspensão) desde que aquele prazo ainda não tenha atingido o seu termo final. Trata-se de uma solução que responde, de forma proporcional, às necessidades impostas pela tutela de outros interesses jurídico-constitucionais, designadamente o controlo da epidemia da doença Covid-19. A necessidade de restringir os contactos sociais entre indivíduos teve implicações na administração da justiça, levando a uma paragem forçada do andamento dos processos contraordenacionais o que justificou a suspensão dos prazos para a prática dos atos processuais e, consequentemente, a justa medida da aplicação aos processos contraordenacionais pendentes da nova causa de suspensão do prazo de prescrição.

2. Esta ponderação não pode, porém, ser estendida aos processos de natureza criminal.

O princípio da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido é valorado de uma forma especial pelo nosso legislador constituinte, sendo tão importante que nem em situação de estado de sítio ou de emergência pode ser suspendido no que respeita a matéria criminal, como decorre do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição – que refere que «A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar (…) a não retroatividade da lei criminal». Esta proibição inclui todas as dimensões de retroatividade, abrangendo também, naturalmente, a aplicação a processos já pendentes de uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição cujo termo não se mostre ainda atingido (a designada retrospetividade ou retroatividade inautêntica).

Da conjugação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, resulta que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior, sendo ainda que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal, o momento de aplicação da lei penal no tempo é o da prática que leva à consumação do crime, sendo por conseguinte retroativa toda a aplicação a esses factos de lei que for posterior a esse momento. Em conformidade, o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal prescreve ainda que, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.

Ora, no presente Acórdão, o Tribunal altera a sua jurisprudência anterior sobre esta matéria. Esta jurisprudência tinha sido ainda recentemente reafirmada pelo Plenário no Acórdão n.º 319/2021, proferido em matéria contraordenacional, em que, estando também em causa a introdução de novas causas, bem como a eliminação de outras, de suspensão do prazo de prescrição do procedimento que ainda não atingira o seu termo, se considerou, no seu ponto 5, que «as normas sobre prescrição do procedimento, para além da indiscutível vertente processual, têm natureza substantiva [o que] determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respetivas normas ao princípio da aplicação retroativa do regime concretamente mais favorável ao agente da infração [significando] que não pode ser aplicada lei sobre prescrição que se revele, em concreto, mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos, bem como deve ser aplicado retroativamente o regime prescricional que eventualmente se mostre, em concreto, mais favorável». Diferentemente, o presente Acórdão (acompanhando o Acórdão n.º 500/2021, da 3.ª Seção), introduz inovatoriamente uma diferenciação na natureza das causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal assente na sua finalidade e razão de ser, considerando que a aplicação imediata de uma nova causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto (ponto 2.3.1). Desta forma, relativiza a natureza das causas de suspensão do prazo de prescrição, criando um fator de incerteza na sua aplicação. Para além disso, importa para o domínio penal uma lógica de diferenciação entre tipos de retroatividade que, em sede da jurisprudência constitucional, tem vindo a ser usada especialmente em matéria tributária, enfraquecendo a tutela das situações em que a alteração introduzida pela lei nova produz efeitos sobre uma situação ainda não estabilizada, o que, não só contradiz a sua jurisprudência dominante em matéria criminal, como cria um precedente que desvirtua o regime constitucional da lei criminal de há muito adquirido. Cabia ao Tribunal Constitucional defendê-lo contra o perigo de um poder penal discricionário.

Surpreendentemente, neste Acórdão, o Tribunal, invertendo jurisprudência sedimentada que afirma que a prescrição do procedimento criminal constitui para o arguido uma garantia material e não meramente procedimental (v. Acórdãos n.º 445/2012 e n.º 297/2016) e que refuta a doutrina germânica por excluir da garantia da legalidade criminal as causas de suspensão da prescrição (v. Acórdão do Plenário n.º 183/2008), faz recuar a proteção do princípio da proibição da aplicação retroativa da lei criminal in pejus, ao considerar que está fora do âmbito de proteção daquele princípio a aplicação imediata de uma nova causa de suspensão a processos em curso quando no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tenha iniciado mas ainda não se mostre extinto.

Ignora-se assim que, independentemente da discussão dogmática em torno da natureza da prescrição do procedimento criminal, as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção se inserem nas designadas “normas processuais materiais” que se encontram vinculadas ao princípio da legalidade por comportarem elementos relativos à punibilidade do agente. De resto, mesmo em matéria processual, em que vigora a regra da aplicação imediata da lei nova, o nosso ordenamento jurídico introduz decisivas limitações à mesma quando dela derive um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido (artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal).

É certo que o presente Acórdão é proferido no âmbito de um processo contraordenacional e que a jurisprudência constitucional sempre ressalvou que a extensão dos princípios constitucionais em matéria criminal não vale “com o mesmo rigor” ou “com mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social cuja natureza autónoma permite uma maior margem de conformação por parte do legislador. No entanto, a fundamentação do Acórdão não diferencia a força vinculativa do princípio da proibição da retroatividade da lei nova desfavorável ao arguido em sede de processo criminal e em sede de processo contraordenacional, nem sequer no contexto de um estado de emergência. Isso impõe a conclusão de que o que aqui é dito para o âmbito contraordenacional também vale para o âmbito criminal.

Por outro lado, ao contrário da tendência de expansão dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal que caracterizou a jurisprudência que tem vindo a estender a sua aplicação ao domínio contraordenacional, (v., por todos, os Acórdãos n.º 201/2014 e 297/2016), o presente Acórdão, lamentavelmente, vem permitir a importação para o domínio penal de uma solução que apenas é admissível no âmbito contraordenacional em contexto de estado de emergência, diminuindo o âmbito de proteção de um princípio fundamental do direito criminal. Abandona-se a visão garantística para abraçar a securitária.

Por todas estas razões não posso acompanhar a fundamentação do Acórdão.

Diferentemente da maioria, entendo que a análise da conformidade constitucional da norma em apreciação não dispensa o confronto com os limites à suspensão do exercício de direitos em estado de emergência inscritos no artigo 19.º, n.º 6, da CRP.

3. Vejamos:

A norma em análise, sendo extraída do artigo 7.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, constitui legislação de emergência, emitida numa situação de exceção.

Surge na sequência da declaração do estado de emergência pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, procedendo à ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (que estabeleceu medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – Covid 19), e à aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação.

No seu artigo 7.º, n.º 1, a Lei n.º 1-A/2020 regulou a prática de atos processuais e procedimentais durante a «situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19» e no n.º 3 considerou essa situação excecional causa de suspensão dos prazos de prescrição e caducidade (do n.º 4 resulta a prevalência da referida regra de suspensão dos prazos sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos de prescrição).

Estamos perante uma legislação aprovada no contexto de excecionalidade que justificou a declaração de estado de emergência e por causa dele. As medidas aí constantes inserem-se num universo mais vasto de normas editadas para dar resposta a esta situação. Nessa medida, não faz sentido sustentar que a limitação decorrente do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição não se aplica neste caso. O contrário seria admitir que apesar de o Presidente da República não poder suspender estes direitos fundamentais através de declaração de estado de sítio ou de emergência, isso não impediria a Assembleia da República, através de uma lei contemporânea, ou o Governo, na utilização de poderes fora do contexto do estado de emergência, de alcançar o mesmo resultado material, constitucionalmente vedado.

Além disso, é contraditório afastar a aplicação do regime constitucional do estado de emergência, num momento, por um motivo formal – como o acórdão faz no ponto 2.1.4. - e posteriormente, noutro momento (ponto 2.3.1. do acórdão), invocar a mesma situação de emergência como fundamento da admissibilidade da restrição do direito fundamental em causa.

4. Por estas razões não posso concordar com a limitação do escrutínio da constitucionalidade da norma ao confronto direto e exclusivo com a proibição da aplicação da lei penal desfavorável consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição por afastamento do parâmetro do artigo 19.º, n.º 6, nos moldes indicados no acórdão, i.e., por a norma se inserir numa lei da Assembleia da República (ponto 2.1.4. do acórdão).

Efetivamente, resultando a questão de um preceito instituído no âmbito do estado de emergência, incontornável se torna verificar se se mostram respeitados os limites do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição.

É a esta luz que se deve analisar se a aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição.

5. A declaração do estado de exceção constitucional só pode afetar a normalidade constitucional nos termos e com os limites previstos na Constituição (artigo 19.º, n.º 7, da Constituição).

A suspensão de direitos no estado de emergência prevista no n.º 3 do artigo 19.º da CRP não pode ser ilimitada. Está sujeita à cláusula de inviolabilidade de alguns direitos. Existem, com efeito, certos direitos fundamentais que, pura e simplesmente, não podem ser afetados pelo estado de exceção constitucional. Esses direitos estão individualizados no n.º 6 do artigo 19.º, aí se estabelecendo que o estado de emergência em nenhum caso pode afetar a não retroatividade da lei criminal.

É importante entender que «O critério de seleção destes direitos absolutamente garantidos contra os estados de exceção parece obedecer a dois aspetos: (a) serem direitos com intimidade ou proximidade com os valores pessoais fundamentais, ou seja, a vida, o estatuto pessoal, a segurança e a liberdade de consciência; (b) tratar-se de direitos de defesa, mais do que de direitos de ação dos cidadãos, pelo que em princípio não perturbam os objetivos do estado de exceção» (J. J. Gomes Canotilho e V. Moreira, Constituição da República Portuguesa – Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, 2014, Coimbra Editora, p. 402).

Ora, o estado de emergência caracteriza-se pela verificação de perigos graves para a existência do Estado, a segurança e a organização da coletividade, que não podem ser eliminados pelos meios normais previstos na Constituição e que, por isso, exigem medidas excecionais. Manifesto se afigura, assim, que os limites a essas medidas excecionais se caracterizem pela dignidade dos bens protegidos. Constituindo um limite aos efeitos do estado de exceção, concretamente um limite à suspensão de direitos necessária para assegurar o retorno à normalidade constitucional, mal se compreenderia que existissem limites a essa suspensão para lá do núcleo estrito e essencial de subsistência do Estado de direito democrático.

As providências excecionais impostas pela situação de necessidade têm de ser percebidas como providências de defesa da Constituição o que pressupõe que os limites a essas providências se contenham na defesa dos princípios e valores constitucionais inultrapassáveis num Estado de direito democrático.

Neste contexto, a proibição de retroatividade da lei criminal ressalvada no artigo 19.º, n.º 6, entre os direitos invioláveis em estado de exceção, não pode deixar de ser compreendida de forma estrita na sua dimensão de proibição aplicável exclusivamente ao processo criminal, enquanto instrumento de defesa dos valores humanos essenciais e bens jurídicos mais sensíveis na vida em sociedade, em especial a liberdade individual.

O processo contraordenacional não protege esses valores, sendo exclusivamente patrimonial o bem atingido pela coima.

Por conseguinte, a proibição da retroatividade enquanto limite ao estado de exceção não pode deixar de ater-se exclusivamente à lei que a Constituição expressamente designa no artigo 19.º, n.º 6, e esta é a “lei criminal”.

5. Entendo, assim, que a norma em causa não é inconstitucional, desde logo, por, ao incidir em matéria contraordenacional, não violar o artigo 19.º, n.º 6, que apenas proíbe a aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido no âmbito criminal.

Sem prejuízo da extensão ao processo contraordenacional da proteção do princípio da proibição da retroatividade penal (em consonância, de resto, também com artigo 282.º, n.º 3, da CRP), num quadro de emergência sanitária coberta pelo estado de exceção, a proibição constitucional da retroatividade da lei penal desfavorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4, da Constituição), impõe uma apreciação menos exigente no processo contraordenacional do que no processo criminal (já que só neste âmbito se encontra proibida a aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido).

Ora, num tal quadro, a norma em apreciação encontra justificação no estado de emergência que vigorou, exclusivamente por se reportar a ilícitos de mera ordenação social e se aplicar aos prazos que, embora já em curso à data da sua entrada em vigor, ainda não se mostravam completados.

Repito, no entanto, que uma tal ponderação não pode, de forma alguma, ser estendida aos processos de natureza criminal.

Maria de Fátima Mata-Mouros

Ou seja aqui o que se verifica é que se enfatiza e sempre se propalou a “menoridade” do direito contraordenacional, o que em termos de normalidade é comumente aceite e resulta até do procedimento legal pelo qual foi equacionado e que é do conhecimento geral. Emana de uma entidade administrativa e ali se desenvolve até ser interposto recurso de contraordenação para um Tribunal Judicial e mesmo assim com normas diversas ( veja-se RGCO).

No entanto como bem se sabe este tipo de processos têm no seu âmago direitos patrimoniais ( cujas receitas revertem para o Estado Português) podendo ser arguidos naturalmente pessoas individuais ou pessoas colectivas ( vulgo empresas ou associações), visa-se aqui por via das contraordenações praticadas, serem sempre pelo menos oneradas com uma coima ( podendo também revestir outras consequências por exemplo cassação da carta de condução, sanção acessória da publicidade da decisão condenatória e muitas outras como por exemplo as sanções acessórias aplicáveis às contraordenações ambientais, que podem ser aplicadas, simultaneamente com a coima, sempre que estas se mostrem adequadas, nos termos da LQCOA. Nos termos do artigo 111º, n.º 2, alínea e) e 113.º do Decreto Lei 127/2013, de 30 de agosto/entre elas o exercício de profissões e actividades que dependa de homologação de autoridade pública, selagem de equipamento destinado à laboração cessação ou suspensão de licenças (…) relacionadas como exercício da sua actividade /entre muitas outras que nos dispensamos de enumerar face à diversidade e variedade das mesmas bem como ao seu número e no amplo leque legal do Ordenamento Jurídico Português quanto às contraordenações) que são maioritariamente bem superiores às penas de multa cominadas na legislação penal.

Ora não vemos razão nenhuma válida, para, e só atendo ao argumento de visar interesses patrimoniais relevantes, e de não ser direito penal, em virtude da pandemia do vírus SARS-COV 2, de afastar a sua equiparação, por razões sanitárias, e do abrandamento procedimental ( o qual se aplicou a quase todos os processos) neste caso em apreço.

Em conformidade os doutos argumentos propalados no voto de vencido a que acima se fez referência e que repetem condensando-os, e que são usados para a não aplicação da suspensão do prazo para as contraordenações “de per si” não têm a virtualidade de ter tal consequência, ou seja:

“O processo contraordenacional não protege esses valores, sendo exclusivamente patrimonial o bem atingido pela coima.

(…) designadamente o controlo da epidemia da doença Covid-19. A necessidade de restringir os contactos sociais entre indivíduos teve implicações na administração da justiça, levando a uma paragem forçada do andamento dos processos contraordenacionais o que justificou a suspensão dos prazos para a prática dos atos processuais e, consequentemente, a justa medida da aplicação aos processos contraordenacionais pendentes da nova causa de suspensão do prazo de prescrição.”(…)

Julga-se que só com esta interpretação necessariamente extensiva do artº 19º nº 6 da CRP (Artigo 19.º/Suspensão do exercício de direitos/6. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, a capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião), irmos de encontro com a finalidade do poder judicial um dos órgãos de soberania do Estado Português ( artº 13º, 110º nº1 e 2 , 111º nº 1, 202 nº 1, 203º, todos da CRP) que é afinal de contas administrar a justiça em nome do povo ( e para o povo) com igualdade e não sujeito a interesses mercantilistas ( entenda-se esta palavra “cum granus sali” evidentemente) e patrimoniais da administração pública, a qual é em última “ratio”, a beneficiária das coimas aplicadas ou eventualmente a aplicar, se assim se justificar a final, dando primazia àquela nas suas diversas vertentes aqui em questão no que respeita às contraordenações.

Aliás olhando pelo espelho retrovisor legislativo nesta sede temos vindo a assistir ao longo dos anos a um aumento dos prazos de prescrição, bem como das coimas aplicáveis, que a “vox populi” vem imputando à lentidão dos procedimentos legais da administração pública e será quiçá tal andamento e os interesses primordialmente patrimoniais que fazem com sumariamente se justifique em vários arestos e neste tema o alargamento do prazo (temporário) da contagem do prazo da prescrição. E dizemos nós neste conspecto que maioritariamente até os interesses patrimoniais que os arestos ancoram a sua decisão, vão até contra os efeitos patrimoniais reais na vida das empresas e dos indivíduos em virtude da situação pandémica que se viveu.

Explicitando queremos com isto dizer que a paralisação e colapso parcial da economia o impacto nefasto que teve nas PME, seja a nível de estabelecimentos comerciais, pequenas indústrias, negócios etc, acarretou também despedimentos com a inevitável quebra de rendimentos das famílias que foram no seu núcleo atingidas por este flagelo gerador de um decréscimo de rendimento.

É certo que tal situação fez gerar novas formas da economia se revitalizar a nível das PME, mas numa franja bem menor da que existia anteriormente.

Assim o ténue argumento, para além da situação pandémica e da suspensão dos prazos, mas que se aplicou em todos os processos e não só às contraordenações, que lemos nos arestos, de que as contraordenações visam interesses patrimoniais ( ou seja o “revenue” patrimonial devido ou a devir para o Estado), não nos parece curial e para além do mais não está fundamentado quedando-se em rigor numa constatação a qual necessitaria, com a devida modéstia, de um melhor aprimoramento jurídico.

Ao invés concorda-se quando se diz que (…)as normas de prescrição reportam-se ao regime substantivo do facto criminoso ou contraordenacional, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicadas de forma retroativa aos crimes/contraordenações, salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável ao arguido. A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais nos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um desses diplomas (aqui concordamos com tal asserção). No domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal e contraordenacional, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido. A aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição -, não se vendo razão para o afastar no domínio contraordenacional. (…)

Mas já não quando se diz que:

(…) Contudo, a suspensão dos atos e prazos nos processos criminais e contraordenacionais, imposta pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e posteriormente, pela Lei nº 4-B/2021, configura uma causa suspensiva da prescrição, por falta de autorização legal para o processo continuar, nos termos dos art. 27º A, al. a), do RGCO, e art.120º, nº1, al. a), do C. Penal. Tratando-se de uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos, a sua aplicação não colide com o princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal e contraordenacional. (…)

Ora este ”ultimo” argumento vertido no douto Acórdão do TRP de 1/02/2023 in www.dgsi.pt supra transcrito ( excertos) para equiparar as norma de emergência sanitária a uma causa de suspensão da prescrição no domínio penal e contraordenacional, subverte de forma lapidar, no nosso entendimento o que anteriormente ali é dito anulando por conseguinte os argumentos anteriores, ou seja que as Leis 1-A/2020 de 19 de Março e a Lei 4-B/2021 de 1 de Fevereiro não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais nos processos que têm por objecto factos praticados em momento anterior a cada um desses diplomas, como também no âmbito da sucessão de leis penais ( sendo a lei nova temporária ou não) a sua aplicação não pode afastar-se do principio da não retroactividade da lei penal e contraordenacional, corolário do principio da legalidade nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável e também da inevitável colisão com o artº 29º nº 4 da CRP não vendo razão para o afastar do domínio contraordenacional entre o mais, para depois concluir que tais leis configuram uma causa suspensiva da prescrição, por falta de autorização legal para o processo continuar, nos termos dos art. 27º A, al. a), do RGCO, e art.120º, nº1, al. a), do C. Penal. E assim tratando-se de uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos, a sua aplicação não colide com o princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal e contraordenacional.

Aqui o que se verifica são argumentos completamente contraditórios, sendo para nós um paradigma inultrapassável a conclusão final que contraria e colide frontalmente de forma clara com os fundamentos e argumentos em que o segundo vai repousar.

(vide aqui também o AC do TRL processo nº 804/03.2PCALM-A.L1-9, in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/804-2022-209553675)

Por isso, tem sido maioritária a posição da jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação bem como da nossa doutrina a este propósito, mais concretamente, em considerar que tais normas [temporárias e excepcionais decorrentes da pandemia epidemiológica de Covid-19] não podem alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, já em curso, sem violarem o sobredito princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido – cfr. a título de exemplo o acórdão do TRG de 25/1/2021 (processo nº 179/15.9FAF.G2), o acórdão do TRP de 14/4/2021 (processo nº 300/19.6Y9PRT-B.P1), o acórdão do TRC de 7/12/2021 (processo nº 200/09.8TASRE.C3), os acórdãos do TRE de 23/2/2021 (processo nº 201/10.3GBVRS.E1) e de 26/10/2021 (processo nº 28/06.7IDFAR-A.E1) e os acórdãos do TRL de 24/7/2020 (processo nº 128/16.5SXLSB.L1), 26/10/2022 (processo nº 32/15.4PALSB.L1-3) e de 27/10/2022 (processo nº 902/16.2IDLSB-A.L1-9) todos publicados na internet; Germano Marques da Silva (“Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica” em Revista do Ministério Público, número especial COVID-19, 2020, págs. 109-127); Adriano Squilacce e Raquel Cardoso Nunes (“Suspensão dos Prazos de Prescrição em Processo Penal e Contraordenacional por Efeito da Legislação Covid-19” em Foro de Actualidade Portugal, acessível na internet); Rui Cardoso e Valter Baptista (“Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça – Jurisdição Penal e Processual e Processual Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Abril de 2020, págs. 533-536); e também a doutrina seguida por José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, (“A Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março – uma primeira leitura e notas práticas” e “Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e a terceira vaga da pandemia COVID-19” em Julgar online, respectivamente, Março de 2020 pág. 7 e Fevereiro de 2020 pág. 8). Não se aderindo àquele outro entendimento (minoritário – nomeadamente expresso nos acórdãos do Tribunal Constitucional - a propósito de matéria contra-ordenacional - nº 660/21, de 29-7-2021 e nº 798/21, de 21-10-2021 e nos acórdãos do TRL de 16/3/2021, no processo nº 309/20.7YUSTR.L1-PICRS e de 5/4/2022, no processo nº 472/21.0Y5LSB.L1-5) segundo o qual a particularíssima/especialíssima situação imprevisível, transitória e excepcional que vigorou durante a pandemia Covid 19, como determinou uma muito significativa diminuição da actividade dos tribunais, também reduziu ou mesmo impediu a possibilidade da prática de actos processuais susceptíveis de interromper e/ou suspender a contagem de prazos de prescrição. E como tal redução ou impossibilidade não fora imputável a ninguém, não existiria razão para que (a pretendida nova suspensão da contagem de prazos relativamente aos processos já pendentes e com prazos já em curso) beneficiasse quem quer que seja. Ora, conforme já vimos, a razão de ser do instituto da prescrição e dos aludidos princípios – da legalidade, da não retroactividade de lei penal concretamente menos favorável ao arguido e da confiança ou previsibilidade das normas por parte dos cidadãos em geral e dos arguidos em especial – não se compadecem com tais argumentos. E, aliás, conforme já vimos, da pretendida (nova causa) de suspensão adviria, concretamente, uma situação mais gravosa para este arguido e defraudaria o referido princípio basilar do nosso sistema penal que é o da não retroactividade de lei penal concretamente menos favorável ao arguido, tal como defraudaria a exigência da previsibilidade relativamente ao jus puniendi do Estado. onde se estatui : Por isso, tem sido maioritária a posição da jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação bem como da nossa doutrina a este propósito, mais concretamente, em considerar que tais normas [temporárias e excepcionais decorrentes da pandemia epidemiológica de Covid-19] não podem alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, já em curso, sem violarem o sobredito princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido – cfr. a título de exemplo o acórdão do TRG de 25/1/2021 (processo nº 179/15.9FAF.G2), o acórdão do TRP de 14/4/2021 (processo nº 300/19.6Y9PRT-B.P1), o acórdão do TRC de 7/12/2021 (processo nº 200/09.8TASRE.C3), os acórdãos do TRE de 23/2/2021 (processo nº 201/10.3GBVRS.E1) e de 26/10/2021 (processo nº 28/06.7IDFAR-A.E1) e os acórdãos do TRL de 24/7/2020 (processo nº 128/16.5SXLSB.L1), 26/10/2022 (processo nº 32/15.4PALSB.L1-3) e de 27/10/2022 (processo nº 902/16.2IDLSB-A.L1-9) todos publicados na internet; Germano Marques da Silva (“Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica” em Revista do Ministério Público, número especial COVID-19, 2020, págs. 109-127); Adriano Squilacce e Raquel Cardoso Nunes (“Suspensão dos Prazos de Prescrição em Processo Penal e Contraordenacional por Efeito da Legislação Covid-19” em Foro de Actualidade Portugal, acessível na internet); Rui Cardoso e Valter Baptista (“Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça – Jurisdição Penal e Processual e Processual Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Abril de 2020, págs. 533-536); e também a doutrina seguida por José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, (“A Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março – uma primeira leitura e notas práticas” e “Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e a terceira vaga da pandemia COVID-19” em Julgar online, respectivamente, Março de 2020 pág. 7 e Fevereiro de 2020 pág. 8). Não se aderindo àquele outro entendimento (minoritário – nomeadamente expresso nos acórdãos do Tribunal Constitucional - a propósito de matéria contra-ordenacional - nº 660/21, de 29-7-2021 e nº 798/21, de 21-10-2021 e nos acórdãos do TRL de 16/3/2021, no processo nº 309/20.7YUSTR.L1-PICRS e de 5/4/2022, no processo nº 472/21.0Y5LSB.L1-5) segundo o qual a particularíssima/especialíssima situação imprevisível, transitória e excepcional que vigorou durante a pandemia Covid 19, como determinou uma muito significativa diminuição da actividade dos tribunais, também reduziu ou mesmo impediu a possibilidade da prática de actos processuais susceptíveis de interromper e/ou suspender a contagem de prazos de prescrição. E como tal redução ou impossibilidade não fora imputável a ninguém, não existiria razão para que (a pretendida nova suspensão da contagem de prazos relativamente aos processos já pendentes e com prazos já em curso) beneficiasse quem quer que seja. Ora, conforme já vimos, a razão de ser do instituto da prescrição e dos aludidos princípios – da legalidade, da não retroactividade de lei penal concretamente menos favorável ao arguido e da confiança ou previsibilidade das normas por parte dos cidadãos em geral e dos arguidos em especial – não se compadecem com tais argumentos. E, aliás, conforme já vimos, da pretendida (nova causa) de suspensão adviria, concretamente, uma situação mais gravosa para este arguido e defraudaria o referido princípio basilar do nosso sistema penal que é o da não retroactividade de lei penal concretamente menos favorável ao arguido, tal como defraudaria a exigência da previsibilidade relativamente ao jus puniendi do Estado.(…) (fim de citação.)

Ora por maioria de razão julga-se, e salvo melhor e avisada opinião ser (que sempre respeitaremos) aplicáveis aos processos contraordenacionais as garantias constitucionais consagradas no artigo 29.º da CRP , uma vez que a norma objeto de discórdia importa um agravamento do prazo de prescrição aplicável aos ilícitos em causa, por comportar um alargamento do mesmo, sendo apenas possível vigorar e ser aplicável às infrações praticadas na sua vigência e não aos ilícitos cometidos em momento anterior, mesmo que o respetivo prazo de prescrição se encontre em curso (vide neste sentido Germano Marques da Silva («Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica», in Revista do Ministério Público, número especial COVID-19: 2020, páginas 109 a 127 e Adriano Squilacce e Raquel Cardoso Nunes, in “A suspensão dos prazos de prescrição em processo penal e contraordenacional por efeito da legislação covid-19” e o AC TRP de 1/02/2023, in www.dgsi.pt). Nestes termos e sem necessidade de tecer maiores e elaboradas considerações, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os Juízes da 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

1 - Julgar improcedente recurso interposto pelo MºPº, confirmando-se a decisão recorrida;

2 - Não são devidas custas por delas estar isento o MºPº;

3 - Notifique-se e D.N.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2023

(Processado integralmente em computador e revisto pela relatora, artigo 94º nº 2 do Código de Processo Penal)


Filipa Costa Lourenço (Juíza Desembargadora relatora)

Ana Bacelar (Juíza Desembargadora- 1º adjunta)

Maria Perquilhas (Juíza Desembargadora- 2ª adjunta)