Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | LAURA MAURÍCIO | ||
| Descritores: | NEGLIGÊNCIA ANIMAL DE RAÇA CANINA DEVER DE VIGILÂNCIA FIXAÇÃO OFICIOSA DE INDEMNIZAÇÃO CONTRADITÓRIO | ||
| Data do Acordão: | 10/08/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I - O comportamento do arguido, dado como provado, constitui conduta negligente, por ter incorrido em violação do dever de cuidado que sobre si impendia de vigiar o seu animal de raça canina, violação essa adequada à produção do resultado que, em concreto, consistiu em ofensa à integridade física de uma menor. II - Sobre o arguido, enquanto proprietário e detentor do animal, recaía um dever especial de vigilância, por se tratar de animal perigoso ou potencialmente perigoso (por referência ao elenco definido no Anexo à Portaria nº 422/2004, de 24/04 - dado tratar-se de um pitt bull terrier -), impondo-se ao arguido a obrigação jurídica de controlar essa fonte de perigo, sobre a qual, naquele momento, tinha a disponibilidade fáctica, de forma a evitar a lesão de bens jurídicos alheios. III - Fixando-se à vítima uma reparação oficiosa dos prejuízos sofridos, o Tribunal tem de comunicar ao arguido a necessidade dessa atribuição oficiosa da reparação, dando-lhe a oportunidade de se pronunciar sobre os fundamentos e o montante (assim se cumprindo o disposto no artigo 82º-A, nº 2, do C. P. Penal - o arbitramento da indemnização à vítima tem de assegurar o respeito pelo contraditório -). IV - A omissão da comunicação ao arguido da possibilidade de arbitramento de indemnização traduz uma intolerável compressão do direito de defesa (direito ao contraditório), constituindo irregularidade, de conhecimento oficioso, a qual exige reparação (através da declaração de invalidade da sentença, na parte relativa à condenação em indemnização, que deverá ser repetida depois de concedido ao arguido o contraditório - com a possibilidade de requerer a produção de prova, em audiência, com relevância para a fixação dessa indemnização -). | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Tomar, foi o arguido C submetido a julgamento em Processo Comum, Tribunal Singular, tendo o Tribunal, por sentença de 29-02-2024, decidido: “condena-se o arguido C como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 33.º do Decreto-Lei 315/2009 (vide artigo 3 n.º1 alínea c) do referido diploma, 15.º e 144 n.º1 alínea a) do Código Penal) numa pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €7 (sete Euros) o que perfaz o montante global de €1400 (mil e quatrocentos Euros). Condena-se o arguido a pagar à vítima I o montante de €3.000 (três mil Euros) para reparação dos danos não patrimoniais sofridos.” * Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões: 29. O Arguido confessou, ainda que não integralmente os factos. 30. Todavia, parece-nos s.m.e. que do depoimento do Arguido se pode depreender que não houve por parte daquele qualquer comportamento negligente, nem tão pouco doloso. 31. Não estando, pelo que se expôs atrás, verificados de forma inequívoca os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito. 32. O arguido não agiu sem o cuidado a que estava obrigado. Bem pelo contrário, conforme resulta das suas declarações transcritas atrás. 33. Não obstante o canídeo ter provocado lesões significativas à data na face da menor, o grau de ilicitude da sua conduta não pode ser considerado elevado como entendeu a MM Juiz do Tribunal ‘a quo. 34. Parece-nos possível concluir, da análise mais cuidada do caso em apreço, que tudo ocorreu de forma fortuita e infeliz. 35. Logo, parece-nos existir claramente causas de exclusão da ilicitude ou da culpa do agente, o que se advoga. 36. Assim como o montante fixado oficiosamente a título de indemnização, se entende elevado e infundado, uma vez que a Ofendida (através do seu progenitor), não apresentou qualquer pedido de indemnização civil e, ainda que fosse legítimo ao Tribunal ‘a quo decidir atribuir o montante que atribuiu (3.000€), fê-lo sem sequer se analisar a extensão da lesão provocada pelo incidente à data de hoje. 37. Acrescendo o facto de que o Arguido nunca se inibiu ou se escusou de prestar todo o auxílio moral e monetário (no sentido em que assumiu todas as despesas inerentes aos tratamentos, internamento, deslocações e medicamentosas da menor), sem sequer exigir qualquer tipo de comprovativo das mesmas. 38. Assim como esclarece a respeito o Acórdão do Tribunal da relação de Lisboa, no Processo 3110/15.6T9ALML1-3, Relator A. Augusto Lourenço, datado de 23.01.2019: «(…) 4. A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa. O tipo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a) a violação de um dever objectivo de cuidado; b) a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo; c) e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado. 5. A violação pelo agente do cuidado objectivamente devido, é concretizado com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem sábio” 6. A conclusão de que o resultado teve como causa a acção negligente, só poderá ser afirmada quando se verifique, num primeiro passo, a causalidade natural - o resultado tem de ter como causa natural a acção - e, em seguida, uma causalidade jurídica, o nexo de imputação objectiva.» Ora, ‘in casu 39. Parece nos que nem sequer os três elementos mencionados do tipo de ilícito estão inequivocamente verificados. 40. Efectivamente, podemos concluir que foi o excesso de zelo e cuidado, que levou o Arguido num acto puramente instintivo de defesa, a puxar a trela à cadela Zuri, contribuindo ele, de forma inconsciente, para a produção do resultado verificado. 41. Se o Arguido não tivesse puxado a trela à Zuri muito provavelmente o resultado não teria sido o mesmo. Pelo que, salvo Douto e melhor entendimento, por tudo o que atrás ficou explanado na presente MOTIVAÇÃO e CONCLUSÕES, se requer ‘mui respeitosamente a V.ªs Exc.ªs , que se afira das seguintes questões: 1. Existência ou não de ilicitude e/ou culpa do Arguido; 2. Existência de causas de exclusão de culpa do Arguido; 3. E falta de fundamentação/rigor na determinação/avaliação do dano físico provocado e lesões permanentes existentes à data de hoje, por forma a justificar o valor a título de indemnização oficiosa determinada, que se considera excessiva. Nestes termos e nos mais de DIREITO, que V.ªs Ex.as, Venerandos Juízes Desembargadores suprirão, deverá o Recurso proceder, de acordo com as conclusões anteriores e, a posição que se renova e reforça, decretando-se, ou: a) a não existência de ilicitude ou culpa do agente na sua conduta; b) a não verificação dos elementos caracterizadores do tipo legal de ilícito; c) Não se entendendo, e porque a prova resultante da discussão e julgamento não se mostrou suficiente para se determinar o montante a que foi condenado o Arguido a pagar a título de indemnização oficiosa, já que a Ofendida (através do seu progenitor, por ser menor), não o fez. d) Sendo que o mesmo, sem querer de forma alguma, desvalorizar o dano provocado, se considera claramente excessivo e infundado. e) E bem assim, que seja reduzido o valor diário da multa aplicada de 200 dias, para o mínimo legal de 5€, uma vez que só se pode concluir que não houve por parte do Arguido uma conduta onde o “grau de ilicitude é elevado”, com entendeu a MM Juiz do Tribunal ‘a quo. Assim se repondo a esperada e tão acostumada JUSTIÇA * O recurso foi admitido e fixado regime de subida e efeito. * O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pelo não provimento do mesmo e formulando as seguintes conclusões: - A omissão do dever objectivo de cuidado consiste em o agente não ter usado da diligência exigida, que é requerida na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa. - é exigido um dever especial de cuidado em relação a qualquer animal de companhia, competindo ao seu tutor e detentor, nos termos do artigo 6.º, do Decreto Lei n.º 276/2001, o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais. . - mas, no presente caso, esse dever era acrescido, mercê das características físicas da raça a que o cão pertence, pois que apr características morfológicas com a raça pitbull terrier, sendo resultado de um cruzamento de uma raça indefinida com aquela raça sendo, por isso, considerado um animal potencialmente perigoso. - não obstante e como resultou provado, o recorrente descurou esse dever de cuidado e vigilância pois que, embora o levasse pela trela, não garantiu que o cão se mantivesse afastado e impedido de se aproximar e alcançar a criança ofendida, tanto mais que, imediatamente antes, o animal demonstrara comportamento nervoso, rosnando. - o recorrente podia e devia ter observado este dever de vigilância, uma vez que lhe bastaria ter assegurado que o seu cão se mantivesse junto de si e afastado da ofendida, tanto mais que, na proximidade desta, tivera um comportamento menos amistoso. - a produção do resultado (ofensas graves na integridade física da ofendida) deveu-se à falta de cuidado do recorrente que não evitou, como podia e devia, a presença do animal junto do corpo da menor, não tendo adoptado os cuidados que lhe eram exigíveis. - os factos dados como provados na douta sentença recorrida integram os elementos objectivos e subjectivos da prática pelo recorrente do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 33.º do Decreto-Lei 315/2009 de 29.10 e inexiste qualquer causa que exclua a ilicitude ou a culpa. * No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer nos seguintes termos: “Louvamo-nos na argumentação explanada na resposta ao recurso que foi oferecida em primeira instância pelo Ministério Público. Nesta resposta, de forma esclarecedora, se rebatem e refutam os argumentos que foram oferecidos pelo recorrente, deitando por terra toda a sua pretensão. Na verdade, ao contrário do que defende o recorrente, também entendemos, como o Ministério Público na primeira instância, que a sentença recorrida, mercê da análise critica e ponderada efetuada, fez uma correta e adequada interpretação e valoração da prova que foi produzida e uma consequente subsunção legal, quer no que diz respeito à verificação (objetiva e subjetiva) do ilícito por cuja prática os recorrentes vieram a ser condenados, quer na determinação concreta da medida da pena que lhes foi aplicada. Consequentemente, tendo em conta o acima referido e subscrevendo o já expendido pelo Ministério Público em primeira instância e nada mais com relevo para a decisão a proferir, se nos oferecer dizer ou acrescentar ao que naquela argumentação vem sustentado, somos de parecer que deve ser negado provimento ao recurso.” * Cumprido o disposto no artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal não foi apresentada resposta. ** Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência. Cumpre decidir * Fundamentação Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP). São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar. No caso sub judice o recorrente limita o recurso às seguintes questões: - não verificação dos elementos caracterizadores do tipo legal de ilícito; - existência ou não de ilicitude e/ou culpa do Arguido; - existência de causas de exclusão de culpa do Arguido; - redução do valor diário da multa aplicada de 200 dias, para o mínimo legal de 5 euros; - falta de fundamentação/rigor na determinação/avaliação do dano físico provocado e lesões permanentes existentes à data de hoje, por forma a justificar o valor a título de indemnização oficiosa determinada, que se considera excessiva. * Da sentença recorrida - Factos e Motivação (transcrição) “FACTOS PROVADOS: 1. O arguido é proprietário de um canídeo de nome “Zuri”, nascido a 11-3-2021, com o microchip 620098500226363, apresentando características morfológicas com a raça pitbull terrier, sendo resultado de um cruzamento de uma raça indefinida com aquela raça, 2. No dia 10-7-2022, pelas 13h30, no Açude da Pedra, na cidade de Tomar, o arguido circulava ali, apeado, com o referido “ZURI”, agarrado por uma trela, sem açaime, sem seguro de responsabilidade civil e sem licença emitida pela Junta de Freguesia, 3. Nessa altura, o arguido e o referido canídeo aproximaram-se de A e da filha deste, I, nascida a 12-1-2018, 4. Nessa altura, C cumprimentou A, altura em que o canídeo rosnou, 5. Donde, A avisou o arguido de que deveria ter cuidado, pedindo que afastasse o canídeo da referida criança, 6. O que aquele não fez, 7. Donde, de forma brusca, o canídeo saltou para cima do corpo de I, cravando as suas unhas na face daquela, 8. Com o que lhe causou dor e mal-estar físico, bem como provocou, naquela criança, as seguintes lesões: a. - ferida de 2 cm na hemifacial direita, infra orbitária; b. - ferida da extremidade nasal com cerca de 2 cm, ferida da região malar esquerda, com retalho cutâneo e perda de substância, com cerca de 7 cm, tendo sido alvo de procedimento no bloco operatório (sutura reconstrutiva e aplicação de pomada com clorafenico), c. - complexo cicatricial rosado, com vestígios de pontos, interessando a metade inferior da região periorbitária esquerda, estendendo-se parcialmente na vertente lateral esquerda do nariz, medindo 4cmx1,8 cm, sendo visível à distância social e bem visível à distância mínima, d. Que foram causa direta e necessária, para 15 dias de afetação da capacidade para a capacidade de trabalho geral e atividades escolares, com desfiguração permanente na zona da face, 9. O arguido atuou com falta de cuidado, violando deveres de precaução e cautela. 10. O arguido sabia que ao permitir que o referido animal se aproximasse daquela criança - sem açaime e sem guardar uma distância mínima de segurança - possibilitava que o mesmo, facilmente, com um mero salto ou apoio das patas, lhe pudesse molestar física e gravemente o corpo, o que sucedeu, 11. O arguido tinha, assim, capacidade e possibilidade de ter adotado comportamento adequado, e de que era capaz, a evitar o referido ataque e respetivas lesões graves causadas em I. 12. Bastaria, para tanto, ter tido o cuidado de não ter permitido a aproximação do ZURI à referida criança. 13. O arguido sabia que o ZURI era cruzado de raça potencialmente perigosa- PIT BULL- e admitiu como possível que nas referidas condições pudesse ofender gravemente a saúde e a integridade física da daquela, porém, confiou que tal nunca viria a suceder, 14. O arguido sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 15. O arguido já foi condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física. 16. C vive com a companheira e com o filho desta, fruto de outro relacionamento. 17. Trabalhou por conta de outrem, na área da construção civil, sem vínculo contratual e sem remuneração fixa. Foi-lhe proposto emprego na empresa J, a iniciar no mês de agosto de 2023 sendo o valor dos rendimentos líquidos do arguido(a) de € 500,00 e do agregado de € 1000,00 tendo como despesas/encargos fixos € 830,00, sendo € 230,00 de habitação (água, luz, gaz e comunicações), Amortização com empréstimos bancários € 600,00 (crédito à habitação) 18. A subsistência familiar é assegurada pelo arguido e pela companheira, existindo uma gestão financeira ajustada aos rendimentos que auferem, perspetivando melhorias com o novo emprego (€ 1200,00 líquidos). 19. O arguido dedica o seu tempo livre a atividades inerentes a mecânica automóvel. 20. C encontra-se integrado na comunidade, em termos familiares, sociais e profissionais e reconhece as condutas, assumindo uma postura de culpabilização e de reconhecimento dos danos causados, já tendo frequentado formação de detentores de cães potencialmente perigosos. Fundamentação: Para a formação da convicção do Tribunal foi essencial a conjugação e análise crítica de toda a prova, designadamente, a confissão parcial/com reservas do arguido conjugada com a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e prova pericial e documental constante dos autos, designadamente, Relatórios do INML de avaliação de dano corporal, de fls. 17 e 18, 20 e 21; Auto de denúncia de fls. 3 e verso;- fotos da criança I, com ferimentos, a fls. 35 e verso;- Relatório do gabinete médico-veterinário com documentação associada ao canídeo de fls .46 a 54; Print de assento de nascimento da menor I e depoimentos de:1. A, id a fls. 29; e 2. S, Médica Veterinária, id a fls. 47. Com efeito, o arguido admitiu que o seu canídeo, que estava sem açaime, provocou as lesões descritas à criança com as patas, saltando sobre ela, tendo - só nesse momento - puxado o mesmo com a trela, nas circunstâncias de tempo e lugar elencadas, só não admitindo os elementos atinentes ao tipo subjectivo. Já do depoimento do pai da criança decorrem os factos não admitidos pelo arguido, pois este num relato consistente e credível revelou a dinâmica que consta da acusação. A médica veterinária pronunciou-se sobre as características do canídeo, que apontam para a raça (perigosa) mencionada. Assim, da conjugação de todos os elementos probatórios não soçobra dúvida, que possa reputar-se razoável, quanto ao cometimento pelo arguido dos factos descritos na acusação e para a violação do dever de cuidado. De mencionar ainda o relatório da DGRSP quanto à situação socioeconómica do arguido e o CRC no que diz respeito aos antecedentes.” * Apreciando - Questão prévia. Com a motivação do recurso, o arguido junta dois documentos. Ora, nos termos do disposto no artigo 165º, nº1, do CPP “o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou de instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”. A junção de documentos apenas pode, pois, ser feita até ao final da audiência de julgamento e apenas se antes não tiver sido possível, isto é, enquanto decorre a fase de investigação e julgamento e não em qualquer fase de recurso (cfr. Ac. do STJ de 30/10/2001, Proc. 1645/01, in M.MGonçalves, CPP Anot. Pág.392). Assim, os documentos ora juntos em sede de recurso com a motivação para instruir este, são extemporaneamente apresentados. Pelo exposto, não se admite a junção dos documentos apresentados com a motivação do recurso pelo arguido, ordenando-se o seu oportuno desentranhamento e devolução ao apresentante. * Quanto às invocadas: - não verificação dos elementos caracterizadores do tipo legal de ilícito; - existência ou não de ilicitude e/ou culpa do Arguido; - existência de causas de exclusão de culpa do Arguido. O arguido mostra-se condenado pela prática de um crime p e p. pelo artigo 33º do DL 315/2009, de 29.10. Diz-se no preâmbulo do DL n.º 315/2009: «Pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos [referindo-se à legislação anterior] legais [conclui-se, no entanto, que a punição como contra-ordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime. A convicção de que a perigosidade canina, mais que aquela que seja eventualmente inerente à sua raça ou cruzamento de raças, se prende com factores muitas vezes relacionados com o tipo de treino que lhes é ministrado e com a ausência de socialização a que os mesmos são sujeitos leva a que se legisle no sentido de que a estes animais sejam proporcionados os meios de alojamento e maneio adequados, de forma a evitar-se, tanto quanto possível, a ocorrência de situações de perigo não desejáveis. Para além disso, é necessário estabelecer obrigações acrescidas para os detentores de animais de companhia perigosos ou potencialmente perigosos, entre as quais se destacam a exigência de que reprodução ou criação de quaisquer cães potencialmente perigosos das raças fixadas em portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas se faça de forma controlada, em locais devidamente autorizados para o efeito, com requisitos especiais quer no alojamento dos animais quer no registo dos seus nascimentos e transacções.» O artigo 3.º do referido DL n.º 315/2009 contém as definições de animal de companhia, animal perigoso e animal potencialmente perigoso, definindo como potencialmente perigoso qualquer animal que devido às caraterísticas da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência da mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente, os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas por portaria. Houve preocupação do legislador, em abranger não só as “raças puras”, que pelas suas caraterísticas representam um maior perigo para os humanos, como também os cruzamentos com outras raças, mas em que se tenha obtido uma tipologia semelhante às raças puras. Tal portaria, foi publicada em 2004 – Portaria n.º 422/2004 de 24 de abril – tendo-se declarado como raças potencialmente perigosas, as seguintes: I) Cão de fila brasileiro; II) Dogue argentino; III) Pit bull terrier; IV) Rottweiller; V) Staffordshire terrier americano; VI) Staffordshire bull terrier; VII) Tosa inu. O legislador pretendeu assim, através do diploma em apreço, aumentar a proteção jurídica relativamente às ofensas à integridade física causadas por animais. Ora, nos termos do disposto no artigo 33º do DL 315/2009, de 29.10, que tem como epígrafe “Ofensas à integridade física negligentes”, quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. Por sua vez o art. 15.º do Código Penal estabelece uma distinção entre a negligência consciente e a negligência inconsciente. Na primeira modalidade, o agente representa a realização do facto, mas confia que este não acontecerá – art. 15.º, al. a); já na segunda modalidade o agente nem representa a realização do facto – art. 15.º, al. b). No entanto, é no proémio unitário do artigo citado que encontramos o tipo de ilícito (a violação do cuidado objetivamente devido) e o tipo de culpa (a violação do cuidado que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar). Estamos, portanto, perante uma imputação a título de negligência. Nas palavras de Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal”, Parte General, Ed. Comares, Granada, 1993, p. 511 e ss., “a negligência (...) é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa. A negligência determina-se, no fundo, segundo um duplo critério: a) de um lado, examina-se que comportamento seria objetivamente devido para evitar violação involuntária de um bem jurídico perante uma dada e concreta situação de perigo; b) e de outro lado, se tal comportamento poderá ser exigido pessoalmente àquele agente segundo as suas características e capacidades individuais”. Assim, o tipo de crime negligente é antes um tipo de crime que se divide em vários elementos: a) um agente; b) uma conduta, manifestada por ação ou omissão, sendo certo que o desvalor da ação ou da omissão nos crimes negligentes não é maior ou menor consoante o resultado típico se produza ou não, o que varia é o desvalor do resultado; c) a produção de um certo resultado típico, podendo os crimes negligentes serem de mera atividade ou de resultado, imputável objetivamente àquela conduta; d) a violação de um dever objetivo de cuidado - que constitui o elemento fundamental - a que estava obrigado; i. e., o desvalor da ação, impondo a ordem jurídica, mediante a verificação desta conjugação de elementos, o pronunciamento de um juízo de desvalor ético-social. Os crimes negligentes pressupõem, assim, a verificação, quanto ao tipo de ilícito, de: 1)- uma ação ou omissão da ação devida; 2)- uma violação do dever objetivo de cuidado [o dever de cuidado é limitado pelo princípio da confiança: ninguém terá, em princípio, de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem]; 3)- o resultado típico nos crimes negligentes de resultado (por ex., ofensa à integridade física ou morte); 4)- previsibilidade objetiva do resultado, incluindo o processo causal [um resultado será objetivamente previsível se for previsível para um homem sensato e prudente, colocado na situação do agente no momento da ação, de acordo com a experiência geral (juízo de adequação)]; 5)- imputação objetiva desse resultado à ação do sujeito. Importa, pois, analisar, o tipo de ilícito da negligência. Ao nível da ilicitude, a negligência traduz-se na não efetivação de um comportamento objetivamente devido ou na violação de um dever objetivo de cuidado. Roxin fala quanto a este aspeto da criação, pelo agente, de um perigo não permitido. No entanto, as duas formulações são equivalentes, pois sempre que o agente, com o seu comportamento, não tenha criado um perigo não permitido, também aí não será possível vislumbrar a violação de qualquer dever objetivo de cuidado. Em sede de tipo de ilícito, exige-se: - a violação de um dever objetivo de cuidado. - a produção de um resultado típico. - a previsibilidade do perigo: na negligência consciente deve haver a previsão da possibilidade de realização típica e a não conformação do agente em relação à sua realização, e na negligência inconsciente apenas se exige a possibilidade de conhecimento dessa realização. Ao nível do conteúdo da ilicitude dos crimes negligentes, o desvalor da ação traduz-se na já referida violação do dever objetivo de cuidado, traduzindo-se o desvalor do resultado na já aludida previsibilidade e produção do resultado, exigindo-se um nexo causal entre a conduta do agente e o resultado do crime e um nexo de tipo normativo entre a própria violação do dever de cuidado e o resultado. Seguindo de perto o Prof. Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 352/354), o tipo de ilícito do facto negligente “(...) considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente indesejada.” Para além disso “torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente.” Quando o tipo de ilícito negligente se encontra preenchido pela conduta, tem então sentido indagar se o dever de cuidado e previsão podia também ter sido cumprido pelo agente concreto, indagação que ultrapassa o nível do tipo de ilícito e situa-se no tipo de culpa do facto negligente. Por sua vez, quanto ao tipo de culpa, os crimes negligentes exigem a verificação da censurabilidade da ação objetivamente violadora do dever de cuidado, sendo necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado e prever o resultado típico e o processo causal, nos crimes de resultado [a previsibilidade individual está excluída na negligência inconsciente; na negligência consciente o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime]. A omissão do dever objetivo de cuidado consiste em o agente não ter usado da diligência exigida, que é requerida na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa. No caso, resultou provado que: “1. O arguido é proprietário de um canídeo de nome “Zuri”, nascido a 11-3-2021, com o microchip 620098500226363, apresentando características morfológicas com a raça pitbull terrier, sendo resultado de um cruzamento de uma raça indefinida com aquela raça, 2. No dia 10-7-2022, pelas 13h30, no Açude da Pedra, na cidade de Tomar, o arguido circulava ali, apeado, com o referido “ZURI”, agarrado por uma trela, sem açaime, sem seguro de responsabilidade civil e sem licença emitida pela Junta de Freguesia, 3. Nessa altura, o arguido e o referido canídeo aproximaram-se de A e da filha deste, I, nascida a 12-1-2018, 4. Nessa altura, C cumprimentou A, altura em que o canídeo rosnou, 5. Donde, A avisou o arguido de que deveria ter cuidado, pedindo que afastasse o canídeo da referida criança, 6. O que aquele não fez, 7. Donde, de forma brusca, o canídeo saltou para cima do corpo de I, cravando as suas unhas na face daquela, 8. Com o que lhe causou dor e mal-estar físico, bem como provocou, naquela criança, as seguintes lesões: a. - ferida de 2 cm na hemifacial direita, infra orbitária; b. - ferida da extremidade nasal com cerca de 2 cm, ferida da região malar esquerda, com retalho cutâneo e perda de substância, com cerca de 7 cm, tendo sido alvo de procedimento no bloco operatório (sutura reconstrutiva e aplicação de pomada com clorafenico), c. - complexo cicatricial rosado, com vestígios de pontos, interessando a metade inferior da região periorbitária esquerda, estendendo-se parcialmente na vertente lateral esquerda do nariz, medindo 4cmx1,8 cm, sendo visível à distância social e bem visível à distância mínima, d. Que foram causa direta e necessária, para 15 dias de afetação da capacidade para a capacidade de trabalho geral e atividades escolares, com desfiguração permanente na zona da face, 9. O arguido atuou com falta de cuidado, violando deveres de precaução e cautela. 10. O arguido sabia que ao permitir que o referido animal se aproximasse daquela criança, sem açaime e sem guardar uma distância mínima de segurança- possibilitava que o mesmo, facilmente, com um mero salto ou apoio das patas, lhe pudesse molestar física e gravemente o corpo, o que sucedeu, 11. O arguido tinha, assim, capacidade e possibilidade de ter adotado comportamento adequado, e de que era capaz, a evitar o referido ataque e respetivas lesões graves causadas em I, 12. Bastaria, para tanto, ter tido o cuidado de não ter permitido a aproximação do ZURI à referida criança, 13. O arguido sabia que o ZURI era cruzado de raça potencialmente perigosa- PIT BULL- e admitiu como possível que nas referidas condições pudesse ofender gravemente a saúde e a integridade física da daquela, porém, confiou que tal nunca viria a suceder, 14. O arguido sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.” Ora, resulta inquestionável que o comportamento imputado ao arguido na acusação e dado como provado constitui conduta negligente, por ter incorrido em violação do dever de cuidado que sobre si impendia de vigiar o seu animal de raça canina, adequado à produção do resultado que, em concreto, consistiu em ofensa à integridade física (simples) (em sintonia com o artigo 10.º, n.º 2, do Código Penal) e decorrente do dever especial de vigilância do detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso (por referência ao elenco definido no Anexo à Portaria n.º 422/2004, de 24/04, dado tratar-se de um pitt bull terrier), imposto, em geral, pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, que estabelece como dever especial de vigilância: «O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado ao dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais”. Manifestamente, sobre o arguido, como proprietário e detentor do animal, recaía a obrigação jurídica de controlar aquela fonte de perigo sobre a qual tinha a disponibilidade fáctica de forma a evitar a lesão de bens alheios. Na verdade, tal dever - que impende sobre todos os detentores de animais de companhia - decorre do que se dispõe o art. 6º do Dec. Lei 276/2001, de 17 de outubro, na sua actual redação, epigrafado de “Dever especial de cuidado do detentor”, segundo o qual: “Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais.” Pois que o proprietário de um animal, para além de poder ser considerado como utilizador do mesmo no seu próprio interesse, pode também ser considerado como a pessoa encarregue da sua vigilância, o que não quebra a imputação direta ao obrigado à vigilância da responsabilidade advinda do vigiado (art. 493º, nº 1 do Código Civil) – vide o Ac. do STJ de 23.04.2009, P. 7/09.2YFLSB (Oliveira de Vasconcelos), consultável em www.dgsi.pt Quanto à culpa, o juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e de observar o dever de cuidado e de prever o resultado e concreto processo causal. Esta capacidade é apreciada subjetivamente, isto é, em função das qualidades que ao agente assistam. Quanto a este propósito o arguido mostrou ter capacidade individual equivalente ao de um homem médio, pelo que pôde apreender as consequências decorrentes da omissão do seu dever de vigilância para com o animal e para a idoneidade deste último para produzir danos e lesões em pessoas e animais como aquela a que deu causa, por sua responsabilidade, ao não garantir a sua efetiva contensão, com as consequências daí advindas para a ofendida. Razão pela qual não se faz prova em como não haja culpa da parte do arguido (artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil), antes pelo contrário, fica demonstrada a violação do dever de vigilância e prudência na detenção daquele animal, sem que lhe assistam causas de exclusão da culpa ou da ilicitude. Com efeito, face aos factos provados, inexistem dúvidas quanto à prática pelo arguido do crime que lhe foi imputado, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. Donde, sem necessidade de maiores considerações, resta concluir que não merece censura a responsabilização criminal do arguido pela prática do crime por que vinha acusado e pelo qual foi condenado pelo tribunal recorrido.
- Da taxa diária da multa Nos termos do n.º 2 do artigo 47º do Código Penal, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5 e €500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. Conforme se salientou no douto Ac. do STJ de 2-10-1997 (Col. de Jur., Ano V, tomo 3, págs. 183-184) “como a multa é uma pena, o montante diário da mesma deve ser fixado em termos de tal sanção representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade de impunidade”. Também o Prof. Taipa de Carvalho assinala em termos incisivos que “a multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é e por outras palavras, não pode o condenado a multa deixar de a ‘sentir na pele’ (As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995, in Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, ed. do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, vol II, pág. 24) e já antes o Prof. Figueiredo Dias, salientara que “é indispensável (…), que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que não se tem coragem de proferir” (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 119, §123). O quantitativo diário da multa, pela sua função de pena, deve transmitir a noção de censura social do comportamento do delinquente. A dignificação da multa, seja como pena principal, seja como pena de substituição, constituindo um claro propósito político-criminal, exige que a mesma tenha efetivo conteúdo sancionatório, sem o que não poderá realizar as finalidades que lhe competem de proteção de bens jurídicos e de prevenção especial. Para esse efeito, importa que o montante da multa seja fixado de forma a ser sentido como pena, constituindo, por isso, um sacrifício real para o condenado. Por isso, o montante diário da pena de multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado, por forma a fazê-lo sentir esse juízo de censura e bem assim assegurar a função preventiva que qualquer pena envolve, sem que, todavia, deixe de assegurar ao condenado um mínimo de rendimento para que possa fazer face às suas despesas e do seu agregado familiar. Mas também neste domínio há que ter o sentido das proporções, impondo-se critérios de razoabilidade e de exigibilidade. Em relação ao quantitativo diário da multa, com limites entre os 5€ e os €500/dia (art.47, nº2, do Código Penal), o tribunal recorrido fixou-o em €7/dia. Quanto à situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, resulta da factualidade apurada que: “17. Trabalhou por conta de outrem, na área da construção civil, sem vínculo contratual e sem remuneração fixa. Foi-lhe proposto emprego na empresa Jotant Construções, a iniciar no mês de agosto de 2023 sendo o valor dos rendimentos líquidos do arguido(a) de € 500,00 e do agregado de € 1000,00 tendo como despesas/encargos fixos € 830,00, sendo € 230,00 de habitação (água, luz, gaz e comunicações), Amortização com empréstimos bancários € 600,00 (crédito à habitação) 18.A subsistência familiar é assegurada pelo arguido e pela companheira, existindo uma gestão financeira ajustada aos rendimentos que auferem, perspetivando melhorias com o novo emprego (€ 1200,00 líquidos).” O arguido tem, assim, uma situação económica modesta, o que não foi ignorada pelo tribunal recorrido ao fixar o quantitativo diário da multa em apenas 2€ diários acima do mínimo legal. Termos em que improcede o recurso também neste particular. * - Da invocada “falta de fundamentação/rigor na determinação/avaliação do dano físico provocado e lesões permanentes existentes à data de hoje, por forma a justificar o valor a título de indemnização oficiosa determinada, que se considera excessiva.” Dispõe o nº1 do art. 82º-A do Código de Processo Penal, que versa sobre a reparação da vítima em casos especiais, que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham. Decorre, ainda, do n.º 2 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal que no arbitramento da indemnização que nos ocupa é assegurado o respeito pelo contraditório. Ou seja, deverá ser comunicada ao arguido a possibilidade de, em caso de condenação, ser arbitrada à vítima quantia a título de reparação pelos prejuízos que suportou. E isto porque só mediante tal comunicação poderá o arguido, em tempo útil, organizar a sua defesa, também nessa perspetiva, por forma a não ser confrontado com a surpresa de uma condenação cível não pedida pela vítima. A este propósito, no “Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2.ª Edição, páginas 256 e 256, referem António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira, António Pires Henriques da Graça, em anotação ao artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, que «o arbitramento da indemnização deve respeitar o contraditório; para tanto o tribunal comunica ao arguido a necessidade de atribuição oficiosa da reparação, dando-lhe a oportunidade de se pronunciar sobre os fundamentos e o montante; (…)». No mesmo sentido, diz Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 3.ª Edição, página 232, em anotação ao artigo 82.º-A que «em nenhuma circunstância, o tribunal pode proceder ao arbitramento oficioso de indemnização sem antes ouvir o responsável civil especificamente sobre os alegados prejuízos e o nexo de imputação desses prejuízos à sua conduta. O respeito pelo contraditório não fica satisfeito pela circunstância de o responsável civil ter sido notificado da acusação e de os prejuízos se encontrarem descritos na acusação. Ele tem direito a pronunciar-se sobre a responsabilidade que lhe é atribuída e a fazer prova das suas alegações, razão pela qual deve ser notificado para esse efeito, antes ou durante a audiência de julgamento.» Da análise dos autos não decorre que o arguido, ora recorrente, tenha neles sido advertido da possibilidade de, em caso de condenação, ser arbitrada à vítima quantia a título de reparação pelos danos que suportou. Por assim ter sido, necessariamente também não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, o que configura uma irregularidade. E, quando na génese da irregularidade está uma omissão, pode ordenar-se a reparação oficiosa desse vício quando o ato omitido, podendo ainda ser praticado, afete o valor dos atos subsequentes. Ora é o que precisamente acontece nos presentes autos. A omissão da comunicação ao arguido da possibilidade de arbitramento de indemnização traduz uma intolerável compressão do direito de defesa – direito ao contraditório – e constitui irregularidade, de conhecimento oficioso, e que exige reparação – através da declaração de invalidade da sentença relativa à condenação em indemnização, que deverá ser repetido depois de concedido o contraditório com a possibilidade de requerer a produção de prova em audiência com relevância para a fixação dessa indemnização. O que traduz circunstância que obsta ao conhecimento do recurso nessa parte. * Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: - declarar inválida a sentença na parte em que condenou o arguido no pagamento da indemnização e ordenar a sua substituição por outra, após se conceder ao arguido o direito ao contraditório, nos termos supra indicados; - no mais manter a sentença recorrida julgando improcedente o recurso. - Sem custas. * Elaborado e revisto pela primeira signatária Évora, 8 de outubro de 2024 Laura Goulart Maurício Carla Francisco Artur Vargues |