Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
335/18.6T9SSB.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: LENOCÍNIO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA RELEVANTE
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A alteração não substancial dos factos, na qual se inclui a alteração da qualificação jurídica, nos termos estabelecidos pelo artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, terá de ser jurídico penalmente relevante, o que pode ocorrer se tiver reflexos ao nível da tipicidade, se for distinto o juízo de valoração social ou se puder influir na determinação da pena aplicar
II - Encontrando-se os arguidos acusados pela prática de um crime de lenocínio na forma continuada, nos termos previstos no artigo 30º, nº 2 do CP, a sua condenação, pelos mesmos factos, mas qualificados como um único crime de lenocínio de “trato sucessivo”, consubstanciou uma alteração da qualificação jurídica processualmente relevante e determinante do cumprimento do regime previsto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP. Tendo sido incumprida tal norma, a sentença recorrida enferma do vício de nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.

III - Não é inconstitucional o crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, nos termos consignados no acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2021, de 27 de janeiro, que decidiu não julgar inconstitucional a norma incriminatória, reiterando o entendimento segundo o qual “[d]ecidir se o risco implicado para a autonomia do agente que se prostitui deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui, é […] uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador”.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular coletivo que correm termos no Juízo de Competência Genérica de … - J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 335/18.6T9SSB, foram os arguidos AA, filho de BB e de CC, natural de ..., ..., nascido em .../.../1960, divorciado, comerciante, domicílio: Rua ... Quinta ... e DD, filha de EE e de FF, natural do ..., nascida em .../.../1967, divorciada, ..., domicílio: Rua ... Quinta ..., condenados nos seguintes termos:

- AA, pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres/regras de conduta:

i) Obrigação de entregar à APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia total de € 5.000,00 (cinco mil euros) durante o período de suspensão, devendo entregar e comprovar nos autos:

- Durante o primeiro ano de suspensão da execução da pena de prisão, quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

- Durante o segundo ano de suspensão da execução da pena de prisão, quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

- Durante o terceiro ano de suspensão de execução da pena de prisão, quantia de € 2.000,00 (dois mil euros).

ii) Proibição de frequentar o ... ou qualquer outro espaço associado ao tipo de atividade aqui em apreço (prostituição).

- DD, pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres / regras de conduta:

i) Obrigação de entregar à APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia total de € 3.000,00 (três mil euros) durante o período de suspensão, devendo entregar e comprovar nos autos:

- Durante o primeiro ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros);

- Durante o segundo ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros);

- Durante o terceiro ano de suspensão de execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros).

ii) Proibição de frequentar o ... ou qualquer outro espaço associado ao tipo de atividade aqui em apreço (prostituição).

*

Inconformados com tal decisão, vieram os arguidos interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1º. O Tribunal Recorrido entendeu aderir, por decalque, à acusação, por um lado, alicerçando a sua convicção em elementos que não são prova e, como tal, proibidos de serem valorados (como sejam os relatórios intercalares de polícia e relatório final), em prova de ouvir dizer em relação ao principal investigador, e por outro lado, ignorando toda a prova produzida, mesmo a da acusação que de forma esmagadora arredou por completo a participação dos Arguidos Recorrentes nos factos imputados.

2º. Este processo foi construído desde o seu início com o determinado fim visado – associar os Arguidos Recorrentes à participação dos factos de lenocínio, num processo de intenções, o qual partiu de um processo crime anterior contra os Recorrentes pelo qual estes foram condenados (ainda que tenham sido inicialmente absolvidos numa decisão corajosa de inconstitucionalidade material da norma que criminaliza o crime de lenocínio).

3º. A decisão recorrida padece de graves vícios, não apenas de valoração de prova proibida, como de vícios de revista alargada, concretamente, manifesto erro notório na apreciação da prova.

4º. De igual forma o Tribunal a quo aplica mal o Direito aos factos provados, pois tal como se explicou em sede de alegações finais, ainda que a presente factualidade lograsse ser toda provada, ainda assim, nunca os Recorrentes podiam ser condenados pelo crime de lenocínio.

5º. Os Arguidos Recorrentes foram acusados pelo Mº.Pº. imputando-lhes os factos descritos na acusação deduzida, considerando que os mesmos incorreram, cada um deles, em co-autoria material e na forma consumada e continuada, na prática de um crime de lenocínio, previsto e punido pelos artigos 169.º, n.º 1 e 30.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

6º. A sentença recorrida, afastando a pretendida qualificação de crime continuado, considerou que no caso concreto, “tal instituto não é aplicável”, entendendo, “por conseguinte, que estamos perante um crime de trato sucessivo”, e “assim, o Tribunal condena os arguidos pela prática de um único crime de lenocínio”.

7º. Com efeito, no crime continuado, o elemento fundamental é a menor culpa do agente fundada numa menor exigibilidade.

8º. Tal alteração da qualificação jurídica imporia sempre, atentas as manifestas diferenças entre a figura do trato sucessivo e do crime continuado, uma evidente agravação da moldura aplicável, pois, em regra, a figura trato sucessivo impõe um progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta.

9º. Ora, estando-se perante uma alteração de qualificação jurídica, impunha-se a necessidade de comunicação nos termos do artº. 358º do C.P.P..

10º. Assim, cumpria ao Tribunal recorrido o dever de, sob pena de nulidade, comunicar a alteração aos arguidos e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, o que de todo não fez!

11º. Assim, desde já se requer a V. Exas. a declaração de nulidade da sentença recorrida nos termos do artº. 379º nº 1 al. b) do C.P.P., por violação do disposto nos artsº. 358º nº1 e 3 do C.P.P., atenta a falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica e a inerente decisão supressa.

12º. A manifesta falta de prova admissível por parte do Tribunal Recorrido foi tão avassaladora que em desespero e em socorro da tese do Mº.Pº. que pretendia a todo o custo condenar os Arguidos, teve necessidade de valorar prova que está vedada ao Tribunal.

13º. Em sede de motivação da decisão de facto, após um breve excurso em que o Tribunal a quo se refere a prova pericial inexistente nestes autos e que, como tal, só por lapso se pode compreender, consigna-se o seguinte:

“Feitas estas considerações, cumpre referir que o tribunal formou a sua convicção através da análise dos seguintes meios de prova:

Prova Documental

- Relatório de serviço datado de 12.06.2018, fls. 4, onde se refere que, no dia 12.06.2018, foi recebida uma chamada telefónica a relatar a existência de atividades ilícitas no estabelecimento de diversão noturna ...;

- Relatório de serviço datado de 11.06.2018, fls. 9 e 10, onde se refere que, no dia 10.06.2018, foi recebida uma chamada telefónica a relatar a existência de atividades ilícitas no estabelecimento de diversão noturna ...;

(…)

- Relatório intercalar datado de 15.10.2018, fls. 120 a 123; - Relatório intercalar datado de 24.10.2018, fls. 135 a 142;

(…)

- Relatório intercalar datado de 06.11.2018, fls. 206 e ss.; (…)

- Relatório intercalar datado de 19.11.2018, fls. 264 e ss.; - Relatório intercalar datado de 29.11.2018, fls. 289 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 12.12.2018, fls. 332 e ss.; (…)

- Relatório intercalar datado de 03.01.2019, fls. 431 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 16.01.2019, fls. 444 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 21.01.2019, fls. 489 e ss.; - Relatório intercalar datado de 27.01.2019, fls. 540 e ss.; - Relatório intercalar datado de 07.02.2019, fls. 565 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 20.02.2019, fls. 657 e ss.; (…)

- Relatório intercalar datado de 06.03.2019, fls. 728 e ss.; (…)

- Relatório intercalar datado de 19.03.2019, fls. 798 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 01.04.2019, fls. 848 e ss.; - Relatório intercalar datado de 15.04.2019, fls. 848 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 29.04.2019, fls. 941 a 944; - Relatório intercalar datado de 13.05.2019, fls. 989 a 1022;

(…)

- Relatório intercalar datado de 27.05.2019, fls. 1107 e 1108; - Relatório intercalar datado de 06.06.2019, fls. 1140 e ss.;

(…)

- Relatório Intercalar datado de 18.06.2019 (fls. 1559 e ss.); - Relatório final datado de 13.11.2019, fls. 1913 e ss.; (…)”

14º. Como decorre, com evidência, do regime de permissões dos artºs. 355º e 356º do C.P.P. uma expressa proibição de valoração da prova por referência aos princípios da imediação (aqui excepcionado) e publicidade, próprio das nulidades (tal como é sustentado pelos professores Costa Andrade e Germano Marques da Silva), mas que é especial ao catálogo das proibições previstas no do artº. 126º do C.P.P., seguindo ambas (as proibições aí previstas e as proibições que se encontram previstas dispersamente no processo penal, como são o caso dos artº.355º e 356º do C.P.P.) o regime das nulidades previstas neste último preceito, cuja “ratio” visa a integridade da convicção do julgador, que deve ser preservada e acautelada de meios de prova proibidos. A ofensa às proibições de prova determina a nulidade que é de conhecimento oficioso, embora baste o procedimento de não valorar as provas proibidas.

15º. De essencial, devemos reter que as normas de proibições de prova, à margem da discussão sobre se serão regras de direito material ou adjectivo, o que parece indiscutível é serem regras imperativas de cumprimento obrigatório pelos Tribunais, não podendo por isso ser valoradas essas provas proibidas.

16º. Ora, o Tribunal Recorrido decidiu, pasme-se, indicar como prova documental que valorou para sustentar a sua convicção, todos os relatórios de serviço, relatórios intercalares e relatório final de polícia!!!

17º. Os relatórios de serviço, os intercalares ou o relatório final de polícia não constituem prova documental na medida em que as declarações que esses relatórios consubstanciam não são idóneos a provar qualquer facto juridicamente relevante – alínea a) do artigo 255.º do Código Penal – uma vez que, na sua essência, essas declarações não traduzem em qualquer conhecimento directo dos factos que constituem o objecto do processo por parte de quem os elaborou.

18º. Julgava-se que este ensinamento pacífico na nossa jurisprudência e que está nos antípodas dos mais elementares princípios da valoração probatória em processo penal estivesse já perfeitamente adquirido na praxe do foro, contudo, para o Tribunal Recorrido assim não é, clamando por isso a necessária intervenção do Tribunal ad quem.

19º. Acresce que, tratando-se de peças escritas de natureza valorativa que, têm por base declarações dos arguidos e de testemunhas, informações policiais, convicções, ilações e presunções também elas policiais, interpretações de intercepções telefónicas, relatórios de vigilâncias e/ou diligências externas, alguma observação pessoal, e sobretudo conclusões sobre as circunstâncias em que a investigação se desenvolve, não podem servir para formar a convicção do tribunal de julgamento nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 355.º a 357.º todos do Código de Processo Penal.

20º. Já nos idos anos de 1995, ensinava o STJ que “o relatório final do agente da Polícia Judiciária instrutor do processo não pode ser considerado meio de prova e não deve ser indicado na fundamentação”.

21º. Embora tais ensinamentos não sejam perfilhados pelo Tribunal Recorrido, à míngua de prova para condenar os Arguidos, entendeu (mal) valorar informações de polícia, as quais não constituem provam, nem podem ser valoradas.

22º. Aliás, basta verificar que, por um lado, os ditos relatórios não foram, nem podiam, ser examinados em audiência por não constituírem prova válida e, como tal, não podem servir para formar a convicção do Tribunal recorrido e, por outro lado, tais relatórios foram também subscritos por militares da GNR que nem sequer foram ouvidos em audiência, o que invalidaria igualmente o respectivo contraditório.

23º. Esta prova proibida foi essencial para a decisão a que o Tribunal recorrido chegou, o que é bastante evidente em sede de fundamentação onde o a decisão recorrida (deliberadamente) nunca consigna a respectiva razão de ciência e apreende determinados factos tendo por base os referidos relatórios e informações de polícia – v.g., entre outros, a seguinte passagem: “em 17.11.2018, numa ação de fiscalização levada a cabo pela GNR juntamente com os serviços do SEF, a arguida encontrava-se no ... e identificou-se como colaboradora…”.

24º. Na sequência do elenco da prova documental considerada para a sua convicção o Tribunal Recorrido indicou ainda a seguinte: “- Autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 112 e ss.; 115 e ss.; 143 e ss.; 146; 148 e ss.; 223 e ss.; 251 e ss.; 254; 304 e ss.; 342 e ss.; 372 e ss.; 381 e ss.; 451 e ss.; 454 e ss.; 545 e ss.; 578 e ss.; 581 e ss.; 634 e ss.; 706 e ss.; 710 e ss.; 783 e ss.; 788 e ss.; 791 e ss.; 795 e ss.; 829 e ss.; 832 e ss.; 835 e ss.; 898; 902; 904 e ss.; 907 e ss.; 947 e ss.; 956 e ss.; 960 e ss.; 1049; 1053 e ss.; 1056; 1060; 1109 e ss.; 1369 e ss.”;

25º. Com o devido respeito, também neste segmento o Tribunal Recorrido andou mal, pois não podia ancorar a sua convicção em autos de intercepção de escutas telefónicas constantes do inquérito.

26º. O auto de intercepção telefónica documenta o acto do OPC, de quem procedeu à intercepção e gravação de um conjunto de comunicações que considera ter interesse para a investigação, através do qual sumaria e faz um conjunto de interpretações e deduções sobre tais conversações com vista a convencer o Mº.Pº. da necessidade de promover a respectiva transcrição – nº1 do artº. 188º do C.P.P..

27º. Nesse sentido e nos termos do referido artº. 188º do C.P.P., durante o inquérito o Juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações, só podendo valer como prova as conversações e comunicações que o Ministério Público mandar transcrever ao órgão de polícia criminal que tiver efectuado a intercepção e gravação e indicar tais conversações ou comunicações como meios de prova – cfr. nºs 7 e 9, alínea a) do art. 188º do C.P.P.

28º. Os requisitos são cumulativos e, portanto, as comunicações que o Ministério Público não mandar transcrever não podem valer como prova.

29º. As transcrições consubstanciam a prova obtida das referidas intercepções já sem quaisquer filtros do OPC e que são depois livremente valoráveis pelo Tribunal ao abrigo do disposto no artº. 127º do C.P.P.

30º. O que o Tribunal Recorrido não pode fazer é fundamentar a sua convicção em autos de polícia, por um lado, porque se desconhece se para todas as conversas aí interceptadas foi ordenada a sua transcrição e, por outro lado, porque o Tribunal a quo não pode também sustentar a sua convicção em interpretações, presunções e deduções policiais retiradas de conversas, ao invés de se basear nas referidas transcrições.

31º. O Tribunal Recorrido fundou a sua convicção, no que ao Recorrente diz respeito, entre outras, nos seguintes autos de transcrição das escutas telefónicas: - “Outrossim, foram analisados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas, designadamente os de fls. 304, 381, 454, 578, 657, 788 e 898 (…) – pág. 32/60”;

- “Outrossim, foram também positivamente valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas supra referidos (…) Destacam-se os autos de fls. 578, em que o arguido AA recebe uma chamada telefónica a propósito de uma obra que estaria a decorrer no ... para partir uma parede e fazer mais um quarto; o auto de fls. 788, que atesta que o arguido recebeu uma chamada telefónica cujo assunto foi a deslocação de três funcionários da Câmara Municipal ao ... para realização de uma fiscalização ao local – págs. 32 e 33/60;

- “Por outro lado, foram também valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 115, 146, 304, 342, 372, 451, 657, 710, 795, 947, 1049, 1109 e 1369 (...) – pág. 33/60;

- “Em análise ao auto de fls. 904 é também possível constatar que o arguido GG refere-se à arguida DD como CC e ao arguido AA como HH e identifica-os como proprietários / exploradores do …. Outrossim, resulta do auto de fls. 710 que a arguida discutiu os termos dos contratos de trabalho dos arguidos II e GG, enquanto trabalhadores do ...”.

32º. Ao formar a sua convicção com base nos referidos autos policiais de intercepção, pelos quais o OPC interpreta aquela que pensa ser o sentido de determinada comunicação, desconhecendo-se inclusivamente que trecho foi transcrito das respectivas sessões, cujas transcrições naquela data ainda nem sequer foram promovidas pelo Mº.Pº. e, consequentemente não foram autorizadas pelo Juiz de Instrução, o Tribunal Recorrido fundou a sua convicção num meio probatório que não pode servir como tal, que não é apto a servir como prova, que, do ponto de vista processual, penal e do ponto de vista probatório não existe.

33º. A nulidade resultante da violação de proibições de prova é insanável, a qual expressamente se invoca, por violação do disposto no artº. 188º, nº 7 e nº 9, alínea a), por força das disposições dos artºs. 125º, 126º, nº 3 e 190º, todos do C.P.P., e ainda do disposto no artº. 32º, nº 8 da C.R.P.

34º. Assim, devem V. Exas. declarar a nulidade da sentença recorrida, porque fundada em prova nula (a prova proibida que foi utilizada na fundamentação da decisão é também ela nula nos termos do artº. 122º, nº 1, do C.P.P.), quer pela valoração proibida de relatórios de serviço, relatórios intercalares e relatório final do OPC nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 355.º a 357.º todos do Código de Processo Penal, quer pela valoração igualmente proibida de autos de intercepção telefónica nos termos do artº. 188º, nº 7 e nº 9, alínea a), por força das disposições dos artºs. 125º, 126º, nº 3 e 190º, todos do C.P.P., e ainda do disposto no artº. 32º, nº 8 da C.R.P., ordenando a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.

35º. Em conformidade com disposto no nº 2 artigo 374º do Código de Processo Penal, a sentença tem de conter uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, aqui se incluindo não só a indicação, mas também o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

36º. Assim, o dever de fundamentação da decisão começa, e acaba, nos precisos termos que são impostos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. O tribunal tem o dever de indicar os factos que se provam e os que não se provam e a forma como alcançou a respectiva conclusão.

37º. Exige-se um exame, ou seja, uma observação atenciosa ou cuidada, efectuada de um modo crítico, isto é, sob um juízo de censura ou de “contraponto”. O exame crítico das provas há-de consistir por isso numa análise que permita uma perfeita compreensão da decisão pelos destinatários, aqui aferidos considerando um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas.

38º. Assim, haverá nulidade da sentença (artigo 379º nº 1, alínea a) Código de Processo Penal) sempre que, em consequência de uma omissão ou deficiência na análise crítica da prova, fique afectada a compreensão do processo lógico e racional que conduziu à decisão concreta em relação a cada facto provado e não provado.

39º. Ora, nos presentes autos, as testemunhas de acusação dividiram-se, no essencial, por um lado, entre as senhoras que alegadamente frequentavam o espaço praticando actos sexuais e, por outro lado, os alegados clientes de tais serviços.

40º. Compulsadas as súmulas dos vários depoimentos prestados pelas testemunhas, e não obstante a prova arrasadora que aí ressalta no que concerne à total ausência de participação nos factos pelos Arguidos Recorrentes, não se alcança quais os fundamentos que no entender do Tribunal Recorrido conferem credibilidade a determinadas provas e não a outras.

41º. Após a referida súmula dos depoimentos das senhoras que alegadamente frequentavam o espaço praticando actos sexuais, o Tribunal a quo consigna na decisão recorrida o seguinte:

“As testemunhas supra referidas prestaram depoimentos credíveis quando ao modo de funcionamento do ... e à atividade de prostituição aí exercida e respetivos moldes, pese embora algumas, no início dos seus depoimentos, tenham demonstrado algum constrangimento em descrever tal atividade. Quanto à identificação dos responsáveis pela exploração do bar, considerou-se que os depoimentos de JJ e KK foram credíveis quanto à intervenção do arguido LL e o depoimento de MM foi espontâneo e claro quanto à intervenção do arguido AA.”

42º. É consabido que na apreciação do depoimento das testemunhas atribui-se sobretudo relevância aos aspectos verbais, embora se possa também atribuir importância a uma série de circunstâncias na prestação do próprio depoimento, cabendo ao Tribunal fazer um juízo de valoração efectuado com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

43º. Porém, cabe ao Tribunal Recorrido ancorar os fundamentos da sua decisão na motivação e explicação racional em atribuir coerência, fiabilidade e espontaneidade a um determinado depoimento que pode não atribuir a outro.

44º. Ora, o segmento da motivação da convicção do tribunal acima transcrito não permite sequer identificar os alicerces probatórios e o raciocínio que conduziram à decisão sobre os factos provados. Assim como impossibilita a apresentação dos argumentos de defesa e o controlo sobre a fundamentação factual e lógica da decisão, imprescindível na apreciação da impugnação da decisão em matéria de facto.

45º. É que, bem vistas as coisas, aparentemente, segundo o trecho citado da decisão recorrida, todos os depoimentos parecem ter sido credíveis, mas, no entanto, o julgador acabou por atribuir relevâncias diferentes e até cindíveis entre si sem que explique por que razão o faz.

46º. Na decisão sobre a matéria de facto, para além da indicação do que se considera provado e não provado, exigia-se que o Tribunal Recorrido explicasse o seu processo de formação da convicção, procedendo quer à enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, quer dos motivos que sustentam determinada opção por um ou outro dos meios de prova, quer dos fundamentos da credibilidade reconhecida às declarações e depoimentos e do valor dos documentos e exames, ou seja, de tudo o que o julgador privilegiou na formação da sua convicção.

47º. Sobretudo quando a prova testemunhal produzida aponta de forma clara num sentido e o Tribunal Recorrido prefere ancorar a sua convicção num único depoimento, o qual interpreta em sentido oposto (que, como veremos em sede de impugnação da matéria de facto, tal interpretação não é sequer admissível). Neste caso, impunha-se ao Tribunal a quo que apreciasse a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade a determinada versão em detrimento da unanimidade das restantes versões, permitindo aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.

48º. Já quanto aos alegados clientes que frequentavam o espaço e que foram também ouvidos como testemunhas, o vício de erro notório é igualmente evidente.

49º. Neste conspecto, diferentemente da súmula dos depoimentos em relação às alegadas senhoras que praticariam prostituição, em relação aos clientes o Tribunal Recorrido bastou-se com uma mera descrição em “traços gerais”, a qual peca por ser bastante reduzida e muitíssimo imprecisa.

50º. Todavia, para o que aqui releva, o que faz a decisão recorrida tornar-se incompreensível é o seguinte: após consignar-se na referida decisão que a esmagadora e arrasadora maioria das testemunhas que prestaram o seu depoimento esclareceram que os Arguidos Recorrentes nada têm que ver com a exploração do …, o Tribunal a quo remata com “nesta parte, os depoimentos destas testemunhas não mereceram a credibilidade do Tribunal”.

51º. Não obstante, o Tribunal Recorrido para sustentar a factualidade provada e bem assim a condenação dos Arguidos Recorrentes vem a consignar na decisão recorrida que “Em sentido diverso, a testemunha NN, de modo credível, isento e circunstanciado, referiu que conhece os arguidos AA e DD do ...; frequentou o … cerca de 3 ou 4 vezes, até à data em que foi inquirido na GNR; conhece estes arguidos por serem os “proprietários da casa” (sic), pois costumava falar com eles ao balcão.”.

52º. E nesta questão, na sequência do que se vem expondo, se é certo que os Recorrentes não podem sindicar a convicção do Tribunal Recorrido, mesmo que esta vá em manifesta contra-corrente, já podem e devem sindicar o processo de convicção quando o mesmo não é motivado e minimamente racional.

53º. É que “traduzindo por miúdos” a decisão do Tribunal Recorrido chega-se mais ou menos a esta conclusão: em relação a todas as testemunhas que, com excepção de uma, disseram que os Arguidos Recorrentes nada têm que ver com a exploração do …, eu, enquanto julgador não acredito; já em relação à única testemunha que, alegadamente (veremos em sede de impugnação de matéria de facto que também não foi bem assim) implicou os Recorrentes, eu, enquanto julgador, acredito porque me mereceu credibilidade.

54º. Ora, o que se exigia ao Tribunal a quo era que explicasse de forma fundamentada por que razão atribuiu credibilidade e isenção a determinado depoimento em detrimento de todos os demais!

55º. É que no caso concreto, como já se disse, tal fundamentação assume particular acuidade pois, bem vistas coisas, há um sentido praticamente unanime e coincidente em todas as testemunhas ouvidas mas o Tribunal Recorrido escolhe um outro sentido, ancorado numa única testemunha postergando todas as outras.

56º. Sabemos que os depoimentos não se somam mas que se pesam, porém, não deixa se ser impressivo que o Tribunal Recorrido rejeite a quase totalidade dos mesmos em detrimento de um único, e aquilo que em sede de vício de erro notório é sindicável é tão-somente a ausência de justificação dessa opção.

57º. Não basta ao Tribunal a quo dizer que determinado depoimento se mostra credível e isento e os restantes não. Tem, ainda que de forma sumária, explicar a razão pela qual assim os reputou, sob pena de total discricionariedade, o que é inadmissível e é fulminado com o vício de erro notório na apreciação da prova.

58º. No que concerne à impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3 alínea a) do Código de Processo Penal, quanto aos pontos de facto que os Recorrentes consideram incorrectamente julgados pelo Tribunal Recorrido, importa desde logo destacar a seguinte factualidade identificada a negrito e em sublinhado segundo a numeração seguida na sentença recorrida:

“1) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, os arguidos AA e DD, com o auxílio dos arguidos LL, II e OO, exploram o estabelecimento comercial denominado “...”, sito na Rua ..., na Quinta ...; pelo menos desde maio de 2018 e pelo menos até ao dia 18 de março de 2019, o arguido GG auxiliou na exploração do referido bar.

(…)

4) Face a tal condenação, os arguidos DD e AA, no âmbito de um acordo alcançado entre eles e o arguido LL, passaram a dirigir a atividade do “...” também através do arguido LL, sendo que este último passou a constar como responsável pela exploração do ... e do estabelecimento de “alojamento local” sito no piso superior do aludido … nos registos que foram efetuados na “Plataforma Digital”, com os números de registo “E/...18” datado de 17- 08-2018 e “E/.../...18” datado de 21-08-2018.

5) No entanto, apesar de o arguido LL figurar como explorador dos aludidos estabelecimentos, eram os arguidos DD e AA que, efetivamente, pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, continuavam a angariar as mulheres para trabalhar no “...” e explicar às mesmas o funcionamento do bar, bem como a receber o dinheiro entregue pelas mulheres que ali desenvolviam a atividade de prostituição.

7) Para controlar a atividade de prostituição desenvolvida no aludido …, os arguidos DD e AA, para além de beneficiarem do auxílio dos arguidos LL, II, OO e GG, utilizavam os seus telemóveis e cartões telefónicos para, não apenas, contactar com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, como trocavam mensagens e efetuavam contactos telefónicos com as várias mulheres que ali exerciam ou pretendiam vir a exercer a atividade de prostituição, explicando as condições e informando se existia ou não vaga no estabelecimento, para além de, em diversas ocasiões, ali se deslocarem pessoalmente, com vista a controlar “in loco” a atividade do … e dos quartos sitos nos andares superiores do edifício.

8) O arguido AA utilizava os cartões telefónicos com os números … contactando com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, nomeadamente, no período compreendido entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

9) Quanto à arguida DD, esta utilizava, entre outros, os cartões telefónicos com os números … e … para trocar mensagens e efetuar contactos telefónicos com as várias mulheres e com os demais arguidos, angariando as mulheres para trabalhar no “...”, explicando as condições e informando se existia ou não vaga, o que fez, nomeadamente, entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

(…)

12) O arguido GG utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e LL, acerca do funcionamento do …, no período atrás referido.

13) O arguido II utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e LL, acerca do funcionamento do …, no período atrás referido.

14) O arguido OO utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e LL, acerca do funcionamento do …, no período atrás referido.”

59º. Esta factualidade considerada assente na sentença recorrida não tem suporte na prova produzida em audiência, que o Tribunal a quo – na fundamentação da sua decisão – reputou determinante para a formação da sua convicção condenatória.

60º. Uma vez que toda a factualidade transcrita assenta na convicção de que eram os aqui Recorrentes quem exploravam/geriam de facto o estabelecimento comercial ..., a sua impugnação é efectuada de forma unitária quanto a todos os factos, à excepção dos factos 7, 27 e 28 que tratam de uma questão diversa e que carece de impugnação autónoma.

61º. Os elementos de prova que nos termos do artigo 412.º, n.º 3 alínea b) do Código de Processo Penal permitem considerar os factos dados como provados incorrectamente julgados, e que impunham decisão diversa da recorrida, são os seguintes:

→Depoimento da testemunha PP, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início às 13:54:10 e fim 14:43:57, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha QQ, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha RR, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102150359_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim em 15:17:32, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha SS, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante à gravação 20211103100418_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim às 10:40:52, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha JJ, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante às gravações 20211103105532_3629957_2871817, com início às 10:55:33 e fim às 11:18:05, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha TT, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante às gravações 20211103135910_3629957_2871817, com início às 13:59:11e fim às 14:19:53, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha UU, ouvido na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante à gravação 20211103142309_3629957_2871817, com início às 14:23:11 e fim às 14:45:43, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha VV, ouvido na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103144713_3629957_2871817, com início às 14:47:14 e fim às 15:02:53, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha WW, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103150504_3629957_2871817, com início às 15:05:05 e fim às 15:35:37, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha NN, ouvida na sessão de julgamento do dia 15-11-2021, referente à gravação 20211115141526_3629957_2871817, com início às 14:15:26 e fim às 14:23:36, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha XX, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 10:09:46 e fim às 10:40:43, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha YY, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 14:16:16 e fim às 14:33:20, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha MM, ouvida na sessão de julgamento do dia 15-11-2021, respeitante à gravação 20211115101908_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim às 10:33:34, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento da testemunha ZZ, ouvida na sessão de julgamento do dia 07-12-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782 com início às 14:10:15 e fim às 14:24:02, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Depoimento do Arguido AA, ouvido na sessão de julgamento do dia 03-02-2022, referente à gravação 20220203155914_3629957_2871817, com início às 15:59:14 e fim às 16:05:21, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva;

→Informação da Câmara Municipal ... de fls. 41 e ss. – comunicação de instalação / modificação de estabelecimento –restauração e bebidas, com registo em 17.08.2018, referente à Rua ..., andar ..., Quinta ..., sendo requerente LL;

→Informação da Câmara Municipal ... de fls. 47 e ss. – comunicação de alojamento local, com registo em 21.08.2018, referente à Rua ..., ..., Quinta ..., sendo requerente de tal pedido LL;

→Contrato de arrendamento para habitação datado de 16.08.2018, onde consta como senhorio o arguido AA e como arrendatário o arguido LL, fls. 52 a 54;

→Documento comprovativo de alteração de atividade referente a LL, datado de 20.08.2018, fls. 56 a 58;

→Auto de busca e apreensão a fls. 1157 a 1162; →Fotogramas 617 e 688;

→Fls. 95 e 167 e 1190 dos autos.

62º. A decisão ora sob escrutínio carece de fundamentação, sendo que nela não se vislumbram quais as conclusões lógicas e aceitáveis à luz dos critérios do artigo 127.º do C.P.P. que determinaram a valoração selectiva de alguns dos depoimentos.

63º. Um desses depoimentos considerados credíveis é da testemunha PP, militar da GNR e que, tal como consta da decisão recorrida, relatou que “o … continuava a funcionar precisamente nos mesmos moldes em que funcionava no âmbito da acção de investigação anterior, na qual a testemunha também participou (que deu origem ao processo n.º…...)” e que “através das vigilâncias externas foi possível visualizar os arguidos AA e DD (conhecida por CC) a entrar e sair do … várias vezes(…)”.

64º. Sucede que, ao contrário do que ali se escreveu, a referida testemunha, militar PP, não participou das dezenas de vigilâncias externas que, aliás, constam da prova documental junta aos autos, mas apenas de UMA vigilância externa realizada em 20 de Outubro de 2018, a fls. 168 a 171, conforme resulta do seu depoimento, prestado em audiência de julgamento no dia 02-11-2021, que consta da gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início à 13:54:10 e fim às 14:43:57 e que se acha transcrito na presente motivação, nas passagens dos minutos 00:38:25 a 00:41:40,

65º. Ora, resulta limpidamente que, à excepção de duas situações perfeitamente autonomizadas (ocorridas em 20-10-2018 e 04-06-2019), a testemunha não participou de qualquer outra diligência investigatória, quer o sejam vigilâncias externas, intercepções telefónicas, autos de busca e apreensão, pelo que o seu conhecimento directo e efectivo dos factos só pode, afinal, escudar-se naquilo que observou naquelas duas diligências ( auto de vigilância externa de 20-10-2018 e auto de busca e apreensão de 04-06-2019).

66º. Tudo o mais resulta apenas e só do que ouviu dizer de outras pessoas, do conhecimento que tem do outro processo crime onde também participou nas diligências investigatórias, sendo que nada disso releva para prova da factualidade constante dos autos.

67º. Não podia o Tribunal a quo ter ancorado a factualidade provada neste depoimento, pois que tudo o que a testemunha disse se baseia tão só naquilo que ouviu dizer e no conhecimento que tinha da investigação criminal anteriormente efectuada, onde também se investigou este espaço e onde a mesma testemunha também participou.

68º. Resulta evidente a míngua da prova que, neste processo, existia contra os Recorrentes, seno que esta testemunha deixa-se contaminar pelo conhecimento indirecto que tem dos factos e acaba por prestar um depoimento absolutamente alicerçado nessa convicção que formou, contando um verdadeiro enredo de novela e fazendo conclusões e especulações à margem das provas concretas trazidas aos autos e nas quais participou.

69º. Ora, sendo este um depoimento indirecto, e fazendo apelo às regras de valoração da prova, ínsitas no artigo 127.º, com a excepção prevista no n.º 1 do artigo 129.º do C.P.P., não poderia este depoimento ser valorado como meio de prova e muito menos servir para alicerçar a convicção do tribunal de que os Recorrentes eram os exploradores do b... por violação do artº. 128º do C.P.P..

70º. Até porque, como a própria testemunha o confirma, existiam dois contratos outorgados para aquele espaço, um contrato de arrendamento respeitante ao ... e um contrato de cessão de exploração do ... andar, ambos em nome do Arguido LL.

71º. Do depoimento desta testemunha, militar da GNR, PP, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 0211102135408_3629957_2871817, com início em 13:54:10 e fim em 14:43:57, nas passagens dos minutos 00:22:06 e fim às 00:30:39, não só não resulta que os Recorrentes explorassem o ... na data dos factos, como, aliás, decorre dos contratos juntos a fls. 41 e ss e 52 a 54 dos autos, a que a própria testemunha teve acesso, que era o Arguido LL quem explorava/geria aquele estabelecimento comercial.

72º. Por outro lado, do depoimento da testemunha QQ, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, no depoimento aos minutos 00:14:59 a 00:16:03, e cujos segmentos do seus depoimento também se acham transcritos na motivação, resulta também que, apesar das inúmeras diligências que efectuou, tendo-se deslocado ao ... algumas vezes, apenas UMA VEZ “viu os arguidos AA e DD a chegar com sacos, entrarem no … e dirigirem-se para uma porta com um sinal de sentido proibido ou stop.”.

73º. Contudo, a mesma testemunha acaba por referir, ao minuto 00:10:05 a 00:10:46, que não sabe o que transportavam aqueles sacos, mas levanta a possibilidade de se tratarem de bens alimentares.

74º. E fá-lo porque, tal como confirmaram várias testemunhas que prestaram depoimento nos autos e que trabalharam naquele espaço, os Recorrentes tinham um estabelecimento comercial, N..., onde serviam refeições, sendo que, numas situações, essas mesmas testemunhas se deslocavam lá para almoçar ou jantar e, noutras, eram os Recorrentes quem lhes entregavam a comida no ... (que era muito próximo do N...).

75º. Significando desde logo que os Recorrentes se dirigiam ao ... e, como tal, aí poderiam ser vistos, mas para levar comida da exploração da sua verdadeira e única actividade que era a restauração do N....

76º. Aliás, para algumas destas testemunhas, o único conhecimento que têm dos Recorrentes, advém precisamente desta situação. Tal como refere a testemunha TT cujo depoimento se acha transcrito em sede de motivação e que confirma que “conhece a arguida DD por ir ao ... vender comida ocasionalmente (…)”

77º. Também a testemunha VV, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103144713_3629957_2871817, com início às 15:47:14 a 15:02:53, ao minuto 00:00:40 a 00:00:49, declarou que “conhece os arguidos AA e DD por terem um café/restaurante perto do ..., local onde costumava ir jantar”, conforme resulta do seu depoimento que se acha transcrito na motivação.

78º. Em tudo o mais relatado pelo militar QQ, ouvido na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, resulta, afinal, de que o seu conhecimento advém do que ouviu dizer de uma senhora chamada AAA, que o abordou no ..., numa das diligências em que lá se deslocou.

79º. Contudo, a testemunha QQ, que prestou depoimento no dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, aos minutos 00:14:59 a 00:16:03, não conseguiu identificar a tal Sra. AAA, pelo que a mesma nunca veio a ser identificada nem prestou qualquer depoimento no processo.

80º. Mais uma vez, o Tribunal Recorrido infere o conhecimento de uma testemunha baseado não no seu conhecimento directo e efectivo dos factos, mas tão somente com base no que ouviu dizer por interposta pessoa.

81º. Ora, o Tribunal a quo nunca poderia ter valorado este depoimento, nem dele ter-se socorrido para a formação da sua convicção e consequente valoração da factualidade provada, uma vez mais por violação do artº. 128º do C.P.P..

82º. Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer” pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação, e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e as outras pessoas, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.

83º. A ratio do artigo 129.º do C.P.P. tem subjacente o propósito de aferir da credibilidade do testemunho indirecto e permitir ao julgador tomar contacto directo com a testemunha e o relato-fonte.

84º. Ora, se não se mostrou possível identificar a pessoa que relatou tais situações à testemunha inquirida e que a mesma referiu em audiência de julgamento, o seu depoimento, naquela parte, não poderá ser tido em conta pelo tribunal.

85º. Pelo que também o depoimento desta testemunha QQ, prestado no dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20 não poderia ter relevado para a factualidade supra transcrita, incorrectamente dada como provada pelo Tribunal a quo.

86º. A verdade é que o Tribunal Recorrido se socorreu da valoração de prova indirecta e dela fez-se valer para dar como provados os factos supra transcritos, fazendo tábua rasa da maioria de outros depoimentos, eles sim directos, que vão em sentido contrário ao que foi dado como provado.

87º. Um dos depoimentos nos quais o Tribunal Recorrido também alicerçou a sua convicção diz respeito à testemunha RR, que prestou depoimento no dia 03-11-2021, respeitante à gravação 20211102150359_3629957_2871817, com início às 15:04:01 e fim às 15:17:32 e que confirmou ao tribunal que no dia em que foram realizadas as buscas o Recorrente AA não estava no … e que chegou depois não sabendo precisar em que circunstâncias chegou.

88º. Mas contrariamente ao que ali referiu, do auto de busca e apreensão de fls. 1157 a 1162, especificamente a fls. 1528, resulta que no dia 04-06-2019 “A busca foi realizada na presença do explorador do …, AA, residente na Rua ..., ... Quinta ..., tendo neste acto sido entregue cópia do Mandado e cópia do despacho que a determinou, teve início pelas 15h35 de 04 de junho de 2019 e término pelas 20h30.”.

89º. Face a tão evidente contradição, em sede de alegações, os Arguidos suscitaram a falsidade deste auto de busca e apreensão, pois que nele consta que o Recorrente se encontrava presente no momento em que se iniciou a diligência, o que não corresponde à verdade.

90º. Contudo, entendeu o Tribunal a quo que esta questão seria de somenos importância.

91º. Ora, salvo o devido respeito, esta questão manifesta enorme relevância para a construção da investigação que resultou na consequente acusação e agora na condenação dos Recorrentes. E não podia o Tribunal Recorrido ter passado uma “esponja” sobre a questão, pois que nela reside a maior relevância, como infra melhor se explanará.

92º. Na verdade, esta investigação há muito que procurava (fruto da influência do anterior processo crime) provar que os Recorrentes eram os verdadeiros exploradores do .... Contudo, todos os seus esforços haviam sido infrutíferos, pelo que a investigação havia colhido, até àquele momento, uma mão cheia de nada.

93º. Por isso, e porque era essencial demonstrar esta ligação intrínseca do Recorrente AA às actividades desenvolvidas no …, não faria qualquer sentido que, precisamente nesse dia, estando o … em pleno funcionamento, ele não se encontrasse no local.

94º. Razão pela qual foi propositadamente inscrito no auto – mesmo não correspondendo à verdade – que o Recorrente AA se encontrava nob... aquando do início das buscas.

95º. Sucede que, na verdade, o Recorrente foi LEVADO PELOS OPC’s DO N... ONDE SE ENCONTRAVA PARA O ..., numa manobra no mínimo muito questionável, cuja factualidade o Tribunal Recorrido nem sequer quis esmiuçar, pois não interessava!

96º. Mais uma vez andou mal o Tribunal Recorrido ao desconsiderar a apreciação desta questão, pois que revela, em primeira análise, que existem falsidades na prova documental produzida e na qual repousou a factualidade assente e, em segunda análise, que o depoimento destas testemunhas que participaram na investigação se mostrava eivado de contradições e imprecisões. Curiosamente, nenhuma destas questões mereceu análise por parte do Tribunal Recorrido.

97º. De tal forma que decorre do aresto recorrido que o Tribunal considerou que o depoimento dos agentes da polícia “foram prestados de forma credível, isenta e circunstanciada, mostrando-se corroborados por prova documental junta aos autos”.

98º. Pese embora, mais uma vez, seja manifesta a falta do iter lógico decisivo que permitiu ao Tribunal Recorrido chegar a tal conclusão, basta atentarmos na prova documental expressamente mencionada na sentença recorrida, nomeadamente quanto àquela que comprova o suposto envolvimento dos Recorrentes no funcionamento do ..., para verificar que o Tribunal Recorrido se socorreu maioritariamente de relatórios de vigilância externa e também de autos de intercepção e gravação telefónica, dali concluindo que os Recorrentes AA e DD eram, afinal, quem dirigiam o referido estabelecimento comercial.

99º. Sucede que, da análise dessa prova documental, designadamente dos relatórios de vigilância externa a fls. 209, 210, 405, 464, 815 e fotogramas 617 e 688, nem sequer é identificada a presença dos Recorrentes no ..., limitando-se aqueles relatórios a identificar carros estacionados que, na lógica da investigação, pertenciam aos Recorrentes.

100º. Ora, o veículo matrícula ..-TD-.. pertence a BBB e o veículo ..-TT-.. pertence a CCC - como decorre de fls. 95 e 167 dos autos.

101º. Então como pode a sentença recorrida referir que estes veículos pertenciam aos Arguidos e, como tal, quando aqueles se encontravam estacionados num local, era sinal de que os Recorrentes também ali se encontravam?!

102º. Não interessou ao Tribunal Recorrido fazer o verdadeiro escrutínio da prova documental – ESTA SIM, DIGNA DESSE NOME –, preferindo ater-se em relatórios de polícia!!!

103º. Os Recorrentes não conseguem discorrer do texto decisório como foi possível chegar a tal conclusão, ainda que (embora sem conceder) o Tribunal a quo pareça socorrer-se do conceito jurídico do condutor habitual do veículo para dar um salto ilógico (e não circunstanciado) no sentido de que, tendo sido os Recorrentes vistos a conduzir os veículos, só pode presumir-se que estes lhes pertencem.

104º. Mais uma vez, a decisão queda-se por um lado, pela enunciação das provas concretas que contribuíram para a formação desta sua convicção e, por outro lado, pelo abandono completo das provas existentes que, outrossim, confirmam que estes veículos automóveis não lhes pertenciam - como decorre de fls. 95 e 167 dos autos.

105º. Pelo que também nesta parte a decisão carece de absoluta prova, pelo que se impunha que tais factos fossem dados como não provados.

106º. Mas, mesmo naqueles relatórios em que os Recorrentes se encontram presentes no estabelecimento comercial, como é que daqui pode o Tribunal Recorrido concluir que eram eles quem geriam aquele espaço?!

107º. Sem esquecer que se encontra assente que o Recorrente AA é, em bom rigor, o proprietário daquele bem imóvel, pelo que seria natural a sua presença naquele local que é, para além do mais, um estabelecimento aberto ao público, que é frequentado inclusivamente pelo Recorrente enquanto cliente.

108º. Para além do mais, resulta de inúmeros outros depoimentos que, ao invés do que foi dado como provado, era o Arguido LL quem geria aquele espaço, pelo menos desde 16-08-2018.

109º. Aliás, isso mesmo resulta do depoimento da testemunha DDD, prestado no dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103150504_3629957_2871817, com início às 15:05:06 e fim às 15:35:37, especificamente aos minutos 00:06:29 a 00:22:02.

110º. Do depoimento desta testemunha resulta claro que era o arguido LL quem geria o estabelecimento naquela data, quem recebia as colaboradoras e lhes mostrava o espaço, quem, no fundo, determinava o que ali se passava ou fazia.

111º. Aliás, este depoimento é crucial pois na verdade é integrado na restante prova documental. Na verdade, os Recorrentes foram efectivamente os donos e exploradores daquele …, até 13.10.2015, que culminou com as buscas e apreensões ao ..., no âmbito do processo n.º …, pelo qual vieram a ser condenados.

112º. Desde então, os aqui Recorrentes têm o imóvel à venda e cederam a exploração a terceiros do … a terceiros.

113º. Esta é a verdade insofismável que resulta abundantemente de toda a prova produzida.

114º. Resulta igualmente do depoimento da testemunha VV, que prestou declarações no dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103144713_3629957_2871817, com início às 15:47:15 a 15:02:53, aos minutos 00:00:40 a 00:00:49, que também trabalhava no …, que apenas conhecia os Recorrentes por serem os proprietários do café onde jantava.

115º. Também decorre igualmente do depoimento da testemunha UU, que esteve presente na sessão do dia 03-11-2021, cujo depoimento consta da gravação 20211103142309_3629957_2871817, com início em 14:23:12 e fim em 14:45:43, aos minutos 00:11:59 a 00:14:31, que na data dos factos era o Arguido LL quem geria aquele espaço.

116º. Aliás, esta testemunha explica que em determinada altura a gerência pertencia aos aqui Recorrentes mas que, a partir de determinada data que não soube precisar, a gerência passou a estar a cargo do arguido LL.

117º. Da mesma forma, também a testemunha JJ, ouvida 03-11-2021, cujo depoimento se encontra presente na gravação 20211103105532_3629957_2871817, com início em 15:55:34 e fim 16:18:05, entre os minutos 00:03:19 a 00:16:20, foi peremptória ao afirmar que quem lhe falou sobre o espaço e as condições foi o arguido LL.

118º. Esta testemunha foi inclusivamente mais longe ao explicar que, para si, era o arguido LL quem era o dono do …, uma vez que tinha sido ele quem falou consigo quando se mudou para lá e lhe explicou quais seriam as condições da sua permanência.

119º. Por fim, também a testemunha SS, que prestou depoimento nos autos no dia 03-11-2021, constante na gravação 20211103100418_3629957_2871817, com início em 10:04:21 e fim em 10:40:52, aos minutos 00:04:58 a 00:05:27, tendo declarado que quem era o dono do … era o arguido LL.

120º. Ora, o Tribunal Recorrido ignorou olimpicamente o depoimento isento, concreto e credível destas 5 (cinco) testemunhas, sendo que todas elas referem o arguido LL como sendo aquele com quem falavam, que lhes mostrava o espaço e determinava as condições de permanência, no fundo quem detinha e explorava o estabelecimento.

121º. Nesta senda, e porque a decisão ora recorrida carece de fundamentação neste conspecto, nem tão pouco é perceptível a razão pela qual o Tribunal Recorrido optou por escolher valorar positivamente alguns depoimentos, sendo que a grande maioria da restante prova testemunhal trazida aos autos vai precisamente em sentido contrário àquele que decorre da factualidade dada como provada.

122º. Ademais, veja-se que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção no depoimento da testemunha MM, também trabalhadora daquele espaço, referindo que “falou com o dono do …” – que indicou ser o arguido AA – pessoa que lhe explicou como funcionava o trabalho.

123º. Sucede que ao contrário do que se encontra transcrito neste trecho do aresto, a testemunha não identificou o Recorrente AA como sendo o dono do espaço, que prestou depoimento na sessão de julgamento do dia 15-11-2021, respeitante à gravação 20211115101908_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim 10:32:54, especificamente aos minutos 00:00:20 a 00:02:10 e entre 00:05:09 a 00:06:45

124º. Na verdade, resulta claro que a testemunha não só não se recorda inicialmente do Recorrente, razão pela qual quando instada pelo Tribunal Recorrido, que alude ao seu nome, diz não saber de quem se trata, como aliás identifica um outro arguido como sendo aquele quem lhe explicou as condições de funcionamento e permanência no espaço – curiosamente de nome AA igual ao Recorrente!

125º. Na verdade, aquilo que resulta claro do depoimento da testemunha é que, apesar de posteriormente reconhecer o Recorrente AA (com a ajuda do Tribunal), não reconhece a Recorrente DD, nem identifica o Recorrente como sendo a pessoa que lhe mostrou o bar e explicou as condições do estabelecimento.

126º. Ainda assim, inexplicavelmente, o Tribunal Recorrido acaba por retirar do seu depoimento a conclusão de que o Recorrente AA explorava o espaço e, ainda mais surpreendente, que também a Recorrida DD o fazia – quando a testemunha NUNCA, EM MOMENTO ALGUM, a reconheceu.

127º. Ainda quanto a esta questão impõe-se fazer uma análise, que se impunha ao Tribunal Recorrido fazer, relativa ao facto de o Recorrente AA ser o proprietário do imóvel há mais de 20 anos e, para além disso, ter sido gerente do ..., até à data em que se mostrou condenado no anterior processo crime, altura em que, como o mesmo referiu nas suas declarações, prestadas no dia 03-02-2022, contidas na gravação 20220203155914_3629957_2871817, com início em 15:59:14 e fim em 16:05:21, aos minutos 00:01:01 a 00:01:55, cedeu a exploração daquele estabelecimento comercial a terceiros.

128º. Ora, é absolutamente natural que, tendo em conta o meio pequeno em que este estabelecimento se encontra inserido, na Quinta ..., onde todos se conhecem pelo nome, e atento o muito significativo lapso temporal em que o Recorrente foi responsável pelo ..., algumas das pessoas se refiram ao Recorrente como sendo o dono, ou a pessoa que explorava, pois que é absolutamente natural que o reconheçam como tal.

129º. Muitas das testemunhas acabaram por referir que “era o que se dizia”, ou seja, o que resultava da vox populis, baseado no conhecimento geral da população que ali habita e frequenta aquele espaço. Por isso é absolutamente natural que algumas testemunhas tenham indicado o aqui Recorrente como a pessoa que mandava no espaço, naturalmente convictas que assim seria, pois que era a percepção das pessoas que conheciam e frequentavam o ....

130º. Mas essa percepção pode ou não ter respaldo na realidade, sendo certo que a mesma não bastará, per si, para formar a convicção de um tribunal acerca da participação de uma determinada pessoa na factualidade ilícita.

131º. Dito de outro modo, é natural e admissível que algumas das testemunhas possam ter a convicção de que era o Recorrente quem geria aquele espaço, não sendo espectável sequer que saibam em que data exacta o foi ou em que altura deixou de ser ele quem explorava o ....

132º. Acrescido ainda ao facto de os Recorrentes terem também uma pastelaria/café perto do ... que serve refeições, frequentada também por algumas testemunhas.

133º. Uma dessas testemunhas é ZZ, ouvido no dia 07-12-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782 com início às 14:10:15 e fim em 14:24:02, especificamente aos minutos 00:02:04 a 00:04:34, que disse precisamente conhecer os Recorrentes como donos do ..., que frequentou até há 6,7 anos atrás e do café ao lado do mesmo … que frequenta actualmente.

134º. Ora, esta testemunha referiu que conhece os Recorrentes do ..., que frequentou durante cerca de 20 anos e até há 6/7 anos e que, actualmente, os mesmos têm um café/restaurante perto do ..., onde também se tomam refeições.

135º. Também a testemunha XX, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 10:09:46 e fim 10:40:43, aos minutos 00:04:00 a 00:04:39, refere que o Recorrente deixou a exploração do …, há cerca de 3, 4 anos, sendo que nunca mais o viu no ….

136º. Também a testemunha YY, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 14:16:16 e fim em 14:36:20, aos minutos 00:12:55 a 00:13:59, confirma que se desloca habitualmente ao ... e que há cerca de 4/5 anos que não vê o Recorrente naquele espaço.

137º. Ora, do depoimento destas testemunhas, frequentadores, alguns deles regulares, do ..., alguns deles que conhecem pessoalmente o aqui Recorrente, resulta límpido que o mesmo abandonou há alguns anos (após a sentença no processo crime anterior) a exploração do ..., mantendo-se somente como proprietário e senhorio daquele espaço.

138º. Inexplicavelmente, a decisão recorrida vem concluir quanto a este e outros depoimentos de testemunhas que “No que concerne ao conhecimento que têm dos arguidos, foi patente que algumas das testemunhas pretendem fazer crer que alguns dos arguidos não tinham qualquer relação com o ... no período aqui em apreço”, entendendo que “nesta parte, os depoimentos destas testemunhas não mereceram a credibilidade do tribunal”.

139º. Este trecho consignado no aresto recorrido mal se percebe atento a unanimismo dos depoimentos no sentido em que os Recorrentes não exploravam de facto o ....

140º. Queda-se por saber qual a razão que levou a que o Tribunal a quo tenha considerado apenas parte dos depoimentos prestados – que como vimos nem sequer resulta o que o Tribunal Recorrido entendeu que resulta –, trinchando-os e escolhendo apenas uma porção do seu conteúdo como sendo credível.

141º. Ora, como comummente se diz, “não se pode querer sol na eira e chuva no nabal”, aqui reportado ao facto de o Tribunal de 1.ª instância valorar selectivamente partes de um depoimento, desconsiderando tudo quanto não cumpre a formação da convicção de condenação dos Arguidos. E, mais grave do que esta selecção propositada é nem sequer ser apreensível da decisão a motivação que subjaz a este entendimento.

142º. Sendo que a totalidade destes depoimentos é absolutamente consentânea e credível ao referir que o Recorrente era o dono do espaço há largos anos, tendo abandonado a exploração do … há vários anos – o que é coincidente com a data das buscas no ..., reportadas ao anterior processo crime (13.10.2015).

143º. Não podemos perder de vista que todas estas testemunhas prestaram declarações em sede de inquérito, decorrido durante o ano de 2019, pelo que como bem se compreenderá a referência temporal das mesmas reporta-se a esse ano.

144º. Ainda assim, aquilo que resulta provado de todos estes depoimentos é que as testemunhas referiram que deixaram de ver os Recorrentes no ... há cerca de alguns anos, não voltando a vê-los naquele local.

145º. Em sentido contrário, o tribunal optou por alicerçar a sua convicção, nesta parte, no depoimento da testemunha NN, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211115141526_3629957_2871817, com início às 15:05:05 e fim em 14:23:36, aos minutos 00:02:02 a 00:03:37 e 00:04:20 a 00:04:28, tendo concluído que a mesma prestou declarações “de modo credível, isento e circunstanciado, referiu conhecer os arguidos AA e DD do ...; frequentou o … cerca de 3 ou 4 vezes, até à data em que foi inquirido na GNR; conhece estes arguidos por serem os “proprietários da casa” pois costumava falar com eles ao balcão.”.

146º. Não obstante, não foi exactamente isso que esta testemunha NN referiu nas declarações que prestou no dia 03-11-2021.

147º. Compulsado o depoimento da referida testemunha, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211115141526_3629957_2871817, com início às 15:05:05 e fim em 14:23:36, aos minutos 00:02:02 a 00:03:37, como se está bom de ver, a testemunha nem sequer se recorda a data em que terá frequentado o …, onde apenas esteve 3 ou 4 vezes e, com muita ajuda por parte da Sra. Procuradora que procurava induzir uma data, lá conseguiu referir 2018 “P’RAÍ”, isto é, pode ser ou não ser!

148º. E pior, refere esta testemunha que conhecia os Recorrentes, como sendo os “co-proprietários da casa”. É que, efectivamente os Recorrentes são e continuam a ser proprietários do imóvel.

149º. Quer isto dizer que a testemunha não referiu, como do aresto recorrido parece resultar, que conhecia os Recorrentes como exploradores do …, mas apenas e só que os conhecia os Recorrentes como proprietários do imóvel, no ano em que o frequentou pontualmente e que com muita ajuda, mas sem qualquer certeza, indicou como sendo 2018.

150º. Acresce ainda que a testemunha não referiu a partir de quando passou a frequentar o ..., ou seja, se já o fazia no período em que os aqui Recorrentes exploravam efectivamente o … ainda do anterior processo crime.

151º. Ora, mais uma vez, isto é apenas e só a mera percepção desta testemunha que muito pontualmente se deslocou ao ..., em 3 ou 4 situações, sendo que nem sequer as conseguiu balizar temporalmente.

152º. Por sua vez, ao tribunal compete, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, valorar livremente a prova testemunhal, balizado por vários limites, entre eles, as regras de experiência comum. E este processo cognitivo de decisão tem de ser perceptível e perfeitamente identificado na decisão, seja ela em que sentido for.

153º. A fundamentação dos actos decisórios é, ademais, aquilo que os separa de uma posição de jus imperi, que não pode nem tem acolhimento na lei processual penal.

154º. Fazendo agora apelo às regras de experiência comum, não pode perder-se de vista que, sobretudo quanto ao Recorrente AA, a sua actividade sempre esteve ligada à restauração e aos bares, razão pela qual é quase indissociável a associação das várias testemunhas aos imóveis que são propriedade sua há vários anos.

155º. Da mesma forma que é absolutamente plausível que o Recorrente seja visto atrás do balcão de um imóvel que é propriedade sua, em situações pontuais nas quais, por exemplo, se deslocava ao imóvel para efectuar a reparação de alguma coisa que se estragava, o que aliás é sua obrigação enquanto senhorio.

156º. É que, salvo o devido respeito, opera-se também aqui um salto lógico na decisão recorrida que não se consegue acompanhar, na medida em que o Tribunal a quo procura escudar-se numa extensão fáctica que não assenta na matéria probatória constante dos autos – pelo contrário!

157º. Da prova abundantemente produzida em julgamento e aqui transcrita resulta amiúde que os Recorrentes eram, AFINAL, os donos do imóvel onde se encontra localizado o ..., sendo que nada mais resulta a este respeito e muito menos resulta que estes Recorrentes tivessem alguma coisa que ver com as actividades lá desenvolvidas por quem explorava ou … ou pelas suas trabalhadoras, e muito menos que nelas participassem ou fossem promotores.

158º. A este respeito, e pese embora se trate de uma questão conexa com a exploração do …, menos relevante para os aqui Recorrentes, uma vez que a questão impugnada reside a montante, concretamente, da não exploração do referido …, não se pode deixar de, à cautela, se impugnar especificamente os factos n.º7, 27 e 28, na parte em que mencionam que os Recorrentes intervinham e controlavam a actividade de prostituição desenvolvida no ..., dela beneficiando economicamente, como se explanará adiante, a propósito do crime de lenocínio pelo qual os Recorrentes se viram condenados.

159º. Repristinando tudo quanto se disse acima a propósito do envolvimento dos Recorrentes nas actividades desenvolvidas naquele local, e na medida em que os Recorrentes NADA tinham que ver com a actividade propriamente dita do …, e muito menos com a actividade de prostituição, cumpre ainda assim ressaltar que, também da prova produzida (por reporte às testemunhas que trabalhavam no bar) transparece que esta actividade era exercida de mote próprio pelas senhoras que trabalhavam no ….

160º. Isso mesmo resulta de todos os depoimentos das testemunhas, as alegadas senhoras que praticavam a prostituição de que os valores cobrados pelos actos sexuais era definido por cada uma das pessoas e que eram inteiramente para si, não sendo devido qualquer pagamento a quem explorava o ….

161º. Ora, desde logo resulta que a actividade de prostituição era, assim, absolutamente independente do trabalho realizado no …, até porque não era controlada, supervisionada nem sequer fomentada por quem geria a actividade do ..., que se limitava a assumir o papel de arrendatário dos quartos utilizados.

162º. Não existe qualquer prova recolhida nos autos, nem isso resultou da produção de prova em sede de julgamento que os Recorrentes beneficiassem economicamente das relações sexuais mantidas pelas mulheres no piso superior ao do ..., ou tão pouco que tivessem conhecimento disso.

163º. Os Recorrentes não tinham conhecimento daquilo que era ou não feito nos quartos e se as mulheres recebiam ou não uma quantia monetária pela atividade sexual e se o recebiam quanto era o valor recebido pelas mesmas.

164º. Por outro lado, importa concatenar esta questão com as declarações da testemunha PP, que prestou declarações no dia 02-11-2019, respeitante à gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início em 13:54:10 e fim em 14:43:57, nas passagens dos minutos 00:23:45 a 00:24:00, e que confirmou que no decorrer da investigação resultou claro que as senhoras que praticavam actos sexuais o faziam por livre e espontânea vontade, inexistindo qualquer exploração de uma situação de carência económica ou social.

165º. De tudo isto resulta evidente que não existia por parte dos Recorrentes, ou de quem quer que seja, qualquer espécie de facilitismo, auxílio ou domínio sobre a actividade desenvolvida nos quartos alugados pelas trabalhadoras do .... E, assim sendo, também fica absolutamente demonstrado que os Recorrentes não recebiam quaisquer benefícios decorrentes dessa actividade ali desenvolvida.

166º. Assim, não existindo qualquer prova de favorecimento ou facilitismo do exercício da prostituição nem, bem assim, que houvesse um benefício económico directo ou sequer indirecto (por conta do aumento de clientela no ...), devem tais factos provados n.º 7, 27 e 28, no que concerne ao trecho assinalado nos termos acima referidos, ser dado como não provado.

167º. Por último, um pequeno excurso à valoração que é feita na sentença recorrida aos vários autos de intercepção e gravação de escutas telefónicas, referentes a conversações nas quais o Tribunal Recorrido considerou que se tratava da Arguida DD, tendo daí concluído que “a arguida encetou/recebeu contactos de clientes do ... ou de colaboradoras, designadamente no sentido de saber se existia vaga disponível nos quartos”.

168º. Ora, mais uma vez INEXISTE qualquer prova da associação entre os números de telefone ali identificados e escutados e a Recorrente DD.

169º. E tanto assim é, que basta atentar no auto de busca e apreensão de fls. 1190, no qual a visada foi a Recorrente DD, para se concluir que o único telemóvel que foi apreendido diz respeito a um equipamento de marca ..., cujo cartão SIM corresponde ao número ... NENHUM OUTRO telemóvel ou cartão sim foram apreendidos à aqui Arguida.

170º. Esta questão da associação de números de telefone aos Recorrentes sem qualquer base probatória foi inclusivamente aludida em sede de audiência de julgamento, a propósito da inquirição da testemunha PP, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início às 13:54:10 e fim 14:43:57, aos minutos 00:09:36 a 00:16:20.

171º. O Tribunal Recorrido, perante a questão suscitada no decorrer da prova produzida, comprometeu-se a “aferir de quem é efectivamente aquele número o tribunal obviamente irá analisar os elementos que tem no processo para quem é o número”.

172º. Não só não o fez, como sem qualquer análise crítica, entendeu que ambos os números de telemóvel pertenciam à Arguida DD, o que não corresponde à verdade.

173º. Por outro lado, também foi o próprio Ministério Público que acaba por concluir que não fará referência às escutas telefónicas dos Recorrentes AA e DD para não levantar ilegalidades!!

174º. E fá-lo bem sabendo da ilegalidade destes autos de intercepção telefónica, de onde resultam associações de números de telefone aos Arguidos, sem que tais conclusões repousem em quaisquer provas trazidas aos autos, bastando-se aqui pela “intuição” dos OPC que ouviram estas escutas e dali deduziram que a Recorrente DD era titular de um determinado número de telemóvel – que, recorde-se, não lhe foi apreendido!

175º. O que resta por dizer que, mais uma vez, o Tribunal Recorrido, ao arrepio de toda e qualquer base probatória que lhe permita extrair essa convicção, conclui que um determinado número de telemóvel que nunca foi apreendido à Arguida, de cujas conversações interceptadas NUNCA surge o nome da Arguida, mas uma tal “CC”!!!

176º. Face a tudo quanto a toda a factualidade unitariamente impugnada, da qual ressalta que os Recorrentes exploravam o ... no período temporal entre, pelo menos desde maio de 2018 e pelo menos até 04 de junho de 2019, por existência de manifesta prova em sentido contrário, não poderiam ser dados como provados na medida em que o foram, pelo que dos mesmos deverão V. Exas. expurgar todas as referências respeitantes ao facto de serem os Recorrentes quem explorava/geria o estabelecimento comercial ....

177º. Pelo que, em face do exposto, devem os aqui Recorrentes ser ABSOLVIDOS, por ser de elementar JUSTIÇA!

178º. Contudo, mesmo que não se entenda operar qualquer alteração à sentença recorrida, consideram os Arguidos Recorrentes que, do ponto de vista estritamente jurídico, estes sempre teriam de ser absolvidos, MESMO QUE TODA A FACTUALIDADE VIESSE A SER DADA COMO PROVADA, como veio a suceder.

179º. Em primeiro lugar porque entendem os Recorrentes que o crime de lenocínio padece de inconstitucionalidade material.

180º. Com efeito, foi o Código Penal de 1982 que trouxe a primeira alteração significativa ao inserir o crime de lenocínio nos crimes contra os valores e interesses da vida em sociedade na secção dos crimes sexuais. Certo é que, também esta codificação penal não foi capaz de abandonar com a ascendência moralista, encontrando-se expresso no tipo do artigo 215.º (lenocínio simples) “actos contrários ao pudor ou à moralidade sexual”.

181º. Supostamente, com a revisão do Código Penal de 1995 abandonaram-se as concepções moralistas, inserindo-se os crimes sexuais num capítulo autónomo denominado “dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, assim se erigindo a protecção jurídico-penal destes bens jurídicos.

182º. À data, no Código Penal de 1995, o crime de lenocínio estava previsto no seu artigo 170.º, pretendendo-se proteger, enquanto bem jurídico, a liberdade sexual das pessoas, e como tal, só se punia criminalmente o comportamento do agente, caso este ao facilitar, ao favorecer e/ou fomentar o exercício da prostituição profissionalmente ou com intenção lucrativa, estivesse ao mesmo tempo a explorar uma situação de abandono ou necessidade económica.

183º. O que significa que, mesmo com a revisão penal de 1995, o crime de lenocínio desenhado pelo legislador não abandonou por completo a defesa de uma moralidade sexual social, aliada a sentimentos de (falso) pudor.

184º. Com a alteração ao Código Penal ocorrida em 1998, o crime de lenocínio simples foi alargado no seu âmbito de aplicação tendo o legislador eliminado a exigência de exploração de uma situação de abandono ou de necessidade da vítima como elemento tipo do crime.

185º. Em 2007 (Lei 59/2007) ocorreu uma nova reforma ao nível penal, na qual foi extinta do tipo legal a expressão “prática de actos sexuais de relevo”, o que levou a um novo alargamento do âmbito de aplicação do crime de lenocínio simples, tendo passado a constar do artigo 169.º n.º 1 do Código Penal a actual redacção.

186º. Foi sobretudo com o alargamento do âmbito de aplicação do crime de lenocínio simples ocorrida pela referida alteração de 1998, em que o legislador abdica da exigência de exploração de uma situação de abandono ou de necessidade da vítima, que a maior parte da doutrina entendeu que deixou de fazer qualquer sentido a criminalização deste tipo de crime, na medida em que deixou de existir um qualquer bem jurídico protegido, passando-se exclusivamente a proteger-se uma conduta moral.

187º. Desde logo é importante que se compreenda que o agente que fomenta, facilita ou favorece a prostituição não determina a vontade da vítima para a prática dessa mesma actividade de prostituição. Pois de outra forma, se o agente determinar essa vontade (seja por meio de violência ou ameaça grave; através de ardil ou manobra fraudulenta; com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho; ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima), dúvidas não há que a intervenção do Direito Penal é justificada, na medida em que se estará a violar o bem jurídico da liberdade sexual, e por essa razão, tal conduta deve ser criminalmente punida, como de resto se encontra hoje regulada no tipo de crime de lenocínio agravado previsto e punível pelo nº 2 do referido artigo 169.º do C.P..

188º. Já quanto ao crime de lenocínio simples, na esteira do entendimento dominante na doutrina, o mesmo passou a tratar-se de um crime sem vítima, uma vez que não existe qualquer tipo de pressão ou coacção sobre a alegada vítima. Não existindo sequer quaisquer condicionantes sociais de exploração de situações de abandono ou de necessidade económica da alegada vítima e sendo o exercício da prostituição de execução livre, naturalmente que não existe nenhuma lesão efectiva de um bem jurídico, mesmo na equação de o bem jurídico ser a “liberdade sexual”.

189º. Aliás, a actual criminalização do lenocínio passa precisamente por limitar a liberdade sexual do indivíduo que não pode dispor do seu corpo como bem entende e lhe é conferido por direito, ainda que o faça numa estrutura do tipo empresarial.

190º. A justificação e intervenção do Direito Penal deverá limitar-se apenas a condutas do foro sexual que violem um bem jurídico eminentemente pessoal, nomeadamente quando está em causa o desenvolvimento sexual de menores, ou quando em relação a adultos se utilize a violência, ameaça grave, se provoque o erro ou se aproveite do seu estado de pessoa indefesa.

191º. Hoje a larga maioria da doutrina penal portuguesa é consensual no que concerne à criminalização de índole exclusivamente moralista do denominado lenocínio simples previsto e punível pelo referido artigo 169.º n.º 1 do actual Código Penal.

192º. Nos últimos 16 anos, o Tribunal Constitucional (T.C.) já foi chamado várias vezes a pronunciar-se sobre esta questão e tem sempre considerado que o crime de lenocínio simples não é inconstitucional. Todavia, é justo dizê-lo, esta não tem sido a opinião unânime dos juízes que compõem o T.C..

193º. Mais recentemente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/02/2017, declarou o artigo 169º nº 1 do C.P. como inconstitucional por violação do artigo 18.º, n.º 2 da C.R.P., atento o carácter subsidiário do Direito Penal, mais considerando que do comportamento em causa não se pode, com razoável segurança, afirmar que se destina a proteger um bem jurídico-penal.

194º. Em 07/09/2019, o Tribunal da Relação de Coimbra, veio igualmente declarar inconstitucional o crime de lenocínio simples, aproximando-se dos votos vencidos dos referidos acórdãos do Tribunal Constitucional, concordando com o voto de vencido apresentado por COSTA ANDRADE no Acórdão do T.C. de 2016.

195º. No passado dia 03/03/2020, o Tribunal Constitucional através do Ac. nº 134/2020, pela primeira vez, inverteu a posição até aí assumida (embora com votos de vencido no sentido da constitucionalidade), e julgou inconstitucional o crime de lenocínio simples, constante do artigo 169.º, n.o 1, do Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, fundamentando, em síntese que: “o lenocínio apresenta, neste ponto, uma relevante particularidade em relação a outros crimes destinados a tutelar a liberdade sexual: o seu objeto direto ou imediato não é a própria prática dos atos sexuais em que se traduz a prostituição, mas o ato de fomentar, facilitar ou favorecer essa prática. Por essa razão, não se afigura necessariamente de concluir que este tipo legal de crime comporte uma restrição desproporcional da liberdade sexual de quem se prostitui: o tipo legal não veda essa prática, embora limite as condições em que a mesma pode ser desenvolvida, designadamente a possibilidade de associação de quem se prostitui a uma pessoa ou organização de pessoas que fomente, facilite ou favoreça essa prática. Porém, se não se perder de vista que o único desígnio constitucionalmente legítimo deste tipo legal de crime seria o de tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui, e que a sua estrutura é a de uma presunção (melhor, de uma cadeia de presunções) segundo a qual essa pessoa não prestou o seu acordo àquela prática, a perspetiva exposta não deixa de se lhe aplicar: o fundamento último do tipo legal não deixa de ser a tutela de um direito que, em face da conduta tipicamente descrita, pode plausivelmente ter sido exercido pelo seu portador. (...) a norma não resiste ao teste da necessidade: a extrema fragilidade do nexo entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutelar, acrescida do facto de a mesma abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem se prostitui, não permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito. (...) a vigente norma incriminatória restringe um direito (à liberdade) em nome de um outro (à liberdade sexual) que pode plausivelmente não ter sido colocado em perigo concreto e ter até sido livremente exercido pelo seu titular, circunstância em que não há, portanto, carência de tutela penal”.

196º. Os Arguidos, seguindo aquela que consideram ser a melhor doutrina e jurisprudência nesta matéria entendem que o crime de lenocínio padece de INCONSTITUCIONALIDADE, pelo que se entende que, declarando V. Exa. a requerida inconstitucionalidade, não poderão os Arguidos ser punidos pela norma incriminatória ínsita no artº. 169º nº 1 do C.P.

197º. Porém, em segundo lugar, como supra se disse, ainda que toda a matéria de facto viesse a ser dada como provada como, sem surpresa, aconteceu – tal não era o “animus convictio” do Julgador que se deixou toldar por questões de moralidade, esquecendo que o Direito Penal é, por definição, amoral –, a verdade é que, mesmo assim o crime de lenocínio não se acha preenchido.

198º. O crime de lenocínio que está aqui em causa, encontra-se tipificado no referido art.º 169.º do Código Penal, o qual normativo, no n.º 1, passou a consagrar o tipo legal fundamental de crime de lenocínio.

199º. O bem jurídico aqui protegido, neste crime de lenocínio simples, é a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição, ou, por outras palavras, a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa.

200º. O tipo objectivo consiste no fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição por outra pessoa, agindo o autor de modo profissional ou com intenção lucrativa.

201º. O crime de lenocínio simples é um crime de execução livre, pois a colaboração do agente pode ser realizada por qualquer modo. Contudo, o agente deve actuar profissionalmente (isto é, esta deve ser a actividade habitual do agente, embora possa não ser a única, constituindo o seu modo de vida) ou mesmo através de uma acção pontual ou esporádica, distinta do seu modo de vida, desde que com intenção lucrativa. O tipo não exige, pois, a concretização de um lucro efectivo para o agente.

202º. Quanto ao tipo subjectivo, o mesmo crime é doloso, podendo fundar-se em qualquer das modalidades do dolo nos termos do vertido no Art.º 14.º do C. Penal. Sabendo-se que quando o agente actua com intenção lucrativa esta implica o dolo na sua forma mais grave.

203º. Para quem defende a constitucionalidade do crime de lenocínio simples considera que o descrito preceito incriminador protege, no fundo, um bem jurídico, de natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, em conformidade com o art.º 1° da Constituição da República.

204º. Assumindo-se esses preceitos como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada e, protegida constitucionalmente pelo art.º 26°, n.º 2, da Constituição, aqui na vertente da dignidade ínsita à auto-expressividade sexual co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual. Ou, dito de outro modo, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem.

205º. Mas mesmo neste posicionamento fica claro que é indispensável uma interpretação constitucional restritiva do tipo penal no sentido de exigir a prova adicional de elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta, mais consentânea com o parâmetro dos bens jurídico-constitucionais no âmbito da criminalidade sexual, é também mais conforme com a natureza pública do procedimento criminal (cfr. art.º 178.º, n.º 1, do Código Penal).

206º. Ora, ainda que se entenda que o crime de lenocínio não é inconstitucional, para a tal possível conformação constitucional, vem sendo defendido pelo T.C., esta prova adicional do elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta.

207º. Neste conspecto, diga-se que este Tribunal da Relação de Évora é, nesta matéria, mais pragmático e aparentemente de acordo com o entendimento da inconstitucionalidade (Acórdão datado de 14-07-2020, processo nº 943/18.5T9LLE-B.E1, em que foi Relator o Juiz Desembargador MARTINHO CARDOSO).

208º. De facto, o recorte fino desta questão que vem sendo efectuado pelos nossos Altos Tribunais exige, pelo menos, que um conjunto de factos atinentes à exploração da necessidade económica e social das pessoas prostituídas sejam dados como provados, de forma a se alcançar um mínimo de conforto constitucional.

209º. Trata-se, no fundo, de um esforço interpretativo que concede ao legislador penal a ponderação de incriminação deste tipo de situações que traduzem um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à actividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e pelo abandono desde uma idade muito jovem.

210º. É neste quadro social e jurídico descrito que a Jurisprudência maioritária vem interpretando o art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, com a restrição acima ponderada – no sentido de exigir a prova adicional de elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta – pois só assim, mesmo para esta Jurisprudência, não padecerá de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 18.º, n.º 2, da C.R.P..

211º. Ora, se analisarmos com objectividade e rigor o caso em apreço nestes autos, constata-se que na matéria de facto considerada provada não vamos decifrar este elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta, tanto nos seus componentes objectivos como subjectivos.

212º. Aliás, esse mesmo elemento típico não fazia parte da acusação apresentada pelo Mº.Pº., o que traria ao Tribunal Recorrido as maiores dificuldades em superar esse objecto do processo assim delimitado pelo acusatório e em face dos condicionamentos próprios de uma alteração substancial dos factos – assim, no art.º 359.º, n.º 1, do C.P.P..

213º. Na verdade, nenhuma da factualidade provada, nem mesmo em sede de fundamentação – simplesmente o Tribunal Recorrido, na esteira da acusação esquece por completo este segmento –, tanto na dimensão objectiva como subjectiva, vem a concretizar qualquer relação de ascendente, ou mesmo de exploração de qualquer necessidade económica e social por parte das pessoas prostituídas.

214º. Ora, mesmo que se viesse a aceitar como faz o Tribunal Recorrido – o que apenas por cautela de patrocínio se concebe – que os Arguidos Recorrentes fomentaram, favoreceram ou facilitaram a prática de actos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento ... e de cuja actividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e dos quais recebiam os respectivos proventos (factos provados 28 e 29) –, a verdade é que a factualidade provada não demonstra ao nível objectivo e subjectivo a conduta dos arguidos tendente a retirar as indevidas vantagens materiais/pecuniárias de que se valeram numa apontada relação de ascendente (intelectual, emocional, psicológico, físico, económico e até familiar) que levou a corromper a vontade e a liberdade daquelas mulheres.

215º. Pelo que entendem os Recorrentes que ainda que a factualidade viesse a ser dada como provada nos exactos termos da acusação, sempre teriam de ser absolvidos prática do crime de lenocínio por falta de consubstanciação factual típica.

216º. Acresce ainda que, o Tribunal Recorrido, mesmo dando como provado a intervenção dos Arguidos, não conseguiu sustentar sequer o necessário preenchimento do ilícito típico objectivo.

217º. E se dúvidas existissem em relação ao enriquecimento ou procura dele por parte dos Arguidos em relação à actividade das mulheres, a sentença recorrida é bastante clara nos factos provados 17) e 22), donde decorre que em relação ao eventual ganho dos Arguidos este residiria na actividade/aliciamento da venda de bebidas no…, das quais 50% era para quem conseguisse a venda e os outros 50% para a casa.

218º. Assim, não se encontram preenchidos os pressupostos legais que permitam a condenação dos Recorrentes pela prática do crime de lenocínio, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 169.º do Código Penal, razão pela qual desde já se requer a ABSOLVIÇÃO dos Recorrentes.

219º. Como se vem dizendo, mesmo que se admitisse que o Tribunal Recorrido ignorasse olimpicamente como ignorou todas estas questões e, a final, decidisse, como decidiu, condenar os Arguidos, impunha-se que, em face dos factos provados se fizesse uma distinção entre os Arguidos Recorrentes AA e DD, como levasse em consideração a sua alegada participação nos factos de acordo com o provado.

220º. A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do artº. 71º do C.P., em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.

221º. Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo.

222º. Na esteira da acusação pública que padece de manifesto rigor técnico, o Tribunal a quo no facto provado 28) coloca todas as condutas no mesmo “saco” – facilitar/fomentar e favorecer – quando é mais desvaliosa a prática do lenocínio quando o agente fomenta tal actividade, sendo maior o grau de ilicitude e de censurabilidade, e não se limita apenas a favorecê-la ou a facilitá-la.

223º. Ora o Tribunal Recorrido demitiu-se dessa análise e o mesmo se diga em relação às circunstâncias referidas no artº. 71º, nº 2 do C.P., não relevando, por exemplo, o lapso de tempo já decorrido desde os factos e sobretudo os actos concretos levados a cabo pelos Arguidos Recorrentes, consubstanciados numa actuação esporádica.

224º. É que não obstante a conclusão espúria do Tribunal Recorrido quanto à alegada exploração do … pelos Arguidos Recorrentes, os actos concretos considerados pelo Tribunal Recorrido, de resto elencados na motivação, concretamente nos referidos autos de vigilância, mostram que num período de um ano de alegada exploração (facto provado 1), o Arguido AA terá se deslocado ao referido bar cerca de 8 vezes e a Arguida DD 1 ou 2 vezes!!!

225º. Ora nenhuma conduta posterior ao facto milita contra a Arguida DD!

226º. Ademais, o Tribunal Recorrido consigna que não levou em consideração como antecedente a última condenação por crime da mesma natureza, “tendo em conta que, à data da prática dos factos aqui em apreço, aquela condenação ainda não havia transitado em julgado”, o que não é verdade, pois aplica uma pena de prisão de 3 anos para cada Arguido, quando na tal anterior condenação, num período de tempo superior e em que de facto os Arguido Recorrentes exploravam de facto (de forma habitual e profissional) o referido …, foram condenados numa pena de 1 ano e 11 meses de prisão.

227º. Ora, bem se vê a enorme discrepância de julgados em sede de condenação dos Arguidos Recorrentes.

228º. Assim, violou o Tribunal recorrido a medida da culpa dos Recorrentes (artº. 40º nºs 1 e 2 do C.P.), sendo manifesta a desproporcionalidade da pena aplicada (artº. 71º nº 1 e 2 do C.P.), entre os próprios Arguidos em face do grau de participação que o próprio Tribunal recorrido escalpeliza em sede de fundamentação e que é diferenciado, como também a referida pena se acha desadequada em relação aos concretos factos cometidos.”

Terminam pedindo:

- Se declare nula a sentença recorrida considerando a falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica, por violação do disposto no artigo 358º nº1 e 3 do C.P.P., com revogação da decisão e determinação de notificação dos arguidos nos termos da referida norma,

ou, subsidiariamente,

- Se declare nula a sentença recorrida porque fundada em prova proibida e, consequentemente, nula, nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 188º, nºs 7 e 9, alínea a), 190º, 355.º a 357.º todos do Código de Processo Penal ainda do disposto no artigo 32º, nº 8 da C.R.P., ordenando-se a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.

- Se determine o reenvio dos autos para novo julgamento, nos termos do artigo 426º nº 1 do C.P.P., por verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º nº2 al. c) do C.P.P., revogando-se a decisão recorrida.

- Se determine a condução dos factos provados nºs 1, 4, 5, 7 a 9, 12 a 14, 19, 21, 27 a 30 aos factos não provados, por verificação de erro de julgamento quanto à matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, com a consequente absolvição dos recorrentes.

- Em qualquer caso, se declare a inconstitucionalidade material do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1,da Constituição e, em consequência, se absolvam os arguidos da prática do crime de lenocínio, ou, não se declarando a inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, se absolvam os recorrentes por impossibilidade legal de subsunção dos factos tidos por provados a tal ilícito penal.

- Se altere a sentença recorrida quanto à medida das penas impostas aos recorrentes, aplicando-se-lhes penas próximas dos limites mínimos, com especial atenuação para a recorrente DD.

*

Os recursos foram admitidos.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1) Alegam os arguidos, ora recorrentes que, os mesmos vinham acusados pela prática, em coautoria material do crime de lenocínio, na forma consumada e continuada, p. e p. pelos artigos 169.º, n.º 1, e 30.º, n.º 2, ambos do Código Penal, sendo que o Tribunal a quo afastou a pretendida qualificação jurídica do crime continuado, considerando que, no caso concreto, tal instituto não é aplicável, considerando estarmos perante um crime de trato sucessivo, entendendo que tal alteração deveria ter sido comunicada.

2) A alteração da qualificação jurídica efectuada no caso concreto não consubstancia uma nulidade mas sim uma irregularidade, nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal, da qual os arguidos tomaram conhecimento aquando da leitura da Sentença, nada tendo sido arguido nesse sentido.

3) Neste sentido, veja-se a propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/07/2011 – Proc. N.º 451/05.4JABRG.G1.S1, in www.dgsi.pt.

4) Entendem os arguidos, ora recorrentes que, o Tribunal a quo valorou prova, que no entendimento daqueles lhe estava vedada.

5) Também nesta matéria não assiste razão aos arguidos, sendo que nenhuma das prova invocadas como proibidas, o são, não estando vedado ao Tribunal a quo valorar as provas nos moldes em que o fez.

6) Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18/10/2018 – Proc. 48/15.0GBTVE.E1, in www.dgsi.pt.

7) Questionam os Recorrentes a apreciação que o Tribunal “a quo” fez da prova produzida em julgamento ou de parte dela;

8) Ao longo do seu recurso, os Recorrentes insistem na tese de que a prova não foi valorada como devia.

9) Não se podendo esquecer, obviamente e também, que a prova documental é, in casu, muito relevante, expressiva e concludente, mormente no que concerne aos Relatórios de Diligência Externa levados a cabo pelo competente Órgão de Polícia Criminal na investigação, ao que acresce o teor das transcrições de intercepções telefónicas efectuadas, Autos de Busca e Apreensão efectuados, informações de variada ordem, documentos contratuais e outros, que os Recorrentes, na argumentação por eles expendida, não esquecem mas entendem como valoração de prova proibida..

10) O Tribunal a quo fundou a sua convicção considerando ainda as diferentes declarações prestadas por todas as testemunhas, conjugando todos estes elementos de prova e ponderando-os segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.

11) Prova, essa, que foi bem discriminada e referida na, aliás Douta, Sentença e que bem fundamenta e esclarece a convicção do julgador.

12) O Tribunal a quo analisou criteriosamente todos os depoimentos das testemunhas, efectuando um juízo crítico acerca das declarações prestadas por todas elas, tendo todos os depoimentos sido correctamente valorados, em conjugação com a demais prova documental.

13) A conclusão a que o Tribunal a quo chegou não poderia ser outra que não fosse a condenação nos termos, fundamentos e extensão em que o foi.

14) A nosso ver, não merecerem qualquer reparo os factos dados como provados e não provados, tendo estes sido correctamente julgados e tendo a prova sido bastante.

15) Nem se diga, como pretendem os recorrentes afirmar, que não ficou demonstrado que as mulheres exerciam a prostituição no local explorado pelos recorrentes e que os recorrentes não tinham conhecimento de que as mulheres aí desenvolviam tal actividade de prostituição.

16) Tal conclusão não colhe, e mal seria que o Tribunal dependesse única e exclusivamente da prova directa dos factos para os dar como provados, tanto mais que nenhum dos sujeitos processuais colocou em crise o valor da prova documental junta aos autos,repita-se, conjugada com a demais prova testemunhal produzida em audiência de julgamento e com as escutas telefónicas realizadas.

17) O vício do erro notório na apreciação da prova consiste em “desconformidade com a prova, facilmente perceptível pelo comum dos observadores, que pede correcção modificativa”, como vem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, o que, no caso sub judice, não ocorreu.

18) Ou, também e ainda, que é de concluir verificar-se semelhante erro “… sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no art. 127.ºdoCPP, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência”, tal como escreve Maria João Antunes in “Conhecimento dos Vícios Previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP”, pág. 120.

19) Ao que acresce que a verificação de um dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal implica que “quando se sugere que os mesmos existem, temos de entender o espaço processual em que os mesmos ocorreram, que é o espaço de constituição de uma sentença, que é, necessariamente, um percurso lógico” – nesse sentido vide anotação n.º 6 ao artigo em apreço in “ Código de Processo Penal – Comentários e notas práticas dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto”, pág. 1040.

20) Do teor da decisão recorrida não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova na matéria de facto provada e não provada para a tipificação do crime de lenocínio.

21) Bem pelo contrário, da fundamentação da sentença recorrida constam todos os factos e elementos de prova que integram a prática, pelos arguidos/recorrentes, do crime de lenocínio nos moldes em que estes foram condenados, incluindo todos os elementos subjectivos e objectivos do respectivo tipo legal.

22) Apesar da invocação do referido vício, o que os recorrentes fazem ao longo da sua motivação é disputar as conclusões retiradas pelo tribunal a partir da prova produzida, afirmando que esta não justifica a decisão condenatória, concluindo pela sua absolvição.

23) Assim, o que os recorrentes pretendem, nas suas motivações e subjectivas conclusões, é que, em vez de uma visão dos acontecimentos a que chegou o tribunal, numa actividade de imediação e numa relação de oralidade, se coloque a sua interpretação dos factos baseada, apenas e tão-somente, em partes dos depoimentos de algumas testemunhas sem que seja efectuada uma apreciação global da prova e, designadamente, analisando o depoimento de tais testemunhas juntamente com os depoimentos das restantes testemunhas e juntamente com a restante prova produzida, designadamente a prova documental e as intercepções telefónicas realizadas, o que é manifestamente incorrecto e inverosímil.

24) A conjugação dos elementos que resultaram provados e não provados na audiência, permitiram que o Tribunal “a quo” formasse a sua convicção e desse como provados e não provados factos que se pretendem atacar, mas que, em nosso entender, nenhum reparo merecem.

25) Os factos ocorreram da forma como foi considerada pelo Tribunal “a quo”.

26) Da prova produzida em julgamento, não vemos possibilidade de explicar os factos de forma diferente daquela que está consagrada na Douta Sentença ora recorrida.

27) Entendem os Recorrentes que, mesmo que toda a factualidade viesse a ser dada como provada, ainda assim, deveriam os arguidos ter sido absolvidos por entenderem que o crime de lenocínio padece de inconstitucionalidade matéria.

28) Cumpre desde logo referir que os arguidos não recorreram de tal inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional.

29) Ainda assim, somos do entendimento que, também nesta matéria não assiste razão aos Recorrentes, acompanhando na íntegra os fundamentos expendidos na Douta Sentença, os quais damos aqui por integralmente reproduzidos.

30) Entendem os Recorrentes que, mesmo que toda a factualidade viesse a ser dada como provada, ainda assim, deveriam os arguidos ter sido absolvidos da prática do crime de lenocínio por falta de consubstanciação factual típica.

31) Desde logo, importa sublinhar que, para que se verifique a conduta de “fomento” da actividade da prostituição não é necessário que exista algum tipo de coacção sobre as mulheres que exercem tal actividade. Aliás, a existir algum tipo de coacção, a conduta típica preencherá os elementos do tipo do crime de lenocínio previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 169.º do Código Penal e não já a conduta típica prevista no n.º 1 do mesmo artigo.

32) Por outro lado, as condutas típicas de favorecimento ou facilitismo, não se preenchem somente com as condutas indicadas pelos recorrentes – posse, transporte e guarda dos meios para o exercício da actividade sexual – sendo que os factos provados na sentença recorrida que dão conta que os arguido AA e DD angariavam as mulheres para exercerem a actividade de prostituição no local e proporcionavam-lhes esse mesmo local imediatamente no piso superior onde funcionava o…, são claramente demonstrativos das condutas de favorecimento e facilitismo que compõem o tipo de ilícito em causa.

33) Não faz parte do tipo de ilícito penal em causa que, para que se verifique o lenocínio, o agente do crime tenha que receber uma contrapartida financeira ou pecuniária por cada acto sexual que é realizado pela mulher que exerce a actividade de prostituição que o agente fomenta ou facilita, sendo completamente indiferente que o agente receba uma parte do valor cobrado pela mulher que exerce a prostituição a cada cliente, ou que esta lhe entregue um valor monetário diário como contrapartida pela utilização de um espaço específico onde possa exercer a actividade de prostituição.

34) Por outro lado, é completamente indiferente, para a verificação do crime de lenocínio, que nalguns casos as mulheres que utilizavam os quartos que lhes eram colocados à disposição pelos arguidos para a prática da prostituição, também ali pernoitassem ou também ali praticassem actos sexuais com “amigos” ou “conhecidos” sem cobrarem qualquer quantia pecuniária em troca desses actos sexuais, pois que o que ficou demonstrado foi que a actividade principal que ali era exercida era a da prática de relações sexuais a troco de dinheiro, o que era do conhecimento dos arguidos e era, pelos mesmos, incentivado, fomentado, controlado e facilitado.

35) De facto, e considerada a matéria de facto assente e a correspondente fundamentação, bem como a exegese das mesmas levada a cabo, resultam preenchidos os elementos objectivos e o elemento subjectivo do tipo de ilícito criminal pelo qual os recorrentes foram condenados, pelo que o Tribunal a quo” fez uma correcta subsunção dos factos provados ao direito.

36) A prova produzida em julgamento e apreciada pelo tribunal “a quo” permitiu estabelecer uma correlação directa entre a actividade de prostituição e o pagamento dos quartos, tal como resulta plasmado na matéria de facto dada como provada na sentença recorrida.

37) Por fim, a matéria factual dada como provada na sentença recorrida é clara quanto à verificação do elemento subjectivo do tipo de ilícito em causa, sendo insofismável que os arguidos/recorrentes não apenas tinham conhecimento da actividade de prostituição que era levada a cabo no piso superior do ...” como, sobretudo, fomentavam tal actividade e facilitavam-na, desde logo, angariando mulheres que ali quisessem exercer tal actividade e, sobretudo, permitindo que as mesmas utilizassem o espaço superior do … de acordo com as instruções que lhes eram dadas pelos arguidos e mediante a contrapartida pecuniária de € 30 ,00 por utilização diária do espaço.

38) Assim, encontram-se totalmente preenchidos os pressupostos legais que permitem a condenação dos recorrentes pela prática do crime de lenocínio, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, razão pela qual não podem os recorrentes ser absolvidos.

39) Alegam os arguidos, ora recorrentes que, ainda que os mesmos fossem condenados, teria de haver uma distinção entre as penas aplicadas a cada um deles tendo em linha de conta a participação nos factos de acordo com o provado, sendo que, também nesta matéria não lhes assiste razão.

40) Ora, nesta sede importa sublinhar que, ao contrário daquilo que os recorrentes alegam, o grau de ilicitude das suas condutas situava-se no plano do dolo directo, porquanto os recorrentes tinham absoluto conhecimento da actividade de prostituição que ali se passava, designadamente, do facto de haver mulheres que recebiam dinheiro em troca de relações sexuais, sendo que ficou amplamente demonstrado que os recorrentes incentivavam tal actividade, controlavam, efectivamente, se as mulheres se deslocavam para o piso superior do bar com vista a exercer tal actividade e beneficiavam economicamente do exercício de tal actividade pois recebiam contrapartida pecuniária pela utilização dos quartos.

41) Acresce que são perfeitamente compreensíveis os motivos pelos quais a arguida DD foi condenada numa pena igual àquela em que foi condenado o arguido AA, pois o âmbito de actuação de ambos os arguidos foi muito semelhante, sendo que o arguido AA não tinha qualquer antecedente criminal registado pelo prática de crime de lenocínio ou pela prática de crime de idêntica natureza, pelo que as condenação anteriores sofridas pelo mesmo não poderiam agravar substancialmente a medida da pena em que foi condenado,sendo que, para além disso, ficou demonstrado que a arguida DD exercia um maior controlo sobre a actividade de prostituição que se desenvolvia no … do que o arguido AA.

42) Por força do artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena deverá ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo certo que toda a pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, o que envolve uma proporcionalidade entre a pena e a culpa, exarando-se que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal.

43) À luz destes princípios, entendemos que a Douta Sentença recorrida doseou equilibradamente a pena aplicada aos Arguidos.

44) Posto isto, e porque nenhum reparo nos merece a Douta Sentença recorrida, dúvidas não temos de que o Tribunal “a quo” andou bem ao condenar os arguidos nos moldes em que o fez.

45) A sentença condenatória está em conformidade com a prova produzida em julgamento, não padece de vícios e fez uma correcta subsunção jurídica dos factos em apreciação, razão pela qual pugnamos pela sua manutenção.

*

O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação teve vista do processo, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 416º, nº 2 do CPP.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e tendo sido realizada a audiência, com observância dos requisitos legais previstos no artigo 423º do CPP, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelos recorrentes das respetivas motivações, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) - Determinar se a sentença recorrida é nula nos termos do artigo 379º nº 1 al. b) do C.P.P., por violação do disposto no artigo 358º nº1 e 3 do C.P.P., atenta a falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica.

B) - Determinar se a decisão recorrida é nula porque fundada em prova proibida e, consequentemente, nula.

C) - Determinar se a decisão recorrida enferma do vício de erro notório na apreciação da prova consagrado na alínea c) do no nº 2 do artigo 410º do CPP.

D) - Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP.

E) - Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito por errada qualificação jurídica dos factos em virtude de:

- O crime de lenocínio ser materialmente inconstitucional.

- A factualidade apurada não se subsumir ao tipo legal de lenocínio.

- A determinação das medidas das penas não ter respeitado os princípios da legalidade e da adequação.

*

II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, deu por provados e não provados os seguintes factos:

“1) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, os arguidos AA e DD, com o auxílio dos arguidos LL, II e OO, exploram o estabelecimento comercial denominado “...”, sito na Rua ..., na Quinta ...; pelo menos desde maio de 2018 e pelo menos até ao dia 18 de março de 2019, o arguido GG auxiliou na exploração do referido bar.

2) A arguida DD e o arguido AA são companheiros, coabitando desde data não concretamente apurada, mas seguramente situada antes de maio de 2018.

3) No âmbito do processo n.º .... que correu termos no Juízo Local de Competência Genérica ..., foram os arguidos AA e DD condenados, por sentença proferida a 31 de janeiro de 2018 e transitada em julgado a 27 de novembro de 2019, pela prática, cada um deles, em coautoria material, de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de um ano e onze meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova em termos a delinear pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente a factos ocorridos no período compreendido entre novembro de 2014 e 10 de outubro de 2015 e relacionados com a exploração do estabelecimento denominado “...”, sito na Rua ..., na Quinta ....

4) Face a tal condenação, os arguidos DD e AA, no âmbito de um acordo alcançado entre eles e o arguido LL, passaram a dirigir a atividade do “...” também através do arguido LL, sendo que este último passou a constar como responsável pela exploração do ... e do estabelecimento de “alojamento local” sito no piso superior do aludido bar nos registos que foram efetuados na “...”, com os números de registo “E/...18” datado de 17-08-2018 e “E/.../...18” datado de 21-08-2018.

5) No entanto, apesar de o arguido LL figurar como explorador dos aludidos estabelecimentos, eram os arguidos DD e AA que, efetivamente, pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, continuavam a angariar as mulheres para trabalhar no “...” e explicar às mesmas o funcionamento do …, bem como a receber o dinheiro entregue pelas mulheres que ali desenvolviam a atividade de prostituição.

6) Para além disso, no período compreendido, pelo menos, desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, os arguidos II, OO e GG, este último até ao dia 18 de março de 2019, trabalhavam no aludido “…” como empregados de balcão e, simultaneamente, fazendo o controlo das “subidas e descidas” das mulheres que ali desenvolviam a atividade de prostituição aos quartos situados no ... andar e no sótão do edifício onde o ... funcionava, bem como o controlo do pagamento, por parte dessas mulheres, dos valores cobrados pelos arguidos pela utilização dos referidos quartos.

7) Para controlar a atividade de prostituição desenvolvida no aludido …, os arguidos DD e AA, para além de beneficiarem do auxílio dos arguidos LL, II, OO e GG, utilizavam os seus telemóveis e cartões telefónicos para, não apenas, contactar com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do …, como trocavam mensagens e efetuavam contactos telefónicos com as várias mulheres que ali exerciam ou pretendiam vir a exercer a atividade de prostituição, explicando as condições e informando se existia ou não vaga no estabelecimento, para além de, em diversas ocasiões, ali se deslocarem pessoalmente, com vista a controlar “in loco” a atividade do … e dos quartos sitos nos andares superiores do edifício.

8) O arguido AA utilizava os cartões telefónicos com os números …, contactando com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do …, nomeadamente, no período compreendido entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

9) Quanto à arguida DD, esta utilizava, entre outros, os cartões telefónicos com os números … e … para trocar mensagens e efetuar contactos telefónicos com as várias mulheres e com os demais arguidos, angariando as mulheres para trabalhar no “...”, explicando as condições e informando se existia ou não vaga, o que fez, nomeadamente, entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

10)O arguido LL utilizava o cartão telefónico com o número …, efetuando contactos com os demais arguidos, nos quais recebia e dava instruções acerca do funcionamento do … o que fez, nomeadamente, entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

11)Os arguidos II e OO trabalharam no referido estabelecimento comercial no período compreendido entre maio de 2018 e junho de 2019, cabendo-lhes servir bebidas aos clientes, bem como receber as quantias entregues pelas mulheres na ausência dos demais arguidos; o arguido GG trabalhou nos mesmos moldes até, pelo menos, ao dia 18 de março de 2019.

12) O arguido GG utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e LL, acerca do funcionamento do …, no período atrás referido.

13) O arguido II utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e LL, acerca do funcionamento do …, no período atrás referido.

14) O arguido OO utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e LL, acerca do funcionamento do …, no período atrás referido.

15)O referido estabelecimento “...”, que, no período compreendido de maio de 2018 a 4 de junho de 2019, funcionava de segunda-feira a domingo, entre as 14.30 horas e as 02.00 horas, era (e é) constituído por um salão, com um balcão, várias mesas e sofás.

16)No piso superior do imóvel onde funcionava o estabelecimento comercial denominado “...” existiam vários quartos mobilados, sendo que o acesso a tais quartos era efetuado por uma entrada existente no logradouro do imóvel, junto à entrada do ….

17)No referido estabelecimento, pelo menos no período compreendido entre maio de 2018 e 4.06.2019, trabalhavam várias mulheres, a maioria das quais de nacionalidade ..., cuja atividade consistia em aliciar os clientes a consumir bebidas alcoólicas e bem assim a acompanhá-los aos quartos existentes no piso superior onde mantinham com os mesmos relações sexuais a troco de dinheiro.

18)Para o efeito, tinham ao seu dispor, no interior dos quartos, preservativos, toalhitas humedecidas e rolos de papel higiénico e de papel de cozinha.

19)O acesso aos quartos era autorizado pelos arguidos AA e DD, ou na sua ausência, pelos arguidos LL, II, OO e GG.

20)Algumas mulheres pernoitavam nos quartos existentes no piso superior, enquanto outras apenas utilizavam os quartos para a prática das relações sexuais, não pernoitando naqueles.

21)O valor da diária pela utilização dos referidos quartos era de €30 (trinta euros) para cada mulher, sendo tal valor entregue, diariamente, aos arguidos LL, II, OO e GG que, por seu turno, os entregavam aos arguidos AA e DD.

22)As mulheres recebiam ainda 50% das quantias respeitantes às bebidas que lhes fossem pagas pelos clientes.

23)No dia 04.06.2019, pelas 15h35m, encontravam-se no interior do “...”, sete mulheres, designadamente: EEE, SS, FFF, JJ, GGG, TT e HHH, as quais desempenhavam as funções descritas em 17) a 20).

24)Bem como cinco clientes, designadamente: III, JJJ, KKK, LLL e NN; todos eles conhecedores da atividade ali praticada pelas mulheres e que ali se deslocavam com o intuito de ter relações sexuais com as mesmas, pagando para o efeito quantias que variavam entre os €30 (trinta euros) e os €40 (quarenta euros) por ato sexual.

25)Nessas circunstâncias de tempo e lugar, TT encontrava-se no piso superior e no interior de um dos quartos, na companhia de NN, encontrando-se em pleno ato sexual, tendo NN, em momento anterior, pago a quantia de €30 (trinta euros) a TT, em troca de serviços sexuais.

26)Na data indicada em 23), na sequência de busca realizada ao estabelecimento comercial denominado “...” no âmbito do presente processo, foram encontrados:

NA ÁREA DO BALCÃO

Ø A1_A1 - Um (01) documento manuscrito com o nome de diversas mulheres;

Ø A1_A2 – Um (01) disco de gravação CCTV com o n.º de série …, respectiva TV da marca ... modelo ... com o n.º …;

Ø A1_A3 – Um (01) documento de aquisição de bebidas passado em nome do explorador do estabelecimento “... – LL”;

Ø A1_A4 – Um (01) telemóvel de marca ... modelo ... com os IMEI’s ... e ...;

NA ÁREA DA COPA

Ø A1_B1 – Diversos talões manuscritos e duas (2) notas de cinco euros (5€) que se encontrava dentro de uma caneca;

Ø A1_B2 – Cento e cinquenta euros (150€) em moedas do valor de 0.50€, 1€ e 2€, que se encontrava num saco no interior de um armário;

Ø A1_B3 – Diversos documentos manuscritos tipo canhoto, que se encontravam no interior de uma lata de bebida “…”;

Ø A1_B4 – Uma (01) caixa contendo diversos preservativos;

Ø A1_B5 – Uma (01) caixa contendo diversos blocos numerados;

NO QUARTO EXISTENTE NAS TRASEIRAS DO ESTABELECIMENTO

Ø A1_C1 – Três (03) caixas contendo preservativos;

Ø OUTROS QUARTOS

Ø CORREDOR DOS CACIFOS – A.2.A:

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 2 - UTILIZADO PELA EEE

Ø (213) Preservativos masculinos variados;

Ø (38) Embalagens de lubrificantes individuais;

Ø (2) Rolos de papel de cozinha;

Ø (1) Embalagem de toalhitas;

Ø (1) Lençol de cama.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 14 - UTILIZADO PELA FFF

Ø (17) Preservativos masculinos variados;

Ø (1) Preservativo feminino;

Ø (1) Embalagem de lubrificante;

Ø (1) Rolo de papel de cozinha;

Ø (1) Embalagem de toalhitas;

Ø (1) Lençol de cama.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 17 - UTILIZADO PELA COLABORADORA MMM

Ø (18) Preservativos masculinos variados;

Ø (1) Embalagem de lubrificante;

Ø (1) Rolo de papel de cozinha;

Ø (1) Embalagem de toalhitas;

Ø (2) Lençóis de cama;

Ø (1) Toalha de banho.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 11 - UTILIZADO PELA COLABORADORA JJ

Ø (124) Preservativos masculinos variados;

Ø (2) Rolos de papel de cozinha;

Ø (1) Embalagem de toalhitas;

Ø (2) Lençóis de cama.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 10 - UTILIZADO PELA COLABORADORA SS

Ø (83) Preservativos masculinos variados;

Ø (8) Preservativos femininos;

Ø (5) Embalagens individuais de lubrificante;

Ø (2) Rolos de papel de cozinha;

Ø (3) Embalagens de toalhitas;

Ø (3) Lençóis de cama;

Ø (2) Embalagens de lubrificante.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 1 - UTILIZADO PELA COLABORADORA NNN

Ø (25) Preservativos masculinos variados;

Ø (1) Rolo de papel de cozinha;

Ø (1) Lençol de cama;

Ø (1) Toalha de banho.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 7 – DESCONHECIDO

Ø Diversos Preservativos masculinos variados;

Ø (1) Rolo de papel de cozinha;

Ø (1) Lençol de cama;

Ø (1) Embalagem de toalhitas.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 15 – DESCONHECIDO

Ø Diversos Preservativos masculinos variados;

Ø (1) Rolo de papel de cozinha;

Ø (2) Lençóis de cama;

Ø (1) Embalagem de toalhitas.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 16 - DESCONHECIDO

Ø Diversos Preservativos masculinos variados;

Ø Gel lubrificante;

Ø (2) Lençóis de cama;

Ø (1) Embalagem de toalhitas.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 19 - DESCONHECIDO

Ø Diversos Preservativos masculinos variados;

Ø (1) Embalagem de toalhitas.

Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 20 – DESCONHECIDO

Ø (1) Lençol de cama;

Ø (1) Rolo de papel de cozinha.

Ø NO INTERIOR DE CACIFO INDEFERENCIADO

Ø Contrato de Arrendamento em nome de AA e de LL e outros documentos;

Ø (1) Bloco de faturas em nome de LL.

Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 2 - UTILIZADO PELA COLABORADORA FFF

Ø (01) Rolo de papel de cozinha que se encontrava na gaveta da mesa de cabeceira; A2_B1

Ø (04) Preservativos e (2) embalagens individuais de lubrificante; A2_B2

Ø (1) Rolo de papel de cozinha que se encontrava no roupeiro; A2_B3

Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 1 - UTILIZADO PELA COLABORADORA MMM

Ø (88) Preservativos masculinos variados e (1) vibrador em forma de pénis que se encontravam numa bolsa dentro do armário; A2_C1

Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 6 - UTILIZADO PELA COLABORADORA JJ

Ø (2.000) Euros que se encontravam numa carteira dentro de uma mala, estando a mesma num armário; A2_D1

Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 8 - UTILIZADO PELA COLABORADORA SS

Ø (1) Contrato da MEO em nome de SS com a morada Avenida ..., ... ... , que se encontrava dentro de uma mala na cómoda; OOO

Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 5 - UTILIZADO PELA COLABORADORA PPP

Ø (425) Preservativos masculinos variados, (145) embalagens individuais de lubrificantes e (19) preservativos femininos que se encontravam dentro do armário; A2_F1

Ø (96) Preservativos masculinos variados que se encontravam dentro de uma mala; A2_F2

Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 4 - UTILIZADO PELA COLABORADORA QQQ

Ø (29) Preservativos masculinos variados, (6) preservativos femininos, (11) embalagens individuais de lubrificante, (1) rolo de papel de cozinha, (1) embalagem de gel de massagem que se encontravam ao lado da cama e (1) lençol que se estava a ser utilizado em cima da cama; A2_G1

Ø (1) Preservativos masculinos aberto pronto a ser usado que se encontrava em cima da cama; A2_G2

Ø (1) Embalagem individual de gel lubrificante aberto e pronto a ser usado que se encontrava na gaveta da mesa de cabeceira; A2_G3

Ø NO INTERIOR DA MARQUISE:

Ø (1) Papel manuscrito com a distribuição dos cacifos das colaboradoras que se encontrava dentro de uma lata em cima da máquina de lavar; A2_H1

Ø Diversos preservativos que se encontravam dentro de uma mala; A2_H2

Ø (1) Sistema de Vigilância e Gravação de CCTV com respetivo ecrã que se encontrava numa prateleira; A2_H3

27) Os arguidos LL, II, OO e GG prestavam auxílio à exploração pelos arguidos AA e DD do mencionado estabelecimento comercial, quer exercendo no mesmo atividade de empregados de bar, quer facilitando (nos termos acima descritos) o exercício pelos demais arguidos da atividade descrita e da qual também obtiveram os respetivos proventos.

28) Os arguidos AA e DD agiram livre, voluntária e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços no propósito de fomentarem, favorecerem e facilitarem a prática de atos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento "..." e nos pisos superiores do edifício onde tal bar se situa, reunindo no mesmo condições para tal, beneficiando direta e economicamente das relações sexuais ali mantidas, para além de beneficiarem com a afluência de clientes que ali se deslocavam com o intuito de manterem relações sexuais e que acabavam também por consumir as bebidas ali comercializadas.

29)Por seu turno, os arguidos LL, II, OO e GG, ao colaborarem com os demais arguidos, prestando àqueles auxílio, nos moldes descritos, recebendo das mulheres que ali se prostituíam quantias em dinheiro e controlando as deslocações das mesmas aos quartos com os clientes, bem como o tempo que ali permaneciam, durante o tempo em que trabalharam para os arguidos AA e DD no “...”, atuaram com a vontade livre e a perfeita consciência de que, ao adotarem tal conduta, facilitavam o exercício da prostituição por aquelas mulheres e de cuja atividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e dos quais recebiam os respetivos proventos.

30)Todos os arguidos agiram sempre livre, deliberada e conscientemente e com o mesmo propósito, durante o período temporal referido, e pelo menos entre maio de 2018 e 18 de março de 2019 quanto ao arguido GG e pelo menos entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019 quanto aos demais arguidos, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Da contestação apresentada pelo arguido LL

31) Através de documento intitulado “Contrato de Locação de Estabelecimento”, datado de 16.08.2018, foi estabelecido que o arguido AA, na qualidade de proprietário, concederia a exploração do estabelecimento comercial denominado ..., sito na Rua ..., ao arguido LL.

32) Através de documento intitulado “...”, datado de 16.08.2018, o arguido AA, na qualidade de proprietário, arrendou ao arguido LL a fração autónoma destinada a habitação sita na Rua ....

Das condições pessoais do arguido AA

33) Consta registado na Segurança Social como trabalhador independente, com última remuneração em novembro de 2021, no valor de € 1.043,51.

34) Explora um estabelecimento comercial denominado N....

35) Consta registado como proprietário de um veículo automóvel, marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-XI.

36)Consta registado como proprietário de dois imóveis.

Dos antecedentes criminais do arguido AA

37)Uma condenação no âmbito do processo n.º …, do Tribunal Judicial de Sesimbra, de 22.09.2006, transitada em julgado a 09.10.2006, pela prática, em 20.01.2005, de 1 crime de jogo fraudulento, p. e p. pelo Decreto-Lei n.º 422/89, de 2/12, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 4,50, num total de € 450,00. Tal pena foi declarada extinta em 15.05.2007.

38)Uma condenação no âmbito do processo n.º …, do Tribunal Judicial de Sesimbra, de 04.06.2010, transitada em julgado a 05.07.2010, pela prática, em 25.03.2009, de 1 crime de jogo fraudulento, p. e p. pelo Decreto-Lei n.º 422/89, de 2/12, na pena de 135 DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE 6,50, QUE PERFAZ O TOTAL DE 877,50 EUROS. Tal pena foi declarada extinta em 26.12.2013.

39)Uma condenação no âmbito do processo n.º … do Tribunal Judicial de Setúbal, de 31.05.2011, transitada em julgado a 11.07.2011, pela prática, em 13.10.2020, de 1 CRIMES(S) DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CÔNJUGE OU ANÁLOGOS NORMA, P.P. PELO ART.º 152º, Nº 1, AL. A), DO C. PENAL e 1 CRIMES(S) DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA, P. e P. pelo ARTº 86º, Nº 1 AL. D) DA LEI 5/2006, na pena de única de 3 ANOS e 2 MESES DE PRISÃO, SUSPENSA POR 3 ANOS E 2 MESES, CONDICIONADA AO PAGAMENTO DA QUANTIA DE € 750,00 À APAV, NO PRAZO DE 2 MESES. Tal pena foi declarada extinta em 24.03.2015.

40)Uma condenação no âmbito do processo n.º …, do TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SETÚBAL, SESIMBRA - JUÍZO C. GENÉRICA -JUIZ 2, de 31.01.2018, transitada em julgado a 27.11.2019, pela prática, em 11.2014, de 1 crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ANO e 11 MESES DE PRISÃO, SUSPENSA POR 1 ANOS e 11 MESES, com regime de prova.

Das condições pessoais da arguida DD

41)Consta registada na Segurança Social como trabalhadora independente, com última remuneração em novembro de 2021, no valor de € 175,00.

42)Explora um estabelecimento comercial denominado N....

43)Não consta registada como proprietária de veículos automóveis.

44) Não consta registada como proprietária de bens imóveis.

Dos antecedentes criminais da arguida DD

45)Uma condenação no âmbito do processo n.º …, do TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SETÚBAL, SESIMBRA - JUÍZO C. GENÉRICA -JUIZ 2, de 31.01.2018, transitada em julgado a 27.11.2019, pela prática, em 18.08.2014, de 1 crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ANO e 11 MESES DE PRISÃO, SUSPENSA POR 1 ANOS e 11 MESES, com regime de prova.

(…)

2.2. Factos não provados com relevância para a decisão da causa

Da acusação

a) Que o valor referido em 21) fosse entregue, direta e diariamente, pelas mulheres que desenvolviam a atividade de prostituição, aos arguidos AA e DD.

b) Que os arguidos AA e DD não desempenhassem, nem desempenhem, qualquer outra atividade profissional remunerada, vivendo exclusivamente da exploração do mencionado estabelecimento comercial, de onde lhes advinham (e advêm) todos os seus rendimentos.

Da contestação do arguido LL

c) Que o arguido LL apenas se deslocasse ao ... pela manhã, com o intuito de verificar as contas e retirar o dinheiro deixado pelos empregados, a fim de proceder ao seu depósito.

d) Que o arguido LL nunca tivesse contactado qualquer mulher que frequentava o ....

e) Que, até 31.07.2018, o ... e o piso superior tivessem sido explorados por RRR, data em que entregou tais espaços ao arguido AA.

Inexistem outros factos não provados com relevância para a decisão da causa.

*

Na contestação apresentada pelos arguidos AA e DD é invocada a inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal e, quanto à factualidade, foi relegada a discussão para a audiência de julgamento, pelo que inexistem quaisquer factos que cumpra elencar.

Na contestação apresentada pelo arguido OO é oferecido o merecimento dos autos, pelo que inexistem quaisquer factos que cumpra elencar.

Os restantes factos são conclusivos, respeitantes a matéria de direito ou repetidos, pelo que não foram elencados. Os demais factos alegados na contestação do arguido LL consubstanciam negação da factualidade considerada assente, motivo pelo qual não foram elencados.”

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Da invocada nulidade da decisão recorrida decorrente da falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica nos termos previstos no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP.

A questão da alteração ou modificação dos factos ou da sua qualificação jurídica em fase de julgamento tem vindo a ser debatida ao longo de vários anos – tendo sido, inclusive, objeto de jurisprudência fixada pelo STJ – e prende-se diretamente com temas fundamentais do processo penal, designadamente o do seu fim e o das garantias de defesa do arguido.

Conforme se consignou com toda a clareza no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 7/2008, de 25.06.2008 (1)

“(…) O objecto do processo é o objecto da acusação, o qual se mantém até ao trânsito em julgado da sentença, protegendo o arguido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal, assegurando os direitos ao contraditório e à audiência, direitos essenciais à defesa do arguido e à democraticidade do processo penal, que se traduzem no direito de o arguido ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte [alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal], bem como no direito a que todos os actos e procedimentos processuais, na fase de julgamento, sejam susceptíveis de oposição e de discussão, o que implica uma efectiva participação neles, com possibilidade de os discretear, mediante a apresentação de razões e argumentos de facto e de direito.

A vinculação do tribunal, porém, quer no que concerne aos factos descritos na acusação quer no que tange ao enquadramento jurídico dos mesmos ali operado, não é absoluta.

Com efeito, em certos casos e situações, por razões várias, já depois de deduzida a acusação, algumas vezes no decurso do julgamento, outras já na fase de recurso, vêm -se a descobrir novos factos ou a constatar que os factos constantes da acusação foram deficientemente ou insuficientemente descritos ou deficientemente ou incorrectamente qualificados, possibilitando a lei, limitadamente, desde que salvaguardadas as garantias de defesa do arguido, a alteração dos factos e ou a alteração da sua qualificação jurídica, para que o processo possa alcançar o seu concreto fim, isto é, a descoberta da verdade e a realização da justiça.

É através do instituto denominado da alteração dos factos, instituto previsto nos artigos 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal, que se estabelece e regula a possibilidade de alteração dos factos descritos na acusação e na pronúncia, bem como a alteração da sua qualificação jurídica.

[...]

Prevê a lei, ainda, a possibilidade de alteração da qualificação jurídica, situação em que, não ocorrendo alteração factual, se verifica, porém, necessidade de modificar a qualificação jurídica que na acusação ou na pronúncia se atribuiu aos factos nas mesmas descritos, situação que o legislador entendeu submeter ao regime aplicável à alteração não substancial dos factos — n.º 3 do artigo 358.º”

[...]

Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, o legislador entendeu dever tomar posição perante as diversas posições doutrinais e jurisprudenciais assumidas, tendo consagrado, por via de aditamento de um número ao artigo 358.º, o 3, a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa, ressalvando os casos em que a alteração derive de alegação feita pela defesa — n.º 2 do artigo 358.º(…)”

Dispõe atualmente o artigo 358º do CPP nos seguintes termos:

“Artigo 358.º

Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia

1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”

A concreta questão que nos presentes autos, a propósito da temática da alteração da qualificação jurídica na sentença, constitui o objeto da nossa análise é a de saber se, encontrando-se os arguidos acusados pela prática de um crime de lenocínio na forma continuada, nos termos previstos no artigo 30º, nº 2 do CP, a sua condenação, pelos mesmos factos, mas qualificados como um único crime de lenocínio de “trato sucessivo”, consubstanciou uma alteração da qualificação jurídica processualmente relevante e determinante do cumprimento do regime previsto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP. Concluindo-se pela resposta afirmativa a tal questão, importará ainda apurar qual a consequência jurídico processual que deverá ser assacada ao incumprimento do referido regime, uma vez que o tribunal “a quo”, não procedeu à comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ao arguido, nem lhe concedeu a possibilidade de o mesmo requerer prazo para a preparação da defesa quanto a tal alteração.

Nas suas alegações de recurso, considera o arguido que a sentença recorrida enferma do vício de nulidade em virtude de ter alterado a qualificação jurídica constante da acusação, afastando a qualificação de crime continuado e condenado os arguidos pela prática de um crime de lenocínio de “trato sucessivo” sem ter dado cumprimento ao regime legal estabelecido pelo artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP.

Sobre tal alegada nulidade, pronunciou-se o tribunal recorrido, em despacho autónomo, nos seguintes termos:

“(…)Para além da ressalva ínsita no n.º 2 do referido artigo, vem-se entendendo que existem outras situações em que é inútil prevenir o arguido da alteração da qualificação jurídica, tendo em conta que tal instituto visa assegurar as garantias de defesa do mesmo.

“Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos [o n.º 3 do artigo 358.º foi aditado pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto], o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República Portuguesa (…) consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado (…) Assim e atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação de defesa” – GASPAR, António da Silva Henriques, et al., Código de Processo Penal Comentado, 2.ª edição revista, Almedina, 2016, p. 1084.

Nesta senda, quando da alteração resulta a imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando do despacho de acusação ou de pronúncia resultava a imputação do mesmo crime, mas de forma qualificada ou mais grave, não deve ser comunicada a alteração, que consubstancia um minus, visto que o arguido, ao defender-se do crime mais grave ou na forma qualificada, defendeu-se, necessariamente, do crime simples ou menos agravado.

No caso concreto, a acusação imputa aos arguidos a prática, em coautoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de lenocínio, previsto e punido pelos artigos 169.º, n.º 1 e 30.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

Entendeu este Tribunal que, atendendo ao tipo crime em apreço, não é aplicável o disposto no artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal e condenou cada um dos arguidos pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

Considera este Tribunal que o facto de ter entendido que não é aplicável a forma continuada ao tipo de crime aqui em apreço (pois não é aplicável aos crimes contra bens eminentemente pessoais – artigo 30.º, n.º 3, do Código Penal), mas ter concluído que o crime foi praticado em trato sucessivo, em nada contendeu com as garantias de defesa dos arguidos, porquanto a qualificação jurídica dos factos manteve-se inalterada e, por conseguinte, também a moldura da pena abstratamente aplicável.(…)”

Cremos, porém, que não decidiu acertadamente.

O conhecimento da nulidade arguida pelo arguido e que agora constitui o objeto da nossa análise, demanda que façamos uma breve incursão pelas figuras do crime continuado, pelo qual os arguidos se encontravam acusados e do crime de “trato sucessivo”, pelo qual acabaram por ser condenados.

Começamos por fazer notar que apenas o crime continuado encontra consagração legal expressa no nosso ordenamento jurídico-penal, concretamente no artigo 30º, nº 2 do CP (2), sendo que o crime de “trato sucessivo” surge como uma construção teórica, doutrinária e jurisprudencial (3) que pretendeu responder à necessidade de encontrar uma resposta penal adequada para as situações em que não se revela possível apurar o número de crimes cometidos num determinado período de tempo e/ou nas quais se verifica um maior grau de culpa do agente face à reiteração de comportamentos integradores do crime e lesivos dos bens jurídicos protegidos. Ora, é precisamente este último elemento identificativo, o que se reporta à culpa do agente, que separa concetual e relevantemente as duas figuras em análise, pois que, enquanto no crime continuado o legislador pressupõe que a realização plúrima do mesmo tipo de crime ocorra no quadro da solicitação de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente – nos termos expressamente previstos no artigo 30º, nº 2 do CP – o crime de trato sucessivo, assentando embora também numa pluralidade de infrações, pressupõe, ao invés, que às mesmas, pela sua reiteração, se associe um juízo de censura acrescido, que deverá ser graduado em função da maior ou menor persistência da resolução criminosa, relevando, obviamente para a sua apreciação, o número de práticas delituosas que, ao longo do tempo, foram sendo executadas. (4)

Efetivamente, manifestando-se o crime de trato sucessivo pela prática de atos reiterados, que haverão de ser sucessivos, apresentar-se como homogéneos, ocorridos num mesmo contexto situacional e em proximidade temporal, aos quais preside uma unidade resolutiva, o dolo do agente abarca, desde o início da sua atuação, tal pluralidade de atos, sendo que a reiteração, reveladora de uma resolução persistente do agente, traduz uma culpa agravada (5).

Assentamos, pois, em que, ao contrário do crime continuado, no crime de trato sucessivo não há uma diminuição considerável da culpa do agente, mas, antes um seu progressivo agravamento proporcional à dimensão da reiteração das condutas.

Neste sentido se pronunciou Cristina Almeida e Sousa no seu estudo sobre o “trato sucessivo” nos crimes sexuais, no qual refere que “As regras contidas no artigo 79.º do CP não podem, sob pena de violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade características do Direito Penal e dos postulados de clareza e segurança jurídica que lhes estão subjacentes, ser as mesmas, tão aptas e em igual medida, para punir o crime continuado que traduz uma pluralidade de infrações, interligadas por um tipo substancialmente atenuado de culpa e o crime de trato sucessivo, que assenta numa pluralidade de infrações, unificadas por um tipo agravado de culpa.”(6) (7)

Aqui chegados e retomando a questão que concretamente nos ocupa, cabe perguntar se, encontrando-se os arguidos acusados pela prática de um crime de lenocínio na forma continuada, nos termos previstos no artigo 30º, nº 2 do CP, a sua condenação, pelos mesmos factos, mas qualificados como um único crime de lenocínio de “trato sucessivo”, consubstanciou uma alteração da qualificação jurídica processualmente relevante e determinante do cumprimento do regime previsto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP. E a resposta, em nosso entender e ressalvado o respeito por opinião diversa, não poderá deixar de ser afirmativa.

De facto, seguindo de perto o entendimento que, de forma praticamente consensual tem vindo a ser delineado na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, entendemos que o critério para determinar se se impõe ou não a comunicação da alteração da qualificação jurídica nos termos estabelecidos pelo artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, deverá ser o da salvaguarda das garantias de defesa do arguido, no sentido de dever ser feita tal comunicação se o direito de defesa sair afetado com a alteração da qualificação jurídica. Dito de outro modo, a alteração não substancial dos factos, na qual se inclui a alteração da qualificação jurídica, terá de ser jurídico penalmente relevante, o que pode ocorrer se tiver reflexos ao nível da tipicidade, se for distinto o juízo de valoração social ou se puder influir na determinação da pena aplicar. (8) (9)

E é exatamente o que sucede na situação em análise no presente recurso, pois que, levando em conta as explanações precedentes sobre a destrinça entre crime continuado – pelo qual os recorrentes se encontravam acusados – e crime de trato sucessivo – pelo qual os mesmos vieram a ser condenados – não temos dúvida que a alteração da qualificação jurídica operada pelo juiz do julgamento foi jurídica e processualmente relevante, despe logo porquanto implicou a condenação por um tipo penal com juízo de censura agravado, com inevitáveis reflexos ao nível da medida concreta da pena. E se dúvidas subsistissem sobre a relevância da alteração da qualificação jurídica no que diz respeito à fixação das dosimetrias das penas, bastaria atentarmos no que a tal propósito se consignou na sentença recorrida e que por clareza de exposição, passamos a transcrever “(…) cumpre destacar que o grau de ilicitude é elevado, tendo em consideração o período temporal em causa; o número de vítimas aqui em apreço, sendo que apenas algumas foram identificadas (no âmbito das buscas realizadas ao local); o modo de execução que implica premeditação – pois foi montada uma estrutura que permitia que clientes com o intuito de praticar atos sexuais mediante o pagamento de quantias monetárias se dirigissem ao local, fossem abordados por mulheres que aí exerciam atividade de prostituição e tivessem acesso a quartos para a prática de tais atos; destaca-se que, no que concerne aos arguidos AA, DD e LL o grau de ilicitude é mais elevado por comparação aos restantes arguidos, considerando que eram aqueles que exploravam (formalmente e/ou de facto) o … aqui em apreço, enquanto os demais arguidos eram funcionários do … e agiram para auxiliar aqueles;(…)”

Como facilmente se retira do conteúdo do excerto transcrito, o tribunal fez relevar para a determinação das medidas das penas dos recorrentes os elementos caracterizadores dos crimes de trato sucessivo, concretamente a reiteração das condutas homogéneas, às quais presidiu uma unidade resolutiva, necessariamente associadas a um tipo agravado de culpa, emergindo, assim, como evidente a relevância “in casu” da alteração da qualificação jurídica.

Resta, pois, concluir que ao condenar os arguidos pela prática do crime de lenocínio, praticado em trato sucessivo e não pela prática do crime de lenocínio na forma de crime continuado, pelo qual se encontravam acusados, sem que tivesse sido efetuada a comunicação àqueles da alteração da qualificação jurídica imposta pelos nºs 1 e 3 do artigo 358º do CPP, não lhes tendo sido possibilitado requererem o prazo previsto em tal norma para a preparação das suas defesas, a sentença recorrida enferma do vício de nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Com efeito, a comunicação aos recorrentes da alteração da qualificação jurídica e a concessão do prazo para se defenderem de tal alteração, caso aqueles o requeressem, teria sido a única forma de se respeitar o princípio do acusatório – no sentido de que se ao Ministério Público cabe deduzir a acusação, definindo o recorte factual a submeter a julgamento, ao Tribunal compete aplicar a lei, decidindo os casos que lhe são apresentados de forma independente, nos termos constitucionalmente previstos no artigo 203º da CRP – sem violar as garantias de defesa do arguido, também com assento constitucional no artigo 32º da CRP. O mesmo é dizer que o Tribunal poderia ter legitimamente exercido a sua liberdade para qualificar juridicamente os factos constantes da acusação de maneira diversa da que aí se consignou, apenas devendo ter prevenido o arguido de tal alteração de qualificação, de forma a não prejudicar a sua defesa, nos termos impostos pelo artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP.

Resta, pois, concluir pela nulidade da sentença recorrida (10), nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, por ter condenado os recorrentes por crime com qualificação jurídica diversa da constante da acusação, sem ter sido dado cumprimento ao disposto no citado art.º 358.º, n.º 3, do CPP, procedendo os recursos nesta parte. Tal decisão implicará a remessa dos autos à primeira instância, para que o tribunal recorrido reabra a audiência de julgamento a fim de dar cumprimento ao que se dispõe no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, e proferindo, oportunamente, nova sentença.

***

Pese embora, de acordo com as regras da precedência aplicáveis às decisões judiciais – artigo 608.º, nº 1.º CPC, ex vi do artigo 4.º CPP, nos termos do qual cumpre apreciar, primeiramente, os vícios formais da decisão recorrida – não competisse conhecer neste momento do erro de julgamento quanto à matéria de direito, concretamente no que diz respeito à invocação da inconstitucionalidade do tipo penal de lenocínio, por razões de lógica e de economia processual, entendemos ser de apreciar desde já tal questão, conquanto, a eventual procedência da mesma tornaria inútil a remessa dos autos ao tribunal recorrido, nos termos sobreditos.

B) Da invocada inconstitucionalidade material do crime de lenocínio

A este propósito, defende o arguido nas conclusões do seu recurso que:

“(…)188º. Já quanto ao crime de lenocínio simples, na esteira do entendimento dominante na doutrina, o mesmo passou a tratar-se de um crime sem vítima, uma vez que não existe qualquer tipo de pressão ou coação sobre a alegada vítima. Não existindo sequer quaisquer condicionantes sociais de exploração de situações de abandono ou de necessidade económica da alegada vítima e sendo o exercício da prostituição de execução livre, naturalmente que não existe nenhuma lesão efetiva de um bem jurídico, mesmo na equação de o bem jurídico ser a “liberdade sexual”.

189º. Aliás, a atual criminalização do lenocínio passa precisamente por limitar a liberdade sexual do indivíduo que não pode dispor do seu corpo como bem entende e lhe é conferido por direito, ainda que o faça numa estrutura do tipo empresarial.

190º. A justificação e intervenção do Direito Penal deverá limitar-se apenas a condutas do foro sexual que violem um bem jurídico eminentemente pessoal, nomeadamente quando está em causa o desenvolvimento sexual de menores, ou quando em relação a adultos se utilize a violência, ameaça grave, se provoque o erro ou se aproveite do seu estado de pessoa indefesa.

191º. Hoje a larga maioria da doutrina penal portuguesa é consensual no que concerne à criminalização de índole exclusivamente moralista do denominado lenocínio simples previsto e punível pelo referido artigo 169.º n.º 1 do actual Código Penal.

192º. Nos últimos 16 anos, o Tribunal Constitucional (T.C.) já foi chamado várias vezes a pronunciar-se sobre esta questão e tem sempre considerado que o crime de lenocínio simples não é inconstitucional. Todavia, é justo dizê-lo, esta não tem sido a opinião unânime dos juízes que compõem o T.C..

(…)

195º. No passado dia 03/03/2020, o Tribunal Constitucional através do Ac. nº 134/2020, pela primeira vez, inverteu a posição até aí assumida (embora com votos de vencido no sentido da constitucionalidade), e julgou inconstitucional o crime de lenocínio simples, constante do artigo 169.º, n.o 1, do Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, fundamentando, em síntese que: “o lenocínio apresenta, neste ponto, uma relevante particularidade em relação a outros crimes destinados a tutelar a liberdade sexual: o seu objeto direto ou imediato não é a própria prática dos atos sexuais em que se traduz a prostituição, mas o ato de fomentar, facilitar ou favorecer essa prática. Por essa razão, não se afigura necessariamente de concluir que este tipo legal de crime comporte uma restrição desproporcional da liberdade sexual de quem se prostitui: o tipo legal não veda essa prática, embora limite as condições em que a mesma pode ser desenvolvida, designadamente a possibilidade de associação de quem se prostitui a uma pessoa ou organização de pessoas que fomente, facilite ou favoreça essa prática. Porém, se não se perder de vista que o único desígnio constitucionalmente legítimo deste tipo legal de crime seria o de tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui, e que a sua estrutura é a de uma presunção (melhor, de uma cadeia de presunções) segundo a qual essa pessoa não prestou o seu acordo àquela prática, a perspetiva exposta não deixa de se lhe aplicar: o fundamento último do tipo legal não deixa de ser a tutela de um direito que, em face da conduta tipicamente descrita, pode plausivelmente ter sido exercido pelo seu portador. (...) a norma não resiste ao teste da necessidade: a extrema fragilidade do nexo entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutelar, acrescida do facto de a mesma abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem se prostitui, não permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito. (...) a vigente norma incriminatória restringe um direito (à liberdade) em nome de um outro (à liberdade sexual) que pode plausivelmente não ter sido colocado em perigo concreto e ter até sido livremente exercido pelo seu titular, circunstância em que não há, portanto, carência de tutela penal”.

196º. Os Arguidos, seguindo aquela que consideram ser a melhor doutrina e jurisprudência nesta matéria entendem que o crime de lenocínio padece de INCONSTITUCIONALIDADE, pelo que se entende que, declarando V. Exa. a requerida inconstitucionalidade, não poderão os Arguidos ser punidos pela norma incriminatória ínsita no artº. 169º nº 1 do C.P.(…)”

Não subscrevemos, porém, tal entendimento, nem o acórdão do TC invocado pelos recorrentes – Ac. nº 134/2020 – se encontra já em vigor, por ter sido expressamente revogado pelo Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2021, de 27 de janeiro a que infra aludiremos.

Conforme o tribunal recorrido teve já oportunidade de referir na sentença sob recurso, a questão da conformidade constitucional do crime de lenocínio tem vindo a ser discutida no Tribunal Constitucional, tendo-se este tribunal pronunciado múltiplas vezes pela não inconstitucionalidade do tipo penal em análise. Recentemente, vieram, porém, a ser proferidas algumas decisões com votos de vencidos pugnando pela inconstitucionalidade do crime de lenocínio, tendo chegado a ser proferido o acórdão nº 134/2020 invocado pelos recorrentes.

Precisamente com vista a superar a divergência de pronunciamentos decisórios – num recurso interposto pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto para o Plenário do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1 da Lei do TC, na sequência da prolação pela 3.ª Secção do Acórdão n.º 134/2020 (acórdão invocado pelos arguidos nos recursos), que, divergindo de múltiplas decisões anteriores do TC, julgou inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição – foi publicado o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2021, de 27 de janeiro, proferido no âmbito do processo n.º 1458/2017 e relatado pelo Conselheiro José António Teles Pereira, no qual se decidiu:

“a) Não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal;

b) Revogar o Acórdão n.º 134/2020 (11), proferido nos presentes autos; e, consequentemente,

c) Julgar improcedente o recurso originariamente interposto.” (12)

Uma vez que subscrevemos inteiramente a linha argumentativa eloquentemente exposta em tal aresto, por se nos afigurar de inquestionável utilidade à compreensão dos fundamentos que suportam o juízo de não inconstitucionalidade da norma penal em causa, passamos a transcrever parcialmente – nas partes que entendemos mais relevantes – a sua fundamentação:

“(…) Em suma, as posições no sentido da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal têm assentado na afirmação da perda de conexão com um bem jurídico suficientemente definido, a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Ao eliminar-se o elemento típico de exploração duma situação de abandono ou necessidade, já não estaria em causa a proteção da liberdade sexual e, por outro lado, a dignidade da pessoa humana seria mobilizável em termos vagos, não oferecendo suporte bastante à incriminação. Não se afigurando viável considerar uma interpretação do preceito mais restritiva do que a sua letra consente, restaria apenas, então, a injustificada criminalização da mera atividade de proxenetismo, a tutela por via penal de interesses morais ou de bons costumes, a evitação “do pecado”, que poderia manifestar-se até com sinal contrário ao da liberdade individual das pessoas que a norma visou proteger. Os possíveis comportamentos atentatórios da dignidade humana estariam fora do tipo, sem poderem considerar-se necessária ou mesmo razoavelmente pressupostos na ação expressamente proibida, o que, especialmente estando em causa um comportamento passível de acordo, não consentiria uma construção constitucionalmente conforme de um crime de perigo abstrato, já de si particularmente exigente.

Não é esta, todavia, a única perspetiva a partir da qual pode ser olhada a norma sub judice.

2.3. Como é sabido, outras decisões do Tribunal Constitucional, em expressiva maioria, têm adotado uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice. Atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[…] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui” [Acórdão n.º 641/2016)].

Existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 –, uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou propiciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, num quadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa.

E vale esta opção na intencionalidade que lhe subjaz, independentemente do tratamento legal conferido na nossa Ordem Jurídica aos atos de prostituição, em si mesmos considerados, concretamente à subtração destes a qualquer tipo de perseguição sancionatória, através de uma política usualmente qualificada – e que corresponde à realidade portuguesa – como abolicionista, por oposição a uma política proibicionista ou a um enquadramento legal de tolerância regulamentadora (v. a caraterização destas opções legais, nas suas diversas gradações, em Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, pp. 28/30).

(…)

No contexto geral da opção abolicionista, emprega-se o expressão abolição permissiva (permissive abolition, em contraposição a impermissive abolition, que sinaliza a perseguição sancionatória do cliente, Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, cit, p. 29) para referenciar, no quadro geral de uma política abolicionista, a opção por políticas públicas de não repressão sancionatória ou criminalização, tanto da oferta como da aquisição e procura de serviços sexuais (a prostituição que só envolve o par individualizado formado pelo agente da oferta e o agente da procura), criminalizando-se, todavia, no conjunto de políticas designadas como abolição permissiva, as atividades intimamente relacionadas com o aproveitamento económico por terceiros do negócio da prostituição, como paradigmaticamente o são a gestão de bordéis, os negócios do tipo clubes ou bares de alterne, que comportem ligação à atividade de prostituição, e mesmo a simples intermediação, com o objetivo de lucro, no negócio da prostituição travada entre os polos originários (quem se prostitui e o cliente).

2.3.1. Não estando, manifestamente, em causa “[…] saber se a incriminação do lenocínio, nos moldes em que se se encontra prevista, traduz a melhor opção ao nível da política criminal” (disse-se no Acórdão n.º 421/2017, retomando uma asserção já presente no Acórdão n.º 144/2004, cfr. o respetivo item 8) – constitui tal incriminação uma opção de quem está democraticamente legitimado para efeito da tomada dessas opções –, importa notar que “[…] o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, foi sempre apreciado pela jurisprudência constitucional proferida sobre a incriminação do lenocínio”, o que não impediu que se concluísse pela “[…] legitimação material da norma incriminadora constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, à luz do princípio da proporcionalidade” (Acórdão n.º 694/2017).

(…)

De onde resulta, em suma, uma liberdade, com amplitude muito considerável, do legislador – desde sempre sublinhada, neste exato contexto, pelo Tribunal (de novo remetemos para o item 8 do Acórdão n.º 144/2004) – em punir ou não punir os comportamentos, neste âmbito, com o que nisso vai implicado em termos de não proibição constitucional da solução adotada. Por outras palavras, “[d]ecidir se o risco implicado para a autonomia do agente que se prostitui deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui, é […] uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador” (Acórdão n.º 421/2017).

2.4. É que existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado (aqui referimo-nos ao resultado da atividade dos referidos movimentos organizados num plano superior ao de cada “empresário”), quase invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade comercial”.

Com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (criando redes ou procurando redes já estabelecidas, que lhe propiciem economias de escala, maximizando o controlo da atividade – insiste-se – fora de mecanismos de controlo efetivo, que pura e simplesmente não existem no nosso país), objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem.

Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal.

2.5. É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reiterada, pelo Tribunal Constitucional desde 2004, num entendimento geral desta questão que ora cumpre, em oposição ao Acórdão recorrido, afirmar de novo.(…)”.

***

A argumentação expendida pelo recorrente carece, pois, em nosso entender, de sustentação, pelo que, seguindo de perto a posição maioritariamente defendida no Tribunal Constitucional e recentemente reafirmada no acórdão nº 72/2021, de 27 de janeiro que acabámos de transcrever, somos a concluir pela inexistência da invocada inconstitucionalidade do tipo penal de lenocínio.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento parcial aos recursos apresentados pelos arguidos, decidindo, consequentemente:

- Não considerar inconstitucional o tipo penal de lenocínio simples p. e p. no artigo 169º, nº 1 do CP;

- Declarar nula a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, depois de ser dado cumprimento ao estatuído no art.º 358.º, nºs. 1 e 3, do CPP, venha a decidir em conformidade.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 11 de outubro de 2022

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

João Amaro

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1 Publicado no DR 146 SÉRIE I de 2008 -07 -30.

2 Encontrando-se expressamente excluída pelo nº 3 do mesmo preceito legal a sua aplicação aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.

3 A figura do crime de trato sucessivo surge inicialmente aplicada ao tráfico de droga, tendo, posteriormente, sido transposta para os crimes sexuais, sendo que a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem afastado a sua aplicação aos crimes sexuais por considerar que à multiplicidade de atos ofensivos da vítima – quer se trate de uma única ou de várias – correspondem autónomas resoluções criminosas, a serem subsumíveis a uma pluralidade de crimes, individualmente considerados para efeitos de punição. (neste sentido, cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 12.05.2021, relatado pelo Conselheiro Sénio Alves, de 01.10.2021, relatado pelo Conselheiro Clemente Lima e o acórdão de 27.11.2019, relatado pelo Conselheiro Augusto Matos, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

4 Com interesse para a caracterização dos crimes de trato sucessivo, ver, entre outros, os seguintes acórdãos: Acórdãos da Relação de Évora de 20.10.2015, relatado pelo Desembargador Felisberto Proença da Costa, de 11.10.2016, relatado pelo Desembargador Carlos Berguete, de 14.06.2018, relatado pelo Desembargador António João Latas, de 20.10.2020, relatado pelo Desembargador João Amaro, de 24.11.2020, relatado pela Desembargadora Ana Brito; acórdãos da Relação de Lisboa de 02.05.2019, relatado pelo Desembargador Almeida Cabral, de 22.04.2020, relatado pela Desembargadora Ana Costa Paramés, de 06.04.2020, relatado pela Desembargadora Florbela Sebastião e Silva, de 08.09.2021, relatado pela Desembargadora Rosa Vasconcelos; e acórdãos da Relação do Porto de 17.06.2020, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato e de 14.07.2021, relatado pela Desembargadora Maria Dolores a Sousa e Silva.

5 Cfr. a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.09.2015, proferido no processo n.º 2430/13.9JAPRT.S1, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível nos Sumários de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça — Secções Criminais, 2015, p. 448 e ss, in www.stj.pt.

6 Cristina Almeida e Sousa in “A inconstitucionalidade da jurisprudência do “trato sucessivo” nos crimes sexuais” – Revista Julgar online, outubro de 2019.

7 Também a Conselheira Helena Moniz, no seu estudo “Crime de trato sucessivo?”, publicado na Revista Julgar online, abril de 2018, defendeu a impossibilidade de punição dos crimes sexuais como crimes de trato sucessivo, aceitando, porém, que, ao contrário do crime continuado, aquela categoria de ilícitos, de construção dogmática, pressuponha um tipo agravado de culpa.

8 No mesmo sentido decidiram, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto 13.02.2008 (no qual estava em causa a alteração da qualificação jurídica, em julgamento, de um crime de lenocínio simples para seis crimes da mesma natureza, sem alteração factual), relatado pela Desembargadora Élia São Pedro e de 26.05.2015, relatado pelo Desembargador Neto de Moura e do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.02.2017 relatado pelo Desembargador Inácio Monteiro, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

9 Defendendo a necessidade de comunicação de qualquer alteração da qualificação jurídica, nos termos do artigo 358º do CPP, se pronunciou, com muito interesse, o acórdão desta Relação de 12.03.2019, relatado pelo Desembargador Felisberto Proença da Costa, em cujo sumário podemos ler “i) em qualquer situação em que venha a ocorrer alteração da qualificação jurídica, fora da situação do n.º 2 do art.º 358.º do Cód. Proc. Pen., já que é a lei a excepcionar a mesma, terá que ter lugar, e sempre, a comunicação da alteração, em obediência ao citado n.º 3 do art.º 358.º do Cód. Proc. Pen.

ii) porquanto, será intenção da lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da protecção global e completa dos direitos de defesa, como consagrados no n.º 1 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, pois só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.

iii) o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante.

iv) daí que seja despiciendo analisar se o regime em causa se aplica em relação a toda e qualquer alteração da qualificação, seja para figura criminal mais grave ou para figura menos grave.

10 No sentido da qualificação do vício em causa como nulidade cfr., entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.06.2008, CJ, 2008, T3, pág.52, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.02.2017 e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora 12.03.2019 (acima já citado), estes dois últimos disponíveis em www.dgsi.pt.

11 Sendo precisamente este o acórdão do TC que os recorrentes invocam e transcrevem para sustentar o juízo de inconstitucionalidade do tipo penal em análise.

12 Acórdão que os recorrentes omitem nas suas alegações de recurso