Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1224/24.0T8TMR.E2
Relator: FILIPE AVEIRO MARQUES
Descritores: ARECT
PRESUNÇAO DE LABORALIDADE
LOCAL DE TRABALHO
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
Sumário: Sumário:

Será de qualificar como contrato de trabalho a relação estabelecida entre uma empresa de estruturas metálicas e o soldador/serralheiro que exerce funções em local pertencente à primeira, utilizando equipamentos e instrumentos da mesma, cumprindo horário de funcionamento, inserido na estrutura organizativa estabelecida, recebendo instruções, auferindo contrapartida monetária mensal e estando economicamente dependente daquela.

Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1224/24.0T8TMR.E2
(Secção Social)

Relator: Filipe Aveiro Marques


1.ª Adjunta: Paula do Paço


2.ª Adjunta: Emília Ramos Costa


Sumário:


Será de qualificar como contrato de trabalho a relação estabelecida entre uma empresa de estruturas metálicas e o soldador/serralheiro que exerce funções em local pertencente à primeira, utilizando equipamentos e instrumentos da mesma, cumprindo horário de funcionamento, inserido na estrutura organizativa estabelecida, recebendo instruções, auferindo contrapartida monetária mensal e estando economicamente dependente daquela.


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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


“FAMETAL – FÁBRICA PORTUGUESA DE ESTRUTURAS METÁLICAS S.A.”, ré na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que contra ela foi intentada pelo Ministério Público, veio interpor recurso da sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Tomar – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelos fundamentos de direito e de facto supra mencionados, julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência, reconhece-se a existência de um contrato de trabalho entre FAMETAL - FÁBRICA PORTUGUESA DE ESTRUTURAS METÁLICAS, SA., e AA, com efeitos reportados, pelo menos, a 30/09/2019.

Custas a cargo da Ré.”.

Na sua petição inicial o Ministério Público tinha instaurado a acção especial contra a ré/apelante e, muito em síntese, alegou que aquando da visita inspectiva AA estava nas instalações da ré a proceder a uma soldadura, sob orientações e ordens de um encarregado da ré, a utilizar equipamento pertencente ou disponibilizado pela ré, observava horário de início e termo, como os restantes trabalhadores da ré, trabalhava em exclusivo para a ré (de quem depende economicamente) auferindo quantia variável mas regular, mas tendo sido declarados valores constantes à Segurança Social.


Contestou a ré essencialmente por impugnação. Disse que o prestador presta serviços apenas quando quer e está disponível, não está sujeito a poder de orientação e direcção; usa os seus próprios EPIs e não está sujeito ao cumprimento dos horários.


AA veio, por requerimento, dizer expressamente que não adere aos factos apresentados pelo Ministério Público e mais disse que é de sua livre e espontânea vontade que presta serviços para a ré à factura, estando colectado como soldador e porque não quer estar vinculado por contrato de trabalho, mas prestar os seus serviços a quem e quando bem entender.


Após uma primeira sentença (que foi parcialmente anulada pelo Acórdão deste Tribunal de Relação de 22/05/2025), foi proferida a sentença recorrida.

I.B.

A ré/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes:

CONCLUSÕES:

A) O douto tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto e quanto à subsunção do direito à factualidade, bem como à aplicação da lei.

Sobre a matéria de facto:

B) Impugnamos os factos provados 9. e 10.,

C) pois o que resulta da prova produzida – nomeadamente dos depoimentos de AA, datados de 28-10-2024, de [00:19:03] a [00:22:56] e de 14-07-2025, de [00:01:15] a [00:08:14]; e dos depoimentos de BB, datados de 28-10-2024, de [00:02:00] a [00:02:55]: e de 14-07-2025, de [00:00:38] a [00:08:25] – é que AA, habitualmente, presta atividade à R. durante o horário de funcionamento da empresa (das 08h00 às 17h00),

D) mas que, pontualmente, lhe é permitido prestá-lo fora desse horário, designadamente quando considera que tem trabalho atrasado,

E) podendo apresentar-se ou ausentar-se do serviço nos dias e horas que lhe forem mais convenientes, sem que tenha qualquer obrigação de avisar previamente a empresa e sem que o seu absentismo comporte qualquer consequência disciplinar ou sequer prejuízo para o pagamento devido no final do mês.

F) podendo apresentar-se ou ausentar-se do serviço nos dias e horas que lhe forem mais convenientes, sem que tenha qualquer obrigação de avisar previamente a empresa e sem que o seu absentismo comporte qualquer consequência disciplinar ou sequer prejuízo para o pagamento devido no final do mês.

G) Tem, pois, total autonomia na organização cronológica do seu serviço, cabendo-lhe tão-só assegurar o cumprimento de determinado volume de trabalho (medido em função do peso dos materiais soldados – o que, aliás, se encontra assente na primeira parte do facto provado 13.) dentro dos prazos contratualmente estabelecidos e, naturalmente, só podendo efetuar a sua prestação durante os períodos em que a empresa esteja em funcionamento.

H) Pelo exposto, devem os factos provados 9. e 10. passar a ter as seguintes redações (ou, pelo menos, redações de sentido equivalente):

«9. AA pode apresentar-se e ausentar-se do serviço nos dias e horas que lhe forem mais convenientes, sem ter qualquer obrigação de avisar previamente a Fametal S.A. (ou o respetivo encarregado) e sem que o seu absentismo implique consequências disciplinares ou prejuízo para o pagamento mensal.

10. AA não tem obrigação de cumprir horas de início e termo do serviço ou sequer de se apresentar a uma hora específica para efeitos de distribuição e organização do serviço, dispondo de total liberdade de organização do seu tempo.».

I) Impugnamos também o facto provado 11. e o facto não provado h.,

J) pois da prova produzida – nomeadamente do depoimento de AA, datado de 14-07-2025, de [00:08:14] a [00:15:05], bem como das faturas n.ºs 0187 a 0196 juntas com a Participação da ACT de 26-08-2024, ref.ª 10914959 – retira-se que, à exceção das quantias variáveis auferidas nos meses de março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro e novembro de 2022 (cfr. faturas n.ºs 0187 a 0196 juntas com a Participação da ACT de 26-08-2024, ref.ª 10914959), nenhumas outras quantias pagas pela R. a AA puderam ser apuradas nos autos.

K) E, apesar de no facto provado 14. se enumerarem os valores respeitantes aos meses de janeiro de 2008 a março de 2024 que AA participou à Segurança Social,

L) A verdade é que na factualidade provada não ficou consignado que tais valores tivessem sido, total ou parcialmente, pagos pela Fametal S.A. (porque, de facto, não há elementos de prova que sustentem uma tal conclusão).

M) No facto provado 13., o próprio tribunal a quo não identificou qualquer pagamento pelo mês de outubro de 2022, o que permite concluir, desde logo, que os montantes enumerados no facto provado 14. não foram todos pagos pela Fametal S.A., tendo-o sido por outras entidades a quem AA prestou serviços, e que a R. nem todos os meses de vigência da relação contratual sub judice paga ao prestador de serviços (pagando apenas em conformidade com o material efetivamente soldado em cada mês e, mutatis mutandis, nada pagando se nada fosse soldado).

N) o próprio AA, na sessão de julgamento de 14-07-2025, afirma que presta serviço para outras duas empresas e que os rendimentos por si obtidos são em 60% ou 70% provenientes da Fametal e em 40% ou 30% provenientes das restantes empresas, ou seja, na prática, o reconhecimento de um contrato de trabalho nesta situação representaria para o putativo “trabalhador” uma perda de, pelo menos, 30% dos seus rendimentos.

O) Pelo exposto, deve o facto provado 11. ser substituído pelo facto não provado h.¸ passando este a integrar a matéria de factos provados.

P) Impugnamos, por fim, o facto provado 15.,

Q) pois encerra um juízo absolutamente conclusivo que, como tal, deve ser expurgado do elenco da matéria fáctica.

R) Com efeito, a conclusão da existência de dependência económica deveria de se extrair da factualidade assente, mas a realidade é que nenhum dos factos provados o permite sequer concluir.

S) É que os únicos valores que o tribunal consignou como tendo sido pagos pela R. a AA são os que constam do facto provado 13. e, além disso, como já dissemos supra, não ficou sequer demonstrado que os valores consignados no facto provado 14. tivessem sido, todos eles, pagos por aquela empresa – antes pelo contrário.

T) O douto tribunal a quo não tem, pois, qualquer sustentação aceitável para concluir pela dependência económica e, mesmo que a tivesse, o que só por mera cautela de patrocínio se concebe, nunca poderia essa conclusão constar do leque de factualidade provada (precisamente porque é um juízo conclusivo).

U) Pelo exposto, deve este facto provado 15. ser totalmente suprimido.

Face a todo o exposto,

V) afigura-se-nos que o douto tribunal a quo não deu cumprimento ao seu dever de analisar criticamente toda a prova (art. 607.º n.º 4 do CPC), antes tendo escolhido de forma seletiva e arbitrária aquilo que era conveniente para confirmar o juízo preconcebido que já possuía acerca da natureza jurídica da relação contratual sub judice.

W) Como vimos supra, a própria formulação de alguns dos pontos de facto permite até percecionar este seu juízo prévio.

X) De notar que, na fundamentação da sentença, não foi colocada em causa a espontaneidade, credibilidade, idoneidade ou veracidade dos depoimentos de qualquer das testemunhas ouvidas ou sequer das declarações de parte da R., pelo que mal se compreende que o douto tribunal a quo ignore muito daquilo que tais testemunhas (e que já tivemos oportunidade de referenciar supra).

Y) A prova que acima referenciámos impõe, pois, decisão diversa acerca da matéria de facto (e concomitantemente acerca também da matéria de direito), pelo que, em cumprimento do disposto no art. 662.º do CPC, deve o leque fáctico ser modificado nos termos acima indicados.

Sobre a matéria de direito e sua subsunção aos factos:

Z) Como tivemos oportunidade de demonstrar supra e tendo em consideração o quadro fáctico por nós apresentado, estamos perante um contrato no âmbito do qual o prestador do serviço dispunha de total liberdade de organização do seu tempo e sem qualquer controlo de pontualidade e assiduidade (factos provados 8., 9. e 10.).;

AA) sem sujeição ao poder disciplinar da entidade beneficiária (facto provado 9.);

BB) em que os instrumentos de trabalho são adquiridos por si mesmo, à exceção dos equipamentos que, por razões de certificação, têm de ser disponibilizados pela entidade beneficiária (factos provados 6. e 7.);

CC) recebendo tão-só instruções acerca de qual o serviço a realizar em cada dia (factos provados 4. e 5.);

DD) com liberdade de prestar serviço a outras entidades (facto provado 11., anteriormente facto não provado h.);

EE) com pagamento de uma retribuição mensal variável calculada em função da quantidade/peso de material soldado, nada auferindo num mês em que nada solde (factos provados 13. e 14.); cujo serviço tem de ser desenvolvido nas instalações da entidade beneficiária devido à dimensão e peso dos materiais a soldar e, como tal, durante o horário em que as mesmas estão em funcionamento (factos provados 8. e 17.).

FF) Ora, salvo melhor opinião, apesar de estarem efetivamente verificadas as características das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 12.º do CT e de bastar essa verificação para fazer operar a presunção de laboralidade, a verdade é que os demais elementos carreados nos autos denotam uma notória falta de subordinação jurídica de AA face à Fametal S.A.,

GG) não havendo qualquer prova ou factualidade que permita concluir que aquele prestava a sua atividade “no âmbito de organização e sob a autoridade desta” (p. 23 da sentença).

HH) De facto, a ausência de um horário imposto pela entidade beneficiária, a falta de consequências (disciplinares e retributivas) em caso de absentismo, o não-fornecimento de EPIs (equipamentos de proteção individual) por parte desta entidade, a inexistência de retribuição certa e estável, a inexistência de ordens ou orientações quanto ao modo e tempo da execução do serviço (e, mutatis mutandis, a vincada autonomia do prestador no modo e tempo da execução desse serviço), a possibilidade de prestar trabalho para entidades terceiras, bem como a exigência de seguro de responsabilidade civil, seguro de acidentes de trabalho/acidentes pessoais e certificação própria de soldador, denota não só que os prestadores de serviço da Fametal S.A. não estão integrados na sua organização e não estão sujeitos à sua autoridade,

II) como também denota que existe uma brutal diferença de tratamento, por parte da empresa, para com aqueles prestadores (inclusivamente para com AA) face aos trabalhadores subordinados.

JJ) Além disso, tudo isto demonstra também, sem sombra para qualquer dúvida, que a presunção do art. 12.º do CT foi absolutamente ilidida.

KK) E, mesmo que se tivesse apenas em consideração o quadro fáctico consignado na sentença (ou seja, a matéria de facto provada e não provada tal como consta da decisão recorrida, sem as alterações e aditamentos por nós sugeridos supra), o que só por mera cautela de patrocínio se concebe, afigura‑se‑nos que deveria, ainda assim, ter-se concluído que a supramencionada presunção foi ilidida pela R., já que dos próprios factos assentes no aresto ora impugnado resulta o seguinte:

• as “orientações e ordens” emitidas por BB a AA consubstanciam-se apenas na organização (leia-se, articulação) do serviço de todos os profissionais da Fametal S.A. através da “indicação de qual o serviço diário a realizar” e da “distribuição de tarefas” (factos provados 4. e 5.) – não se dando, porém, como provado que sejam emitidas instruções acerca do modo e tempo da prestação do serviço;

• alguns dos instrumentos de trabalho são facultados pela Fametal S.A., mas outros, em particular os EPIs, são adquiridos pelo próprio AA (factos provados 6. e 7. e facto não provado a.);

• AA presta serviço entre as 08h e as 17h, pode faltar quando quer, tem disponibilidade de horário e, em caso de absentismo, avisa o encarregado – não se dando, porém, como provado que aquele tenha um horário imposto pela R., que seja obrigatório avisá-la quando falta e/ou que a sua ausência tenha quaisquer consequências disciplinares ou retributivas (factos provados 8., 9., 10. e 16. e facto provado b.);

• tem liberdade de prestar serviço a entidades diferentes da Fametal S.A. e efetivamente presta-o (facto provado 11.);

• a quantia paga pela Fametal S.A. a AA tem uma periodicidade mensal e é variável, mas há meses em que nada lhe é pago por aquela, nomeadamente em outubro de 2022 (facto provado 13.);

• o serviço é prestado nas instalações da R. devido à dimensão e peso das peças a soldar (facto provado 17.).

LL) todo este circunstancialismo evidencia, por si mesmo, que AA é absolutamente autónomo quanto ao modo e tempo da execução do seu serviço, só não o sendo quanto ao local por contingências inerentes à própria natureza do serviço de soldagem e às características do material a soldar.

MM) Como tal, salvo melhor opinião, é errado afirmar-se que aquele integra a organização da R. ou que está sujeito à autoridade desta, não se percebendo minimamente de que forma o douto tribunal a quo considera ter-se manifestado essa autoridade.

NN) Assim sendo, só se pode concluir que, mesmo perante o quadro fáctico da sentença, in casu não se verifica qualquer subordinação jurídica, tendo sido completamente ilidida a presunção do art. 12.º do CT.

OO) E, se dúvidas persistissem quanto à elisão desta presunção, a manifestação da vontade real e inequívoca deste putativo “trabalhador” nos presentes autos, nomeadamente através do seu Requerimento de 18-10-2024, ref.ª 11072182, e reiterado também através dos seus depoimentos, sempre seria suficiente para afastar todas as incertezas.

PP) O douto tribunal a quo arreda completamente esta vontade por motivos que não se digna de explicar minimamente e, neste conspecto, esquece‑se da doutrina que ele mesmo referencia na fundamentação da sua sentença, segundo a qual «a vontade real das partes pode impor o afastamento de um indício aparente da autonomia do trabalhador, quando este indício seja desmentido por outros, cujo conjunto indique que as partes quiseram, afinal, celebrar um contrato de trabalho».

QQ) Assim sendo e não se identificando, in casu, qualquer indício suficientemente forte que justifique a derrogação da vontade processualmente manifestada do putativo “trabalhador”, é esta vontade manifestada que deve prevalecer.

RR) O douto tribunal a quo fez, assim, uma errada interpretação e aplicação do art. 11.º e do art. 12.º, ambos do CT,

SS) Extraindo dos factos e da prova conclusões e juízos notoriamente preconcebidos e construídos de forma acrítica e infundamentada, limitando-se a aderir às conclusões precipitadas da participação da ACT e do articulado do MP.

TT) Pelo exposto, deverá o presente recurso obter o devido provimento e alterar-se a decisão recorrida na respetiva matéria de facto e na aplicação do direito aos factos, absolvendo-se totalmente a R. no âmbito deste processo.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso obter o devido provimento, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por acórdão que absolva a R. no âmbito da presente ação, com o que se fará a acostumada justiça.

I.C.

O Ministério Público respondeu às alegações defendendo a improcedência do recurso.


I.D.


O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.


Após os vistos, cumpre decidir.


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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


No caso, impõe-se apreciar:

a. Impugnação da matéria de facto;

b. Eventual erro de qualificação da relação contratual como sendo de trabalho.


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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Fundamentação de facto:

III.A.1 Impugnação da matéria de facto:

O recorrente cumpriu minimamente os requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que se impõe a análise das questões suscitadas na sua impugnação da matéria de facto.


Assim, conforme o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, esta Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento (mesmo superveniente) impuserem decisão diversa.


O Tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve considerar o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4, do artigo 607.º e da alínea a), do n.º 2, do artigo 5.º, ambos do Código de Processo Civil.


Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2024 (processo n.º 99/22.9T8GDM.P1[1]), “O Tribunal da Relação para reapreciar a decisão de facto impugnada tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso”.


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a) Em primeiro lugar, pretende a ré/recorrente que seja dada nova redacção aos pontos 9 e 10 da matéria de facto provada.


Importa considerar que parte desses pontos foi apreciada pelo anterior Acórdão de 22/05/2025 e, por isso, já se deve considerar como provada a primeira parte do ponto 9 (nos seguintes termos: AA, pode, por sua iniciativa faltar, mas avisa o encarregado da Fametal) e o ponto 8, nele incluindo a primeira parte do anterior ponto 10 (nos seguintes termos: AA presta o serviço para Fametal, SA. entre as 08h e as 17h, com pausa para almoço, sendo este horário o de início e termo do dos soldadores/serralheiros da requerida com contrato de trabalho declarado).


A sentença recorrida, nos novos pontos 9 e 10, deu como provado que:

9.- AA, pode, por sua iniciativa faltar, mas avisa o encarregado da Fametal, SA., por entender que é necessário esse conhecimento por aquele com vista à distribuição e organização do serviço entre os soldadores/serralheiros civis daquela.

10.- Presta o seu serviço para a Fametal, SA., sem prejuízo dos dias em que falta, fazendo o horário das 08h às 17h, com pausa para almoço, porque é às 08h que é distribuído o serviço entre os soldadores/serralheiros civis da Fametal, SA. pelo encarregado daquela.” (sendo os sublinhados, usados na sentença recorrida, para significar a nova matéria considerada).

No tocante ao ponto 9, a recorrente desconsidera o que já foi decidido (com trânsito em julgado) quanto à primeira parte desse ponto, já quando pretende que a nova redacção passe a ser a seguinte: “AA pode apresentar-se e ausentar-se do serviço nos dias e horas que lhe forem mais convenientes, sem ter qualquer obrigação de avisar previamente a Fametal S.A. (ou o respetivo encarregado) e sem que o seu absentismo implique consequências disciplinares ou prejuízo para o pagamento mensal” sem que, como se vê, nessa redacção inclua a parte já assente. Assim sendo, nessa parte (ou seja, a primeira parte desse ponto 9), improcede a impugnação.


Em relação à segunda parte do ponto 9 dos factos provados a mesma resultou clara do depoimento de AA prestado na sessão da audiência de 14/07/2025, não se vislumbrando que qualquer outro elemento probatório permita apontar em sentido contrário, pelo que improcede a impugnação também nessa parte.


Quanto ao ponto 10 a recorrente desconsidera (ver alínea H) das suas conclusões), igualmente, o que já estava decidido no Acórdão de 22/05/2025 (com trânsito em julgado), pelo que nessa parte improcede a sua impugnação. O restante que, agora, ficou provado na sentença recorrida (parte final desse ponto) encontra total apoio nas declarações de BB e AA prestadas na sessão da audiência de 14/07/2025 (não se encontrando qualquer outro elemento de prova que pudesse apontar para solução diversa), pelo que igualmente improcede a impugnação quanto a esse ponto.


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b) Insurge-se a recorrente quanto ao facto provado 11 e à alínea h) dos factos não provados (pugnando para que a alínea h) passe para os factos provados e o ponto 11 passe para o elenco da matéria não provada).


Na sentença recorrida deu-se como provado, nesse ponto 11 dos factos provados, que: “11.- Pontualmente, presta trabalho para entidades diferentes da Fametal, Sa..”.


E, como não provado na alínea h), que: “h.- AA presta os seus serviços a várias entidades e estabelece as suas próprias condições de retribuição.


Fundamentou-se essa parte da decisão quanto à matéria de facto nos seguintes termos: “Foi dado como provado o referido em 11) e não provado o indicado em h), visto apenas pontualmente, ou seja, de forma não regular, não continuada no tempo, não frequente, AA presta trabalho para outras entidades diferentes de Fametal, SA.. Veja-se que em 2022, para além da Requerida, apenas emitiu 2 recibos a outra entidade. E tal sucedeu apenas quanto aos meses de abril e dezembro, designadamente: - em 28/04/2022, emitiu recibo a Lisoter, SA., no valor de € 2.411,50; e, - em 29/12/2022, emitiu recibo a Lisoter, SA, no valor de € 1.794,00. A esta conclusão chegamos também pela valoração do campo 6, a fls. 194. Em 2023, AA, emitiu 4 recibos a Lisoter, Lda, nos meses de janeiro, fevereiro, março e em dezembro de 2023, designadamente,, nos termos seguintes: - em 30/01/2023, emitiu recibo a Lisoter, SA., no valor de € 2.119,00; -em 08/02/2023, emitiu recibo a Lisoter, SA, no valor de € 1.875,31; -em 01/03/2023, emitiu recibo a Lisoter, SA, no valor de € 1.481,49; e, -em 04/12/2023, emitiu recibo a Lisoter, SA, no valor de € 2.455,21. A esta conclusão chegamos também pela valoração do campo 6, a fls. 207. A emissão destes 4 recibos apresenta-se descontinuada no tempo, o que revela que AA trabalha para aquela sem carácter de regularidade. Em 2024 emitiu recibos a duas entidades, a Lisoter em janeiro e fevereiro e a Nivonuc, SA, em maio, outubro e novembro de 2024, designadamente, nos termos seguintes: - em 03/01/2024, emitiu recibo a Lisoter, SA, no valor de € 1.517,33; - em 06/02/2024, emitiu recibo a Lisoter, SA, no valor de € 2.292,15; - em 02/05/2024, emitiu recibo a Nivonuc, SA., no valor de € 2.515,17; - em 01/10/2024, emitiu recibo a Ninonuc, SA, no valor de € 2.136,61; - em 04/11/2024, emitiu recibo a Nivonuc, SA. no valor de € 2.309,85. Também a emissão destes recibos, a diferentes entidades, revela que se tratam de serviços ocasionais, delimitada no tempo. Em 2025 emitiu recibos a Nivonuc, em junho e julho, designadamente, nos termos seguintes: -em 01/06/2025, emitiu recibo a Nivonuc, SA., no valor de € 2.508,97; - em 01/07/2025, emitiu recibo a Nivonuc, SA., no valor de € 2.031,07. Também a emissão destes recibos revela prestação pontual de serviços a outra entidade diferente de Fametal SA. Todos os mencionados recibos constam a fls. 159 a 175 dos autos. E aqui chegados, convém salientar que os serviços prestados por AA a Lisoter, SA. e a Nivonuc SA o foram nas instalações da Fametal, SA., não sendo esta alheia a esses serviços, já que, atenta a explicação dada pela testemunha AA, é por indicação da Fametal, SA. que o mesmo presta serviços àquelas e emite os recibos, não sabendo esclarecer, quais os concretos termos do negócio que existe entre a Fametal SA e a Lisoter, SA e a Nivonuc, SA.. Esclareceu que apenas se limita a executar o trabalho, a emitir os recibos às entidades que lhe são indicadas, mantendo as mesmas condições de pagamento que tem com a Fametal, SA., sendo o serviço que presta nestas ocasiões também distribuído pelo Encarregado BB. Do exposto resulta assim que, ainda que a testemunha AA tenha emitido recibos a Lisoter, SA. e a Nevonuc, SA., esse trabalho nunca está dissociado do que presta para Fametal, SA., não estabelecendo o mesmo as suas condições de retribuição. A referida prova determinou que fosse dado como provado o indicado em 11) e não provado o referido em h).


Compulsados os autos (designadamente as diligências produzidas após ter sido proferido o anterior Acórdão de 22/05/2025) verifica-se que existe abundante prova documental (devidamente considerada na sentença recorrida) que afasta, completamente, a pretensão da recorrente. A prova documental referida foi devidamente complementada pelo depoimento de AA, de onde se pode extrair a segura convicção do que ficou a constar da decisão quanto a esses pontos.


Improcede, por isso, a impugnação também quanto a esses pontos.


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c) A recorrente impugna, finalmente, o ponto 15 dos factos provados da sentença recorrida defendendo que, dado o seu carácter conclusivo, deveria ser eliminado.


O Acórdão de 22/05/2025[2] já se pronunciou expressamente sobre a possibilidade de se poder considerar esse ponto, com apoio na seguinte jurisprudência: “factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio”, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2020 (processo n.º 2124/17.6T8VCT.G1.S1[3]).


Agora, ao contrário do que ocorreu anteriormente, existe prova que permite manter esse ponto. E a prova documental (desde logo as declarações de rendimentos, bem como os recibos passados a outras entidades), conjugada com as declarações de AA, permitem aderir à fundamentação da sentença recorrida quanto a esse ponto:

Em 2022, a testemunha AA, declarou ter prestado serviços no valor de € 28.405,00. Não declarou auferir outros rendimentos (fls. 189 a 201). A testemunhaAA, ouvido em julgamento, declarou apenas trabalhar para a requerida e para Lisoter, SA e Nivonuc, SA. Assim, se apenas trabalhou para a Requerida e para a Lisoter, SA. em 2022, significa que, durante esse ano, auferiu da Requerida a quantia de € 24.199,50 e da Lisoter, SA. a quantia de € 4.205,50. Em 2023, apenas trabalhou para a Requerida e para a Lisoter, SA.. Declarou ter prestado serviços no valor de € 23.887,75 (fls. 202 a 214). Assim, em 2023, recebeu da Requerida a quantia de € 15.956,74 e da Lisoter, SA. o valor de € 7.931,01. Em 2024, declarou ter prestado serviços no valor de € 31.312,76 (fls. 215 a 227). Declarou em julgamento, apenas ter trabalhado para a Requerida, Lisoter e Nenonuc, o que é consentâneo com o declarado a fls. 220, campo 6. Assim, em 2024, AA auferiu de Fametal a quantia de € 20.541,65, de Lisoter a quantia de € 3.809,48 e de Nevonuc, a quantia de € 6.961,63. Tal como AA afirmou, o trabalho que executa para Fametal, SA. é-lhe essencial para o seu sustento, não sendo suficientes as quantias que auferiu de outras entidades. Aliás, como o mesmo afirmou, sem o trabalho da Fametal, tinha de arranjar outro/outros clientes. Entende-se, assim, que a valoração da indicada prova nos permitiu concluir pela verificação do indicado em 15) dos factos provados.

Improcede, por isso, também neste ponto, a impugnação pretendida.


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Resta dizer, no entanto, que se opta por dar nova redacção ao ponto 14 dos factos provados: por não resultar da redacção desse ponto feita na sentença recorrida a identificação das pessoas responsáveis pelo pagamento dos rendimentos, é irrelevante para a decisão o elenco dos concretos montantes declarados à Segurança Social e que, por isso, se elimina (mantendo-se apenas a informação relevante: que é a existência de declaração de rendimentos à Segurança Social como trabalhador independente).


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III.A.2 Factos provados:

Considera-se, por isso, provado o seguinte:

1. No dia 27/3/2024, pelas 12h, foi realizada uma ação inspetiva pela autoridade para as condições do trabalho (ACT) nas instalações fabris da FAMETAL-FÁBRICA PORTUGUESA DE ESTRUTURAS METÁLICAS, SA., em Local 1.

2. Na ocasião, nas referidas instalações, encontrava-se a prestar a atividade de serralheiro /soldador AA.

3. Procedendo à soldadura de uma ligação de um pilar.

4. Na execução dos seus trabalhos na Fametal, AA, recebe indicação de qual o serviço diário a realizar por parte de BB, o qual organiza o seu serviço bem como o dos demais soldadores/serralheiros civis trabalhadores da requerida com contrato de trabalho declarado, distribuindo as tarefas entre todos.

5. Na atividade que presta na Fametal AA está sujeito a orientações e controlo de qualidade do produto por parte de BB, encarregado da Requerida.

6. Na execução do seu trabalho, AA, utiliza os equipamentos pertencentes ou disponibilizados pela Fametal, SA..

7. Os equipamentos de proteção individual que utiliza como avental, máscara, luvas e proteções auditivas são adquiridos por si.

8. AA presta o serviço para Fametal, SA. entre as 08h e as 17h, com pausa para almoço, sendo este horário o de início e termo do dos soldadores/serralheiros da requerida com contrato de trabalho declarado.

9. AA, pode, por sua iniciativa faltar, mas avisa o encarregado da Fametal, SA., por entender que é necessário esse conhecimento por aquele com vista à distribuição e organização do serviço entre os soldadores/serralheiros civis daquela.

10. Presta o seu serviço para a Fametal, SA., sem prejuízo dos dias em que falta, fazendo o horário das 08h às 17h, com pausa para almoço, porque é às 08h que é distribuído o serviço entre os soldadores/serralheiros civis da Fametal, SA. pelo encarregado daquela.

11. Pontualmente, presta trabalho para entidades diferentes da Fametal, Sa..

12. Presta trabalho para a Fametal, SA., desde 2006, mas, com a organização e termos indicados, pelo menos, desde 09/2019.

13. Como contrapartida pela quantidade de material soldado em cada mês, AA recebeu da ré uma quantia variável paga mensalmente e que foi de 3.003,00€ em 30/03/2022, 611,00€ em 28/04/2022, 2.899,00€ em 30/05/2022, 2.476,50€ em 29/06/2022, 2.704,00€ em 29/07/2022, 1.488,50€ em 30/08/2022, 2.522,00€ em 29/09/2022 e 2.470,00€ em 29/11/2022.

14. AA declara à Segurança Social os seus rendimentos como trabalhador independente.

15. AA depende economicamente da atividade que presta à FAMETAL-FÁBRICA PORTUGUESA DE ESTRUTURAS METÁLICAS, SA..

16. AA não pretende vínculo laboral com a Ré que o obrigue a permanente disponibilidade perante aquela, por querer ter disponibilidade de horário e decisão quanto aos serviços a realizar.

17. O trabalho executado por AA à Ré tem de ser prestado nas instalações desta dada a dimensão e peso das peças a soldar.


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III.A.3. Factos não provados:


Do elenco dos factos não provados continuará a constar que não se provou, com relevo para a decisão da causa, que:

a. Os equipamentos de proteção individual utilizados por AA são pertença ou disponibilizados pela Fametal, SA.

b. AA observa o horário de início e termo da prestação determinada por Fametal, SA. (mas apenas o que a esse respeito foi dado como provado).

c. AA presta trabalho para a Fametal, SA. em exclusividade, desde, pelo menos, 01/01/2020 (mas apenas o que a esse respeito foi dado como provado).

d. AA apenas presta trabalho para Fametal, SA..

e. A Requerida só verifica se a soldadura está corretamente executada.

f. AA só presta à Requerida serviços quando quer e está disponível.

g. Enquanto os funcionários da Requerida desempenham todo o tipo de tarefas, de acordo com a direção da Ré, AA apenas realiza aquilo a que se compromete prestar, isto é, soldar.

h. AA presta os seus serviços a várias entidades e estabelece as suas próprias condições de retribuição.


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III.B. Fundamentação jurídica:


A doutrina[4] e a jurisprudência[5] têm vindo reiteradamente a salientar que o que verdadeiramente caracteriza o contrato de trabalho é a chamada subordinação jurídica de uma das partes em relação à outra, subordinação essa que só no contrato de trabalho existe.


Efectivamente, confrontando as noções legais do contrato de trabalho com o de prestação de serviços, verifica‑se que os elementos que essencialmente os distinguem são o objecto do contrato (prestação de actividade ou obtenção de um resultado) e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).


Assim, enquanto que o contrato de trabalho tem como objecto a prestação de uma actividade e, como elemento típico e distintivo, a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder que o empregador tem de, através de ordens, directivas e instruções, conformar a prestação a que o trabalhador se obrigou, o contrato de prestação de serviço visa, apenas, a obtenção de um determinado resultado que a parte sujeita a tal obrigação obterá por si, em regime de autonomia, isto é, sem estar sujeita ao poder de direcção da outra parte.


A subordinação jurídica é, pois, o elemento fundamental e diferenciador do contrato de trabalho e traduz-se numa posição de supremacia do credor da prestação de trabalho (o empregador) e na correspondente sujeição do prestador da actividade (o trabalhador), cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.


Por outras palavras, a subordinação jurídica corresponde, em termos práticos, ao dever de obediência a que o trabalhador se encontra submetido no decurso da prestação da actividade que se obrigou a prestar ao empregador.


Sucede, porém, que a subordinação jurídica, sendo um conceito jurídico, não pode ser directamente apreendida e, daí, que a jurisprudência e a doutrina tenham preconizado o recurso ao chamado método tipológico que consiste em buscar na situação real em que a relação contratual se desenvolve ou desenvolveu os aspectos factuais que normalmente ocorrem no modelo típico do contrato de trabalho e que, em regra, constituem manifestações da sujeição do trabalhador ao poder directivo do empregador, sendo que cada um desses aspectos funcionará como um indício da existência da subordinação jurídica.


E são vários os indícios que costumam ser apontados: uns de carácter interno e outros de carácter externo.


Como elementos indiciários de carácter interno, reveladores da existência de subordinação jurídica ou, pelo menos, de forte presunção nesse sentido, é habitual indicar‑se a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo sobre o modo como a prestação do trabalho é efectuada, a obediência às ordens e a sujeição à disciplina imposta pelo empregador, a propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador, a remuneração em função do tempo de trabalho e a integração do prestador da actividade na estrutura organizativa do empregador.


E, como indícios de carácter externo à relação, são referidos a observância do regime fiscal e de segurança social próprios dos trabalhadores por conta de outrem.


Porém, importa sublinhar que os indícios atendíveis não podem ser isoladamente considerados, uma vez que, de per si, assumem, como é lógico, uma patente relatividade, devendo, por isso, ser sopesados no seu conjunto, na sua globalidade, impondo-se, como se disse no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/1/2009 (processo n.º 08S2278[6]) “que o juízo de aproximação a cada modelo se faça no contexto global do caso concreto”.


Ou, nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/05/2014 (processo n.º 517/10.9TTLSB.L1.S1[7]):

A subordinação jurídica encontra a sua génese: (i) na posição de desigualdade/dependência do trabalhador que é inerente à sua inserção numa estrutura organizacional alheia, dotada de regras de funcionamento própria; (ii) na correspondente posição de domínio do empregador, traduzida na titularidade do poder de direção e do poder disciplinar.

Nem sempre estando presentes alguns dos seus traços tradicionais e mais característicos, a subordinação deve perspetivar-se enquanto conceito de “geometria variável”, que comporta graus de intensidade diversos, em função, nomeadamente, da natureza da atividade e/ou da confiança que o empregador deposita no trabalhador, assumindo natureza jurídica e não técnica, no sentido em que é compatível com a autonomia técnica e deontológica e se articula com as aptidões profissionais específicas do próprio trabalhador e com a autonomia inerente à especificidade técnica da atividade, sendo, deste modo, consentânea com atividades profissionais altamente especializadas ou que tenham uma forte componente académica ou artística, tal como pode ser meramente potencial, bastando a possibilidade de exercício dos inerentes poderes pelo empregador”.

De todo o modo, o nomem iuris escolhido pelas partes (ou imposto por alguma delas) para qualificar o acordo tende a ter pouca relevância, pois será com base no comportamento posterior destas em execução do contrato, tendo em conta o enquadramento em que o mesmo se desenvolve, que se pode decidir pela qualificação jurídica de uma determinada relação.


Desde a entrada em vigor do Código de Trabalho de 2003, o trabalhador passou a poder beneficiar da presunção estabelecida no seu artigo 12.º.


Estabelecia nesse artigo 12.º do Código do Trabalho 2003 que: “Presume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição”.


Estabelece-se, agora, na redacção dada ao Código do Trabalho pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro que:

1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;

b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;

c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;

e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.

Segundo o entendimento jurisprudencial reiteradamente expresso pelo Supremo Tribunal de Justiça[8], estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdura ininterruptamente durante certo período (e não havendo mudança na configuração dessa relação), aplica-se a lei laboral vigente à data do seu início, no tocante à sua qualificação.


Ora, no caso, perante o que resultou provado no ponto 12, sabe-se que a relação se estabeleceu em 2006 (na vigência do Código do Trabalho de 2003) mas não se sabe em que termos, pelo que com a organização nos termos indicados e provados será, pelo menos, desde Setembro de 2019. Parece, por isso, ter existido alguma mudança na configuração da relação[9], parecendo adequado aplicar-se a presunção estabelecida no Código do Trabalho 2009 (e, a este propósito, sempre importará considerar a nova orientação do Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 15/05/2025 processo n.º 1980/23.3T8CTB.C2.S1[10]).


Ora, depois de relevantes considerações a propósito da noção de contrato de trabalho e sua distinção relativamente ao contrato de prestação de serviços, consignou-se na sentença recorrida, a propósito do preenchimento das características previstas no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009, que, no caso concreto, estão preenchidos os indícios previstos nas alíneas a) e b) (“AA, presta para a Requerida trabalho, nas instalações desta e com os equipamentos desta”) e que existe uma efectiva integração do prestador na organização da Ré e sob a sua autoridade, através da sujeição a ordens e instruções.


Diga-se que a recorrente admite que, no caso, estão verificadas as características das alíneas a) e b) do citado artigo 12.º do Código do Trabalho (ver a alínea FF) das suas conclusões), não discutindo a sua aplicabilidade ao caso dos autos.


De resto, a situação dos autos não é substancialmente distinta das que foram apreciadas nos Acórdãos deste Tribunal da Relação de Évora de 22/05/2025 nos processos 1223/24.2T8TMR.E1[11], 1229/24.1T8TMR.E1[12] e 1230/24.5T8TMR.E1[13].


Também neste caso, como no citado Acórdão do processo n.º 1223/24.2T8TMR.E1, pode dizer-se “que a Ré/recorrente não logrou demonstrar factos e contraindícios indicadores de autonomia que sejam quantitativa e qualitativamente significativos para permitirem a descaracterização do contrato como de trabalho. A emissão de recibos eletrónicos, comumente designados por “recibos verdes”, e o registo na Segurança Social (…) como “trabalhador independente” não são significativos, dado que é habitual neste tipo de situações e apenas reforça o propósito de não se querer assumir a existência da relação laboral, munindo-se a relação de aspetos formais que não correspondem às reais circunstâncias em que a mesma se desenvolve. O facto de (…) não pretender um vínculo laboral (…) também não tem consequências para efeito da qualificação contratual, pois esta resulta da lei” e que “o facto de só nas instalações da Ré haver condições para a atividade ser desenvolvida – por serem necessárias pontes rolantes para levantar peças de elevado peso – não afasta a presunção, mas antes reforça a ideia, como se referiu, de que o trabalho em causa não pode ser exercido de forma independente, mas integrado numa estrutura organizativa, no caso pertencente à Ré”.


Não se pode dizer que inexistisse um horário de trabalho, já que o prestador cumpria (até para estar presente aquando da distribuição do serviço) o horário dos restantes trabalhadores da ré (ver pontos 8 e 10). O prestador avisava quando faltava (o que, neste contexto, assume uma relevância contrária à que a recorrente pretende demonstrar), já para não falar da dependência económica (que é um forte e claro indício da dedicação de tempo do prestador na actividade desenvolvida para a ré).


Não assume, neste contexto, grande relevância que os equipamentos de segurança individual (avental, máscara, luvas e proteções auditivas) sejam adquiridas pelo prestador, em face da relativa importância dos demais instrumentos para o cumprimento das tarefas.


E a invocada prestação de serviços a terceiros, face aos factos instrumentais que ficaram a constar na fundamentação da decisão de facto da primeira instância (ou seja, mesmo a actividade facturada a essas empresas foi realizada nas instalações da ré e perante instruções desta), também não assume qualquer carácter preponderante.


Ou seja, falhou a ré/recorrente na prova de factos de onde se possa retirar a ausência de subordinação. Pelo contrário, neste caso, releva a prova de indícios relevantes de sentido contrário: o soldador/serralheiro exerce funções em local pertencente à ré, utilizando equipamentos e instrumentos da mesma, cumprindo horário de funcionamento, inserido na estrutura organizativa estabelecida, recebendo instruções, auferindo contrapartida monetária mensal e estando economicamente dependente daquela.


De resto, não provou a recorrente “a brutal diferença de tratamento, por parte da empresa” para com o prestador aqui em causa face aos trabalhadores subordinados (ao contrário do que pretende invocar na alínea JJ) das suas conclusões).


Dos factos provados só pode retirar-se, por isso, que a relação contratual estabelecida entre a ré e a pessoa indicada pelo Ministério Público se reconduz à existência de um contrato de trabalho.


Assim, deve ser improcedente o recurso apresentado.


*


Custas:


Conforme estabelecido no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a regra geral na condenação em custas é a de condenar a parte vencida. E havendo uma parte vencida não se passa ao critério subsidiário que é o da condenação em custas de quem tira proveito do recurso.


Assim, as custas do recurso ficarão a cargo da ré/apelante.


***


III. DECISÃO:


Em face do exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença recorrida.


Condena-se a ré nas custas do recurso.


Notifique-se.


Évora, 16/10/2025


Filipe Aveiro Marques


Paula do Paço


Emília Ramos Costa

______________________________________________

1. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5c62d7680bfd396180258b8500342396.↩︎

2. Acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/2025-930251375 e https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/73ecfcb3af2d469880258c9f00532af8.↩︎

3. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7605f49478b046e58025862b0078b66a.↩︎

4. A propósito da figura do contrato de trabalho e o que o diferencia de outros contratos, vide, muito mais desenvolvidamente e entre outros, Monteiro Fernandes, em Direito do Trabalho, 15º Edição, pp. 131/146; João Leal Amado, em Contrato de Trabalho, à luz do novo Código do Trabalho, pp. 51/56, Bernardo da Gama Lobo Xavier, em Curso de Direito do Trabalho, págs. 284 e ss. e Júlio Manuel Viera Gomes, Direito do Trabalho, relações individuais de trabalho, Vol. I, p. 81/139↩︎

5. Entre muitos outros pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/10/2015, processo n.º 292/13.5TTCLD.C1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/3143EA2163C1A6FB80257EDD0047522B↩︎

6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/03792f1f7655202080257562004002ab↩︎

7. Acessível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fff20b913171b0b680257ce50037ad80↩︎

8. Entre muitos outros: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/04/2010, processo n.º 1348/05.3TTLSB.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/7BDEC5CCEE0D986480257706003EB36B; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/09/2011, processo n.º 192/07.8TTLSB.L1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/83ca496e5d06c8178025791900518373; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/05/2014, processo n.º 517/10.9TTLSB.L1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fff20b913171b0b680257ce50037ad80.↩︎

9. A redacção deste ponto da matéria difere, sensivelmente, da que consta no ponto 3 da matéria provada do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/05/2025, processo n.º 1229/24.1T8TMR.E1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/901cb7c5a0c36ac280258c9f00532aed.↩︎

10. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a5ccd0eec286740d80258c8c0034ffda↩︎

11. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b270e1114d4be7d580258c9f00532aef.↩︎

12. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/901cb7c5a0c36ac280258c9f00532aed.↩︎

13. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8d5cc48cc7d6f63780258c9f00532afa.↩︎