Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
160/21.7T8FAR.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
HABITAÇÃO SOCIAL
CONCURSO
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O instituto do abuso de direito constitui uma cláusula geral, uma válvula de segurança que visa obstar ao exercício de direitos quando o comportamento do respetivo titular se mostre, no caso concreto, gravemente chocante e reprovável para o sentimento de justiça prevalecente da coletividade em determinado momento.
2 - Existem vários tipos de atos abusivos, ou seja, de exercícios de posições jurídicas inadmissíveis. Um deles é, justamente, o chamado “desequilíbrio no exercício jurídico”, o qual pode assumir três diferentes modalidades, as quais têm em comum, entre si, um despropósito entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados. São elas: o exercício inútil danoso; a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem; e o dolo agit qui petit quod statim reddituris est (age com dolo aquele que exige o que deve restituir logo de seguida).
3 – No caso, não se verifica uma situação de confiança justificada e merecedora de tutela, pois que a apelante ocupa a fração autónoma em causa nos autos sem qualquer título válido para o efeito porquanto entre ela e o Município de Faro não foi firmada qualquer relação contratual que tenha por objeto o referido imóvel e desde 22 de outubro de 2015 – após o contrato de arrendamento com o primitivo arrendatário, (…), ter cessado por mútuo acordo entre as partes – o apelado-réu tem diligenciado para que a autora-apelante desocupe a casa e lha entregue. Tão pouco existe qualquer obrigação por banda do autor/apelado de restituir à ré, de seguida, a casa que está a reivindicar na ação. O imóvel em questão está integrado no parque habitacional do Município de Faro, sendo o processo de atribuição de uma habitação social efetuado e formalizado à luz do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, em face do qual qualquer decisão de atribuição de habitação social é precedida de uma avaliação da condição de carência habitacional, social e económica de cada família candidata à habitação social do Município e é em função de tal avaliação que cada candidatura é graduada, sendo de acordo com essa graduação que as habitações disponíveis são afetas (aos candidatos). No caso vertente, e pese embora a ré tenha sido admitida como candidata no concurso para Atribuição de Habitações em Regime de Arrendamento Apoiado do Município de Faro de 2020 à luz do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, aquela ficou graduada na posição 99, o que significa que só poderá vir a receber uma habitação social depois de os 98 candidatos que a precedem no concurso terem, eles próprios, recebido uma habitação integrada no parque habitacional do Município de Faro.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 160/21.7T8FAR.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), ré na ação de reivindicação que lhe foi movida pelo Município de Faro, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Faro, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:
1) Declarou que o autor, Município de Faro, é proprietário da fração autónoma “Q”, correspondente ao 3º andar esquerdo, composta por 2 quartos, sala, cozinha, casa de banho e despensa, sita na Praceta (…), Lote 4, 3.º-Esq., D, em 8000-504 Faro, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (…), fração (…), da União de Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Faro sob n.º (…);
2) Determinou que a ré (…) restitua ao autor, Município de Faro, o prédio urbano referido em 1) por si ocupado, em bom estado de conservação, devendo ainda abster-se de praticar quaisquer atos que perturbem o direito de propriedade do segundo;
3) Condenou a ré (…) a pagar ao autor, Município de Faro, a quantia correspondente ao custo locatício mensal do imóvel referido em i., que se apurar em liquidação em execução de sentença, a qual é devida desde a citação até efetiva entrega do imóvel, acrescido de juros de mora desde o vencimento de cada prestação e até efetivo pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis;
4) Absolveu a ré do demais peticionado.
Na ação o autor alegara, em síntese, que é o proprietário da fração autónoma supra identificada e que a ré se apossou ilicitamente da mesma, sem qualquer título para tal desiderato, nela se tendo instalado, pretendo ser reconhecida como arrendatária do autor apesar de não reunir condições para a realização do arrendamento. Mais alegou que para além da entrega do imóvel pela ré, o autor tem direito a ser indemnizado pela utilização que aquela tem vindo a fazer do fogo habitacional sem o pagamento de qualquer contrapartida, valor que deve corresponder ao montante de uma renda que a ré teria de suportar caso fosse arrendatária.
Na sua contestação a ré alegou que a fração autónoma em causa nos autos foi-lhe dada de arrendamento verbal acordado com o irmão do primitivo arrendatário e que preenche os requisitos de atribuição de imóvel municipal. Deduziu pedido reconvencional pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 10.000,00 acrescida de juros legais vincendos como forma de compensação dos danos não patrimoniais que a atuação do réu lhe tem causado.
Ao pedido reconvencional respondeu o autor, sustentando que a reconvinte não tem qualquer direito a permanecer na fração autónoma melhor identificada nos autos como foi sucessivamente declarado e reconhecido pelos tribunais competentes em processos interpostos pela ré.
Em sede de audiência prévia, o julgador a quo proferiu despacho no qual não admitiu o pedido reconvencional e manifestou a sua intenção de proferir saneador-sentença, concedendo às partes prazo para alegarem.
Em 14.09.2021 foi proferido despacho com o seguinte teor:
«Considerando o teor da pronúncia da Ré à possibilidade de ser proferido saneador-sentença, invocando abuso de direito que é uma exceção de direito material de conhecimento oficioso, à cautela, decide-se prosseguir os autos com produção de prova, pelo que deverá ser proferido despacho-saneador.
Assim, notifique as partes para, em 2 dias, indicarem, se o despacho-saneador poderá ser proferido por escrito ou se pretendem que o Tribunal designe data para continuação da audiência prévia. Caso nada seja dito, entender-se-á que as partes dão o seu acordo a que o Tribunal profira o despacho-saneador por escrito.
À cartela, apenas para o caso de ser necessário, desde já se reserva o 19 dia de outubro de 2021, pelas 11.00 horas para a audiência prévia.
Notifique».
Foi proferido despacho fixando o valor da causa, despacho saneador e despacho que definiu o objeto do litígio e dos temas de prova.
Após a realização da audiência de julgamento foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I.O Tribunal a quo apreciou, em sede de motivação, a eventual existência de Abuso de Direito na pretensão do município recorrido, tendo concluído pela não verificação da referida vicissitude jurídica no caso em apreço.
II. O abuso de direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objeto de apreciação e decisão, ainda que não invocado – Ac. STJ de 11.12.2012 no proc. 116/07.2TBMCN.P1.S1.
III. No caso sub judice, por um lado, a recorrente habita uma fração afeta ao parque habitacional de habitação social do Município de Faro, sem que a mesma lhe tenha sido atribuída por esta entidade com observância das formalidades legais.
IV. Por outro lado, a recorrente encontra-se admitida como candidata à atribuição de habitação social, aguardando, portanto, que o recorrido cumpra com a sua obrigação de lhe providenciar alojamento.
V. E, no entanto, dois anos volvidos após a assunção da obrigação de alojamento da requerida através da atribuição de habitação social, o recorrido não cumpriu com o seu desiderato, vindo antes exigir judicialmente à recorrente a restituição de espaço destinado ao programa de habitação social do município.
Vi. Para além das situações de Atribuição de Habitações em Regime de Arrendamento Apoiado, programa para o qual a recorrente se encontra eleita, o Regulamento do Parque Habitacional do Município de Faro publicado na 2ª série, n.º 25, de 5 de Fevereiro de 2018 prevê, nos artigos 43.º e ss. a modalidade de atribuição de Alojamento de Apoio Temporário, o qual se destina, sob a forma de várias submodalidades, a dar resposta a situações de cariz urgente, cuja pressa não se compadeça com a demora na atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado.
VII. São elegíveis para esta modalidade, designadamente, os indivíduos com “Falta de habitação por decisão judicial decorrente de ação de despejo ou execução de hipoteca” (artigo 45.º, n.º 2, b)), isto é, em situação juridicamente análoga à da recorrente.
VIII. Termos em que haverá que concluir que é desiderato legal do Município de Faro (já assumido) fazer face, seja por via da atribuição de alojamento em regime de arrendamento apoiado, seja em regime de alojamento de apoio temporário, à situação de necessidade de alojamento da recorrente.
IX. E, no entanto, por via do processo o recorrido pretende fazer perigar a necessidade de alojamento que reconhece à recorrente.
X. Pelo exposto, a pretensão processual do recorrido reconduz-se um exercício desequilibrado do direito de propriedade que lhe assiste, o que constitui Abuso de Direito, na subcategoria de Dolo Agit – Dolo agit qui petit quod statim redditurus est.
XI. De acordo com esta subcategoria de desequilíbrio no exercício do direito, age com abuso aquele que exige algo que terá que restituir.
XII. Se a recorrente aguarda em espaço destinado a habitação social, que lhe seja atribuída habitação do mesmo parque habitacional, o recorrido, ao exigir o espaço ocupado, pretende retirar à recorrente o que está obrigado a prestar-lhe, com evidentes e desproporcionais danos para a recorrente.
XIII. E assim, ao recorrido deve ser negado provimento relativamente à sua pretensão de obter a restituição da fração ocupada, ou de a obter sem que tenha antes providenciado à recorrente alojamento condigno alternativo, de acordo com aquelas que são as suas atribuições legais e na medida em que já reconheceu a requerida como candidata com direito à atribuição de habitação.
XIV. A sentença recorrida viola, pelas razões supra expedidas, a norma contida no artigo 334.º do Código Civil, devendo ser por isso revogada.
Termos em que requer a V. Ex.ª seja a sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue a ação improcedente».
I.3.
Na resposta às alegações de recurso, o apelado defendeu a improcedência do recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
II.2.
A questão que cumpre decidir consiste apenas em saber se o autor age em abuso de direito.
II.3.
Factos provados
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
1 - O autor Município de Faro tem inscrita a seu favor, pela Ap. (…), de 15-11-1991, a aquisição por permuta, da fração autónoma (…), correspondente ao 3º andar esquerdo, composta por 2 quartos, sala, cozinha, casa de banho e despensa, sita na Praceta (…), lote 4, 3.º-Esq., D, em 8000-504 Faro, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (…) fração (…) , da União de Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Faro sob n.º (…), tal como resulta de fls. 11 a 14, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2 - A fração autónoma referida em 1) integra o conjunto de habitações do domínio público municipal do Autor, afeto ao seu parque habitacional de habitação social, cuja gestão se mostra regulamentada pelo Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, que corresponde ao Regulamento n.º 91/2018, publicado no Diário da República, n.º 25, II série, de 05/02/2018, que veio a revogar o revogado Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 137, de 16 de julho de 2010, em vigor até essa data.
3 - Em 23 de julho de 1990 o autor deu de arrendamento, por acordo escrito, a fração autónoma referida em 1) a (…), tal como resulta de fls. 15 a 18 e 23 a 26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4 - Em 27 de fevereiro de 2015, o contrato de arrendamento referido em 3) cessou, por mútuo acordo entre as partes, conforme termo de entrega do arrendado, assinado pelas partes nessa data, tal como resulta de fls. 31, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5 - O autor não logrou reaver a fração autónoma referida em 1) em virtude da Ré (…) ocupar a mesma, pretendendo ser reconhecida como arrendatária do Autor.
6 - Não reunindo condições para a realização desse arrendamento, foi proferido despacho pelo Sr. Presidente da Câmara de Faro a determinar a desocupação do imóvel pela Ré e esta foi sucessivamente notificada pelo Autor não apenas desse despacho, mas também para desocupar e entregar voluntariamente aquela fração ocupada, sob pena de procedimento judicial de despejo caso o não fizesse, em 22 de outubro de 2015 e em 29 de junho de 2018.
7 - Tais notificações seguiram-se ao indeferimento de pedido de atribuição da fração apresentado pela ré, tendo a conduta do autor sido considerado lícita designadamente por sentença proferida no processo n.º 437/17.6BELLE, confirmada por acórdão do TCA Sul de 15/02/2018.
8 - A pedido da então mandatária da ré, após reunião realizada na Câmara Municipal de Faro, foi concedida uma prorrogação de prazo para entrega voluntária até 31 de julho de 2018, conforme ofício do Autor n.º 9580 de 29/06/2018.
9 - No Município de Faro, o processo de atribuição de uma habitação social efetua-se e formaliza-se à luz do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro e qualquer decisão de atribuição de habitação social passa por uma avaliação rigorosa e exaustiva da condição de carência habitacional, social e económica de cada família e da disponibilidade de fogos municipais para atribuição, sendo essa atribuição o último passo de um procedimento que se inicia com a submissão de um pedido através de formulário próprio a disponibilizar pela Divisão de Ação Social do A. que garante o esclarecimento de quaisquer questões que possam surgir no preenchimento do formulário, conforme artigo 7.º, n.º 1, do mencionado regulamento, sendo feita a classificação das candidaturas, obedecendo tal colocação a uma classificação, elaborada nos termos do artigo 11.º daquele regulamento, tendo a lista como objetivo a afetação das habitações de acordo com o posicionamento existente, sempre que se verifique a existência de pelo menos uma habitação devoluta em condições de ser atribuída.
10 - Os imóveis que integram o parque habitacional do Autor são escassos e têm de ser geridos com critérios objetivos e de racionalidade.
11 - A ré (…) tem nacionalidade portuguesa, por naturalização, e reside em Portugal desde o ano de 2004.
12 - A ré reside na fração autónoma referida em 1) desde o ano de 2004, inicialmente com o seu filho, tendo-lhes sido arrendados verbalmente 2 quartos, pelo preço de, respetivamente, € 75,00 e € 50,00 mensais por (…), irmão de (…), só tendo tido conhecimento que o (…) não lhe poderia arrendar os quartos no imóvel em 2011, por não lhe pertencer e por nem sequer ser o arrendatário do mesmo, sendo propriedade do Autor.
13 - Atualmente reside sozinha, recebendo auxílio de seu filho.
14 - A ré pagou a renda devida pela ocupação do imóvel ao (…) e suas respetivas faturas de concessionárias de serviços e desde 2011 que não paga qualquer quantia pela utilização do imóvel.
15 - Através de requerimento datado de 10.03.2014 a Ré pediu ao Município de Faro a atribuição do imóvel tendo este respondido por ofício datado de 27.03.2014, no qual refere que a ré não preenchia uma das condições de acesso ao arrendamento municipal "ter nacionalidade portuguesa ou de outro Estado-Membro, ou no caso de cidadãos não nacionais de qualquer Estado-Membro, que tenham autorização de residência permanente" (art.º 10º da contestação).
16 - Contudo, a ré alegou que preenchia os requisitos para obtenção de autorização de residência permanente e de aquisição da nacionalidade portuguesa, por naturalização, a qual requereu em 23.03.2015 e deu origem ao processo em curso na Conservatória dos Registos Centrais.
17 - Desde 10.03.2014 a Ré vem requerendo inúmeras vezes ao A. que fosse outorgado um contrato de arrendamento sobre o imóvel municipal que habitava, tendo sempre obtido como resposta o indeferimento do pedido, mesmo informando que possui nacionalidade portuguesa.
18 - A ré intentou contra o autor os processos n.º 393/18.3BELLE, n.º 401/17.5BELLE, n.º 437/17.6BELLE, n.º 57/16.2BELLE e n.º 922/15.4BELLE com vista a tentar manter-se na fração referida em 1), sem sucesso, tal como resulta de fls. 93-vº a 149, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19 - A ré recebe uma reforma de € 287,00 mensais e possui doenças crónicas (artigo 25.º da contestação).
20 - A Ré foi admitida como candidata no concurso para Atribuição de Habitações em Regime de Arrendamento Apoiado do Município de Faro de 2020 (Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro), estando graduada na posição 99.
21 - A fração autónoma referida em 1) tem valor de arrendamento não concretamente apurado (artigo 32.º da petição inicial).
22 - A Ré foi citada para a presente ação em 10 de fevereiro de 2021.
II.3.
Mérito do recurso
No presente recurso a recorrente defende que a sentença recorrida viola a norma contida no artigo 334.º do Código Civil, alegando que a pretensão processual do recorrido reconduz-se a um exercício desequilibrado do direito que lhe assiste na medida em que ao exigir o espaço que está a ser ocupado pela apelante pretende retirar a esta última o que está obrigado a prestar-lhe, seja por via da atribuição de alojamento em regime de arrendamento apoiado, seja em regime de alojamento de apoio temporário, dada a situação de necessidade de alojamento da recorrente e «com evidentes danos» para esta última.
Escreveu-se na sentença sob recurso que «na situação dos autos poderá estar em causa uma situação de abuso de direito na modalidade da supressio, a qual se verifica com o decurso de um período de tempo significativo suscetível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido», para concluir que «não se está perante uma situação extraordinária que configure abuso de direito na modalidade de supressio, ou seja, não decorreu um decurso de um período de tempo significativo suscetível de criar na ré a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido, sobretudo porque o autor, desde que teve conhecimento da situação, sempre se opôs à ocupação e tentou reaver o imóvel» (itálicos nossos).
No seu recurso, e sem que ponha em causa o raciocínio jurídico do julgador a quo, a apelante volta a defender[1] que existe abuso de direito na modalidade de «desequilíbrio no exercício do direito» «na subcategoria de dolo agit – dolo agit qui petit quod statim redditurus est» (age com dolo aquele que exige o que deve restituir logo de seguida).
Vejamos.
O artigo 334.º do Código Civil prevê genericamente o instituto do abuso de direito, dispondo que: «É ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
O “abuso de direito” consiste num exercício disfuncional de posições jurídicas[2] (na medida em que esse exercício implica o exceder dos limites a que alude o preceito legal supra citado)[3].
O instituto do abuso de direito constitui uma cláusula geral, uma válvula de segurança que visa obstar ao exercício de direitos quando o comportamento do respetivo titular se mostre, no caso concreto, gravemente chocante e reprovável para o sentimento de justiça prevalecente da coletividade em determinado momento.
Como ensina Antunes Varela[4], para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o seu titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpra observar. E, para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender às conceções dominantes na coletividade, à consideração do fim económico ou social do direito, fazendo apelo aos juízos de valor positivamente consagrados na lei.
O exercício de um direito apresenta-se contrário aos bons costumes quando tiver conotações de imoralidade ou de violação das normas elementares impostas pelo decoro social. «Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos para as regras da moral social. Também aqui é de presumir uma certa coerência sistemática: os bons costumes prefigurados no artigo 334.º equivalerão aos mesmos “bons costumes” presentes no artigo 280.º/1: regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos» – Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coleção Teses, Almedina, pág. 1231.
O fim social ou económico do direito corresponde ao(s) interesse(s) que o legislador visou proteger através do reconhecimento do direito em causa. «A referência a uma função social e económica exprime a ideia de que os comportamentos levados no seu seio a cabo deveriam respeitar o escopo social e económico que presidiu à sua constituição, quer produzindo uma maior utilidade pessoal – função pessoal – quer social – função social, a que se pode acrescentar o complemento de económica»[5] – Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 1231.
Menezes Cordeiro[6] salienta que «os “limites impostos pela boa-fé” têm em vista a boa-fé objetiva, remetendo para os «dados básicos do sistema, concretizados através de princípios mediantes: a tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente às diversas questões».
Através da tutela da materialidade das situações jurídicas procura-se atender às particularidades do caso concreto e aos particulares objetivos prosseguidos pelo Direito.
O princípio da tutela da confiança surge como um princípio fundamental do sistema jurídico na medida em que «poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens»[7].
Assim, condutas reveladoras de uma predisposição quanto a certo problema e que gerem em outrem, legitimamente, a expectativa de condutas coerentes ou conformes a essa predisposição são suscetíveis de gerar uma «responsabilidade pela confiança».
Os efeitos/consequências da “responsabilidade pela confiança” – a qual, como referimos, pressupõe uma situação de confiança justificada e merecedora de tutela –, podem ser de dois tipos[8]:
(i) Considerar-se relevante e juridicamente exigível o conteúdo significativo da «autovinculação» extranegocial que engendrou a confiança; trata-se, aqui, de atuar preventivamente, de paralisar ou considerar inexigível o direito que o autor da conduta geradora da confiança pretende mais tarde exercer;
(ii) Obrigar o responsável a indemnizar os danos causados; ou seja, ressarcir o interesse negativo ou de confiança.
Existem vários tipos de atos abusivos, ou seja, de exercícios de posições jurídicas inadmissíveis[9]. Um deles é, justamente, o chamado “desequilíbrio no exercício jurídico”, o qual pode assumir três diferentes modalidades, as quais têm em comum, entre si, um despropósito entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados[10]. São elas:
(i) O exercício inútil danoso;
(ii) A desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem; e
(iii) O dolo agit qui petit quod statim reddituris est (age com dolo aquele que exige o que deve restituir logo de seguida).
O dolo agit qui petit quod statim reddituris est – que foi expressamente invocado pela apelante no seu recurso - traduz uma valoração relativa ao comportamento da pessoa que exige o que de seguida terá de restituir.
Regressando ao caso sub judice, liminarmente se dirá que, no caso, não se verifica uma situação de confiança justificada e merecedora de tutela, pois que a apelante ocupa a fração autónoma em causa nos autos sem qualquer título válido para o efeito porquanto entre ela e o Município de Faro não foi firmada qualquer relação contratual que tenha por objeto o referido imóvel e desde 22 de outubro de 2015 – após o contrato de arrendamento com o primitivo arrendatário, (…), ter cessado por mútuo acordo entre as partes – o apelado-réu tem diligenciado para que a autora-apelante desocupe a casa e lha entregue. Dito de outro modo, os factos provados não permitem concluir que a conduta do apelado, desde o momento em que teve conhecimento da ocupação do imóvel pela apelante, permitiu gerar na esfera jurídica da segunda qualquer legítima expectativa de que aquele iria permitir que ela continuasse a ocupar o imóvel para sua habitação (cfr., designadamente, factos provados n.ºs 6 e 7).
Acresce que tão pouco existe qualquer obrigação por banda do autor/apelado de restituir à ré, de seguida, a casa que está a reivindicar na ação. O imóvel em questão está integrado no parque habitacional do Município de Faro, sendo o processo de atribuição de uma habitação social efetuado e formalizado à luz do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, em face do qual qualquer decisão de atribuição de habitação social é precedida de uma avaliação da condição de carência habitacional, social e económica de cada família candidata à habitação social do Município e é em função de tal avaliação que cada candidatura é graduada, sendo de acordo com essa graduação que as habitações disponíveis são afetas (aos candidatos). Sucede que no caso vertente, e pese embora a ré tenha sido admitida como candidata no concurso para Atribuição de Habitações em Regime de Arrendamento Apoiado do Município de Faro de 2020 à luz do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, aquela ficou graduada na posição 99, o que significa que só poderá vir a receber uma habitação social depois de os 98 candidatos que a precedem no concurso terem, eles próprios, recebido uma habitação integrada no parque habitacional do Município de Faro. Ou seja, pese embora a ré reúna condições para lhe ser atribuída uma habitação social – e não necessariamente aquela que ela está a ocupar neste momento e que é objeto dos presentes autos – terá de aguardar pela sua vez de lhe ser atribuído um imóvel, de acordo com os critérios estabelecidos no supra referido Regulamento e quando houver uma habitação disponível para ela.
Refira-se, por último, que destinando-se o referido imóvel a suprir situações de carência habitacional priorizadas em função de critérios legais, a ocupação pela ré do mesmo obstaculiza a respetiva afetação a candidatos à atribuição de habitação social melhor graduados que ela-apelante.
Em suma, o pedido formulado pelo autor de restituição da fração autónoma não representa um exercício desequilibrado do seu direito de propriedade sobre o referido imóvel, pelo que julga-se não se verificar uma situação de abuso de direito que possa obstar à restituição do imóvel em causa nos autos ao Município de Faro.
O que implica a improcedência da presente apelação.

Sumário: (…)


III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Sem custas porquanto a recorrente beneficia de apoio judiciário.
*
Notifique.
DN.
Évora, 15 de setembro de 2022
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
José António Moita (1º Adjunto)
Mata Ribeiro (2º Adjunto)


__________________________________________________
[1] Perante a primeira instância, a ré/apelante sustentou que a atuação do autor constitui uma forma anormal de exercício do direito que aquele se arroga na medida em que pretende retirar a ré do seu lar e dela exigir um valor de € 350,00 por um imóvel que possui um aluguer social que ronda dos € 50,00.
[2] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, Almedina, 2011, pág. 372.
[3] Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos para as regras da moral social e «a referência a uma função social e económica exprime a ideia de que os comportamentos levados no seu seio a cabo deveriam respeitar o escopo social e económico que presidiu à sua constituição, quer produzindo uma maior utilidade pessoal – função pessoal – quer social – função social, a que se pode acrescentar o complemento de económica» – Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coleção Teses, Almedina, pág. 1231.
[4] Das Obrigações em Geral, Volume I, pág. 436 e ss.
[5] Da Boa Fé no Direito Civil, Coleção Teses, Almedina, pág. 1231.
[6] Tratado de Direito Civil, V, Almedina, 2011, pág. 241 e ss.
[7] Assim, Batista Machado, RLJ Anos 117 e 118, pág. 229 e ss.
[8] Batista Machado, ob. cit., pág. 296.
[9] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, Almedina, 2011, pág. 241 e ss., enuncia a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a suppressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício.
[10] Assim, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coleção Teses, Almedina, pág. 853.