Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
72/10.0TBCVD
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ESBULHO VIOLENTO
VIOLÊNCIA SOBRE A COISA
SERVIDÃO
Data do Acordão: 01/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I- A violência a que alude o art.º 1279.º, Cód. Civil, é um qualificativo do esbulho e não se confunde com ele.
II- Não constitui violência sobre as coisas, para que se possa ordenar a restituição provisória da posse, o colocar um portão com cadeado num caminho de servidão e menos ainda sem que se saiba se disto resultou algum constrangimento sobre a livre determinação do possuidor.
III- Existindo outros meios de entrar e sair do prédio beneficiário da servidão (e por prédios do mesmo proprietário), não se verifica lesão grave e dificilmente reparável.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora
E… e mulher M… vieram requerer o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra A…, SA, invocando os seguintes fundamentos, em síntese, que são titulares de uma servidão de passagem sobre o prédio da requerida e que esta vedou o acesso a tal caminho ao fechar o portão com um caseado.
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Foi deduzida oposição.
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Depois de produzida a prova, foi proferida sentença que julgou improcedente o procedimento cautelar.
O motivo desta decisão foi o não se terem demonstrado os requisitos gerais do art.º 381.º, Cód. Proc. Civil. Com efeito, entendeu-se que o esbulho não era violento pelo que se deveriam aplicar as regras do procedimento cautelar comum; aplicando estas regras, têm de se verificar os pressupostos descritos no citado preceito legal («lesão grave e dificilmente reparável») o que no caso não acontecia.
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Desta sentença recorrem os requerentes alegando, fundamentalmente, que o esbulho é violento e que existe perigo na demora.
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A requerida contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Nada obsta ao conhecimento do recurso.
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A matéria de facto é a seguinte:
a) Do Requerimento Inicial
1. Na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide está inscrita, por apresentação n.º 2 de 11 de Abril de 1980, a aquisição, em favor dos Requerentes, por compra a J… e J..., de um prédio rústico denominado “Herdade da A…”, sito na freguesia de Nossa Senhora da Graça de Póvoa e Meadas, concelho de Castelo de Vide, descrito na mesma Conservatória sob o n.º .., com a área de 125,375 hectares, que confronta a norte com caminho, a nascente com o prédio da Requerida denominado “Herdade da M…”, a sul com o prédio dos Requerentes denominado “Tapada do F…”, e a poente com J… (Doc. fls. 21/22)
2. A Herdade do A… que, à data da aquisição pelos Requerentes, estava inscrita na matriz sob o artigo 2, Secção H, passou, por alteração cadastral, ainda não levada ao registo, a caber o artigo 18, Secção H (Docs. fls. 25 a 27 e 28/29).
3. Na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide está inscrita, por apresentação n.º 3 de 11 de Abril de 1980, o usufruto, em favor de M… e mulher, Maria…, por compra a J… e José…, do prédio descrito em 1. (Doc. fls. 21/22)
4. M… e mulher Maria… faleceram respectivamente a 16/05/1988 e 4/01/2007 (Doc. fls. 30 e 32)
5. Na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide está inscrita, por apresentação n.º 2 de 11 de Abril de 1980, a aquisição, em favor dos Requerentes, por compra a J... e José… de um prédio rústico, denominado “Tapada das V… ou Tapada do F…”, sito na freguesia de Nossa Senhora da Graça de Póvoa e Meadas, concelho de Castelo de Vide, descrito na mesma Conservatória sob o n.º…, e inscrito na matriz sob o artigo 15, Secção H, com a área de 7,9 hectares, que confronta a norte com a Herdade do A…, a sul com o prédio da Requerida denominado “Herdade da M…”, a nascente também com esse prédio e com a Tapada da F… (inscrito na matriz sob o artigo 14, Secção H) e a poente com o Concelho de Nisa. (Doc. fls. 23/24)
6. Na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide está inscrita, por apresentação n.º 1 de 21 de Agosto de 2002, a aquisição, em favor da Requerida, por compra a A… e mulher Ana… de oito prédios rústicos, denominados no seu conjunto “Herdade da M…, Tapada do N…, Tapada das V…”, sito na freguesia de Nossa Senhora da Graça de Póvoa e Meadas, concelho de Castelo de Vide, descrito na mesma Conservatória sob o n.º …, e inscrito na matriz sob os artigos 3, 13, 16 e 17 da Secção H, com a área de 169,45 hectares, que confronta a poente, designadamente com a Herdade do A… e com a Tapada da F…, não se encontrando registados quaisquer ónus ou encargos sobre o referido prédio. (Doc. fls. 34/35)
7. Parte da Herdade da M… identificada em 6., correspondente à matriz sob o n.º 16, Secção H confronta a poente com o prédio dos Requerentes denominado “Tapada do F…”. (Doc. fls. 34/35 e 36)
8. A Herdade da M… e a Tapada do F… formaram a dada altura um só prédio descrito na Conservatória sob o n.º…, do Livro B-10, fls. 163, então abrangente dos artigos 3, 13, 15, 16 e 17 da Secção H; mas, nessa altura, foi, dessa descrição, desanexada a parcela correspondente ao artigo 15, Secção H (a Tapada do F…) que passou a ter a descrição em 5. O prédio sobrante desta desanexação é que o veio a dar a descrição n.º 398, hoje em vigor, a Herdade da M… descrita em 6.. (Doc. fls. 23/24 e 34/35)
9. Em resumo, e no que respeita a confrontações: a Herdade do A… e a Tapada do F…, a Herdade da M… e a Tapada da F… são confinantes entre si, com a Herdade da M… a envolver pelo poente e pelo sul os outros três prédios e as Tapadas da F… (artigo matricial n.º 14) e do F… (artigo matricial n.º 15) a ficarem encravadas entre a Herdade da M…(artigo matricial n.º 18) e a Herdade do A… (artigos matriciais n.os 3, 12, 16 e 17). (Doc. 36)
10. Dentro da Herdade do A… corre, do lado sul, de poente para nascente, perto da estrema com as Tapadas da F… e do F…, vindo da Herdade da M…, o chamado Ribeiro do Pai Anes que, na Herdade do A…, está cortado por um açude que estanca a água.
11. A água assim estancada leva ao alagamento superficial do terreno marginal durante um período não concretamente apurado no Inverno, em parte da zona de confinância da Herdade do A… com a Tapada do F….
12. À estrema sul da Herdade da M…, entre esta e prédios de outros proprietários, corre um caminho público, de leito largo e livre, o chamado Caminho da Piçarra, que parte de Póvoa e Meadas e, depois de passar à referida estrema, continua, até encontrar no caminho dos Mosteiros que, com esse nome, prossegue para Nisa.
13. Após o entroncamento deriva do caminho dos Mosteiros outro caminho secundário denominado Caminho do Pai Anes, com difíceis condições de circulação nos últimos 750 metros antes de chegar à estrema poente da Herdade do A…, embora transitável, que dista cerca de 2.200 metros do segundo portão das Tapadas / Herdade dos M… (identificado em 15.), designadamente em direcção à Herdade do A….
14. Caminho da Piçarra e Caminho dos Mosteiros são, um e outro, caminhos de bom trânsito, embora apresentem alguns troços em que a passagem aparece mais dificultada, ambos públicos, sob o controlo e administração das Câmaras Municipais de Castelo de Vide e Nisa.
15. A sul do caminho da Piçarra, os Requerentes são também proprietários de outro prédio, também rústico, designado por Tapadas / Herdade dos M…, que confina com aquele caminho e a este tem acesso por dois portões, separados por uma distância de 750 metros, situando-se o primeiro a 500 metros de distância do portão de entrada para a Herdade da M…, e o segundo a 200 metros se utilizada a segunda bifurcação que o Caminho da Piçarra apresenta junto ao portão de entrada para a Herdade da M…. (Doc. fls. 38 a 41)
16. No conjunto da Herdade dos M…, da Herdade do A… e da Tapada do F… de que são donos, têm os Requerentes uma exploração pecuária, de gado bovino e ovino, em apascentamento livre, com transferência dos animais de uns para os outros consoante o lugar onde haja pastagem a aproveitar. O gado passa temporadas alternadas no prédio que fica do lado sul do caminho da Piçarra – a Herdade dos M… - e nos prédios da Herdade do A… e Tapada do F… (este último só para o gado ovino) que ficam do lado norte, em regra com permanência de um mês num lado e um mês no outro.
17. A Tapada do F… não tem nenhum caminho público que a sirva directamente; e, do lado do nascente, a Herdade do A… não tem também nenhum caminho que a sirva, senão o Caminho da Farinheira.
18. Para permitir o acesso ao lado do nascente da Herdade do A… existe, na Herdade da M…, um caminho de terra batida, chamado Caminho da Farinheira, com leito entre 3 e 4 metros de largura e o comprimento de cerca de 530 metros, que parte do portão de entrada para a Herdade da M… junto ao Caminho da Piçarra, corre à estrema da Tapada da Farinheira e vai ter à estrema nascente da Herdade do A…, frente a um portão desta. (Doc. fls. 42, 43, 52, 53, 97)
19. Chama-se Caminho da Farinheira porque corre à estrema da Tapada da F….
20. A Tapada do F… não precisou, enquanto fez parte integrante da Herdade da M…, de ter acesso próprio porque se passava por todo ele. Com a desanexação, ficou encravada, sendo o seu acesso assegurado pela Herdade do A… apesar da omissão de estabelecimento de “servidão por determinação de pai de família”.
21. Mas por outras razões nasceu e se manteve esse Caminho da Farinheira.
22. A povoação mais próxima dos prédios dos Requerentes é Póvoa e Meadas e tem sido aí que, desde sempre, desde que a memória de homens vivos alcança, vêm sendo, e são ainda, recrutados os trabalhadores que têm prestado serviços na Herdade do A… e na Tapada do F…, para neles trabalharem em toda a roda do ano.
23. Foi sempre pelo referido Caminho da Farinheira que esses trabalhadores sempre passaram. Ele constituía e constitui o trajecto mais curto. Usando-o, a Herdade do A… fica-lhes a 530 metros do Caminho da Piçarra, ao passo que, se não passarem por ele, terão de percorrer mais 2.200 metros e por um caminho com difíceis condições de circulação nos últimos 750 metros antes de chegar à estrema poente da Herdade do A…, embora transitável.
24. É também por ele que os Requerentes, enquanto donos da exploração pecuária referida em 16., fazem passar gados que compram para levar para a Herdade do A… e para a Tapada do F…, bem como os que vendem saídos desses prédios. E é, regularmente, por ele que os seus trabalhadores fazem passar o gado em apascentamento de um para o outro conjunto dos seus prédios. Concretamente, fazendo-o sair do segundo portão da Herdade dos M…, que dá directamente para o Caminho da Piçarra até ao portão que fica à entrada da Herdade da M… passando, na extensão de 200 metros pelo caminho do Piçarra e na extensão de cerca de 530 metros pelo referido Caminho da Farinheira, numa extensão total de 730 metros.
25. Já assim era antes de os Requerentes serem donos dos referidos prédios, pois que os compraram a quem já era também dono do conjunto e que por si ou terceiros sempre neles explorou gado.
26. O gado em apascentamento, que já está habituado ao Caminho da Farinheira, vai para ele naturalmente sem precisar de guia e tem dificuldades em ir pelo caminho mais longo.
27. É ainda por ele que passava quem se dirigia a um colmeal existente dentro da Herdade do A…, não pertencente nem à Requerida nem aos Requerentes, desactivado há inúmeros anos.
28. O Caminho da Farinheira serve também para acesso do público da região a uma fonte pública que fica à sua beira, junto à Tapada da F….
29. O Caminho da Farinheira serve exclusivamente a Herdade do A… e, através desta, também a Tapada do F…, constituindo um encargo em desfavor do prédio da requerida e em beneficio daqueles prédios.
30. Os Requerentes e os antepossuidores dos seus prédios sempre, desde há mais de 30 anos, ou melhor, desde que memória dos homens alcança, por ele passaram a pé, com gados e com veículos ligeiros e pesados, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição dos donos do prédio por onde corre, tanto dos anteriores, como da requerida (que, tendo-o adquirido há 16 anos, nunca até Agosto de 2009 impediu ou manifestou intenção de impedir a passagem), na convicção de não prejudicar ninguém e na intenção de, no interesse dos prédios beneficiados, exercerem um direito de passagem a eles inerente.
31. Correu termos nos serviços do Ministério Público deste tribunal o processo n.º 47/08.9GACVD, na sequência de queixa apresentada pela requerida, por o gado dos Requerentes lhe ter, alegadamente, pisado uma zona lavrada, marginal ao caminho, o qual terminou em despacho de arquivamento com o fundamento de que a questão do direito de passagem dos requerentes deverá ser dirimida nos competentes meios civis (Doc. fls. 44 a 51)
32. O leito nunca, desde que gente viva se lembra, foi lavrado ou mudado, sem prejuízo de, em virtude das intempéries e enchurradas de água vinda da encosta, poder ir sendo acomodado às circunstâncias, um pouco mais para um lado ou para o outro mas sempre sensivelmente no mesmo local.
33. No seu termo, à entrada da Herdade do A…, está, desde há mais de 20 anos, um portão com largura de 3,5 metros, que só existe porque existe o caminho e que tem aquela largura precisamente para dar acesso a gado e máquinas agrícolas.
34. Há cerca de 4 ou 5 anos, a Requerida colocou um portão de ferro à entrada da Herdade da M… mas nunca o fechou, continuando, por isso, os Requerentes, os seus gados, máquinas e trabalhadores ao seu serviço e todas as pessoas que pretendiam ir para a Herdade do A… pelo lado nascente e para a Tapada do F…, a passar livremente por lá, com pleno conhecimento e à vista da requerida e seus trabalhadores.
35. Mas em Agosto de 2009 surgiu da parte da requerida o primeiro sinal de tentativa de impedimento do exercício do direito de passar.
36. Em 11 desse mês, quando os trabalhadores dos requerentes, J… e F… se preparavam para fazer passar o gado (vacas) da Herdade dos M… para a Herdade do A…, o capataz da Requerida, Sr. M…, atravessou o seu jipe à entrada da Herdade da M… e disse de forma agressiva e imperativa ao J…: “Aqui não passas”.
37. Sabendo que o gado se dirigia para a herdade do A… e ia passar na Herdade da M…, pelo Caminho da Farinheira, disse a um seu subordinado: “vai pôr o tractor à frente do portão”. Era o portão que havia sido colocado no leito daquele caminho.
38. O trabalhador assim fez e por essa forma ficou bloqueada a entrada no Caminho da Farinheira de acesso à Herdade do A….
39. Enquanto impunha ao J… que não passasse, o M…, homem corpulento, gritava-lhe ameaçadoramente, chamando-lhe “tarreco”, alcunha que muito o incomoda.
40. Este, depois de ver que o tractor foi colocado no portão de entrada para a Herdade da M…, barrando a passagem para o Caminho da Farinheira, ciente assim de que o gado já não poderia passar por lá, retirou o jipe e foi-se embora.
41. Os trabalhadores dos Requerentes tiveram que levar o gado por outro caminho, denominado o Caminho do Azinhal ou Caminho da Barbuda até à entrada norte da Herdade do A…, com muito boas condições de circulação comparativamente ao Caminho da Piçarra, distando cerca de 6.250 metros desde o primeiro portão da Herdade dos M… e 7.000 metros desde o segundo portão dessa Herdade (havendo comunicação interna entre os dois portões); podendo tal distância ser encurtada para respectivamente 5.750 e 6.500 metros se utilizado um trajecto alternativo, também público, igualmente com boas condições de circulação embora envolvendo um troço de 700 metros mais estreito mas igualmente transitável.
42. O tractor ficou no local, a barrar o caminho, 4 ou 5 dias.
43. Ao fim desse tempo, não sabem os Requerentes porquê, retiraram-no e nunca mais impediram a passagem. Os Requerentes, seus trabalhadores, gados e máquinas e as demais pessoas que queriam ir para a Herdade do A… continuaram a passar.
44. O portão, que não tinha cadeado, continuou sem cadeado.
45. Mas em Maio de 2010, empregados da Requerida, a mando desta, colocaram um cadeado no portão, não deram aos Requerentes o código de acesso e passaram a tê-lo sempre fechado, só o abrindo quando eles, empregados da Requerida, querem passar, para logo de seguida o fecharem.
46. O Requerente marido não quis arrombar o portão embora vontade não lhe faltasse.
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b) Da Oposição
47. Correu termos nos serviços do Ministério Público deste tribunal o processo n.º 61/09.7TACVD, na sequência de queixa apresentada pelos requerentes contra a requerida, por esta ter obstruído o Caminho público da Piçarra, o qual terminou em despacho de arquivamento face à ausência de indícios suficientes da prática de um ilícito criminal (Doc. fls. 83 a 90)
48. Os requerentes, no atravessamento do prédio da requerida, fazem-no, escolhendo o percurso entre os dois pontos mais próximos dos dois prédios que lhes pertencem.
49. O acesso para o prédio 15-H só pode ser feito pelo norte deste e portanto pela Herdade do A….
50. Não é possível aceder ao prédio 15-H pelo nascente e sul porque existem, desde sempre, muros de separação entre este (15-H) e os prédios 14-H e 16-H que com ele confinam.
51. A poente do prédio 15-H existe o Ribeiro dos M… ladeado por muro, ora de um lado ora de outro.
52. O prédio 18-H (Herdade do A…) tem acesso pelo sul/poente através do Caminho do Pai Anes que tem no seu trajecto um pontão para travessia do Ribeiro de Pai Anes.
53. Entre a Herdade do M… (Sede da Exploração Agrícola dos Requerentes) e a Herdade do A… (18-H) pelo lado poente, distam entre si 3.150 metros, sendo que pelo lado nascente, distam 3.280 metros.
54. A Herdade do A… (18-H) tem um outro acesso pelo norte através do caminho público procedente directamente de Póvoa e M…, denominado Caminho do Azinhal ou Caminho da Barbuda.
55. Este é o acesso mais próximo de Póvoa e Meadas.
56. Todos os mencionados acessos, caminhos, muros, pontões e passagens têm existência centenária, sendo por eles e com ele que as gentes da região passam, vêm e vão para os prédios e povoações em causa nestes autos.
57. Próximo do local onde os requerentes, habitualmente, pretendem fazer o trajecto de mudança da vacada que lhes pertence, entre os dois prédios, existe um caminho interior do prédio da requerida por esta utilizado para o seu próprio maneio agrícola.
58. A Herdade dos M… (artigo matricial 56-G) tem uma área de 4,650 hectares. (Doc. 39)
59. Os requerentes e os seus funcionários, por regra usam a invocada passagem – o pretenso caminho da farinheira – para aceder à Herdade do A… vindos da Herdade do M… (sede da Exploração Agrícola dos Requerentes), da Herdade dos M… ou de Póvoa e Meadas, fazendo-se transportar em veículos todo o terreno, carrinhas e/ou tractores para levar alimentos (farinha, feno, palha) aos animais que estão na Herdade do A…;
60. O Caminho do Pai Anes é um caminho público com pontão sobre o Ribeiro do Pai Anes construído a expensas da Autarquia Local.
61. Os requerentes e seus funcionários quando se dirigem para a Herdade do A… pelo Caminho da Farinheira atravessam o Ribeiro dos Mosteiros por um pontão construído pela requerida sendo este acesso, antes da construção do pontão pela requerida, intransferível em certas épocas do ano pelo elevado caudal de água do Ribeiro dos Mosteiros.
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As alegações dos recorrentes, mais desenvolvidamente, são as seguintes:
1- Na sentença, a senhora Juiz concluiu não haver dúvidas de que a servidão existe, com a origem, amplitude e finalidade alegadas, e que o esbulho ocorreu efectivamente.
2- Mas a procedência da providência requerida – restituição provisória de posse – exigia, a mais do reconhecimento de posse e do esbulho, a violência deste ou, em alternativa, a verificação de dano grave e dificilmente reparável, o chamado periculum in mora. Só o esbulho, se fosse acompanhado de violência (art.º 1279.º do C. Civil e 393.º do C. P. Civil), ou também a periculum in mora, se faltasse a violência (art.º 395.º e 381.º do mesmo código).
3- Foi ai que se interrompeu o discurso que encaminhava o procedimento para a procedência. A senhora juiz declarou, por um lado, que os factos provados não eram expressão de violência relevante, e, por outro, que também se não provou a ocorrência do tal prejuízo grave e dificilmente reparável. Por isso julgou improcedente o procedimento.
4- Perante a indagação exaustiva sobre a existência de servidão, em termos que permitiram à Senhora Juiz ficar com certezas e não apenas com a frágil convicção do fumus boni iuris, e perante a descrição factual, primeiro dos entraves à passagem e das ameaças, depois do bloqueio efectivo com colocação de cadeado no portão, a decisão da senhora juiz de recusar a restituição da posse se é inteligível no plano da jurisprudência dos conceitos em que uma premissa errada leva em linha recta a conclusões erradas, não o é no plano da verdade económica do direito.
5- É errada a apreciação, que na sentença se faz, quanto à caracterização do esbulho. Ele é violento porque a barragem do caminho, com um portão fechado a cadeado, que só por arrombamento pode ser transposto é, por si, um acto de agressão física oposta à pessoa do titular do direito que chega junto dele para passar e não pode passar.
6- Acto de oposição física que carrega consigo uma clara intenção de intimidação e que o “não passarás”, conjugado com as circunstâncias que o precederam – de ameaça verbal, imperativa, próxima do confronto físico – tornam-na ainda mais evidente.
7- A atitude do requerente marido de se ter contido no arrombamento do portão, mas não por falta de vontade, revela que foi o receio que o conteve. Receio que a requerida claramente quis provar.
8- Pese embora tenha a Meritíssima Juiz entendido (infundadamente) não dever dar como formalmente provado o receio, ele resulta dos factos provados, podendo a relação conclui-lo por presunção judicial. Não será isso necessário; mas, se o for, pede-se que por esse caminho se amplie a matéria de facto.
9- A conduta da requerida, rodeada de todas as indicadas circunstâncias, subsume-se, sem qualquer dificuldade, no conceito de violência previsto no art.º 1279.º do C. Civil e 393.º do C. P. Civil, para o efeito de permitir o recurso ao procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
10- É também errado o entendimento da Meritíssima Juiz de que se não provou que, do bloqueio da passagem, tenha resultado dano grave e dificilmente reparável. Mediu o dano por critérios monetários, com desprezo pela regra do art.º 562.º do C. Civil, que dispõe que a verdadeira reparação é a que permite reconstituir a situação que existia se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
11- Ora, foi notório o dano causado. O dano é o de não poder passar; e esse, que não é reparável em espécie quanto ao tempo passado, deixa aberto, para o futuro, se não for aberta a passagem, um caminho de dano constante. Dai também a sua gravidade.
12- É ao dano directo decorrente do acto estorvador da passagem e não ao dano por equivalente monetário que se refere o art.º 381.º, nº 1 do C. P. Civil.
13- Não caracterizado o esbulho como violento a Meritíssima Juiz fez errada interpretação do art.º 1279º do C. Civil e 393.º do C. P. Civil; e não julgando verificado o dano fez errada apreciação dos factos que teve por provados e errada interpretação do artº 381º do C. P. Civil.
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São dois, basicamente, os problemas jurídicos aqui em questão.
Em primeiro lugar, saber se o esbulho foi violento. Em caso afirmativo, aplicar-se-á o disposto no art.º 393.º, Cód. Proc. Civil, e será decretada a restituição imediata da posse.
Em segundo lugar, caso a resposta à primeira questão seja negativa, saber se existem os requisitos gerais do procedimento cautelar comum, face ao disposto no art.º 395.º do mesmo Código.
Note-se que não está em questão a existência da servidão nem, sequer, o esbulho. Apenas se discute se foi usada violência na concretização desse esbulho e, subsidiariamente, se existe perigo na demora.
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Devemos ter sempre presente que a violência, a que alude o art.º 1279.º, Cód. Civil, é um qualificativo do esbulho; não é o próprio esbulho.
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Aceita-se pacificamente que a violência pode ser exercida sobre as coisas mas exige-se um pouco mais que isso. A violência há-de ser da mesma forma que a empregue na aquisição e caracterização da posse (por oposição à posse pacífica), isto é, nos termos do art.º 1261.º, n.º 2, Cód. Civil (cfr. José Vieira, Direitos reais, Coimbra Editora, 2008, p. 622 e autores aí citados). Ou seja, terá que haver coacção física ou moral, esta tal como vem descrita no art.º 255.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Esta violência tem de existir no acto de desapossamento, no momento do esbulho.
A violência sobre as coisas, por si só, não confere direito à restituição provisória; ela deve ser acompanhada de efeitos de índole psicológica sobre o possuidor. Efeitos estes que se retiram do modo como o esbulho foi realizado, pela forma agressiva como ele aconteceu. Isto é, a violência há-de ter reflexos sobre a paz psicológica do possuidor como forma de sua intimidação. Ela há-de ser uma forma de constranger o possuidor a acatar o desapossamento contra a sua vontade e a não impedí-lo com medo que se concretize alguma ameaça.
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Alegam os recorrentes (apoiando-se em Lebre de Freitas et alli, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 74) que, por estarem impedidos de usar a servidão, estão impedidos de contacto com o caminho o que caracteriza a violência do esbulho.
Escreve o referido autor: «É, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída, em consequência dos meios usados pelo esbulhador (Ac. do TRE de 12.6.97, BMJ, 468, p. 499)» (negrito no original).
Salvo o devido respeito, não é bem assim.
Tal alegação tem como pressuposto a confusão entre o esbulho e a violência bem como o facto de apenas se atentar na parte realçada.
O desapossamento é, precisamente, o impedimento de o possuidor ter contacto com a coisa, é o impedimento de o possuidor exercer a sua posse. O acto de esbulho «consiste no facto de o possuidor ficar privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse» (Manuel H. Mesquita, Direitos Reais, poli.., Coimbra, 1967, p. 126). É nestes termos que se perde a posse, é quando o possuidor deixa de ter qualquer domínio sobre o bem (cfr. art.º 1267.º, n.º 1, Cód. Civil; domínio este, claro, na conformidade do respectivo direito, como está expresso no art.º 1251.º).
O esbulho tem como resultado imediato e característico a falta de contacto entre a coisa e o possuidor ­— mas isto só tem que ver com o esbulho e não com a violência.
Repare-se que a afirmação «É, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída» apenas tem como consequência afirmar que todo e qualquer esbulho, por implicar o desapossamento, é violento.
Manifestamente, não é assim.
Por outro lado, a parte em negrito não pode fazer olvidar o que se lhe segue no texto do sumário do acórdão citado: «em consequência dos meios usados pelo esbulhador». É exactamente nestes meios, é precisamente pela utilização de determinados meios que se há-de aferir a violência sobre as coisas no esbulho.
Isto mesmo tem sido afirmado pela jurisprudência deste tribunal. Vejam-se, a título de exemplo, os acórdãos de 19 de Fevereiro de 2009, proc. N.º 3221/08, e de 22 de Março de 2007, proc. n.º 2757/06-2 ambos em www.dgsi.pt).
No primeiro (no texto, não no sumário) escreve-se o seguinte: «No caso de esbulho, para que o mesmo seja considerado violento, deve ser levado a cabo através de uma acção que, constrangendo o esbulhado, o coloque numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento, permitindo-o.
«Assim, se essa acção recair sobre coisas e não directamente sobre pessoas, a mesma só poderá ser considerada violenta se, indirectamente, coagir o possuidor a permitir o desapossamento, pois só assim estará em causa a liberdade de determinação humana.»
No segundo escreve-se o seguinte: «Mas se apenas incidir sobre coisas, só releva [a violência] em termos de restituição provisória de posse, se tiver reflexos sobre as pessoas como forma de intimidação ainda que indirecta».
No caso dos autos, não temos nada disto. Apenas sabemos que «em Maio de 2010, empregados da Requerida, a mando desta, colocaram um cadeado no portão, não deram aos Requerentes o código de acesso e passaram a tê-lo sempre fechado, só o abrindo quando eles, empregados da Requerida, querem passar, para logo de seguida o fecharem» (n.º 45 da exposição da matéria de facto).
Não se vê aqui qualquer conduta violenta, agressiva, causadora de medo ou constrangimento sobre o modo como foi impedido o acesso ao caminho. Nem se sabe sequer como ou quando os requerentes tiveram conhecimento do sucedido.
Como se escreve na sentença recorrida, «o acto praticado, impeditivo da passagem e utilização da servidão (...) consistiu na colocação de um cadeado num portão. Esse acto constituiu o meio de realização do próprio esbulho, como privação da possibilidade de os requerentes continuarem a fruição dessa servidão (...). Na verdade, não foi exercido algum acto violento sobre qualquer coisa e apenas se colocou um obstáculo à passagem numa coisa de propriedade da requerida» (sublinhado nosso).
Dizem os recorrentes a este respeito: «Não pode concordar-se. É óbvio que à actuação da requerida presidiu a intenção de impedir a passagem e que a colocação do cadeado tem de ser vista à luz das ameaças anteriores. E a prova de que essa intenção produziu efeito está precisamente naquela actuação do requerente marido que não se atreveu a arrombar o portão (ponto 46). Diz-se, é certo, que o não quis arrombar (o que é uma decisão), mas logo se acrescenta que vontade lhe não faltou. Se vontade lhe não faltou para agir, que outro factor, que não o medo de agir, o pode ter levado a conter-se?».
Como se disse acima, a violência, para efeitos de restituição provisória da posse, deve ter sido exercido no acto de esbulho; nem antes nem depois. É a forma como se procede ao esbulho, que ocorre num determinado tempo, que deve ser violenta. Assim, as anteriores ameaças, sem prejuízo de outra relevância que possam vir a ter, que se verificaram em Agosto de 2009 não integram o esbulho que aconteceu em Maio do ano seguinte.
Por outro lado, e respondendo directamente à pergunta dos recorrentes, muitos factores existem que levam uma pessoa a conter-se: o medo, sem dúvida, a fragilidade no convencimento do direito, a opção de, por outra via, conseguir satisfazer o seu interesse, etc.. Mas nada indica que tenha havido medo de agir.
Alegar que o esbulho «é violento porque a barragem do caminho, com um portão fechado a cadeado, que só por arrombamento pode ser transposto é, por si, um acto de agressão física oposta à pessoa do titular do direito que chega junto dele para passar e não pode passar» é levar longe de mais o conceito de agressão física — mesmo nesta matéria de defesa da posse. E note-se que os conceitos, mais do que úteis, são fundamentais para um raciocínio jurídico certo sobre um problema. Não se trata de jurisprudência dos conceitos (como se fosse, e como já foi sob aquele nome, algo de absolutamente formal) mas sim de delimitação rigorosa dos mesmos em ordem a tomar a decisão que a lei impõe.
Por todo o exposto, entendemos que não existe esbulho violento.
Por esta razão, não podia, como não foi, ser decretada a restituição provisória da posse.
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Mas esta solução não impede que que outra providência possa ser tomada, nos termos do art.º 395.º, Cód. Proc. Civil.
Este preceito legal remete para o procedimento cautelar comum nos casos em que se venha a concluir que o esbulho não foi violento. Para além desta expressa remissão, temos ainda de contar com o disposto no art.º 392.º, n.º 3, que determina que o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.
Ponto é que a previsão do art.º 381.º, n.º 1, esteja preenchida.
Este é o segundo problema.
Entendem os recorrentes que é errado o entendimento da Meritíssima Juiz de que se não provou que, do bloqueio da passagem, tenha resultado dano grave e dificilmente reparável. Mediu o dano por critérios monetários, com desprezo pela regra do art.º 562.º do C. Civil, que dispõe que a verdadeira reparação é a que permite reconstituir a situação que existia se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Não é errado o entendimento nem o dano foi medido por critérios monetários.
O que se passa é que existem outros caminhos que permitem aos recorrentes tirar o seu gado do prédio.
O problema coloca-se em relação ao acesso à Herdade do A… vindo da Tapada do F... Como está provado (n.º 17), esta última propriedade não tem acesso directo à via pública mas confina com a Herdade do A…, sendo de notar que estes dois prédios pertencem aos requerentes. Queremos com isto dizer que a deslocação do gado, bem como o acesso à via pública, pode ser feita sempre dentro dos prédios dos requerentes sem necessidade de atravessar prédio alheio.
Existe um dano, sem dúvida, que é o não passar pelo caminho por que sempre passaram; o que não existe é dano irreparável ou de difícil reparação. Como se escreve na sentença recorrida, não está demonstrado que «a privação da possibilidade de passar causa-lhes grave prejuízo, dificilmente reparável, decorrente da impossibilidade de exploração dos prédios e do trânsito de gados que mudam de pasto e se vendem»; pelo contrário, esta impossibilidade não existe dada quantidade de alternativas que os requerentes têm ao seu dispor — alternativas estas que foram descritas e analisadas na sentença.
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Em suma, o esbulho não foi violento e não existe dano grave ou dificilmente reparável.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 26.01.2012
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos