Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
342/20.9PBTMR.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: NE BIS IN IDEM
DIREITO DE PERSONALIDADE
PRIVACIDADE
INTIMIDADE
GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O princípio ne bis in idem deve ser entendido na sua dupla vertente – substantiva e processual – e não faz sentido que o arguido seja confrontado numa nova acusação com os factos imputados em processo já definitivamente julgado. Tais factos são “pertença” do objeto do processo já julgado por decisão transitada em julgado e, como tal estranhos ao presente processo. Se os factos assumem relevância enquanto comportamento do arguido historicamente relevante, bastaria a mera referência a condenação anterior, como é usual.
II. A sua inclusão na acusação transforma-os em “objeto do processo” a ser apreciado pelo tribunal, assim se olvidando uma vertente essencial do princípio ne bis in idem, a sua vertente processual.
III. A privacidade pode considerar-se um direito geral de personalidade aberto (sem numerus clausus) e o nosso ordenamento jurídico já autonomizou direitos anteriormente incluídos na privacidade, designadamente o direito à palavra e o direito à imagem, direito este que mais diretamente está em causa.
IV. O sentido clássico de intimidade da vida privada pode ir buscar-se à “Sphärentheorie” ou teoria das esferas ou teoria dos três graus (Dreistufentheorie). Recordemos que esta teoria, com origem na jurisprudência alemã, abarca três esferas: a da intimidade, a da vida privada e a esfera individual ou comum (pública).
V. A reserva de intimidade – ou “privacy” - é a “última e inviolável área nuclear da liberdade pessoal” (Ac. TC 459/93), o “rigth to be let alone”, expressão que é habitualmente atribuída ao Justice Louis Brendeis do US Supreme Court no seu voto de vencido no acórdão Olmstead v. US (1928), como “the most comprensive of rigths, and the rigth most valuable by civilized man”, mas que ele próprio atribui ao Juiz Cooley, no livro “Cooley on Torts” no seu artigo “The rigth to privacy”, na Harvard Law Review de Dezembro de 1890.
VI. A esfera de intimidade é a “última e inviolável área nuclear da liberdade pessoal”.
Engloba a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de pr­vacidade (v.g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou domicílio) e, bem assim, os meios de expressão e de comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.).
A situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as operações ativas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de proteção do direito à reserva da intimidade da vida privada condensado no artigo 26º, nº 1, da Constituição.
Os dados de saúde integram a categoria de dados relativos à vida privada, tais como as informações referentes à origem étnica, à vida familiar, à vida sexual, condenações em processo criminal, situação patrimonial e financeira.
- importando o teor da previsão do artigo 35.º, n.º 3 da Constituição: «as convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa e origem étnica
- e os dados sensíveis da Lei 67/98, de 26/10 – artigo 7.º, n.º 2 - os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos»
VII. Discutível, portanto, é apenas, casuisticamente, a extensão do conceito de “intimidade” da vida privada, sendo que o entendimento do Tribunal Constitucional tende a expandi-la para realidades que extravasam a da 1.ª esfera da teoria das esferas. Ou seja, não podemos fugir ao caso concreto.
VIII. Podem ocorrer casos em que a esfera de intimidade seja substancialmente reduzida, não só por ocorrerem em público, também em virtude das características de vida do beneficiário do direito (pessoas que expõem propositada, profissional ou comercialmente a sua imagem, ou titulares de cargos políticos que a expõem com risco das suas funções públicas – culto do sensacionalismo, contratos com revistas do coração, governante com amante espiã, etc.).
Sendo que aquilo que uma pessoa, propositadamente, expõe publicamente, mesmo se da esfera privada, não é objeto de proteção.
IX. Em suma, o cidadão só será autor de um crime de fotografia e filmagem ilícita se não operar nenhuma causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31..º do Código Penal – designadamente a legítima defesa, o exercício de um direito ou o consentimento. Ou seja, há licitude na obtenção de fotografias ou filmes se ocorrer, nos termos deste preceito e do artigo 31.º do Código Penal (ou seja, causas gerais de exclusão de ilicitude mais as constantes do artigo 79º, nº 2 do Código Civil).
X. O caso concreto facilmente se coloca na área da esfera pública com uma clara causa de exclusão da ilicitude, a prossecução e prova penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No Tribunal Judicial ... - Juízo Local Criminal ... - correu termos o processo comum singular supra numerado no qual foram julgados:

AA, filho de BB e de CC, natural de ..., em ..., nascido em .../.../1972, solteiro, empresário, titular do cartão de cidadão n.º ..., com residência na Rua ..., ..., em ...,
pela prática dos factos constantes da acusação de 25-07-2021 – a fls. 274-280 dos autos e a autoria material de um crime de dano, p.p. pelos artº 14º, nº 3 e 212º, nº 1 do CP, por referência aos artigos 11º e 13º do Dec-Lei nº 315/2009, de 29-10.
Face ao despacho de arquivamento do MP relativamente ao crime de fotografia ilícita imputado a DD, veio AA requerer a abertura da instrução para a sua pronúncia pela prática do indicado crime, vindo – em 26-01-2022 (fls. 412-433 dos autos) – a ser lavrado despacho de pronúncia de DD, pela prática de um crime de fotografia ilícita, p. e p. pelo art. 199º, ns. 1 e 2, als. a) e b) do CP.

*
A final - por sentença lavrada a 01-03-2023 - veio a decidir o Tribunal recorrido:
- condenar AA, na autoria material, na forma consumada de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €6 (seis Euros).
- absolver a arguida DD pela autoria material e na forma consumada do crime de gravação e fotografia ilícita p. e p. pelo Artigo 199º, nº 1 e 2, al. a) e b) do C.P.
- julgar procedente por provado o PIC deduzido por EE condenando o arguido a pagar 3.265,28€ (três mil duzentos e sessenta e cinco Euros e vinte e oito cêntimos) acrescido de juros.
- julgar improcedente por não provado o PIC deduzido por AA, absolvendo-se a arguida do pedido.
*
O arguido, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
D.1. NULIDADE DA SENTENÇA (PARCIAL):
1ª - Os factos 1 a 9, da matéria considerada provada, constituem na sua integra, factos já julgados no Juízo Local Criminal ..., por sentença proferida no processo criminal n.º 523/16.... e transitada em julgado no dia 28/11/2018 (cfr. artigo 9.º dos factos considerados provados).
2ª - Ao conhecer tal matéria, que impedido de apreciar, o Tribunal a quo violou o princípio constitucional ne bis in idem materializado no art. 29.º, n.º 5 da CRP, o que consubstancia a exceção de caso julgado, estando assim a referida sentença ferida de nulidade nessa parte, conforme o disposto na alínea c) do número 1 do artigo 379.º do C.P.P., nulidade que desde já se argui nos termos e para os efeitos do disposto no número 2 do artigo mencionado.
3ª - Tendo em conta a prova vertida nos presentes autos, mormente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, na nossa modesta opinião, impunha-se que o Tribunal tivesse decidido de forma diferente no que respeita aos factos que se discriminam:
D.2. DA MATÉRIA DE FACTO:
4ª - O Tribunal a quo considerou provados / não provados os factos infra discriminados, quando pela prova produzida, tais factos mereciam decisão diversa, nos termos que se seguem:
Dos factos considerados provados:
10. Na parte onde se lê “… O canídeo “...” não se encontrava com o açaime funcional aposto na zona da boca, de forma a impedir que pudesse morder pessoas, canídeos e/ou qualquer objecto …”
12. A denunciante estava também acompanhada pela sua cadela chamada “...”, raça Yorkshire Terrier, pequeno porte, que se encontrava deitada num banco da esplanada.
13. O arguido passou junto a essa esplanada, segurando os dois referidos canídeos pela trela quando, subitamente, a cadela “...” dirigiu-se para o banco onde se encontrava a cadela “...” e mordeu-a, abocanhando-a.
14. Seguidamente, a cadela “...”, já com a cadela “...” na boca, abanou-a por várias vezes e transportou-a pela boca até cerca de 2 metros desse banco.
15. Após o que largou a cadela “...” junto do arguido.
19. Na parte onde se lê “O arguido estava ciente de que, como dono da “...””;
21. Nas circunstâncias acima referidas, o arguido podia e devia ter evitado que o canídeo passeasse junto a uma esplanada onde se encontravam pessoas e animais sem ter o açaime funcional colocado na boca, como aliás o arguido bem sabia, estando ciente de que a raça Rotweiller é legalmente considerada uma raça potencialmente perigosa e que lhe cabiam os deveres de vigiar, guardar e controlar as acções do canídeo, de que sabia ser responsável.
22. Ao actuar da forma acima descrita, o arguido estava ciente de que o canídeo “...” poderia vir a qualquer momento a atentar contra o corpo e saúde de um canídeo pertencente a outra pessoa, mordendo-o e causando-lhe lesões como as que efectivamente causou e se encontram acima referidas, sendo que, todavia, o arguido se conformou com essa possibilidade.
23. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
c) Um dos cães do ofendido mordeu e abocanhou o cão de EE, abanando-o e transportou-o na boca até cerca de 2 metros do banco onde tal cão se encontrava, causando-lhe lesões.
d) Na sequência de tais acontecimentos, o aqui ofendido AA abandonou o local com os seus cães.
e) Na parte onde se lê “Quando já se encontrava na R. ... …”.
Dos factos considerados não provados:
1. Que AA se tivesse identificado, fornecendo a EE o seu nome e número de telefone.
2. Que de tal captação de imagens tivesse o ofendido conhecimento ou consciência.
3. Que a arguida tivesse agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que, para tanto, não tinha autorização de AA, pessoa visada em tais imagens, agindo sem o conhecimento deste e sem consciência pelo aludido AA que se encontrava a ser fotografado.
4. Sabia a arguida que, com tal conduta, supra referenciada, ofendia o direito à imagem de AA, o que pretendeu e logrou fazer, pretendendo documentar a identificação de quem era o responsável pelo canídeo supra referenciado.
5. Sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
6. Tal captação de imagens só foi conhecida pelo aqui ofendido AA aquando da consulta dos presentes autos.
5ª - Na nossa modesta opinião impunha-se que o Tribunal tivesse decidido os factos supra da forma seguinte:
− N.º 10 dos factos provados: O canídeo “...” se encontrava com o açaime funcional aposto na zona da boca, de forma a impedir que pudesse morder pessoas, canídeos e/ou qualquer objecto.
− N.º 12 dos factos provados: A cadela “...”, raça Yorkshire Terrier, pequeno porte, encontrava-se deitada num banco da esplanada, sem trela.
− N.º 13 dos factos provados: O arguido passou junto a essa esplanada, segurando os dois referidos canídeos pela trela quando, subitamente, as cadelas “...” e “...” se envolveram, tendo a cadela “...” se libertado do seu açaime, mordido e abocanhado a cadela “...”.
− N.ºs 14, 15, 19, 21, 22 e 23, alíneas c), d) e e), este último na parte onde se lê “Quando já se encontrava na R. ... …”, impunha-se terem sido considerados como não provados. dos factos provados.
− N.ºs 1, 2, 3, 4, 5 e 6, dos factos não provados, impunha-se terem sido considerados como factos provados.
6ª Fruto dos seguintes elementos de prova:
− Facto provado discriminados como n.º 10 dos factos provados:
Depoimento da ofendida EE parcialmente supratranscrito do Ficheiro 20220927125503_2997606_2871732, minuto (1:46) e (23:00);
Do depoimento do arguido AA parcialmente supratranscrito do Ficheiro: 20220927122539_2997606_2871732 minuto (12:11);
Do relatório médico-veterinário subscrito pela Médica Veterinária da cadela “...”, junto ao processo pelo arguido com a contestação, a 09-05-2022 com a referência CITIUS ...65.
Do depoimento da testemunha Dra. FF, Médica Veterinária da ... parcialmente supratranscrito Ficheiro: 20221115122133_2997606_2871732 minuto (1:58);
Do depoimento da Testemunha GG parcialmente supratranscrito do Ficheiro 20221115114840_2997606_2871732, minuto (3:02) e (31:34);
Por mais nenhuma testemunha se ter revelado credível, no que respeita ao presente facto;
Sendo que, a única testemunha cujo depoimento serviu de base à fundamentação da sentença, foi o de HH, que estava noutra explanada e cujo depoimento foi contraditório com os factos aqui em apreço, mormente por deste constar que “os cães iam soltos e sem açaime (…)”.
− Facto provado discriminados como n.º 12 dos factos provados:
Do depoimento da ofendida EE parcialmente supratranscrito do Ficheiro 20220927125503_2997606_2871732 minuto (20:16).
− Facto provado discriminados como n.º 13 dos factos provados:
Conclusão que se alicerça no depoimento do arguido AA já supratranscrito.
− Factos provados discriminados como n.º 14, 15 dos factos provados, impunha-se terem sido considerados como não provados.
Conclusão que se alicerça no depoimento do arguido AA e da testemunha GG, já supratranscritos.
− Factos provados discriminados como n.º 19 dos factos provados:
O que resulta, entre outros, dos diversos documentos juntos aos autos com o requerimento apresentado pela proprietária da cadela “...” a 19/04/2021, ao qual foi atribuída a referência CITIUS ...44
− Factos provados discriminados como n.º 21, 22 e 23, bem como os por nós identificados com as alíneas c), d) e e), este último na parte onde se lê “Quando já se encontrava na R. ... …”, dos factos provados, impunha-se terem sido considerados como não provados.
No que tange aos factos discriminados como n.º 21, 22 e 23, por o seu teor se encontrar prejudicado pela prova que consideramos dever ter sido considerada provada, bem como pelos respetivos elementos de prova que fundamentam a nossa posição.
A nossa posição relativa à alínea c) prende-se com os depoimentos já supratranscritos do arguido AA e da testemunha GG.
Alicerçamos a nossa posição, no que tange à alínea d) nos depoimentos do arguido, da ofendida e da testemunha II conforme parcialmente supratranscrito
Ficheiro 20220927122539_2997606_2871732 minuto (16:26)
Ficheiro 20220927125503_2997606_2871732 minuto (11:16)
Ficheiro 20221115110321_2997606_2871732 minuto (8:30)
Quanto à alínea e), porquanto, nem a queixosa, nem a arguida, nem nenhuma testemunha se referiram à Rua ....
A presente matéria foi já objeto de detalhada análise em muitos Acórdãos proferidos nos nossos Tribunais Superiores, nomeadamente no Acórdão proferido pelo
Venerando Tribunal da Relação de Évora, no Processo: 87/12.3GGBJA-A.E1, o qual supra se transcreveu, para o qual nos remetemos.
12ª - A conduta levada a efeito por DD é em tudo idêntica à da testemunha do referido Acórdão, sendo, salvo melhor opinião, merecedora da mesma censurabilidade, pois tal comportamento, representa intolerável lesão da imagem do arguido, não servindo de justificação, os objetivos de perseguição criminal plasmados na sentença em cheque.
13ª - Ao proferir a sentença objeto do presente recurso, o Tribunal a quo, violou as normas legais supramencionadas, pelo que s.m.o., deverá a sentença recorrida ser revogada e consequentemente reenviada para que seja proferida nova decisão desprovida dos vícios que a inquinam ou ser substituída por outra que condene a arguida DD pela prática do crime de que está pronunciada e decida do pedido de indemnização cível em sintonia com a respetiva decisão crime.
Nos termos expostos e nos mais de direito aplicáveis, que V. Exas. doutamente suprirão, deve:
1. Declarar-se nula a Sentença em apreço, na parte em que conhece os artigos 1 a 9 da matéria considerada provada;
2. Revogar-se a sentença recorrida e consequentemente:
a) Reenvia-la para que seja proferida nova decisão desprovida dos vícios que a inquinam ou;
b) Substitui-la por outra que absolva o arguido AA pela prática do crime de que está acusado, condene a arguida DD pela prática do crime de que está pronunciada e decida dos pedidos de indemnização cível em sintonia com as respetivas decisões crime;
3. Com todas as consequências legais.
*
A Digna magistrada do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, concluindo:
- como resulta claramente da sentença recorrida, neste processo está em causa um crime de dano imputado a AA e pelo qual foi condenado e não um crime de ofensa à integridade física por negligência pelo qual já havia sido julgado em processo diverso e condenado por sentença transitada em julgado, não tendo sido violado o principio ne bis in idem.
- a douta sentença recorrida fez correcta apreciação da prova produzida mostrando essa prova suficiente para a matéria de facto dada como provada.
- da prova produzida resulta, sem qualquer dúvida séria e razoável que tenha que ser apreciada a favor do arguido/recorrente por aplicação do princípio in dúbio pro reo, que este praticou os factos, não merecendo censura a decisão sobre a matéria de facto.
- os factos dados como provados integram a prática pelo ora recorrente do crime de dano pelo qual foi condenado.
- no caso em apreço, não é possível afirmar que a captação de imagem feita pela arguida DD, o foi contra a vontade do recorrente.
- por outro lado, como tem sido entendimento da jurisprudência, não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente.
- o art.º 79.º n.º 2 do Código Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando o justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, é extensível ao direito penal, sendo que esta norma afasta a ilicitude do art.º 199.º do CP.
- a captação de imagem feita pela arguida DD, porque destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, pois que actuou ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso e manter-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
*
Responderam igualmente EE e DD, concluindo:
A. O recorrente não alega, concretamente quais os fundamentos do recurso e os vícios da sentença, não cumprindo o disposto no artigo 410º do C.P.P.,
B. Pelo que deve o recurso ser rejeitado.
C. No requerimento de interposição do recurso, o recorrente invoca o disposto no artigo 412º n.ºs 2 e 3 do C.P.P., sendo certo que resulta das suas alegações que considera que há um erro na apreciação da prova;
D. A sindicância da valoração da prova feita em 1ª instância afere-se em dois domínios, nomeadamente…
E. Numa impugnação ampla de matéria de facto, que depende da observância dos requisitos previstos no artigo 412º n.ºs 3 e 4 do C.P. Penal,
F. E que se consubstancia num erro que vicia a avaliação da prova, que a antecede e que dela é distinta,
G. Caso em que o recurso para a Relação não consubstancia um novo julgamento, mas destina-se a colmatar um erro de julgamento, com indicação da prova concreta para que o mesmo possa ser sindicado;
H. A sindicância da prova também se afere numa impugnação restrita, caso em que o recurso tem como fundamento o disposto no artigo 410º do C.P. Penal, que no seu n.º2 enumera, taxativamente os vícios a invocar;
I. O recorrente não alega claramente nenhum vício concreto que entende existir, embora se conduza para o erro na apreciação da prova, atentas as suas alegações.
J. Ora, na douta sentença – pese embora não seja alegado! – não se vislumbra insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável e muito menos erro notório na apreciação da prova,
K. Já que a valoração que é feita da mesma é ao abrigo do disposto no artigo 127º do Código Proc. Penal, não havendo qualquer erro ostensivo em si ou quando conjugado com as regras da experiência comum,
L. Havendo a formação da convicção com base na análise concreta de toda a prova, fundamentada de modo claro, inequívoco, lógico, de acordo com as regras da experiência comum, não se vislumbrando qualquer arbitrariedade ou subjetividade.
M. Acresce que o recorrente, apesar de impugnar a sentença, também em termos de Direito, não cumpre o disposto no artigo 412º n.º2 do Cód. Proc. Penal.
N. Não se verifica qualquer nulidade da douta sentença na parte dos artigos 1 a 9 da matéria provada, já que tais pontos não são novamente julgados, limitando-se a ser considerados provados, atento o seu trânsito em julgado e a certidão junta aos autos, não se verificando o disposto no artigo 379º do Cód. Proc. Penal.
O. Acresce que, tal factualidade fazia parte da acusação pública e o recorrente não requereu a abertura de instrução, nem arguiu a pretendida nulidade, nos termos do disposto no artigo 120º do Cód. Proc. Penal.
P. O recorrente, quando impugna a matéria de facto, e no que respeita aos pontos 13, 21, 22, 23, alínea e) da matéria provada e os n.ºs 1, 2, 3, 4, 5 e 6 da matéria não provada, não cumpre o disposto no artigo 412º n.º 3 alíneas b) e c) do Cód. Proc. Penal porquanto não indica as concretas provas que impõe decisão diversa e as provas que devem ser renovadas;
Q. Quanto à impugnação da alínea c) da matéria de facto provada, o recorrente indica como prova (para lá das declarações do recorrente que não foram acolhidas) a testemunha GG, cujo depoimento não mereceu credibilidade, pelos motivos explanados e fundamentados na douta sentença,
R. Não podendo deixar de alegar que tal testemunha, cujo depoimento está gravado através do sistema integrado de gravação digital proveniente da aplicação informática "H@bilus Media Studio", em uso no douto Tribunal, contadores 00.00.03.3 a 00.32.46.9, conforme consta da ata de .../.../2022, no ficheiro áudio n.º ...40, admitiu , contrariando o que depusera inicialmente, acabou por admitir,
00:31:33.7
GG
Neste momento não posso garantir se tinha o açaime ou não.
00:26:50.3
GG
Porque eu não vi, não vi o que é que tinha acontecido de facto ali a 100%.
S. Quanto aos pontos 10, 12, 14, 15 e 19 da matéria provada, os depoimentos transcritos, não permitem abalar tais factos considerados provados.
T. Pese embora tenha ficado provado que a “captação da imagem não foi obtida mediante autorização”, não ficou provada que, na data dos factos, o recorrente se opôs a tal captação, sendo certo que está a olhar diretamente para a fotografia que consta dos autos, impondo o espirito do homem médio e o senso comum, que se tenha apercebido da mesma.
U. De todo o modo sem prescindir, sempre se dirá que a ilicitude, está necessariamente excluída,
V. Porquanto a recorrida – arguida agiu ao abrigo do direito da necessidade prevista no artigo 34º do Código Penal.
W. Acresce que a imagem foi captada em local público, por factos ocorridos na via pública, visando a proteção de interesses públicos, não se vislumbrando qualquer violação do núcleo duro da vida privada ou imagem do recorrente,
X. Não sendo, como tal, necessário o consentimento, nos termos do disposto no artigo 79º n.º2 do Código Civil.
Y. Assim, a prova foi corretamente analisada e considerada, Z. O Direito corretamente interpretado,
AA. Devendo manter-se na íntegra a douta sentença.
Nos termos expostos e nos mais de Direito aplicáveis deve:
A. O recurso ser rejeitado ou, caso assim se não entenda,
B. Ser julgado improcedente,
C. Com todas as consequências legais.
*
B - Fundamentação:
B.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1.Desde data não concretamente determinada mas sempre anterior ao dia 14 de Agosto de 2016 e até pelo menos o mês de Agosto de 2020, que o arguido foi o dono do canídeo de grande porte denominado “...”, fêmea, nascida a 04/12/2013 e possuidora de identificação electrónica n.º ...33.
2.Sendo assim a pessoa responsável pela detenção, guarda e vigilância relativa a esse canídeo.
3.No dia 14 de Agosto de 2016, pelas 9h15m, na ..., sita na Praceta ..., em ..., o arguido soltou a referida “Rotweiller”, deixando-a em liberdade, sem trela e açaime (cfr. fls. 132 dos autos).
4.A dado momento, a referida “Rotweiller” correu na direcção da ofendida JJ que também se encontrava no local a passear o seu cão de pequeno porte (cfr. fls. 132 dos autos).
5.Por temer que a referida “Rotweiller” agredisse o seu cão, a ofendida agarrou-o e ficou com o mesmo ao colo (cfr. fls. 132 dos autos).
6.A referida “Rotweiller” começou a correr em volta da ofendida, dando saltos na direcção do cão desta (cfr. fls. 132 dos autos).
7.A dado momento, a zona do antebraço esquerdo da ofendida foi atingida pelos dentes da referida “Rotweiller” (cfr. fls. 132 dos autos).
8.JJ teve necessidade de receber assistência médica no Hospital ..., tendo levado três pontos na zona atingida (cfr. fls. 132 dos autos).
9.Pela prática desses factos, o Juízo Local Criminal ..., por sentença proferida no processo criminal n.º 523/16.... e transitada em julgado no dia 28/11/2018, condenou o arguido, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física por negligência, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante gobal de €400,00 (quatrocentos euros).
10.No dia 24 de Julho de 2020, cerca das 21h, na Rua ..., em ..., o arguido passeava o canídeo “...” e outro canídeo de pequeno porte chamado “...”, sendo que:
- Ambos os canídeos estavam a ser passeados pelo arguido através de trela;
- O canídeo “...” não se encontrava com o açaime funcional aposto na zona da boca, de forma a impedir que pudesse morder pessoas, canídeos e/ou qualquer objecto.
11.Por seu turno, a denunciante EE encontrava-se numa esplanada sita nessa Rua ..., acompanhada por DD.
12.A denunciante estava também acompanhada pela sua cadela chamada “...”, raça Yorkshire Terrier, pequeno porte, que se encontrava deitada num banco da esplanada.
13.O arguido passou junto a essa esplanada, segurando os dois referidos canídeos pela trela quando, subitamente, a cadela “...” dirigiu-se para o banco onde se encontrava a cadela “...” e mordeu-a, abocanhando-a.
14.Seguidamente, a cadela “...”, já com a cadela “...” na boca, abanou-a por várias vezes e transportou-a pela boca até cerca de 2 metros desse banco.
15.Após o que largou a cadela “...” junto do arguido.
16.Antes da cadela “...” largar a cadela “...”, a denunciante, desesperada, agarrou-se à cabeça e às orelhas da cadela “Rotweiller”, tentando puxa-la para trás e obriga-la a largar a cadela “...”.
17.Nesse mesmo dia, alguns minutos depois, a cadela “...” foi assistida na urgência do Centro Veterinário de ..., encontrando-se consciente, mas em choque, com muita dor quando manipulada, principalmente na região do tórax e nos membros anteriores (cfr. relatório junto a fls. 46).
18.Em consequência directa e necessária destes factos, a cadela ... sofreu pelo menos as seguintes lesões:
- Várias lacerações na região do pescoço e membro anterior direito;
- Luxação escapulo-umeral de grande gravidade, de tal forma que o canídeo teve que ser sujeito a cirurgia de ortopedia (cfr. fls. 46 a 50).
19.O arguido estava ciente de que, como dono da “...”, lhe cabia o dever de guardar, vigiar e controlar as acções desse animal.
20.Tal como estava ciente que lhe cabia o dever de garantir que, sempre que a cadela estivesse na via pública e/ou em qualquer lugar onde se encontrassem outras pessoas ou animais pertencentes a terceiros, esta usava trela, coleira e açaime funcional devidamente colocado na zona boca, de forma a evitar que a “...” pudesse incomodar ou molestar o corpo e a saúde de pessoas, canídeos, outros animais e/ou mesmo causar estragos a bens pertencentes a terceiros.
21.Nas circunstâncias acima referidas, o arguido podia e devia ter evitado que o canídeo passeasse junto a uma esplanada onde se encontravam pessoas e animais sem ter o açaime funcional colocado na boca, como aliás o arguido bem sabia, estando ciente de que a raça Rotweiller é legalmente considerada uma raça potencialmente perigosa e que lhe cabiam os deveres de vigiar, guardar e controlar as acções do canídeo, de que sabia ser responsável.
22.Ao actuar da forma acima descrita, o arguido estava ciente de que o canídeo “...” poderia vir a qualquer momento a atentar contra o corpo e saúde de um canídeo pertencente a outra pessoa, mordendo-o e causando-lhe lesões como as que efectivamente causou e se encontram acima referidas, sendo que, todavia, o arguido se conformou com essa possibilidade.
23.O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
No dia 24 de Julho de 2020, cerca das 21h, o ofendido AA deslocava-se na R. KK, em ..., nas imediações do ..., acompanhado de dois cães, que segurava pela trela.
No mesmo local e circunstância de tempo, numa esplanada, encontrava-se EE e o seu respectivo cão, acompanhada de DD.
Um dos cães do ofendido mordeu e abocanhou o cão de EE, abanando-o e transportou-o na boca até cerca de 2 metros do banco onde tal cão se encontrava, causando-lhe lesões.
Na sequência de tais acontecimentos, o aqui ofendido AA abandonou o local com os seus cães.
Quando já se encontrava na R. ..., foi interpelado pela aqui arguida DD, que o fotografou, tendo sido tais imagens posteriormente entregues à PSP, constituindo as de fls. 67 a 68 dos autos principais, junção realizada pela aqui arguida, para documentar a identificação de quem seria o proprietário do animal envolvido nos factos supra.
Tal captação de imagem não foi obtida mediante autorização, para tanto, do aqui ofendido, AA.
Tal captação de imagens, da pessoa do aqui ofendido AA foi feita na via pública pela arguida DD.
Tais imagens vieram a ser juntas aos presentes autos aquando da inquirição da aqui arguida, como testemunha, em 11/11/2020.
*
E como não provados os seguintes factos:
Que AA se tivesse identificado, fornecendo a EE o seu nome e número de telefone.
Que de tal captação de imagens tivesse o ofendido conhecimento ou consciência.
Que a arguida tivesse agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que, para tanto, não tinha autorização de AA, pessoa visada em tais imagens, agindo sem o conhecimento deste e sem consciência pelo aludido AA que se encontrava a ser fotografado.
Sabia a arguida que, com tal conduta, supra referenciada, ofendia o direito à imagem de AA, o que pretendeu e logrou fazer, pretendendo documentar a identificação de quem era o responsável pelo canídeo supra referenciado.
Sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Tal captação de imagens só foi conhecida pelo aqui ofendido AA aquando da consulta dos presentes autos.
*
E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:
«Para a formação da convicção do Tribunal no tocante aos factos praticados foi determinante a a conjugação e análise crítica de toda a prova produzida, mormente testemunhal e documental: - Auto de denúncia, fls. 4 do apenso n.º 362/20....; - Aditamento n.º 3, fls. 27-28 - Participação, fls. 29-30; - Aditamento n.º 1, fls. 31; - Documentação médico-veterinária, fls. 46-50; - Informações policiais e documentação médico-veterinária, fls. 52-57, 59-64, 179-186, 193-194, 20 e 208-215; - Cópia de fotografias do arguido e canídeos, fls. 67-68; - Certificado do registo criminal do arguido, fls. 86-93; - Informação prestada pela ofendida, fls. 97; - Aditamento n.º 6 e fotografia, fls. 99-100; - Aditamento n.º 7, fls. 101; - Termo de juntada n.º 1, fls. 102-121; - Cota n.º 2, fls. 122; - Informação prestada a fls. 124; - Certidão extraída do processo n.º 523/16...., fls. 130-158; Auto de busca e apreensão, fls. 170-171.
A arguida referiu que os factos correspondem à verdade, mas que não sabia que não o podia fazer e só o fez porque o arguido se recusou a identificar, tendo permanecido no local cerca de 5m e indo depois embora com os cães, sendo um deles sem açaime e outro com ele pendurado no pescoço. Acrescentou que fez o trajeto até ao mercado, via Rua ..., seguindo o arguido até chegar a policia, sendo que o arguido viu o carro da polícia e não parou. Mais disse que tirou a fotografia junto ao bar, em frente à casa dos ofícios e fê-lo porque o arguido se recusou a identificar e saiu do local, pelo que foi atrás do arguido até a policia aparecer.
Nega que o arguido se tivesse identificado e indicado o número de telefone, referindo que o arguido foi indicando números de telefone e tentou ligar para um deles e atendeu uma senhora idosa, que negou ser tal contacto do arguido. Não deu a sua identificação também segundo a arguida, mas no local disseram-lhe que se chamaria AA e este deu-lhe números que não correspondiam, reitera. A intenção ao captar a imagem foi capturar a imagem dos animais sem açaime (um deles tinha um açaime pendurado no pescoço) e para identificar o arguido dado que este não quis aguardar pela policia. O arguido referia que tinha seguro. Acrescentou ainda que o arguido vinha com os cães e parecia um trenó pois tinha dificuldade em os controlar, estes podiam ter atacado as pessoas na esplanada, pois vinham sem açaime, sendo que um deles levava o açaime caído. Um dos cães voltou para trás e apanhou a cadelinha que estava em cima do banco, abocanhou-a e abanou-a. Ele avançou com os cães para ir embora e a arguida levantou-se e disse que ele não podia ir-se embora sem chegar a policia e que ia tirar fotografia dos cães sem açaime. Entretanto, tirou foto e depois é que ele começou a dizer os números de telefone. Finalmente, foi confrontada com a fotografia que tirou.
Note-se que a versão da arguida é credível e consentânea com o normal acontecer, pois a finalidade que a norteou e que alegou está materializada na junção a este processo das imagens e na sua utilização exclusiva para esse fim de colaboração com o sistema judicial pelo que mal seria, em termos de justiça material que, por esse motivo, se visse penalizada.
Ademais, a falta de colaboração do arguido (na génese do comportamento da arguida) também se evidencia pela necessidade de chamar a policia, pela saída do local e é referenciada por um dos agentes inquiridos. Por todo o exposto se consideraram não provados os factos supra elencados por a concreta intencionalidade pressuposta pelo tipo legal não poder ter-se por verificada.
Já o arguido referiu que é a cônjuge a proprietária dos cães e que ambos tinham açaime e trela. Os cães iam com a trela e a cadela apareceu do nada, provavelmente rosnou e houve troca de mordidelas entre eles, lutaram, o dele era maior, estava com açaime. A arguida disse que ele não ia sair dali e ele aceitou, ficou ali cerca de 20m a espera da policia e só saiu dali para apresentar queixa. Só viu as fotos tiradas pela arguida quando foi consultar o processo. O cão dele não teve lesões e reiterou que estava com açaime e quando tocou na cadela, sendo que o açaime caiu, o que é totalmente desrazoável e não pode considerar-se verosímil à luz das regras de experiência comum.
Já a dona do cão contou os factos descritos na acusação, tendo deixado a cadelinha no banco e depois viu-o na boca do cão, em conformidade com o relato da arguida DD, bem como o estado em que ficou o animal o a forma como o sucedido a afectou psicológica e emocionalmente.
LL agente da PSP dirigiu-se ao local e depois foram ao encalce do arguido, que já lá não se encontrava, refere que este não foi colaborante, que era conhecido da policia por ocorrências com os cães e que o cão não tinha açaime posto, não se recorda se estava pendurado.
II disse que avistou o arguido a passar próximo do estabelecimento, estando o cão com o açaime de lado, a ... estava em cima de uma cadeira, com uma senhora a fazer-lhe festinhas, e só se lembra de ver a mesma na boca do animal do arguido e a dona foi lá e interveio. Entretanto, depois, esteve a conversar com o arguido, que conhecia e nada sabe sobre a situação ocorrida com a arguida DD.
HH estava noutra esplanada quando tudo sucedeu e tinha a sua cadela consigo o que lhe chamou a atenção, pois os cães iam soltos e sem açaime, o que lhe causou preocupação. Depois já só viu a cadelinha a ganir, já estava na boca o grande, que o abanava, a dona saiu do estabelecimento e puxou-lhe as orelhas até a largar.
GG viu o arguido com os cães, esteve com ele (pois conhece-o) antes do sucedido, os cães traziam trela e o rottweiler trazia açaime, entretanto, viu sair um cão e dirigir-se à cadela do arguido, ela meteu a pata no açaime e agarrou o cão. Diz que ficou mais atrás, não se compreendendo, assim, como viu o que relatou. A forma condicional/hipotética como descreveu os factos, por exemplo ao dizer “não acredito que a rottweiler tivesse trela suficiente para ir buscar a cadelinha” permite suportar a dúvida de que tivesse visto o que descreveu. Ademais, a descrição consensual das testemunhas que referem ter a dona segurado o cão pelas orelhas, foi negado por esta testemunha. Despediu-se segundo disse e seguiu atrás do arguido, o que causa estranheza. Quando lhe são colocadas questões concretas foi evasivo, ademais referiu que depois perguntou ao arguido o que se tinha passado, o que causa enorme estupefacção, pois se viu o que se passou não se percebe porque perguntou o que ele próprio viu. Tudo isto compromete a sua credibilidade. Primeiro diz que viu o canídeo tirar o açaime para, depois, no final dizer que não sabia se estava ou não com o açaime.
Donde se conclui que o depoimento desta testemunha não oferece credibilidade.
FF, médica veterinária nada de relevante adiantou para além de referir que o cão do arguido usa açaime de nylon. Referiu que alguns animais conseguem tirar o açaime, mas com as patas, que não corresponde à versão do arguido.
MM que inquiriu a arguida referiu que esta entregou a fotografia no processo para identificar o arguido a pedido da testemunha e depois apagou a mesma.
NN referiu que foi chamado ao local e quando chegou ao arguido as cadelas não tinham açaime.
Por todo o exposto e da conjugação de toda a prova não soçobra qualquer dúvida que possa reputar-se razoável quanto ao cometimento pelo arguido dos factos pelos quais vinha acusado».
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B.2 - Cumpre conhecer
O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
Destarte, duas são as questões suscitadas no presente recurso:
- a violação do princípio ne bis in idem;
- a impugnação da matéria de facto;
- a absolvição da arguida DD da prática de um crime de fotografias ilícitas..
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B.2.1 – A primeira questão colocada nos autos aparenta ser, de facto, relativa ao objecto do processo e à violação do princípio ne bis in idem, na medida em que são vertidos nestes autos factos atinentes a outro processo.
Apesar de a fundamentação de facto e de direito da decisão recorrida não aparentar retirar de tais factos um gravame na culpa e nas necessidades de prevenção relativos ao recorrente com reflexo nos presentes autos, certo é que os factos indicados pelo recorrente são “pertença” do objecto do processo já julgado por decisão transitada em julgado e, como tal estranhos ao presente processo.
Mas referimo-nos apenas aos factos 3 a 8, pois que os factos 1 e 2 não dizem apenas respeito a esses outros autos, mas são factos que enquadram a actuação do arguido neste processo e o facto 9º ser a mera notícia de facto constante do CRC do arguido, cuja redacção terá que ser ligeiramente alterada para o reduzir, de facto, ao que consta do CRC e para que se possa atender ao comportamento anterior do arguido, tal como previsto na lei penal.
Também é certo que tais factos 3 a 9 já constavam da acusação deduzida nestes autos, pelo que o tribunal se limitou a transcrevê-los.
Mas não deviam, pois que se os factos assumem relevância enquanto comportamento do arguido historicamente relevante, bastaria a mera referência a condenação anterior, como é usual.
Assim, a sua inclusão na acusação transforma-os em “objecto do processo” a ser apreciado pelo tribunal, que se limitou, aliás, a transcrevê-los usando como fundamento factual a certidão de tal processo constante dos autos e não – não poderia – a prova produzida (por declarações, depoimentos e documentos) nestes autos.
Mas o arguido com eles foi confrontado, assim se olvidando uma vertente essencial do princípio ne bis in idem, a sua vertente processual.
E, como se afirma no acórdão do TC nº 246/2017 (Processo n.º 880/2016):
2.1.1. O núcleo essencial da proteção conferida por este princípio – pelo princípio ne bis in idem – vai referido à apreciação do mérito da causa penal. Com efeito, como observa Américo Taipa de Carvalho [Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (org.), tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 676]:
“[…]
O n.º 5 deste artigo 29.º estabelece o princípio chamado ne bis in idem. Esta proibição de ‘duplo julgamento’ pela prática do mesmo crime constitui e continua a constituir uma garantia do cidadão frente a possíveis arbitrariedades do ‘jus puniendi’ estadual. Assim, a ratio e o alcance deste princípio é o da proibição de um duplo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido e o da proibição de dupla punição pela prática do mesmo crime.
[…]”.
Ou, nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 467):
“[…]
O n.º 5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem. Também ele comporta duas dimensões: (a) como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
[…]”.
Note-se que a jurisprudência deste Tribunal tem acentuado, a respeito do artigo 29.º, n.º 5 da CRP, a diferença entre a dimensão material e a dimensão processual do ne bis in idem. Assim, no Acórdão n.º 303/2005 (a propósito da punição em concurso efetivo pelos crimes de burla e de falsificação de documentos), referiu-se o seguinte, distinguindo a dimensão substantiva (a que aí estava em causa) e a dimensão processual do princípio:
“[…]
11. Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa “[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, dando-se, assim, dignidade constitucional expressa ao clássico princípio […] ne bis in idem […].
Numa primeira concretização, a doutrina penalística costuma assinalar que o princípio tem uma vertente substantiva e outra processual. Sempre de um modo geral, designadamente sem entrar na consideração da pluralidade de ramos do direito sancionatório, pode dizer-se que, do ponto de vista substantivo, o princípio proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infração; do ponto de vista processual, o [ne] bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infração penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação.
O ne bis in idem processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo ‘mesmo crime’ em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Dâmocles de uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena.
(…)
2.1.2. Tem, pois, aceitação generalizada a ideia de que a sujeição ao próprio processo penal – independentemente da decisão que possa vir a afirmar-se sobre a substância da pretensão punitiva – acarreta, para o arguido, consequências que não devem, por princípio, perpetuar-se nem repetir-se. Nesta mesma ideia assenta a vertente processual do princípio (rectius, do princípio na sua dimensão processual), que atrás se referiu e a jurisprudência constitucional acolheu. Ou seja, nas palavras de Ramón García Albero («Non Bis In Idem» Material y Concurso de Leyes Penales, Barcelona, 1995, p. 24):
“[…]
[O] non bis in idem tem uma vertente substantiva e outra processual. Do ponto de vista material, o princípio veta a imposição plural de consequências jurídicas relativamente a uma mesma infração. Na perspetiva processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar um novo processo e a sujeição a julgamento quanto ao facto sobre o qual incidiu sentença firme ou arquivamento definitivo. […] No caso do non bis in idem material, a hipótese [da norma] reconduz-se à identidade da infração e a sua consequência [evitar a] sanção punitiva. O non bis in idem processual tem, pelo contrário, como hipótese não o «crimen», mas sim o «factum», e como consequência evitar, cabalmente, o próprio processo.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Salienta, ainda, Henrique Salinas (“Do caso julgado à definitividade da sentença penal”, disponível em http://www.fd.lisboa.ucp.pt, p. 15):
“[…]
No que respeita especificamente a esta vertente processual do princípio, é-lhe atribuída uma dupla dimensão. Em primeiro lugar, como direito subjetivo fundamental, garante «ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo)». Por outro lado, «como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
Pode até afirmar-se que o princípio adquiriu uma relevância própria, o que teve por efeito, num desenvolvimento destas conceções, a autonomização do ne bis in idem perante o caso julgado.
[…]”.
Devendo o princípio ne bis in idem ser entendido na sua dupla vertente – substantiva e processual – não faz sentido que o arguido tenha sido confrontado numa nova acusação com os factos imputados em processo já definitivamente julgado.
Por isso que lhe assista razão no invocado quanto aos factos 3 a 8 que se devem dar como não escritos.
*
B.2.2 – Impugnação factual
O recorrente insurge-se quanto à prova dos factos dados como provados 10, 12 a 15, 19, 21 a 23 e quanto aos factos dados como não provados 1 a 6, pretendendo-os provados.
Indica a prova atinente a tais pretensões, designadamente as suas declarações e os depoimentos que indica a cada facto dado como provado (dos indicados supra). Quanto ao relatório médico-veterinário – que também invoca – a sua pretensão limita-se ao saber se um cão pode livrar-se do açaime com as suas patas, o que está claramente fora de qualquer juízo científico ou técnico médico-veterinário e se limita a ser a opinião de uma médica veterinária sobre um facto nem sequer dado como provado, o tipo de açaime usado.
Acresce que neste ponto – o uso de açaime, questão que é central na sua impugnação – as fotos de fls. 67/68 dos autos são muito claras na constatação de que os cães que trazia consigo não usavam açaime, designadamente a cadela de raça “Rotweiller”, qualificada como raça perigosa.
No mais, a indicação das suas declarações e depoimentos para infirmar tal facto, não cumpre o requisito de impugnação factual dos artigos 431º. 410º e 412º, ns. 3 e 4 do CPP.
De facto, o artigo 431.º sobre a “Modificabilidade da decisão recorrida” afirma expressis verbis que:
«sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou
c) Se tiver havido renovação da prova.»
E note-se que o artigo é vinculativo no sentido de dever ser interpretado como dizendo “a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se ocorrer um dos casos previstos no artigo 410º ou se o recorrente impugnar nos termos previstos no artigo 412º, nsº 3 e 4 do diploma.
Não havendo lugar a renovação da prova e sendo o primeiro requisito [a al. a)] um óbvio pressuposto e necessidade, resta apreciar as duas hipóteses colocadas como essenciais: o disposto no artigo 410º e a impugnação a que se refere o artigo 412º, nº 3, ambos do C.P.P..
Ou seja, a invocação de “violação do princípio da livre apreciação da prova” serve de nada se não ocorrer uma das indicadas vias pois que essa invocação só serve para apelar a um princípio geral de apreciação probatória a inserir numa dessas duas vias. Isto é, contrariamente ao que já aconteceu noutros ramos da actividade humana, não há aqui uma “terceira via”.
Como se sabe, no âmbito da impugnação factual nos termos do art. 412º do CPP existe doutrina e jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância deste ónus de impugnação especificada no acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 que veio consagrar a seguinte jurisprudência, alterando ligeiramente o entendimento anteriormente existente pela criação de uma alternativa quanto a um dos pressupostos de impugnação:
«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Podemos portanto concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:
a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
b) - A indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
c) - Se a acta contiver essa referência, a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
d) – Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).
Mas, cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto? Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto. E aqui o impõe significa “determina” e não apenas “permite”, “possibilita” ou “consente”.
A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.
No caso, nem as declarações e depoimentos impõem diversa apreciação probatória como as fotos juntas aos autos provam precisamente o contrário do pretendido.
Daqui apenas resulta que a pretensa impugnação do recorrente é apenas um apelo a que este tribunal realize nova apreciação probatória, substituindo-se ao tribunal recorrido.
Resta acrescentar, pelas razões infra indicadas, que as fotos indicadas não são prova proibida.
Improcede, portanto, a pretendida alteração da matéria factual.
*
B.2.3 – O direito à imagem
a) - O que está concretamente em causa é a junção aos autos de foto obtida para prova de um crime, logo, para a prossecução penal e sua prova.
Qual tem sido a jurisprudência sobre a matéria?
Como já se afirmou em nosso relato no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 16-02-2016 (proc. 235/14.9JELSB), que seguiremos de perto, se exceptuarmos dois ou três acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, a posição do STJ e das Relações, tem sido maioritariamente, quase se diria pacificamente, no sentido de admitir e valorar os referidos meios de prova, preservando, sem excepções, a privacidade.
E, quase sempre, em casos de prova apresentada por particulares, que é o caso dos presentes autos.
E a primeira questão a resolver diz respeito à definição do que está em confronto: será apenas um equilíbrio entre o direito à privacidade e à segurança?
Desde logo, no primeiro vector a terminologia é confusa. Fala-se em direito à Vida Privada, direito à Privacidade e direito à reserva da intimidade.
E aqui debatemo-nos com o primeiro problema: o que é privacidade e intimidade da vida privada? É que a CRP fala de “reserva de intimidade da vida privada” no artigo 26º, nº 1 e de “reserva da vida privada” noutros preceitos (32º, nº 8 e legislação ordinária, 126, nº 3 do Código de Processo Penal por exemplo).
A privacidade pode considerar-se um direito geral de personalidade aberto (sem numerus clausus) e o nosso ordenamento jurídico já autonomizou direitos anteriormente incluídos na privacidade, designadamente o direito à imagem e o direito à palavra, direito aquele que mais directamente está em causa.
De facto, o direito à imagem e o direito à palavra autonomizaram-se do direito à privacidade. Se dele fizeram parte, é hoje um dado adquirido que são direitos autónomos. E todos estão constitucionalmente consagrados: o artigo 26º nº 1 da CRP é bem claro na sua autonomização.
Assim, de um lado da balança teremos o direito à imagem, à palavra e à reserva da vida privada e familiar, se bem que a análise da privacidade pode estar em causa, também na análise dos direitos à imagem e à palavra.
Também o direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das telecomunicações (34º CRP) e o direito a uma correcta utilização da informática (35 CRP) são direitos conexionados com a reserva da privacidade.
Tudo num prato da balança e todos de alguma forma relacionados com a vida privada.
O sentido clássico de intimidade da vida privada pode ir buscar-se à “Sphärentheorie” ou teoria das esferas ou teoria dos três graus (Dreistufentheorie)
Recordemos que esta teoria, com origem na jurisprudência alemã, abarca três esferas: a da intimidade, a da vida privada e a esfera individual ou comum (pública).
De acordo com esta teoria, este direito de personalidade compreende uma esfera de intimidade ou segredo, a qual abrange informações de tal forma reservadas que, em regra, nunca serão acessíveis a outros indivíduos. Dentro desta esfera teremos assuntos relativos à vida sentimental, estado de saúde ou de gravidez, vida sexual, convicções políticas e religiosas, etc.
Num plano menos inacessível, mas igualmente reservado, temos a esfera privada, que pode variar de pessoa para pessoa, uma vez que engloba os hábitos de vida e as informações que o indivíduo partilha com a sua família e amigos, e cujo conhecimento o respectivo titular tem interesse em guardar para si.
Finalmente, a esfera individual ou comum (que muitos designam por pública ou de interacção social), que contempla os comportamentos e atitudes deliberadamente acessíveis ao público e susceptíveis de serem conhecidos por todos, em relação à qual não existe qualquer tipo de reserva.
Admitimos que esta teoria não é a resposta final ao nosso problema, mas serve como grelha metodológica de aproximação muito razoável e, pensamos, imprescindível.
E, diz o legislador, “não é muito correcta, mas é a mais segura”, na afirmação do Prof. Costa Andrade na reunião com o Sindicato dos Jornalistas tida na altura da revisão do Código Penal (1995) - 4º Volume dos Trabalhos Preparatórios, 1995, pag.224 - e “está consagrada” no nº 3 do artigo 180º do Código Penal.
b) - Direitos em confronto - Segurança?
Do outro lado da balança não teremos apenas o direito à segurança. Podemos ter também – depende do caso concreto – o direito à vida, à integridade física, à liberdade e outros direitos constitucionalmente garantidos, como o da propriedade privada.
E, se não há dúvida que no momento do julgamento esses direitos já foram violados (argumento utilizado pela tese da proibição), certo é que o julgamento se destina a apurar da ilicitude e da culpa por essa violação, designadamente do direito à vida, à integridade física, à liberdade e outros direitos constitucionalmente garantidos.
Assim retirar de um dos pratos da balança a consideração desses direitos já violados é recusar ao julgamento a possibilidade de ponderação desses direitos no caso concreto, o que nos parece inadmissível, já que o direito à segurança deve ser visto como instrumental desses mesmos direitos, mesmo que já violados.
Não se pode afirmar, portanto, que esses direitos já violados não devem ser considerados.
c) - Esfera de protecção da privacidade
A reserva de intimidade – ou “privacy” - é a “última e inviolável área nuclear da liberdade pessoal” (Ac. TC 459/93), o “rigth to be let alone”, expressão que é habitualmente atribuída ao Justice Louis Brendeis do US Supreme Court no seu voto de vencido no acórdão Olmstead v. US (1928), como “the most comprensive of rigths, and the rigth most valuable by civilized man”, mas que ele próprio atribui ao Juiz Cooley, no livro “Cooley on Torts” no seu artigo “The rigth to privacy”, na Harvard Law Review de Dezembro de 1890.
Certo é que hoje se discute nos meios filosóficos e jurídicos se a “teoria da privacidade”, a “privacy” tal como invocada por Warrem e Brandeis e pelo US Supreme Court não foi uma forma errada de encarar o problema, principalmente a partir de um artigo do Prof. Raymond Wacks da Universidade de Hong-Kong, com o título “The Poverty of Privacy” (“A miséria da privacidade”) de 1980 na Michigam Law Review.
E, note-se, Warren e Brandeis não definiram a “privacy”. E ela continua hoje por definir.
Desde logo na terminologia: “privacy”; privacidade; privaticidade e privatividade (neologismos afastados); vida privada; esfera íntima; reserva sobre a intimidade da vida privada; intimidade; Intimsphäre; diritto alla riservateza; le secret de la privé; direito sobre “o seu próprio nariz” (Schiller, Mota Pinto).
Nem no mundo globalizado do direito iremos encontrar definição, bem pelo contrário, iremos encontrar maior indefinição. Também sobre o próprio interesse de manutenção da “privacy”.
No que nos interessa, em termos mais prosaicos, a jurisprudência e a doutrina nacionais têm entendido a extensão desse direito à privacidade por vezes com alguma imprecisão na linguagem.
Como somos práticos, a abordagem deve ser prática e o primeiro passo é atermo-nos, no essencial, à jurisprudência e doutrina nacionais.
d) - A esfera da intimidade na doutrina e jurisprudência nacionais
Uma asserção certa é o afastamento da teoria das três esferas para delimitar o conceito de “intimidade de vida privada” como sendo equiparável à “esfera de segredo”, profissional como recorrente invoca no caso.
O Prof. Mota Pinto acaba por dar ao termo “intimidade” o seguinte significado, meramente por exclusão:
A “intimidade” ou esfera íntima não pode ser relacionada com esfera de segredo;
Um sentido útil da “intimidade” é o de excluir aspectos como a vida profissional (segredo de negócios);
Com o termo “reserva” pretende-se evitar a intromissão na vida privada e a divulgação de factos referentes à vida privada.
Assim o Prof. Paulo Mota Pinto inclui os seguintes aspectos – utilizando o método por grupos de casos - na “reserva de intimidade da vida privada”:
Nome, sinais de identidade, dados pessoais como filiação, residência ou número de telefone; estado de saúde, vida conjugal, vida amorosa e afectiva; Projectos de casamento e divórcio, aventuras amorosas, afectos e ódios;
Sendo o local um indício importante da privacidade, não é o único critério.
Não exclui factos ocorridos em público ou em locais abertos ao público;
Outros locais privados serão: automóvel, cabina telefónica, ou um café;
A vida do lar e os factos que aí decorrem, como a intimidade maternal, são vida privada, excepto prova em contrário;
O passado de uma pessoa, se não for da esfera pública ou caiu no esquecimento;
Os objectos e recordações pessoais;
Património: situação financeira, ganho de lotarias, heranças;
Passatempos, locais e dias de férias; encontros com amigos, deslocações, saída e entrada em casa;
Atributos pessoais: deformações físicas, hábitos sexuais, qualidades ou dotes artísticos.
Fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal Constitucional temos, em resumo, o seguinte alcance:
A esfera de intimidade é a “última e inviolável área nuclear da liberdade pessoal”.
Engloba-se a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de pri­vacidade (v.g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou domicílio) e, bem assim, os meios de expres­são e de comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.).
A situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as opera­ções activas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada condensado no artigo 26º, nº 1, da Constituição
Os dados de saúde integram a categoria de dados relativos à vida privada, tais como as informações referentes à origem étnica, à vida familiar, à vida sexual, condenações em processo criminal, situação patrimonial e finan­ceira.
Importa reter o teor da previsão do artigo 35º, nº 3 da CRP: as convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa e origem étnica.
E os Dados sensíveis da Lei 67/98, de 26/10 – artigo 7º, nº 2 - os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos».
Assim como a Convenção para a Protecção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal o seu artigo 6.º, sob a epígrafe Categorias especiais de dados”, refere os “dados de carácter pessoal que revelem a origem racial, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou outras, bem como os dados de carácter pessoal relativos à saúde ou à vida sexual. O mesmo será aplicável para os dados de carácter pessoal relativos a condenações penais.
Como se vê, uma profusão de conceitos e de terminologia que não ajudam a uma compreensão clara do que é a “reserva de intimidade da vida privada”.
Que tornam difícil a separação conceptual entre intimidade da vida privada/vida privada, entre a 1ª e a 2ª esferas de privacidade.
De qualquer forma temos delimitado o conceito de intimidade da vida privada com os contributos acima referidos. Em resumo: há uma área de privacidade geral que engloba duas esferas: sem grande rigor de linguagem, uma geral, outra de intimidade.
A esfera geral da vida privada é o que resta entre esta e a esfera comum ou pública.
De resto, só o caso concreto será relevante e revelador.
Discutível, portanto, é apenas, casuisticamente, a extensão do conceito de “intimidade” da vida privada, sendo que o entendimento do Tribunal Constitucional tende a expandi-la para realidades que extravasam a da 1ª esfera da teoria das esferas.
Ou seja, não podemos fugir ao caso concreto.
No entanto podem ocorrer casos em que a esfera de intimidade seja substancialmente reduzida, não só por ocorrerem em público, também em virtude das características de vida do beneficiário do direito (pessoas que expõem propositada, profissional ou comercialmente a sua imagem, ou titulares de cargos políticos que a expõem com risco das suas funções públicas – culto do sensacionalismo, contratos com revistas do coração, governante com amante espiã, etc.).
E impõe-se notar que, à semelhança do acórdão Katz do US Supreme Court, aquilo que uma pessoa, propositadamente, expõe publicamente, mesmo se da esfera privada, não é objecto de protecção da 4ª Emenda.
Apesar de este ser o tema final de muitas abordagens que se fazem sobre a matéria, entende-se que é o tema base e primeiro de qualquer abordagem sobre a conjunção dos temas privacidade, prova, tecnologias.
e) - Dos princípios atinentes à prova
No campo da prova, rege o artigo 125º do Código de Processo Penal ao consagrar o princípio da legalidade da prova, determinando que são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei.
E o artigo 32º, nº 8 da CRP determina que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
Em concretização deste comando constitucional, dispõe o artigo 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Métodos proibidos de prova”:
“2 - ….
3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4 - …”
A previsão do nº 3 do artigo 126º do Código de Processo Penal corresponde, grosso modo, à previsão do artigo 8º da CEDH (Direito ao respeito pela vida privada e familiar)
“1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”.
Notemos que, quer o artigo artigo 32º, nº 8 da CRP, quer o artigo 126º, nº 3 do Código de Processo Penal e ainda o artigo 8º da Convenção alargam a esfera de protecção probatória, já não só à intimidade do artigo 26º da CRP, mas à vida privada, parecendo pretender abarcar as duas primeiras esferas de privacidade.
Entendemos que a referência feita nestes artigos à “vida privada” não deve sofrer uma interpretação restritiva que conduza a interpretar a expressão “intromissão na vida privada” como “intromissão na intimidade da vida privada”, pois que nada impede o legislador ordinário – como não impediu o legislador convencional – de alargar a esfera de protecção do direito probatório e não faria sentido partir do princípio de que o legislador constitucional – na mesma constituição – utilizasse as duas expressões com o mesmo significado.
Muito menos se é a própria CRP – e não apenas o C.P.P. - a fazer tal alargamento quanto à proibição de prova no artigo 32º, nº 8.
Diremos então que, não obstante a Constituição (art. 26º, nº 1) só proteger com a dignidade constitucional a esfera de intimidade, a Constituição e o legislador processual penal alargaram a protecção, via proibição de prova, à esfera mais ampla da privacidade.
Mas o artigo 126º, nº 3 do Código de Processo Penal prevê dois casos em que a intromissão na vida privada não produz uma nulidade probatória:
ü os casos “previstos na lei”;
ü a existência de “consentimento do respectivo titular” do direito.
É aquilo que, impropriamente, se costuma designar por “nulidade relativa”.
Excluindo a existência de “consentimento” (que não interessa à discussão, por se provar inexistente), quanto a nós isso quer apenas significar que o direito à imagem, à palavra e à vida privada e familiar é um direito relativo – não é um direito absoluto – e deve ceder perante outros valores atendíveis, desde que haja previsão legal restritiva.
Também a Convenção admite a ingerência na vida privada e familiar, se ela estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária, no que ao caso interessa, à “defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”.
Em suma, a restrição ao direito tem que estar prevista na lei e ter uma justificação social na democracia.
Logo, reduzida a questão posta nos autos ao direito à imagem exposta em público, resta saber se os factos se integram em previsão legal permissiva da captação/exposição da imagem por fotografia e a sua junção aos autos com justificação social na sociedade
Em suma, o cidadão só será autor de um crime de fotografia e filmagem ilícita se não operar nenhuma causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31º do Código Penal – designadamente a legítima defesa, o exercício de um direito ou o consentimento.
E estando nós a tratar do direito à imagem, convém recordar que o Código Civil o regula de forma expressa no seu artigo 79º ao dispor: “O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela”. [21]
E o seu número dois estabelece os casos de justificação de forma bastante clara: “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”.
Ou seja, há licitude na obtenção de fotografias ou filmes se ocorrer, nos termos deste preceito e do artigo 31º do Código Penal (ou seja, causas gerais de exclusão de ilicitude mais as constantes do artigo 79º, nº 2 do Código Civil):
1 - a legítima defesa;
2 - o exercício de um direito;
3 - o consentimento;
4 – justificadas exigências de polícia (medidas preventivas);
5 - ou de justiça (prossecução penal, prova em audiência);
6 - reprodução da imagem enquadrada na de lugares públicos;
7 - factos de interesse público;
8 - ou que hajam decorrido publicamente”.
Face a isto temos dúvidas de que a foto ou filme enquadrados em lugares públicos, que hajam decorrido publicamente, sem uma excessiva individualização do retratado, ou sejam factos de interesse público, não sejam causas de ausência de tipicidade. As restantes serão necessariamente causas de exclusão da ilicitude.
Isto é, os artigos 79º e 80º do Código Civil não podem ser menorizados. Têm que ser atendidos na análise penal, não só como consequência do princípio da plenitude da ordem jurídica, também pela operacionalidade do princípio da subsidiariedade do direito penal.
Nisto é muito claro o art. 31º, nº 1 do CP: “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”.
Mas também o diz - uma vez mais - o legislador (Prof. Costa Andrade, ob. cit. – fls. 223) “a nível de fotografia sobra muito pouco. A verdade é que estas alterações ao Código Penal estreitam a margem dos comportamentos puníveis” (fls. 243).
Ora, se assim é, e só estando em causa o direito à imagem, não é prova proibida a prova produzida por um cidadão relativa a imagens obtidas em público, seja: uma bomba de abastecimento; um supermercado; uma via pública filmada através de um sistema habitacional; a parte comum de um prédio visível da via pública; câmaras de vigilância de estabelecimento comercial; centro de lavagem de automóveis, um porto, uma marina, etc.
Naturalmente que, na análise casuística, haverá que ponderar a existência de locais públicos de livre utilização comum. E haverá locais públicos de acesso reservado. E o caso concreto poderá determinar uma diversa ponderação em função dos pressupostos que baseiam a necessidade de reserva de acesso a um local público. Haverá que reconhecer que a realidade tem mais imaginação do que nós.
A discussão está aberta, naturalmente, a propósito dos conceitos de “intimidade”, “vida privada”, “exigências de polícia ou justiça” e “local público”, mas isso é casuística e o caso concreto facilmente se coloca na área da esfera pública com uma clara causa de exclusão da ilicitude, a prossecução e prova penal.
Não há, portanto, violação da privacidade nem prova proibida.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em declarar:
- parcialmente procedente o recurso quanto aos factos 3 a 8, que devem ser considerados não escritos;
- parcialmente procedente o recurso quanto ao facto provado 9 que passa a ter a seguinte redacção: «O arguido foi condenado pelo Juízo Local Criminal ..., por sentença proferida no processo criminal n.º 523/16.... e transitada em julgado no dia 28/11/2018, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física por negligência, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante gobal de €400,00 (quatrocentos euros)».
- improcedente quanto ao mais.
Sem tributação dada a procedência parcial.
Notifique.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 10 de Outubro de 2023
João Gomes de Sousa
Beatriz Marques Borges
Fátima Bernardes