Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | BEATRIZ MARQUES BORGES | ||
Descritores: | INCIDENTE QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL PROPAGAÇÃO DE DOENÇA CONTAGIOSA | ||
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Data do Acordão: | 02/22/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. Justifica-se a quebra de sigilo profissional de um médico para que este informe se o suspeito se encontra infetado por HIV quando existem indícios de este ter mantido relações sexuais desprotegidas com pelo menos cinco diferentes pessoas. II. Apenas com o acesso aos elementos clínicos do suspeito poderá o Ministério Público avançar com a investigação do crime de propagação de doença (artigo 283.º, n.º 1, alínea a) do CP) possibilitando a descoberta da verdade e viabilizando a realização da justiça (artigo 135.º, n.º 3 do CPP). III. Os interesses preponderantes, como são os bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora, que são a vida e a integridade física de outrem, devem fazer ceder o interesse de o suspeito manter sob reserva a sua situação de doença. (Sumário elaborado pela relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIO Nos autos de inquérito (atos jurisdicionais) n.º 70/21.8T9ETZ, a correr termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Instrução Criminal de Évora, investigam-se factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de propagação de doença, previsto e punível pelo artigo 283.º, n.º 1, alínea a) do CP. Inculcam os autos que o suspeito ZE, sabendo ser portador de HIV, manteve relações sexuais desprotegidas com pelo menos cinco pessoas. Com o objetivo de alcançar com certeza se efetivamente o referido suspeito é portador de HIV, o Magistrado do Ministério Público, solicitou ao Centro de Saúde de (…) que procedesse à prestação de informação sobre se aquele suspeito padece de alguma doença designadamente HIV. O Sr. Dr. TE, médico do Centro de Saúde de (…), porém, pelas razões que se alcançam do teor do seu ofício de fls. 73, não forneceu as informações solicitadas, invocando o sigilo médico. O Mmº Juiz de Instrução, após requerimento do Digno Magistrado do Ministério Público nesse sentido e de a Ordem dos Médicos se ter pronunciado sobre o assunto, considerando legítima a recusa, suscitou, então, o presente incidente de quebra de sigilo profissional, nos termos do disposto no artigo 135.º, n.ºs 2 e 3 do CPP. Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado Parecer, pronunciando-se no sentido de que a quebra de sigilo médico se mostra justificada, devendo, por isso, ser concedida. Corridos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir. II. APRECIAÇÃO O incidente de quebra de sigilo profissional encontra-se previsto no artigo 135.º do CPP. Este normativo estabelece no seu n.º 1, designadamente, poderem os médicos escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo segredo profissional. No n.º 3 prevê-se a possibilidade de o tribunal superior decidir da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. Como é de conhecimento geral o exercício de algumas profissões (ex: médicos, advogados, jornalistas, ministros de religião ou confissão religiosa, membros de instituições de crédito) pressupõe que os pacientes/utentes/clientes/crentes que a eles recorrem revelem factos relativos à esfera íntima da sua personalidade (física, psíquica, jurídica, familiar, pessoal). Essa revelação por parte do indivíduo ao profissional é realizada com base na confiança da inviolabilidade dos segredos transmitidos. Deste modo o dever de sigilo dos profissionais visa proteger os direitos pessoais ao bom nome, reputação e reserva da vida privada, conforme imperativo constitucional expresso no artigo 26.º da CRP. Neste âmbito são estabelecidas garantias que impedem a utilização abusiva das informações assim obtidas pelos apontados profissionais, traduzidas em obstar que estranhos acedam àquelas e/ou as divulguem. Daí ter sido criado o instrumento jurídico do sigilo profissional e de vários profissionais, incluindo os médicos, estarem obrigados a não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua atividade, que a ser violada é punível disciplinarmente e até criminalmente. No caso em apreciação o médico de família Dr. TE escusou-se a prestar informação solicitada, a pedido do MP, sobre se o utente padecia de doença, designadamente de HIV. Tendo o JIC verificado a legitimidade formal da recusa por parte do referido médico, ainda assim, foi pelo MP pedida a quebra do segredo profissional. Nessa sequência, o JIC suscitou a intervenção desta Relação para decidir sobre a justificação ou não da quebra do sigilo. Averiguemos, então, se no caso se justifica a quebra do segredo profissional face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, designadamente o princípio do interesse preponderante, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. No caso concreto, o suspeito encontra-se indiciado da prática de um crime de propagação de doença (previsto e punível pelo artigo 283.º, n.° 1, alínea a) do CP), por estar indiciariamente apurado ser portador de HIV e ter mantido relações sexuais desprotegidas com pelo menos cinco diferentes pessoas (A, B, C e D). O crime em causa é punível com pena de prisão de 1 a 8 anos. O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá sobrepor-se ao outro. Estes interesses são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo da atividade profissional em questão. No caso vertente temos, assim, o segredo profissional do médico, legalmente tutelado, considerando nessa medida legítima a sua recusa, e o interesse do Estado no decurso de um inquérito penal, onde se investigam factos que podem colocar em causa a saúde e até a vida das vítimas. No confronto entre estes dois interesses a Lei pretende sujeitar o tribunal a padrões objetivos e controláveis, admitindo a justificação da violação do segredo desde que esteja em causa a repressão de crimes mais graves, que provocam maior alarme social. Para o efeito o sujeito ao segredo, caso seja julgado justificada a quebra de sigilo, será chamado ao processo penal na qualidade de testemunha para prestar a informação necessária à descoberta da verdade. No caso concreto os factos indiciados são graves, não apenas pela moldura penal abstrata aplicável, mas ainda por serem cinco as presumíveis vítimas que ao terem mantido relações sexuais com o arguido de forma desprotegida, poderão ter contraído HIV. Como é de conhecimento geral o HIV ou VIH é o Vírus da Imunodeficiência Humana. Este vírus afeta e enfraquece o sistema que defende o organismo das infeções e das doenças: o sistema imunitário. É o vírus que está na origem da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, uma condição em seres humanos na qual a deterioração progressiva do sistema imunitário propicia o desenvolvimento de infeções oportunistas e cancros potencialmente mortais. HIV é, portanto, o vírus que causa a SIDA, que é a fase mais avançada da infeção por HIV. A informação sobre se efetivamente o suspeito se encontra infetado por HIV é imprescindível e fundamental para o exercício da ação penal levada a cabo pelo Ministério Público em nome do Estado. Os interesses preponderantes, como são os bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora, que são a vida e a integridade física de outrem, devem fazer ceder o interesse de o suspeito manter sob reserva a sua situação de doença. Não sendo o segredo profissional absoluto, mas relativo, considera-se que conflituando, no caso, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça penal, face à suspeita de perigo de vida e da integridade física das pessoas com quem o suspeito manteve relações sexuais desprotegidas, e por outro, o interesse da proteção da relação de confiança entre um médico e o utente, bem como da proteção da reserva da vida privada, entendemos existirem razões justificadoras da prevalência do primeiro interesse sobre o segundo. Assim, a quebra do segredo profissional é, no caso concreto, justificada, porquanto apenas com o acesso aos elementos clínicos do suspeito poderá o Ministério Público avançar com a investigação, possibilitando a descoberta da verdade e viabilizando a realização da justiça, tudo nos termos do artigo 135.º, n.º 3 do CPP. III. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Desembargadoras do Tribunal da Relação em deferir o presente incidente e, em consequência, autorizam o levantamento do sigilo médico a que está obrigado TE devendo este informar se ZE se encontra afetado de doença, designadamente de HIV. Incidente sem tributação. 22 de fevereiro de 2022. Beatriz Marques Borges (relatora)
Maria Margarida Bacelar Maria Clara Figueiredo |