Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3374/23.1T8FAR.E1
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: DESLOCAÇÃO ILÍCITA DE MENOR
DIREITO DE GUARDA DE MENORES
AUDIÊNCIA DE PARTE
CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA SENTENÇA
CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS - CONVENÇÃO DE HAIA
ASSINADA EM 25 DE OUTUBRO DE 1980
Data do Acordão: 07/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (elaborado pela relatora):

I- Segundo o artigo 22.º do Regulamento (UE) 2019/1111, nos casos de deslocação ou retenção ilícitas de crianças entre Estados-Membros, a aplicação da Convenção da Haia, de 25 de outubro de 1980, sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção da Haia de 1980), é complementada pelas disposições dos artigos 23.º a 29.º e do capítulo VI do Regulamento.


II- Quando o artigo 27.º, n.º 1 do Regulamento (UE) 2019/1111 estabelece que o tribunal não pode recusar o regresso da criança se a pessoa que o solicitou não tiver tido oportunidade de ser ouvida, está a consagrar um princípio fundamental deste processo que deve ser assegurado, quer quando a questão se coloca ao nível da existência de uma deslocação ou retenção ilícitas (artigo 3.º da Convenção da Haia de 1980), quer quando é o próprio regresso de criança ilicitamente deslocada ou retida que está em causa, em virtude da verificação de um dos motivos que fundamentam a recusa em ordená-lo, nos termos previstos no artigo 13.º da Convenção da Haia de 1980.


III- Saber se houve deslocação ou retenção que viola o direito de guarda constitui uma questão a decidir no processo e, como tal, à parte que a alega deve garantir-se a possibilidade de ser ouvida e poder contraditar os factos e as provas que sejam trazidos aos autos e ponham em causa a existência deste pressuposto. A omissão da referida audição é suscetível de influir no exame e decisão da causa e tem como consequência a nulidade da sentença que indeferiu o pedido de regresso, conforme previsto no artigo 195.º, n.º 1 do CPC, ex vi artigo 33.º, n.º 1 do RGPTC.

Decisão Texto Integral: *

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora:


I – Relatório


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Família e Menores de Cidade 1 – Juiz 3, o Ministério Público veio, na sequência do pedido do cidadão de nacionalidade lituana, AA, transmitido pela Autoridade Central Portuguesa, a solicitação da Autoridade Central da República da Lituânia, instaurar a presente ação, ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, alíneas a) e b), 3.º, alíneas a) e b), 4.º, 5.º, 7.º, alínea f), 8.º, 11.º, 12.º e 26.º da Convenção da Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto-Lei nº 33/83, de 4 de Novembro (doravante, Convenção da Haia de 1980), destinada ao regresso à Lituânia das crianças BB, nascida em ... de ... de 2017, e CC, nascida em ... de ... de 2019, filhas de AA e de DD, todos com os demais sinais dos autos.


Alegou, para tanto, que, segundo o pai, as crianças, de nacionalidade lituana, residiam em Cidade 2, na Lituânia, quando a mãe as trouxe para Portugal, sem que o pai tivesse autorizado a sua deslocação nem a permanência no nosso país. Por tal motivo, formulou pedido de regresso das crianças junto da Autoridade Central da Lituânia. A sua deslocação e permanência em Portugal é ilícita porque efetuada à revelia do progenitor e em violação do regime do exercício das responsabilidades parentais que então se encontrava em vigor relativamente a estas crianças.


O tribunal proferiu despacho liminar em que, para além de determinar, ao abrigo do artigo 7.º, alínea b), da Convenção da Haia de 1980 e do artigo 28.º do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível (doravante, RGPTC), a inserção dos dados relativos às crianças no Sistema de Informação Schengen, mediante a comunicação ao Gabinete Sirene, nos termos do disposto no artigo 97.º da Convenção de Aplicação de Acordo de Schengen, ordenou ainda que a requerida DD fosse citada para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciar.


Citada a requerida, esta veio alegar que o pai das crianças foi condenado pela prática de crime de agressão praticado sobre a sua pessoa, que os comportamentos violentos do pai causam dor moral às crianças, sendo que BB chegou a ter sessões de acompanhamento por psicólogo. Mais alegou que no processo civil n.º e2-356.../2022, que correu termos no Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2, foi determinado que as crianças ficariam à guarda da mãe, ora requerida. A requerida exerce atividade profissional como médica e foi-lhe concedida a oportunidade de frequentar um intercâmbio profissional junto do Hospital .... Para tanto, requereu junto do pai e do tribunal de Cidade 2 autorização para se deslocar para Portugal e prosseguir com a sua formação profissional, pelo que o pai e o tribunal sempre tiveram conhecimento do paradeiro das crianças, nunca tendo negado os contactos com as filhas, que se encontram bem de saúde e socialmente integradas. Em 26 de janeiro de 2023, a pretensão da mãe para serem aplicadas medidas temporárias foi aceite pelo Tribunal Distrital de Cidade 2, sendo autorizada a vinda das crianças para Portugal, pelo que não existe fundamento no pedido do seu regresso à Lituânia, formulado pelo pai.


Na sequência do assim alegado pela requerida, a Autoridade Central Lituana forneceu várias informações, na última das quais esclareceu que “em 30/06/2022, o tribunal competente apreciou o processo n.º e2-356.../2022 e fixou o local de residência das crianças com a mãe e estabeleceu a ordem das comunicações entre o pai e as crianças. Em 19/10/2022, a mãe das crianças solicitou ao tribunal distrital de Cidade 2 uma autorização para transferir as crianças para Portugal, mas o tribunal distrital de Cidade 2 recusou o seu pedido de medidas provisórias (para permitir que a mãe transferisse as crianças para Portugal durante o processo judicial). Este despacho do tribunal foi anulado em 23/01/2023 por um despacho do Tribunal Regional de Cidade 2 e as medidas provisórias foram concedidas. Chamamos a sua atenção para o facto de o processo judicial para a autorização de transferência das crianças para Portugal ter sido suspenso (até que o processo judicial em Portugal relativo à Convenção de Haia de 1980 esteja concluído)”.


O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que o pedido de regresso das crianças à República da Lituânia fosse indeferido, com o fundamento de que não se encontram preenchidos os requisitos legais, mormente os vertidos no artigo 3.º da Convenção da Haia de 1980, face às medidas provisórias concedidas pelo Tribunal Regional de Cidade 2, em 23 de janeiro de 2023.


A 1.ª instância proferiu, então, sentença em que, com o fundamento de que não se encontram preenchidos os requisitos legais previstos no artigo 3.º da Convenção da Haia de 1980, decidiu indeferir o pedido de regresso das crianças BB e CC à República da Lituânia.


2. Inconformado com o decidido, veio AA interpor o presente recurso de apelação em que, no termo das respetivas alegações, formulou as seguintes conclusões (transcrição, convertendo o texto integralmente apresentado em letra maiúscula para um formato de mais fácil leitura):


“I- A decisão proferida é nula por violação do artigo 27º, nº 1 do Regulamento Europeu 2019/1111 de 25 de junho, aplicável consabidamente ao presente processo: o tribunal não pode recusar o regresso da criança, exceto se a pessoa que pretende o regresso da criança tiver tido oportunidade de ser ouvida.


I. E também é nula porque notificada não foi indicado ao pai requerente do retorno e que não é parte no processo e que também não está representado tecnicamente no mesmo a possibilidade, os meios e prazo de impugnação da decisão, o que também viola o princípio de contraditório.


II. A decisão viola, da mesma forma, o princípio da igualdade efetiva entre as partes porque a mãe das menores foi ouvida e o pai das menores não o foi.


III. A decisão recorrida enferma de um erro no único pressuposto de facto em que assenta, erro, esse, que deriva duma errada interpretação da decisão do tribunal regional de Cidade 2 e também é, ainda, consequência de não ter sido ouvido o pai das crianças, ou seja, o requerente do retorno das mesmas à Lituânia.


IV. A decisão do Tribunal Regional de Cidade 2 não faz proceder o recurso da mãe das crianças na sua totalidade, mas apenas em parte.


V. Se lida com atenção, a decisão (de recurso) intercalar a pedir medidas provisórias, conclui-se que o Tribunal de Recurso apenas regula uma nova forma e convívio dos pais com as menores agora que estão em Portugal, mas em parte algum se concede autorização ou se dá razão sobre a possibilidade de autorização da deslocação que já tinha sucedido ou sobre o suprimento do consentimento do pai nesta deslocação, autorizando-o postumamente.


VI. Limita-se a, perante a situação de facto criada pela mãe, aqui recorrida, a conceder a alteração nos convívios por ela pedida, sobretudo atenta a distância geográfica que a decisão da mãe e só da mãe impôs.


VII. No ponto 25 aquele Tribunal de recurso (Regional de Cidade 2) refere que:


Mais uma vez o tribunal não avalia a legalidade e a razoabilidade das ações da requerente nesta fase do processo e, portanto, não comenta mais detalhadamente. percebe se que foi criada uma situação entre as partes em que não está assegurado o dever do pai estabelecido na lei de comunicar com os filhos e participar na sua educação o direito dos filhos comunicar com ambos os progenitores independentemente do local de residência dos progenitores bem como a relação dos filhos com a família.


IX- E é por causa da necessidade de garantir os convívios que é dada razão à requerente quanto a aplicação de medidas de proteção, mas esta decisão não validou, nem ratificou, nem tornou menos ilegal a deslocação das crianças para Portugal,


X- A decisão em causa limitou-se a resolver para as crianças e para o pai um problema criado pela mãe sem se pronunciar sobre o mesmo.


XI- A decisão judicial em que se baseou o Tribunal português para negar o retorno das crianças foi mal interpretada pelo Tribunal porque a mesma limita-se a permitir uma alteração de regime de visitas perante o facto superveniente de a mãe ter deslocalizado as crianças.


XII- A decisão não tem como objetivo nem como escopo e, por isso, também, não regulou a saída das menores da Lituânia para um país estrangeiro, sendo que quanto a isto mantém-se o regulado quanto as crianças no processo de divórcio dos pais com o ulterior pedido dos pais: as crianças ficam a residir com a mãe, mas esta está proibida de se ausentar com elas para outro país sem o consentimento do pai aqui recorrente.


XIII- Este segmento decisório nunca foi tratado na decisão em que o tribunal português se alicerça para indeferir o retorno das crianças, havendo um claro e evidente erro de interpretação para o qual foi determinante a falta de audição do pai dos menores aqui recorrente.


XIV- O ponto de partida do tribunal português agora em recurso está manifestamente errado, porque parte de uma decisão que não existe que não foi dada, que não vigora e ignora outra que está vigente.


XV- Com efeito, quando o Tribunal na sua sentença de 29.1.2025 determina em fundamentação não estarem preenchidos os pressupostos para que se possam determinar o regresso das crianças à Lituânia erra claramente porque lê de modo errado a decisão a que se refere ou seja a de 23.1.2023 do Tribunal de Cidade 2 (em recurso), o que se evidencia pelo seguinte trecho da sua fundamentação lacónica:


XVI- Todavia, já desde 23-01-2023 que, por despacho proferido pelo Tribunal Regional de Cidade 2, as medidas provisórias requeridas pela mãe tinham sido concedidas, pelo que passou a progenitora, que já tinha a guarda das crianças, a estar autorizada a deslocar-se com as mesmas para Portugal, e a fixar aqui residência com elas.


XVII- Verifica-se, assim, e tal como apreciado pelo Ministério público, que não se encontram preenchidos os sobreditos pressupostos para que se possa determinar o regresso das crianças à Lituânia.


XVIII - Partindo da decisão que está vigente – residência com a mãe e proibição de saída das menores do país sem consentimento do pai – é evidente que a decisão tinha de ter sido de retorno das crianças e não de não retorno, isto porque estavam ao tempo preenchidas todas as condições que caracterizam esta deslocação das menores pela mãe como ilícita, em especial a ausência de consentimento do pai para a saída e a existência de convívios efetivos entre o pai aqui recorrente e as menores ao tempo da deslocação.


XIX- Por isso, a decisão em causa enferma de erro de julgamento crasso que carece de ser corrigido mediante a revogação da mesma.


Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso de ser admitido e julgado procedente e, em consequência, ser declarada nula e ser revogada a decisão recorrida”.


3. A recorrida DD apresentou contra-alegações em que formulou as seguintes conclusões (transcrição):


“A - O recurso de apelação interposto pelo Recorrente é intempestivo, por extemporâneo, devendo ser rejeitado;


B - A decisão proferida pelo Tribunal a quo é válida e em conformidade com o nº 2 do artigo 27º do Regulamento Europeu 2019/1111 de 25 de junho, podendo o Tribunal, “qualquer fase do processo, examinar se o contacto entre a criança e a pessoa que pretende o regresso da criança deverá ser ou não assegurado, tomando em consideração o superior interesse da criança”, não violando assim qualquer normativo legal.


C - A decisão do Tribunal a quo foi tomada com fundamento em toda a informação recolhida das autoridades Lituanas e das decisões do Tribunal da Cidade de Cidade 2 quer do departamento civil, quer do departamento criminal, que constam dos autos, e em conformidade com o disposto no artigo 13º da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, aprovada pelo Decreto do governo nº 33/83 de 11 de Maio.


D - Toda a prova documental junta aos autos determinou que o contato direto entre as crianças e o Recorrente era prejudicial e que no interesse superior das mesmas não deveriam regressar à Lituânia.


E - A Recorrida foi ouvida em sede de processo de entrega judicial de crianças, no seguimento de uma queixa apresentada pelo Recorrente, o qual já tinha sido ouvido, não tendo sido violado qualquer princípio de igualdade, nem o princípio do contraditório.


F - Sem necessidade de audição posterior do Recorrente.


G - Para além disso, o processo de entrega judicial de menor tem natureza de jurisdição voluntária, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita.


H - A douta sentença do Tribunal a quo é válida e em conformidade com as normas legais aplicáveis.


I - Não é aplicável ao caso em apreço o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nem o nº 1 do artigo 27º do Regulamento Europeu 2019/1111 de 25 de junho.


J - A decisão judicial da Lituânia em vigor é a do Tribunal Regional de Cidade 2 datada de 26 de janeiro de 2023 que autoriza a deslocação das crianças para Portugal.


L - Dado os antecedentes e o histórico de agressões do progenitor à Recorrida e às filhas menores, por determinação da Decisão do Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2 de 30 de junho de 2022 (procº penal nº 1-330.../2022) foi estabelecido como local de residência das filhas menores BB e CC.


M - A Recorrida tem o direito de custódia das crianças nos termos da alínea a) do artigo 5º da Convenção de Haia de 1980.


N - E cabe ao Tribunal do País onde as crianças se encontram a residir decidir pelo seu regresso ou não à Lituânia.


O - O princípio é que a criança deve sempre regressar se estiver garantida a sua proteção no Estado-Membro de origem, o que não acontece no caso em apreço.


P - As crianças estão inseridas na sociedade Portuguesa, frequentam uma escola em Portugal e encontraram a estabilidade psíquica e emocional que precisam.


Q - Vivem com a mãe e com o padrasto que lhes proporcionam uma qualidade de vida acima da média.


R - Ordenar o regresso das crianças à Lituânia é prejudicial e vai subtraí-las de uma vida tranquila e de qualidade, com inserção no meio escolar onde já tem o seu grupo de amigos.


S - Acima de tudo é colocar a sua integridade psíquica e física em perigo.


T - As crianças devem continuar a residir em Portugal onde estão perfeitamente inseridas no ambiente escolar e tem uma excelente qualidade de vida que lhes tem permitido recuperar psíquica e emocionalmente dos traumas sofridos pela violência doméstica contra a Recorrida e as próprias durante o período de tempo em que viveram com o Recorrente na República da Lituânia.


Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis e com o mui douto suprimento de V. Exas., deve:


a) Ser rejeitado o recurso apresentado pelo Recorrente por extemporâneo, e caso assim não se entenda;


b) Serem admitidas e julgadas procedentes as contra-alegações ora apresentadas pela Recorrida e em consequência ser declarada válida e aplicável a douta decisão recorrida.


c) Ser recusado o regresso das crianças à República da Lituânia”.


5. Nas contra-alegações que apresentou, o Ministério Público concluiu do seguinte modo (transcrição):


“1. A decisão recorrida indeferiu o pedido formulado pelo progenitor, ora Recorrente, por entender não se encontrarem preenchidos pressupostos legais previstos pelo art. 3.º da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.


2. A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças, em vigor no nosso ordenamento jurídico desde 1 de dezembro de 1983, dispõe no seu artigo 12.º que “quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança”.


3. Nos termos do disposto no art. 3.º da Convenção a deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:


“a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e


b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.”


4. Ao abrigo do disposto no art. 14.º da Convenção em tal normativo solicitou-se informação à Autoridade Central Lituana.


5. Da informação junta aos autos pela Autoridade Central portuguesa (DGAJ) remetida pela Autoridade Central da Lituânia, resulta que “de acordo com o Artigo 3.174 do CC, o progenitor a quem lhe foi atribuído a residência permanente da criança menor e cujo local de residência permanente é na República da Lituânia, e que tem intenções de levar essa criança menor para uma residência permanente num país estrangeiro, esse progenitor só tem esse direito após receber do outro progenitor um consentimento por escrito. No caso do outro progenitor recusar dar esse consentimento, essa disputa será resolvida pelo tribunal.”


6. A Autoridade Central Lituana informou ainda que: “em 30/06/2022, o tribunal competente apreciou o processo n.º e2-356.../2022 e fixou o local de residência das crianças com a mãe e estabeleceu a ordem das comunicações entre o pai e as crianças. Em 19/10/2022, a mãe das crianças solicitou ao tribunal distrital de Cidade 2 uma autorização para transferir as crianças para Portugal, mas o tribunal distrital de Cidade 2 recusou o seu pedido de medidas provisórias (para permitir que a mãe transferisse as crianças para Portugal durante o processo judicial). Este despacho do tribunal foi anulado em 23/01/2023 por um despacho do Tribunal Regional de Cidade 2 e as medidas provisórias foram concedidas. Chamamos a sua atenção para o facto de o processo judicial para a autorização de transferência das crianças para Portugal ter sido suspenso (até que o processo judicial em Portugal relativo à Convenção de Haia de 1980 esteja concluído)."


7. A acção foi instaurada em 06.11.2023, com base num pedido formulado em Junho do mesmo ano, sendo que desde 23.01.2023 que por despacho proferido pelo Tribunal Regional de Cidade 2 as medidas provisórias requeridas pela mãe foram concedidas passando a mesma, a qual já tinha a guarda das crianças, a estar autorizada a deslocar-se com as crianças para Portugal e aqui fixar residência com as mesmas.


8. Deste modo, não se pode concluir pelas deslocação ilícita das menores da Lituânia para Portugal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º da citada Convenção e, consequentemente, não se encontravam preenchidos os requisitos legais para que a pretensão do ora Recorrente fosse julgada procedente (nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º alíneas a) e b), 3º alíneas a) e b), 4º, 5º, 7º. al. f), 8º, 11º, 12º e 26º, da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto-Lei nº 33/83, de 4 de Novembro), pelo que a sentença recorrida, que se indeferiu o pedido de regresso das crianças BB e CC à República da Lituânia, não merece qualquer reparo porquanto não padece de qualquer vício, porquanto a sua pretensão carece de fundamento legal, devendo a mesma ser integralmente mantida.


Face ao supra exposto e pelos fundamentos invocados, entende-se que deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, manter-se a sentença recorrida, assim se fazendo Justiça”.


6. O tribunal a quo admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, considerando-o tempestivo, atendendo a que do processo não resulta, de forma inequívoca, a data da notificação ao progenitor da sentença recorrida nem do acesso da sua mandatária aos autos.


Proferiu ainda despacho, nos termos previstos no artigo 617.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (doravante, CPP), concluindo no sentido da inexistência de qualquer nulidade.


7. Subidos os autos a esta Relação e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*


II – Objeto do Recurso


O objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas nas alegações, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, para além das que forem de conhecimento oficioso, ressalva feita àquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).


Assim, atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência da recorrente com a decisão impugnada, e ao que, tendo sido invocado nas contra-alegações do recorrido, cumpre a esta Relação conhecer, são as seguintes as questões a decidir:


- Decurso do prazo para a interposição do recurso.


- Nulidade da sentença recorrida por falta de audição do apelante, pai das crianças.


- Erro de direito da sentença recorrida, ao considerar não preenchidos os requisitos legais previstos no artigo 3.º da Convenção da Haia de 1980 e, com base neste fundamento, indeferir o pedido de regresso das crianças BB e CC à República da Lituânia.


*


III – Fundamentação


1. Fundamentação de facto.


Para além do que consta enunciado em 1. do relatório deste acórdão, dos presentes autos (3374/23.1...) e seus apensos, consultados através da funcionalidade “Citius Viewer”, resulta ainda o seguinte:


1.1. Na sequência do alegado na contestação da requerida DD, no sentido de que no processo civil n.º e2-356.../2022, que correu termos no Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2, foi determinado que as crianças BB e CC ficariam à sua guarda, tendo, em 26 de janeiro de 2023, aquele tribunal decidido aplicar medidas temporárias e autorizadoa vinda das crianças com a mãe para Portugal, pelo que não existe fundamento no pedido de regresso das crianças, formulado pelo pai, o tribunal a quo proferiu despacho a ordenar a notificação do progenitor requerente para que juntasse uma declaração oficial comprovativa da deslocação ilícita, nos termos do artigo 15.º da Convenção da Haia de 1980 (contestação com a ref.ª 119215580 e despacho com a ref.ª 130459272).


1.2. Em cumprimento do determinado, foi enviado ofício à autoridade central (à data, a DGRSP1) a comunicar o conteúdo do despacho referido e 1.1., a fim de ser dado cumprimento ao ordenado, ao que, em 21 de dezembro de 2023, aquela entidade apresentou informação com o seguinte teor:


“[N]o âmbito do pedido de regresso das menores BB (........2017) e CC (........2019), requerido pelo Sr. AA (progenitor das menores) e na sequência do douto despacho de 04.12.2023, cumpre-me informar V. Exa. que que a Autoridade Central Portuguesa (DGAJ) já solicitou à Autoridade Central da Lituânia o envio da declaração comprovativa da deslocação ilícita, nos termos do artigo 15º da Convenção de Haia de 1980. Face ao exposto, informaremos esse douto Tribunal, assim que a Autoridade Central da Lituânia nos providencie informações sobre o presente caso” (ref.as 130510938 e 12000546).


1.3. Em 5 de março de 2024, a DGAJ enviou novo ofício a informar que “[n]o âmbito do pedido de regresso das menores BB (........2017) e CC (........2019), requerido pelo Sr. AA (progenitor das menores) e na sequência do douto despacho de 04.12.2023, cumpre-me enviar a V. Exa. a declaração comprovativa da deslocação ilícita remetida pela Autoridade Central da Lituânia. Face ao exposto, permaneceremos a aguardar mais informações desse douto Tribunal relativamente aos desenvolvimentos do pedido de regresso” (ref.ª 12247431).


1.4. A declaração da Autoridade Central da Lituânia, referida em 1.3., com a tradução junta a 30 de abril de 2024, tem o seguinte teor:


Assunto: Referente à deslocação ilícita dos menores BB com data de nascimento no dia ...-...-2017 e CC com data de nascimento no dia ...-...19 da República da Lituânia.


Queremos informar que o Serviço Estatal de Adoção e Proteção dos Direitos das Crianças do Ministério da Segurança Social e Trabalho da República da Lituânia (daqui para a frente referido como o Serviço) atua também como Autoridade Central da Lituânia no âmbito da Convenção de Haia em matéria cível referente ao rapto internacional de crianças de 25 de Outubro de 1980 (daqui para a frente referido como a – Convenção de Haia) e o Regulamento do Conselho (EU) 2019/1111 de 25 de Junho de 2019 no que diz respeito à jurisdição, reconhecimento e execução das decisões em assuntos de casamentos e responsabilidades parentais e também em assuntos de sequestro internacional de crianças.


Ao progenitor AA, que é o pai dos menores CC e BB foi-lhe pedido para obter e fornecer uma decisão de uma autoridade competente da República da Lituânia na qual conste que a remoção das crianças da República da Lituânia foi ilícita de acordo com o Artigo 3º da Convenção de Haia.


O Serviço vem por este meio informar que de acordo com o Artigo 3.156 do Código Cível da República da Lituânia (daqui para a frente mencionado como CC), os progenitores têm direitos e deveres iguais em relação aos seus filhos independentemente de a criança ter nascido de um casal que era casado ou não, depois de divorciados ou anulação judicial do casamento ou separação.


O Artigo 3.159 do CC estabelece que os progenitores são conjuntamente e solidariamente responsáveis pelo cuidado e educação dos seus filhos. O Artigo 3.165 do CC estabelece que os progenitores decidem todas as questões relacionadas com as crianças por mútuo acordo. No caso de não haver mútuo acordo, a disputa será resolvida pelo Tribunal. Isto significa que um dos progenitores só pode agir sozinho em questões de assuntos de natureza da vida diária e somente quando o outro progenitor não levanta quaisquer objeções.


De acordo com o Artigo 3.168 do CC, a residência de uma criança é determinada de acordo com a disposição no Book Two (Livro Dois) do CC (artigos 2.12-2.17). Isto quer dizer que o local de residência da criança é automaticamente o local de residência dos seus progenitores. Uma criança não pode ser separada dos seus progenitores contra a sua vontade exceto nos casos previstos neste Book (Livro).


O Artigo 3.169 do CC estabelece a residência da criança quando os progenitores estão separados. Quando os progenitores estão separados, a residência da criança é decidida por mútuo acordo dos progenitores. No caso de existir uma disputa respeitante à residência da criança, a residência da criança será determinada por uma ordem judicial de residência atribuída pelo tribunal em favor de um dos progenitores.


De acordo com o Artigo 3.174 do CC, o progenitor a quem lhe foi atribuído a residência permanente da criança menor e cujo local de residência permanente é na República da Lituânia, e que tem intenções de levar essa criança menor para uma residência permanente num país estrangeiro, esse progenitor só tem esse direito após receber do outro progenitor um consentimento por escrito. No caso do outro progenitor recusar dar esse consentimento, essa disputa será resolvida pelo tribunal.


De acordo com as autoridades competentes da Lituânia, o pai das crianças não deu o seu consentimento para a retirada das crianças da República da Lituânia nem essa disputa foi resolvida num Tribunal o que permitiu à mãe mudar o local de residência permanente das crianças.


Considerando a informação acima mencionada, a retirada das crianças da República da Lituânia foi ilícita de acordo com o sentido do Artigo 3 da Convenção” (anexo ao ofício com a ref.ª 12247431 e tradução com a ref.ª 12439546).


1.5. Notificada para exercer o contraditório, a requerida veio alegar, entre outros factos, que dados os antecedentes e o histórico de agressões do progenitor à requerida e às filhas menores, por determinação da Decisão do Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2 de 30 de junho de 2022 (proc.º penal n.º 1-330.../2022), cuja cópia se encontra junta ao processo, foi estabelecido como local de residência das filhas BB e CC, a residência da mãe. Numa decisão posterior, emitida pelo mesmo Tribunal, mas do Departamento de Processos Cíveis, datada de 26 de janeiro de 2023 (proc.º n.º e2S-289.../2023), e no seguimento de uma ação contra AA sobre a emissão de autorização para levar as filhas menores para residirem permanentemente em Portugal, o referido Tribunal, Secção Cível, determinou que fosse anulada a decisão do Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2 de 24 de novembro de 2022…, “estipulando que o requerido contactará com as filhas menores por meio de comunicação à distância …”


Mais alega que, não se encontrando ainda emitida decisão final sobre o pedido de autorização judicial para que a requerida resida com as filhas menores em Portugal de forma permanente, o Tribunal aceita que, temporariamente, as mesmas estejam com a mãe, ora requerida, em Portugal. O facto de ainda não ter sido emitida decisão final da ação, através da qual a requerida pediu a autorização do Tribunal para residir em Portugal de forma permanente com as filhas menores, não implica que tenha sido violado o artigo 3º da Convenção de Haia (ref.ª 23588030).


1.6. Perante o alegado pela requerida e os vários documentos que juntou, o tribunal a quo determinou que, conforme promovido pelo Ministério Público, se solicitasse à Autoridade Central Lituana que:


A) Confirme o seguinte:


1. Se a Decisão do Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2 de 20 de Junho de 2022 (procº penal nº 1-330.../2022) condenou o progenitor das crianças por crime de violência doméstica do qual a progenitora das crianças foi a vítima/ofendida?


2. Se essa Decisão foi confirmada, em sede de recurso, no Processo penal n.º 1ª-545.../2022, de 28 de Dezembro de 2022?


3. Se no Processo Cível n.º ...8.../2022 do Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2 foi atribuída a residência das filhas menores BB e CC à mãe DD?


4. Se a Decisão emitida pelo mesmo Tribunal, Departamento de Processos Cíveis, datada de 26 de janeiro de 2023 (procº nº e2S-289.../2023), na sequência de uma acção cível de DD contra AA, precisamente sobre a emissão de autorização para a mãe DD levar as filhas menores para residir permanentemente em Portugal, determinou a anulação da decisão do Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2 de 24 de Novembro de 2022, “estipulando que o requerido contactará com as filhas menores por meio de comunicação à distância …”?


B) Esclareça:


5. Se já existe decisão final sobre o pedido de autorização judicial para a requerida residir com as filhas menores em Portugal de forma permanente?


6. Se sim, deverão remeter essa decisão a estes autos” (ref.ª 132831020).


1.7. Em 24 de julho de 2024, a DGAJ veio comunicar a seguinte resposta da Autoridade Central da Lituânia:


“Note-se que as partes têm todo o acesso aos documentos judiciais mencionados na sua mensagem eletrónica dirigida à nossa autoridade central e devem poder fornecer o documento ao tribunal.


Informamos de que não dispomos de informações sobre os registos criminais ou sentenças judiciais relativas a processos criminais, pelo que não poderemos fornecer as informações que solicitou nas suas perguntas 1 e 2.


Relativamente às suas perguntas 3 e 4, queira notar que, em 30/06/2022, o tribunal competente apreciou o processo n.º e2-356.../2022 e fixou o local de residência das crianças com a mãe e estabeleceu a ordem das comunicações entre o pai e as crianças. Em 19/10/2022, a mãe das crianças solicitou ao tribunal distrital de Cidade 2 uma autorização para transferir as crianças para Portugal, mas o tribunal distrital de Cidade 2 recusou o seu pedido de medidas provisórias (para permitir que a mãe transferisse as crianças para Portugal durante o processo judicial). Este despacho do tribunal foi anulado em 23/01/2023 por um despacho do Tribunal Regional de Cidade 2 e as medidas provisórias foram concedidas.


Chamamos a sua atenção para o facto de o processo judicial para a autorização de transferência das crianças para Portugal ter sido suspenso (até que o processo judicial em Portugal relativo à Convenção de Haia de 1980 esteja concluído)” (ref.ª 12722022).


1.8. Em 16 de setembro de 2024, o Ministério Público promoveu o seguinte:


“Nos presentes autos, o Ministério Público, com base no pedido do cidadão de nacionalidade lituana, AA, transmitido pela Autoridade Central Portuguesa (DGRSP), ao abrigo do disposto nos artigos 1º alíneas a) e b), 3º alíneas a) e b), 4º, 5º, 7º. al. f), 8º, 11º, 12º e 26º, da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto-Lei nº 33/83, de 4 de Novembro, instaurou a presente ação solicitando o pedido de regresso à Lituânia das crianças BB, nascida aos ........2017, e CC, nascida aos ........2019 tal como é solicitado pelas Autoridades da República da Lituânia.


Em síntese, foi alegado que as crianças, de nacionalidade lituana, residiam em Cidade 2, na Lituânia, quando a mãe trouxe as crianças para Portugal, sem que o pai das crianças tivesse autorizado a deslocação das crianças, nem autoriza a sua permanência no nosso país.


Ouvida a progenitora da criança pela mesma foi referido que:


- o pai das crianças foi condenado pela prática de crime de agressão praticado sobre a sua pessoa;


- os comportamentos violentos do pai da criança causa dor moral às crianças;


- a criança BB chegou a ter sessões de acompanhamento com um psicólogo;


- no processo civil n.º ...8.../2022 que correu termos no Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2 foi determinado que os menores ficariam à guarda da mãe;


- desempenha actividade profissional como médica e foi-lhe concedida a oportunidade de frequentar um câmbio profissional junto do Hospital ...;


- requereu junto do pai e do tribunal de Cidade 2 a autorização para se deslocar para Portugal e prosseguir com a sua formação profissional, pelo que o pai e o tribunal sempre tiveram conhecimento do paradeiro das crianças;


- nunca negou os contactos do pai com as crianças;


- as crianças encontram-se bem de saúde e socialmente integradas;


- em 26 de Janeiro de 2023 a sua pretensão de aplicação de medidas temporárias foram aceites pelo Tribunal Distrital de Cidade 2, sendo autorizada a vinda das crianças para Portugal, pelo que não existe fundamento no pedido de regresso das crianças formulado pelo pai das mesmas.


(…)


Os presentes autos foram instaurados em 06.11.2023, com base num pedido formulado em Junho do mesmo ano, sendo que desde 23.01.2023 que por despacho proferido pelo Tribunal Regional de Cidade 2 as medidas provisórias requeridas pela mãe foram concedidas passando a mesma, a qual já tinha a guarda das crianças, a estar autorizada a deslocar-se com as crianças para Portugal e aqui fixar residência com as mesmas.


Destarte, por não se encontrarem preenchidos os requisitos legais, mormente os vertidos no artigo 3.º da citada Convenção, não se encontram preenchidos os requisitos legais para que a pretensão do progenitor seja procedente (nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º alíneas a) e b), 3º alíneas a) e b), 4º, 5º, 7º. al. f), 8º, 11º, 12º e 26º, da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto-Lei nº 33/83, de 4 de Novembro), pelo que se promove que se indeferida o pedido de regresso das crianças BB e CC à República da Lituânia” (ref.ª 133349530).


1.9. O tribunal a quo ordenou a notificação da promoção aos progenitores e, em 19 de setembro de 2024, a DGAJ veio informar que a enviou, nessa data, à Autoridade Central da Lituânia, para ser transmitida ao pai/requerente (ref.ª 12859195).


1.10. Seguiram-se, em 29 de outubro de 2024, 4 de dezembro de 2024 e 17 de janeiro de 2025, o pedido e as insistências da DGAJ para que o tribunal a quo informasse qual o estado atual do pedido de cooperação relativamente a CC e BB (ref.as 13009600, 13143980 e 13281643).


1.11. Em 29 de janeiro de 2025, o tribunal a quo, sem que tivesse sido informado acerca da notificação do requerido indicada em 1.9., nomeadamente se foi efetuada e quando, proferiu a sentença recorrida, com o seguinte teor:


“Com base no pedido do cidadão de nacionalidade lituana, AA, transmitido pela Autoridade Central Portuguesa (DGRSP) a solicitação das Autoridades da República da Lituânia, veio o Ministério Público instaurar a presente acção, ao abrigo do disposto nos artigos 1º alíneas a) e b), 3º alíneas a) e b), 4º, 5º, 7º. al. f), 8º, 11º, 12º e 26º, da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (adiante, Convenção de Haia ACRIC), de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto-Lei nº 33/83, de 4 de Novembro, solicitando o pedido de regresso à Lituânia das crianças BB, nascida em ...-...-2017, e CC, nascida em ...-...-2019, filhas daquele e de DD.


Alegou, para tanto e em suma, que:


- Pelo progenitor foi alegado que as crianças, de nacionalidade lituana, residiam em Cidade 2, na Lituânia, quando a mãe trouxe as crianças para Portugal, sem que o pai das mesmas tivesse autorizado a deslocação das crianças, nem a sua permanência no nosso país;


- Pela progenitora foi referido que o pai das crianças foi condenado pela prática de crime de agressão praticado sobre a sua pessoa, os comportamentos violentos do pai da criança causam dor moral às crianças, a criança BB chegou a ter sessões de acompanhamento com um psicólogo, e no processo civil n.ºe2-356.../2022 que correu termos no Tribunal Distrital da Cidade de Cidade 2, foi determinado que os menores ficariam à guarda da mãe;


- A mãe desempenha actividade profissional como médica e foi-lhe concedida a oportunidade de frequentar um câmbio profissional junto do Hospital ...;


- Requereu junto do pai e do tribunal de Cidade 2 a autorização para se deslocar para Portugal e prosseguir com a sua formação profissional, pelo que o pai e o tribunal sempre tiveram conhecimento do paradeiro das crianças, e nunca negou os contactos do pai com as crianças, que se encontram bem de saúde e socialmente integradas;


- Em 26 de Janeiro de 2023 a pretensão da mãe de aplicação de medidas temporárias foi aceite pelo Tribunal Distrital de Cidade 2, sendo autorizada a vinda das crianças para Portugal, pelo que não existe fundamento no pedido de regresso das crianças formulado pelo pai das mesmas.


*


Nos termos do disposto no art.º 13.º da Convenção de Haia ACRIC e do art.º 50.º do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível, solicitou-se informação à Autoridade Central Lituana.


Nesta sequência, resultou da informação junta aos autos pela DGAJ que “de acordo com o Artigo 3.174 do CC, o progenitor a quem lhe foi atribuído a residência permanente da criança menor e cujo local de residência permanente é na República da Lituânia, e que tem intenções de levar essa criança menor para uma residência permanente num país estrangeiro, esse progenitor só tem esse direito após receber do outro progenitor um consentimento por escrito. No caso do outro progenitor recusar dar esse consentimento, essa disputa será resolvida pelo tribunal.


Mais informou a Autoridade Central Lituana que “em 30/06/2022, o tribunal competente apreciou o processo n.º e2-356.../2022 e fixou o local de residência das crianças com a mãe e estabeleceu a ordem das comunicações entre o pai e as crianças. Em 19/10/2022, a mãe das crianças solicitou ao tribunal distrital de Cidade 2 uma autorização para transferir as crianças para Portugal, mas o tribunal distrital de Cidade 2 recusou o seu pedido de medidas provisórias (para permitir que a mãe transferisse as crianças para Portugal durante o processo judicial). Este despacho do tribunal foi anulado em 23/01/2023 por um despacho do Tribunal Regional de Cidade 2 e as medidas provisórias foram concedidas. Chamamos a sua atenção para o facto de o processo judicial para a autorização de transferência das crianças para Portugal ter sido suspenso (até que o processo judicial em Portugal relativo à Convenção de Haia de 1980 esteja concluído)."


*


O Ministério Público promove o indeferimento do pedido de regresso das crianças à República da Lituânia, com os fundamentos da promoção ref.133349530.


*


Cabe decidir.


O art.º 1.º, da Convenção de Haia ACRIC, dispõe: “A presente Convenção tem por objecto: a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente; b) Fazer respeitar de maneira efectiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante.”


Por seu turno, prevê o art.º3.º da referida Convenção, “A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando: a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.”.


O presente processo foi instaurado em 06-11-2023, com base num pedido formulado em Junho do mesmo ano.


Todavia, já desde 23-01-2023 que, por despacho proferido pelo Tribunal Regional de Cidade 2, as medidas provisórias requeridas pela mãe tinham sido concedidas, pelo que passou a progenitora, que já tinha a guarda das crianças, a estar autorizada a deslocar-se com as mesmas para Portugal, e a fixar aqui residência com elas.


Verifica-se, assim, e tal como apreciado pelo Ministério Público, que não se encontram preenchidos os sobreditos pressupostos para que se possa determinar o regresso das crianças à Lituânia.


*


Pelo exposto,


Uma vez que não se encontram preenchidos os requisitos legais previstos pelo art.º 3.º da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, e em conjugação com o disposto no citado art.º1.º, als.a) e b), indefere-se o pedido de regresso das crianças BB e CC à República da Lituânia.


Sem custas para o requerente (art.º 26.º, da Convenção).


Registe, notifique e comunique à DGRSP” (ref.ª 133842759).


1.12. Em 30 de janeiro de 2025, a DGAJ veio informar que a sentença foi nesta data enviada à Autoridade Central da Lituânia, para ser transmitida ao pai/requerente (ref.ª 13330797).


1.13. Em 19 de março de 2025, a Ilustre Mandatária do requerente AA, veio requerer a junção aos autos de procuração por si assinada, em versão inglesa, a favor da advogada que pretende constituir neste processo para eventual recurso da decisão nele proferida. Requerendo ainda, para o efeito, que junta a procuração, a advogada possa ter acesso aos autos via Citius (ref.ª 13504383).


1.14. Em 31 de março de 2025, a Ilustre Mandatária continuou a não ter acesso aos autos através do Citius e, tendo participado a ocorrência à ajuda técnica (Helpdesk IGFEJ), a resposta foi a de que a situação reportada não configura uma anomalia técnica da aplicação. No entanto, por razões de segurança a consulta da tramitação desta espécie processual encontra-se barrada a nível central (documento 1 junto com o requerimento com a ref.ª 13547084).


1.15. Não consta dos autos documento postal, certificação eletrónica ou qualquer outro comprovativo de que a sentença recorrida foi notificada à Ilustre Mandatária do recorrente nem de que foi notificada ao recorrente por via postal ou por qualquer outro meio previsto no Regulamento (UE) 2020/1784 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativo à citação ou notificação de atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros (citação ou notificação de atos), ou ainda mediante a intervenção das autoridades centrais e em que data tal se verificou.


*


2. Fundamentação de direito.


2.1. Tempestividade do recurso.


Nas suas contra-alegações a apelada DD veio alegar que o recurso é extemporâneo, uma vez que o Ministério Público foi notificado da sentença no dia 30 de janeiro de 2025 e, de acordo com a informação da Direção-Geral da Administração da Justiça, constante dos autos, na mesma data foi enviada cópia da sentença à Autoridade Central da Lituânia, para ser transmitida ao apelante.


O n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 20072, relativo à citação e notificação de atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros, dispõe que “A entidade requerida toma todas as medidas necessárias para efetuar a citação ou notificação do ato logo que possível e, em todo o caso, no prazo de um mês a contar da receção do ato”.


O apelante foi notificado da sentença, uma vez que em sede de alegações do presente recurso afirma que “nunca foi notificado diretamente das promoções e decisões nele tomadas, à exceção da comunicação informal pela agência lituana da decisão do tribunal”.


Segundo a apelada, não havendo, até ao momento, comprovativo da data de notificação da sentença do tribunal a quo ao apelado, mas tendo a sua Ilustre Mandatária dado entrada de uma procuração no dia 19 de março de 2025, pressupõe-se que aquele tenha sido notificado, o mais tardar no mesmo dia. Podendo, inclusive, considerar-se que foi notificado muito antes do dia 19 de março de 2025, se se levar em consideração que as autoridades da Lituânia tinham o prazo de um mês para o notificar e que a decisão do tribunal a quo foi enviada para as mesmas no dia 30 de janeiro de 2025, para proceder à notificação nos termos do n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007. Uma vez que até ao dia 9 de abril de 2025 decorreram mais de dois meses e uma semana desde o envio da sentença para as autoridades lituanas, sendo que as autoridades portuguesas não foram informadas de qualquer irregularidade na notificação do apelante, é de pressupor, segundo a apelada, que o apelante foi notificado quase de imediato.


Assim, para a apelada basta a data em que a Ilustre Mandatária do apelante deu entrada da procuração, ou seja, 19 de março de 2025, para concluir que, quando em 9 de abril de 2025 o recurso foi interposto via Citius, já haviam decorrido 21 dias. O que significa que foi excedido o prazo de 15 dias de que a parte dispunha para interpor recurso, nos termos dos artigos 638.º, n.º 1 do CPC e 32.º, n.º 3 do RGPTC.


Pois bem.


*


É verdade que, conforme alega a apelada, o prazo para recorrer em matéria tutelar cível é de 15 dias, nos termos previstos no artigo 32.º, n.º 3 do RGPTC.


Prazo esse que, como resulta da norma também invocada (artigo 638.º, n.º 1 do CPC), se conta a partir da notificação.


Sucede, porém, que, ao contrário do que sustenta a apelada, as vicissitudes por que passou o presente processo, descritas nos pontos 1.12. a 1.15., atrás indicados, não permitem concluir se e em que data foi o apelante notificado da sentença recorrida.


A Autoridade Central da Lituânia não transmitiu qualquer informação sobre a referida notificação do recorrente, muito menos forneceu qualquer tipo de certificação comprovativa de que a efetuou (cf. 1.15.).


Acresce que para a notificação em causa não foi feito uso do procedimento previsto em sede de cooperação judiciária no contexto da União Europeia, nos termos do Regulamento (UE) 2020/1784 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, indicado em 1.15. A comunicação ao recorrente dos atos do processo, incluindo as decisões tomadas, esteve a cargo da autoridade central do seu país, com a intermediação da autoridade central nacional (DGAJ), o que, embora se trate, como princípio geral, de uma intervenção com respaldo na lei (cf. artigos 7.º, 8.º, 9.º, 26.º e 27.º da Convenção da Haia de 1980 e artigos 22.º, 23.º e 24.º do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019), tal não dispensa que se certifique ou comprove a efetivação das notificações de que foi incumbida, tanto mais que é a partir da realização do ato que assim se demonstra que tem início o prazo para o visado reagir contra as decisões que lhe forem desfavoráveis, interpondo recurso.


Assim sendo, atendendo a que não está comprovado nos autos que a notificação em causa foi efetuada e que inexiste fundamento legal para operar com base em meras suposições, nos termos invocados pela apelada (suposições que não correspondem a quaisquer presunções previstas na lei), há que forçosamente concluir que tudo se passou como se a referida notificação não tivesse sido realizada.


Por outro lado, neste caso ocorreu também a impossibilidade de a sentença ter chegado, no seu conteúdo, ao conhecimento da Ilustre Mandatária do recorrente (cf. pontos 1.13. e 1.14.), sendo que, quando juntou procuração forense aos autos, não só a causídica não foi notificada da sentença, como por razões de segurança não teve acesso pelo Citius à consulta da tramitação do processo.


Perante as vicissitudes descritas, não resta senão concluir que bem andou o tribunal a quo ao entender que, “[h]avendo dúvidas sobre a tempestividade do recurso, mas não resultando do processo, de forma inequívoca, a data da notificação do progenitor ou do acesso da mandatária ao processo”, a decisão tem necessariamente de ser a de considerar oportuno o recurso.


Confirmando-se, assim, o que a este respeito foi decidido pela 1.ª instância.


*


2.2. Nulidade da sentença recorrida por falta de audição do apelante.


O apelante AA vem dizer que nunca foi notificado ou ouvido no processo, motivo pelo qual não pôde invocar junto do tribunal português as razões que o levam a concluir que as filhas foram alvo de rapto por parte da sua ex-mulher, mãe das crianças, como também não pôde esclarecer que a promoção do Ministério Público tinha por base uma erra interpretação da decisão judicial de Cidade 2, proferida em janeiro de 2023, e que o tribunal a quo replicou na sentença recorrida.


A decisão proferida é, assim, nula por violação do artigo 27.º, n.º 1 do Regulamento (UE) 2019/1111, de 25 de junho de 2019.


O contraditório do pai era, neste caso, obrigatório por estar em causa uma decisão de sentido negativo à sua pretensão que era de regresso das suas filhas à Lituânia.


Não tendo sido ouvido quando se preconizou que o pedido de regresso era para indeferir, o tribunal a quo violou, assim, o artigo 27.º, n.º 1 daquele Regulamento e, consequentemente, o princípio do contraditório nele imposto.


A decisão viola, da mesma forma, o princípio da igualdade das partes pois, enquanto a mãe das crianças teve oportunidade de se pronunciar por escrito, o pai não foi ouvido. Princípio este que não se basta, sobretudo em questão de tão magna importância como a presente, com a auscultação das agências administrativas, ou seja, dos meros intermediários dos Estados entre os quais as crianças foram deslocadas.


O que põe em causa o processo de entrega judicial como um processo não equitativo que viola o artigo 6.º da CEDH, artigo 27.º, n.º 1 do Regulamento (UE) 2019/1111, artigo 3.º do CPC e ainda o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.


Tratando-se de uma decisão judicial que foi tomada à revelia do pai das crianças, apesar de saber que ia indeferir ou recusar o regresso das crianças à Lituânia, o tribunal a quo tomou a sua decisão unilateralmente, sem procurar esclarecimento junto do interessado, como lhe era imposto. A pessoa que pretendia o regresso das crianças à Lituânia tinha morada conhecida onde poderia ter sido citada ou notificada para se pronunciar, nomeadamente, quanto à promoção do Ministério Público, não se encontrando em parte incerta.


Vejamos.


*


2.2.1. Conforme resulta do disposto nos artigos 1.º, n.º 3, 22.º, 96.º e 98.º do Regulamento (UE) 2019/11113, elucidado pelo seu considerando 40, a Convenção da Haia de 1980 continua a ser o instrumento que se aplica aos casos de rapto de crianças entre Estados-Membros, sendo, no entanto, complementada pelas disposições previstas no regulamento.


Neste contexto, o tribunal, chamado a pronunciar-se sobre um pedido de regresso, determina, em primeiro lugar, se ocorreu uma “deslocação ou retenção ilícitas”, na aceção do artigo 3.º da Convenção da Haia de 1980, o que abrange a deslocação ou retenção de uma criança em violação do direito de guarda efetivamente exercido nos termos do direito do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes do rapto. A definição constante do artigo 2.º, n.º 2, ponto 11, do regulamento, é muito semelhante à do artigo 3.º da Convenção da Haia de 1980.


Assim, para o efeito, têm de ser preenchidas três condições cumulativas:


1) A criança tem de ter sido deslocada para um Estado-Membro que não o da sua residência habitual ou nele retida antes da sua deslocação ou retenção;


2) A deslocação ou retenção viola o direito de guarda; e


3) O direito de guarda foi efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou teria sido, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção.4


Isto por referência ao direito de guarda de uma pessoa, instituição ou outro organismo, conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor nos termos do direito do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção (cf. artigo 3.º da Convenção da Haia de 1980).5


Por outro lado, processualmente falando, o artigo 27.º, n.º 1 do Regulamento (UE) 2019/1111 vem estabelecer que o tribunal não pode recusar o regresso da criança se a pessoa que solicitou esse regresso não tiver tido oportunidade de ser ouvida.


Para o efeito, o regulamento permite ao tribunal recorrer a todos os meios de que disponha no âmbito do direito nacional, bem como aos instrumentos próprios da cooperação judiciária internacional, incluindo, se for caso disso, os previstos no Regulamento (UE) 2020/1783 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados-Membros no domínio da obtenção de prova em matéria civil ou comercial (“Regulamento Obtenção de Provas”). Neste contexto, o considerando 53 do Regulamento (UE) 2019/1111 declara expressamente que, se não for possível ouvir uma parte em pessoa e se estiverem disponíveis os meios técnicos, o tribunal pode considerar a possibilidade de realizar uma audiência através de videoconferência ou recorrendo a outras tecnologias de comunicação, a não ser que, atendendo às circunstâncias particulares do caso, a utilização dessa tecnologia não seja adequada para assegurar um processo equitativo.


*


2.2.2. Não se ignora que, no caso em análise, o indeferimento da pretensão de regresso desencadeada pelo apelante teve como fundamento, não uma das causas de recusa previstas no artigo 13.º da Convenção da Haia de 1980, mas a própria verificação de uma das condições de que depende a ponderação de qualquer ordem de regresso ao abrigo do referido instrumento, ou seja, a existência de uma deslocação ou retenção considerada ilícita, para a qual é, como vimos, indispensável estabelecer que a deslocação ou retenção das crianças violou o direito de guarda do progenitor requerente.


No despacho que conheceu da nulidade arguida no recurso, indeferindo-a, o tribunal a quo considerou que são os próprios requisitos do processo de regresso que não se encontram preenchidos e, nessa medida, o pedido que o pai formulou junto da Autoridade Central da Lituânia nem deveria ter tido lugar, pelo que não pode vir arguir a falta de audição num procedimento que o próprio espoletou.


Ora, ao contrário do que sustenta o tribunal a quo, para efeitos do cumprimento do contraditório não existe distinção a efetuar entre a apreciação dos requisitos do recurso ao processo em que se formula o pedido de regresso que, no presente caso, o julgador entendeu não se encontrarem preenchidos, e a ponderação e decisão sobre o próprio regresso e a eventual verificação de um dos motivos que, nos termos previstos no artigo 13.º da Convenção da Haia de 1980, fundamentam a recusa em ordenar o regresso, que apenas tem lugar nos casos em que ficou determinado que ocorreu uma deslocação ou retenção ilícitas.


Enquanto matérias a apreciar e a decidir no processo, sujeitas, portanto, a escrutínio do tribunal (como o julgador reconhece no despacho que indeferiu a nulidade, os requisitos de admissibilidade do pedido de regresso podem ser sindicados em sede de decisão judicial) ambas estão, naturalmente, vinculadas à garantia fundamental do contraditório.


Aliás, conforme estabelece o artigo 22.º do Regulamento (UE) 2019/1111, com a epígrafe Regresso da criança ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, os artigos 23.º a 29.º e o capítulo VI do regulamento são aplicáveis e complementam a Convenção da Haia de 1980 quando uma pessoa, instituição ou outro organismo que alegue a violação do direito de guarda pedir, diretamente ou com a assistência de uma autoridade central, a um tribunal de um Estado-Membro que profira uma decisão, baseada na Convenção da Haia de 1980, que ordene o regresso de uma criança com menos de 16 anos que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado-Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas (sublinhado nosso).


Saber se existe violação do direito de guarda constitui, pois, uma questão a decidir no processo e, como tal, à parte que a alega deve ser garantida a possibilidade de ser ouvida e poder contraditar os factos e as provas que sejam trazidos aos autos e ponham em causa a própria verificação deste pressuposto.


Assim, a audição consagrada no artigo 27.º, n.º 1 do Regulamento (UE) 2019/1111, que faz parte do referido conjunto de normas que complementam a Convenção da Haia de 1980, nos termos previstos no citado artigo 22.º, constitui um princípio fundamental deste processo que deve (também) ser assegurado em sede de determinação da existência de uma deslocação ou retenção ilícitas.


No mesmo sentido, o direito ao contraditório encontra-se expressamente consagrado nos termos gerais do artigo 25.º, n.os 1 e 3 do RGPTC e, no caso particular da forma processual adotada nos presentes autos, no artigo 50.º, n.º 2 do mesmo diploma.


De resto, o próprio tribunal a quo assim entendeu e, consequente com esse entendimento, ordenou que a promoção do Ministério Público descrita em 1.8. fosse notificada aos progenitores (cf. 1.9.), passando, no entanto, para a fase da prolação da sentença sem a comprovação de que o recorrente foi notificado, diligência que ficou a cargo da autoridade central, mas cuja efetivação esta nunca veio confirmar (cf. 1.10. e 1.11.).


Isto sendo certo que em momento algum do processo se determinou ou sequer ponderou a audição preconizada no Regulamento (UE) 2019/1111, a realizar por contacto pessoal, quer em diligência presencial, quer à distância, através dos meios técnicos disponíveis, como a videoconferência, que no âmbito da tramitação atual dos processos é consabidamente um mecanismo de utilização simplificada, uma solução expedita que garante a celeridade que se exige aos presentes autos (a qual, diga-se, no caso concreto esteve longe de ser assegurada, em parte devido ao tempo despendido com a intermediação das autoridades centrais).


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2.2.3. De todo o modo, o que se impõe agora concluir é que ao requerente do pedido de regresso das crianças à Lituânia não foi assegurado o contraditório que se exigia garantir no processo, omissão que no presente caso é suscetível de influir no exame e decisão da causa (cf. conclusões III a XIII) e tem como consequência a nulidade da sentença recorrida, conforme previsto no artigo 195.º, n.º 1 do CPC, ex vi artigo 33.º, n.º 1 da RGPTC.


Anulação que implica, assim, que o tribunal a quo determine a audição do apelante ou, no caso de a diligência se revelar justificadamente inviável ou inadequada6, e tendo em conta que aquele se encontra representado por mandatária constituída nos autos, que assegure o contraditório mediante a concessão de prazo para vir alegar o que tiver por conveniente e oferecer provas, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais, incluindo, se for caso disso, a audição das crianças, nos termos previstos no artigo 21.º, ex vi artigo 26.º do Regulamento (UE) 2019/1111, e proferindo-se, a final, nova sentença.


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Face ao acima decidido e conforme determina o artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC, fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no recurso.


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III – Decisão


Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, anulam a sentença recorrida e determinam que se assegure o contraditório relativamente ao apelante, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais, nos termos indicados supra em 2.2.3.


Sem custas (artigo 26.º da Convenção da Haia de 1980).


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Évora, 15 de julho de 2025


Helena Bolieiro – relatora


Beatriz Marques Borges – 1.ª adjunta


Rosa Barroso – 2.ª adjunta

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1. A partir de 1 de março de 2024, as competências e atribuições da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) em matéria de Cooperação Judiciária Internacional, enquanto Autoridade Central designada para a Convenção da Haia de 1980, passaram a ser da Direção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), Divisão de Cooperação Judiciária Internacional.↩︎

2. O Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho foi revogado e substituído pelo Regulamento (UE) 2020/1784 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativo à citação ou notificação de atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros, correspondendo o invocado artigo 7.º ao artigo 11.º do atual regulamento.↩︎

3. Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças. Este regulamento veio substituir o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental, revogando-o (artigo 104.º, n.º 1), sendo aplicável às ações judiciais interpostas a partir de 1 de agosto de 2022 (artigo 100.º, n.º 1).↩︎

4. Cf. Direção-Geral da Justiça e dos Consumidores (Comissão Europeia), Guia prático para a aplicação do Regulamento Bruxelas II-B, 2023, disponível na Internet em , págs. 102 a 103.↩︎

5. Ibid, pág. 103.↩︎

6. Cf. considerando 53 do Regulamento (UE) 2019/1111.↩︎