Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
143/21.7GAORQ.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
AGRAVAÇÃO
FACTO PRATICADO NO DOMICÍLIO COMUM OU NO DOMICÍLIO DA VÍTIMA
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A circunstância agravante do crime de violência doméstica prevista no artigo 152º, nº 2, al. a), do Código Penal, consistente em o agente praticar o facto «no domicilio comum ou no domicílio da vítima», justifica-se pela especial censurabilidade emergente da prática do facto criminoso em espaço confinado, vedado a olhares alheios e, por vezes, aos ouvidos dos outros membros do grupo social, ou seja, no último reduto de proteção do ser humano (que tem consagração constitucional - no artigo 34º da Constituição da República Portuguesa -).
II - Foi intenção do legislador, ao prever tal circunstância agravante, censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a ação do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e, ainda, pela inexistência de testemunhas.
III - O preenchimento das circunstâncias agravantes elencadas no nº 2 do artigo 152º do Código Penal não depende de qualquer juízo de valoração global do facto, a aferir em função de outras circunstâncias que possam/devam ser ponderadas e suscetíveis de interferir na “graduação da gravidade do facto” (como acontece, por exemplo, no referente às circunstâncias modificativas agravantes do crime de homicídio, exemplificativamente previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º do Código Penal), tratando-se, antes, de circunstâncias de funcionamento automático, taxativamente previstas.
IV - Assim, perante a matéria factual provada, dela resultando que uma significativa parte dos atos perpetrados pelo arguido - integrantes do crime de violência doméstica - foram praticados no domicílio da vítima, tanto basta para que se mostre preenchida a agravação prevista na al. a) do nº 2 do artigo 152º do Código Penal (a conduta do arguido integra a prática do crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1 e 2, al. a), do Código Penal).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal (2.ª Subseção) do Tribunal da Relação de Évora:


1. RELATÓRIO

1.1. Neste processo comum n.º 143/21.7GAORQ, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo de Competência Genérica de Almodôvar, foi submetido a julgamento, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido D, nascido a (…..), melhor identificado nos autos, acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) e c), 4 e 5 do Código Penal.
1.2. No decurso da audiência de julgamento, produzida a prova, o Tribunal comunicou ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, n.º 1, do CPP, nada tendo o arguido requerido.
1.3. Foi proferida sentença, em 31/10/2024 – depositada nessa mesma data –, com o seguinte dispositivo:
«(…) julga-se procedente a acusação deduzida e, por consequência:
a) Condena-se o arguido D pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão, a cumprir de forma efectiva;
b) Aplica-se ao arguido D a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida C, durante o período de 3 (três) anos e 2 (dois) meses, nos termos permitidos pelo n.º 4 do artigo 152.º do CP, não se aplicando qualquer outra pena acessória;
c) Arbitra-se a favor da ofendida C, para compensação dos danos por ela sofridos em consequência da conduta criminosa do arguido, o montante de €3.000,00 (três mil euros), a suportar pelo arguido D (artigo 21.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09, e artigo 82.º- A do C.P.P.);
d) Condena-se o arguido no pagamento dos encargos do processo (artigo 514.º, n.º 1, do CPP), fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC (artigo 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III a este anexa).
e) Sujeitar o arguido, até ao trânsito em julgado da presente decisão, às seguintes medidas de coação:
i. Não se aproximar da pessoa, residência e local de trabalho da ofendida, devendo manter-se a uma distância de, pelo menos, 200 metros das mesmas, cfr. art. 200.º, n.º 1, al. d) do CPP e art. 31.°, n.º 1, al. c) da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro;
ii. Medida que, caso o arguido seja restituído à liberdade, deve ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância, sendo esta a única forma de proteger os direitos da vítima, cfr. n.º 1 do art. 35.º e n.º 7 do 36.º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro;
iii. Não contactar com a vítima por qualquer meio, ainda que por interposta pessoa; cfr. art. 200.º, n.º 1, al. d) do C.P.P. e art. 31.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
f) Adverte-se o arguido que a violação das obrigações impostas em e) poderá determinar a imposição de uma medida de coação mais gravosa, sendo que igual consequência poderá advir da prática de ilícitos penais dolosos da mesma natureza, tudo nos termos do artigo 203.º do C.P.P..
(...).»

1.4. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as conclusões que seguidamente se transcrevem[1]:
«A. No ponto de vista da defesa devia o arguido ser condenado pela prática do crime de violência doméstica nos termos do art.º 152º nº 1.
B. Quanto à determinação da medida concreta da pena, quanto ao arguido, ora recorrente, refere o Douto Acórdão condenatório que: (…) no caso vertente, entende este Tribunal que estamos perante um caso paradigmático em que se mostra indispensável a efectiva execução da pena de prisão, de modo que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias.
(…) sem embargo o arguido ter apenas duas condenações, releva o facto de a segunda condenação estar relacionada com crimes contra a vida, bem como o facto de parte dos factos pelos quais o arguido está a ser julgado terem sido praticados já após o trânsito em julgado (que ocorreu em 2021.11.25) da decisão que aplicou ao arguido pena de prisão efectiva de três anos, no âmbito do processo n.º 144/20.2GJBJA, pena essa que lhe havia sido aplicada pela prática de 3 (três) crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º n.º 1 do C.P., e de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º n.º 1 al. a) e b) do C.P..
Assim, é preocupante a persistência em retomar a sua actividade criminosa, sendo a sua actuação demonstrativa da total indiferença relativamente à pena que lhe foi aplicada.
De facto, o arguido demonstra não interiorizar, de todo, o desvalor das suas condutas passadas, persistindo na prossecução da sua actividade criminosa de crimes contra as pessoas, demonstrando indiferença, senão mesmo desprezo, para com a aplicação da justiça, consubstanciada nas penas que lhe foram sendo aplicadas,
D. Não se entende de onde retira o douto acórdão, que o arguido é …“persistente no retomar da sua actividade criminosa”.
Apesar da gravidade daquilo que foi o resultado da sua conduta, todo o teor e da razão de ciência, e lógica jurídico penal apresentada para fundamentar a não aplicação da suspensão de execução de pena, apresenta-se no mínimo totalmente desfasada da realidade e largamente empolada nos critérios aferidos.
E. Isto e apesar de o arguido ter confessado os factos que efectivamente praticou, e apresentando reservas quanto a outros que não praticou e tal não foi valorado.
F. Assim como o facto de do arguido, não ter qualquer antecedente criminal por crime idêntico.
G. O douto acórdão ora recorrido, em qualquer caso não fez, salvo melhor opinião, a mais acertada integração do direito penal substantivo, na situação sub judice, fazendo uma incorreta aplicação do preceituado no Art.º 71.º n.º 1, do Código Penal, ao aplicar ao recorrente uma pena privativa de liberdade pelo período de 3 (três) anos e 2 ( dois) meses de prisão, viola o douto acórdão o disposto nos Art.º s 70.º, 75.º a contrario e 50.º do Código Penal.
H. Salvo o devido respeito, que é muito, o recorrente discorda da qualificação jurídica dos factos dados como provados, uma vez que a prática de tais factos, conforme se já referiu, integra o crime de violência doméstica na sua forma simples Art.º 152º nº 1.
I. É a partir do tipo fundamental, concretamente da ilicitude nele pressuposta, que se deve aferir se uma qualquer situação de violência doméstica se deve ou não qualificar.
J. Para além das circunstâncias atinentes aos fatores de aferição da ilicitude elencados, a título meramente exemplificativo, naquele artigo, haverá que ter em conta todas as outras circunstâncias suscetíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, há que fazer uma valorização global do mesmo, por forma a permitir a subsunção da conduta ao tipo privilegiado, valorização esta que pode decorrer não só da verificação de circunstâncias que diminuem a ilicitude do facto, como, também, da não ocorrência daquelas circunstâncias contempladas no crime-tipo.
K. No caso do recorrente, constata-se que o desvalor da sua conduta, atenta a modalidade da ação (ofensas mútuas, agressões físicas mútuas); os meios utilizados, que são os mais simples, a mesma terá que se qualificar e enquadrar no nº 1 do art.º152º .
L. Assim ao provar-se, apenas, a conduta do recorrente nos termos acima explanados, não poderá nem deverá a mesma ser valorada na dimensão mais gravosa para o recorrente neste sentido AC. do STJ de 24/10/2007- n.º Convencional JST000;
M. E a circunstância de tais factos terem sido praticados num contexto de consumo de drogas por parte do recorrente e da vítima.
N. E nesta medida a pena deverá ser-lhe substancialmente reduzida, para além de suspensa na sua execução.
O. Impõe a lei substantiva penal que, quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, dever-se-á dar preferência à aplicação da pena não privativa da liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição Art.º 70.º Código Penal.
P. E manda suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - Art.º 50.º, n.º 1 do CP.
Q. São pois, considerações de natureza exclusivamente preventiva, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam e impõem a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação.
R. O ponto de partida e o enquadramento geral da tarefa de determinação da pena concreta é o Art.º 40.º do CP, nos termos do qual, toda a pena tem como finalidade «a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade».
S. Culpa e prevenção constituem o binómio que o julgador tem de utilizar na determinação da medida da pena Art.º 71º, n.º 1, do CP. T. Por sua vez, o Art.º 71.º, n.º 1, do CP, vem-nos dizer que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», acrescentando o n.º 2 que o tribunal deve atender «a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele», enumerando a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.
U. Quanto à função e ao papel a desempenhar por aquelas exigências preventivas, há que atribuir prevalência às considerações de prevenção especial, por serem sobretudo elas que justificam, em perspetiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.
V. Ora no caso do recorrente, o seu comportamento tem consequências nefastas para sociedade em geral, pelo que se criou, nesta mesma sociedade, a expectativa da punição de tais condutas, em termos que o Tribunal não pode evidentemente ignorar. E como todos sabemos o caminho para melhorar a situação passa também pela repressão que a lei prevê.
X. Contudo, não podemos deixar de ter presente aquilo a que Sousa Brito chama “a inconstitucional instrumentalização do individuo criminoso como meio de atemorizar os outros.”
Y. No entanto, quanto à prevenção especial, o recorrente não regista quaisquer antecedentes criminais por crime idêntico , bem como, em meio prisional quaisquer infrações.
Z. Razão pela qual, entendemos que as necessidades a nível prevenção especial, não se façam sentir assim tanto, pelo menos, nos termos que impeçam, ainda assim, formular um juízo de prognose favorável de ressocialização do recorrente em liberdade.
AA. No caso vertente, é por demais evidente a falta de necessidade de o recorrente cumprir uma pena em reclusão.
BB. Assim se pugna, por se entender como justa, adequada e proporcional uma pena próxima dos limites mínimos.
CC. Estamos, pois, certos que uma pena de 3 (três ) anos e 2 ( dois) meses de prisão, não cumprirá os seus propósitos nem as finalidades de prevenção e punição, porque injusta, desproporcional e desadequada.
DD. Ao invés, entendemos que servirá para criar no Recorrente um sentimento de revolta por ver mais anos da sua vida inutilizados. Por outro lado,
HH. Por via do Art.º 50.º do Código Penal Suspensão da Pena, impende, sobre o tribunal, um poder dever na aplicação desta espécie de pena, preenchidos os respetivos pressupostos.
II. Constitui pressuposto material de suspensão da execução da pena de prisão a existência de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido.
JJ. E, são finalidades de prevenção especial de socialização, que estão na base de suspensão da execução da pena na prisão, isto é,
KK. A finalidade político criminal que a lei visa alcançar com o instituto da suspensão consiste no “… afastamento do delinquente, no futuro da prática de novos crimes e não qualquer correção”; “… decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência”, tal como refere o Professor Figueiredos Dias (in Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime, pág. 343 e segs).
LL. Deve o Tribunal, encontrar-se disposto a correr um certo risco fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade. (Figueiredo Dias in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime” Notícias Editorial, 1993, Pág. 344)
MM. Ora, nos presentes autos pretende-se obter o afastamento do recorrente, no futuro, da prática de novos crimes e a consciencialização por parte do mesmo, da necessidade de inverter o rumo para que se dirige a sua vida.
NN. O facto de já se encontrar já em cumprimento de pena em prisão, fê-lo assumir e interiorizar o desvalor da sua conduta;
OO. Pelo que se nos afigura, salvo o devido respeito, que ainda não está afastada a possibilidade de a simples censura do facto e a ameaça de prisão afastar o recorrente definitivamente deste género de criminalidade:
PP. Entende-se assim, como mais adequada, justa e proporcional a aplicação de uma pena, nunca superior a 1 ano, suspensa na sua execução, sujeita a um rigoroso regime de prova que ateste a desvinculação ao consumo de estupefacientes, por a simples censura do facto e a ameaça de prisão, realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
QQ. Desta feita a finalidade última de recuperação do recorrente, será atingida, afastando-o, assim, da criminalidade sem, contudo, descurar as finalidades da punição.
RR. Nunca esquecendo, que o que está em causa é a esperança fundada de que a socialização em liberdade, do recorrente, possa ser alcançada
SS. Pelo que se entende, e salvo o devido respeito, que deverá ser requalificados os factos e condenando o recorrente como autor material de um crime de violência doméstica p.º e p.º pelo artº. 152 nº 1.
TT. E bem assim, reapreciada a pena e a medida da pena em função do atrás exposto.
UU. A não consideração das circunstâncias supra explanadas e existentes nos autos, as quais beneficiariam a medida da pena aplicável em concreto, viola o disposto no n.º 2 do Art.70º e 71.º, 75.º a contrário do Código Penal e Art.º 25.º alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
VV. Não o tendo feito o douto Acórdão violou, entre outros, o disposto nos Art.ºs. 70.º, 71.º e 50.º do Código Penal;
WW. E, nessa medida, a decisão ora recorrida é nula e impõe-se a sua alteração.
XX. As medidas concretas das penas aplicadas ao recorrente são exageradas face aos factos dados como provados e ao grau de culpa do agente.
YY. Todas as circunstâncias do caso concreto, clamam para que a medida da pena a aplicar ao arguido seja fixada se não nos limites mininos, muito próximo destes, devendo o recorrente ser condenado numa pena nunca superior a 1 anos de prisão.
AAA. Uma vez que terá de se avaliar a imagem global do facto, através dos meios utilizados, da modalidade ou circunstância da acção, terá obrigatoriamente de se ter em conta a valorização global da ocorrência e as concretas e específicas circunstâncias em que a mesma se desenvolveu.
BBB. Ora, no caso em concreto, pode dizer-se que toda a envolvência ou circunstancialismo de facto é de molde a aplicar ao recorrente uma pena especialmente atenuada.
CCC. Ora, sabendo-se como é essencial a prossecução dos fins das penas o seu equilíbrio e justiça, por, além de respeitadoras dos limites da culpa, se apresentarem proporcionais às exigências concretas de prevenção geral e especial.
DDD. Devendo o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que respeite o preceituado no Art.º 152 ° nº1 e Art.º 50.º do Código Penal, fixando uma pena próxima dos limites mínimos legais e não privativa da liberdade.
Nestes termos e sem prescindir do Mui Douto Suprimento de V. Exas. deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser o recorrente condenado numa pena não superior a 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, art.ºs 40.º, 50.º, 70.º e 71.º, 152º nº 1 todos do CP , como é de JUSTIÇA.»

1.5. O recurso foi regularmente admitido.

1.6. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e mantida, na íntegra, a sentença recorrida, não tendo formulado conclusões.

1.7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, aderindo à posição defendida pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, na resposta que o mesmo ofereceu, concluindo no sentido de o recurso não dever obter provimento.
1.8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.
1.9. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir:


2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cf. artigos 403º, n.º 1 e 412º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cf. artigos 410º, n.º 3 e 119º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal).
Assim, considerando os fundamentos do recurso em apreço, são as seguintes as questões suscitadas:
- Erro de subsunção;
- Medida da pena;
- Suspensão da execução da pena de prisão.


2.2. A sentença recorrida é do seguinte teor:
«(...)
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
a. FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, resultaram provados com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:
1. O arguido D e a ofendida C tiveram uma relação de namoro no período entre outubro de 2020 a Março de 20222.
2. Nesse período o arguido ia dormir com frequência à residência da ofendida sita na Rua (…..).
3. Era habitual o arguido pelas 3h/4h da manhã interromper o sono da ofendida, ou porque queria ter relações sexuais, ou porque vinha com conversas relacionadas com insinuações motivadas por ciúmes excessivos, não a deixava descansar, mesmo quando a ofendida lhe explicava que precisava de dormir porque tinha de ir trabalhar no dia seguinte.
4. Por várias vezes, a ofendida tinha de fingir que estava a dormir para o arguido a deixar em paz.
5. O arguido, de propósito, estragava a roupa da ofendida que ele considerava que ela não podia usar, como vestidos ou roupa com decote, para que a ofendida não pudesse voltar a vestir essas peças.
6. Numa ocasião, a ofendida perguntou ao arguido se ele sabia onde estava uma determinada peça de roupa (um body preto transparente) ao que o arguido riu-se e respondeu-lhe “o body já está todo rasgado”.
7. O arguido dizia à ofendida que ela “era velha e que já não tinha idade para andar de ténis”.
8. O arguido não trabalhava e quando a ofendida não estava em casa, o arguido abria o armário onde estavam os ténis da ofendida e fazia vários nós seguidos (cerca de trinta nós), juntos uns aos outros, em cada atacador dos ténis, para forçar a ofendida a evitar calcá-los, porque se os quisesse usar tinha de ter o trabalho de tirar os nós dos atacadores, um a um.
9. A ofendida sempre sofreu de problemas de ansiedade e sofre de ataques de pânico, os quais já preexistiam antes de conhecer o arguido.
10. Em casa da ofendida, mais do que uma vez distinta, o arguido ficou escondido no meio do escuro para assustar a ofendida, mesmo sabendo que a mesma sofre de problemas de ansiedade.
11. O arguido dizia à ofendida que a profissão dela “não era nada”, que o “trabalho dela era uma merda”, para deixar de trabalhar, para ela “se despedir, para arranjar melhor que aquilo”.
12. O arguido, reiteradamente, insultava a ofendida: “que ela era uma puta” “uma merda” “que se andava a prostituir na rua”, “que era alcoólica”.
13. O arguido dizia frequentemente à ofendida que ela “não sabia fazer nada”, que “ela não prestava”.
14. Era rotina o arguido insinuar, infundadamente, que a ofendida “andava metida” com pessoas com quem ela falava, seja no café, ou com amigos.
15. Na sequência de uma dessas crises de ciúmes, em data não concretamente apurada entre 2020 a 2021, o arguido, após ter ingerido álcool, trancou a porta da casa ofendida e tirou-lhe as chaves de casa e disse à ofendida num tom sério e agressivo “que a ia matar”.
16. A ofendida ficou com medo, entrou em pânico e saltou da janela de casa para fugir do arguido, tendo caído desamparada no chão da via pública e batido com a parte de trás da cabeça, lesionando a mesma.
17. O arguido controlava frequentemente o telemóvel e as redes sociais da ofendida, tendo chegado a arrancar-lhe o telemóvel da mão, para ir ver as mensagens que a ofendida enviava e recebia.
18. O arguido disse à ofendida que se ela continuasse a falar com o ex-companheiro, “que o matava”.
19. O arguido controlava a ofendida permanentemente, querendo saber onde e com quem estava, com quem falava, para quem olhava e depois insinuava ela que estava “metida” com essa pessoa, de forma manifestamente infundada e por ele fantasiada.
20. Quando o arguido e a ofendida estavam com amigos, o arguido olhava para a ofendida e dirigia uma expressão facial característica “um sorriso de ameaça” à ofendida quando esta olhava para alguém, ou fazia ou dizia algo que ele não gostou, e sempre que isto acontecia, a ofendida ficava nervosa pois já sabia que quando saíssem de ao pé dos amigos, que o arguido a iria repreender com agressividade.
21. O arguido colocava defeitos às amigas da ofendida dizendo que a ofendida era uma “burra” porque não via que as pessoas se aproveitavam dela”.
22. Gradualmente, o arguido, com a sua conduta, logrou afastar e isolar a ofendida da sua rede de amigos.
23. Em meados de Julho de 2021, numa esplanada da praia do carvoeiro, o arguido começou a dizer repetidamente à ofendida que ela era uma “puta” e quando a ofendida se levantou para ir embora dali, pediu as chaves do carro ao arguido tendo este se recusado a dar as mesmas à ofendida.
24. A ofendida teve de recorrer à ajuda da GNR para conseguir que o arguido lhe devolvesse a chave do seu carro, tendo o arguido quando confrontado, dito à GNR que a ofendida “era maluca” e tentou descredibilizá-la à frente dos Militares.
25. Após o sucedido, quando o arguido e a ofendida se encontravam dentro do veículo para ir embora da praia, o arguido por estar furioso com o facto da ofendida ter ido ter com a GNR, agarrou na alavanca de velocidades, partiu o botão de plástico da caixa automática de velocidades e em seguida agarrou num cinzeiro de plástico e atirou-o com força ao ecrã tátil do tablier do carro da ofendida, tendo-o partido tal ecrã táctil.
26. Em acto contínuo, o arguido, com as costas de uma das mãos, desferiu uma pancada na boca da ofendida, com força tal, que lhe partiu um dente da frente, tendo a ofendida ficado com a pele de dentro da boca cortada pelo dente partido, e com a boca inchada e com dores.
27. Em Setembro de 2021 o arguido e a ofendida estavam em Aljustrel e o arguido ficou chateado por a ofendida ter dito, em frente a um amigo dele, que queria voltar para casa (em Castro Verde).
28. No caminho da volta para casa, o arguido conduziu o veículo automóvel, onde também seguia a ofendida, e a determinada altura do trajecto, em vez de ir para Castro Verde, o arguido desviou o veículo automóvel, para Montes Velhos contra a vontade e sem o consentimento da ofendida e enquanto conduzia disse à ofendida “só me envergonhas à frente dos meus amigos!”, e depois parou o veículo num descampado.
29. Em acto contínuo, dentro do carro o arguido desferiu um soco de mão fechada na fonte do lado esquerdo da cabeça da ofendida, com força tal que a deixou atordoada, enquanto dizia repetidamente em tom sério, alto e agressivo “eu vou-te matar, eu vou-te matar! És uma puta só me envergonhas!”.
30. Em seguida o arguido saiu do veículo, abriu a porta do passageiro onde se encontrava a ofendida, agarrou-a pelos cabelos e puxou-a pelos cabelos com força para fora do carro em direcção ao chão de terra, arrastou-a pela terra, e após o arguido desferiu um número indeterminado de pontapés na cabeça e no corpo da ofendida enquanto a mesma estava deitada no chão, enquanto repetia que a ia matar.
31. Depois, o arguido agarrou na ofendida e meteu-a outra vez para dentro do carro, e a ofendida, com medo do que o arguido lhe pudesse fazer a seguir, dentro do carro, dobrou o corpo em forma de concha para se proteger e fingiu-se desmaiada.
32. O arguido ao ver a ofendida “inanimada” repetiu constantemente “eu já a matei, eu já a matei, eu já a matei”.
33. Em seguida, o arguido levou a ofendida para casa da mãe (do arguido) sita perto do Posto da GNR de Aljustrel, para que ninguém visse as lesões na cara e no corpo da ofendida, tendo esta ficado, de cama, na casa da mãe do arguido durante dois dias.
34. A ofendida ficou com várias falhas no couro cabeludo devido a ter sido puxada pelos cabelos, ficou com a cara toda inchada, com hematomas na cabeça, rosto e corpo e com dores.
35. No dia 27.11.2021, no quarto da casa da ofendida o arguido desferiu um número indeterminado de murros na cabeça e na cara da ofendida, tendo a mesma gritado por socorro, tendo a GNR sido chamada por vizinhos e batido à porta de casa.
36. Nessa sequência, o arguido começou a chorar e a implorar à ofendida para ela não dizer nada à GNR, que não queria ir preso: “cala-te, cala-te, cala-te, não podes dizer nada a eles, porque se lhes disseres alguma coisa eu vou preso, eu vou preso, não digas nada por favor”.
37. Após, a ofendida ficou dentro do quarto e o arguido abriu a porta de casa e disse à GNR que não se passava nada de mal, que estavam a fazer “outras coisas” e acrescentou em tom irónico e de gozo aos Militares: “Já não se pode fazer amor nesta casa?! É isso??
38. Nessa ocasião, a ofendida, com medo e com vergonha, não disse à GNR o que tinha verdadeiramente ocorrido.
39. Em consequência dos murros a ofendida ficou com hematomas nos dois olhos.
40. Na sequência desse episódio, no dia 07.01.2023 o militar da GNR P ligou à ofendida para tentar falar com a mesma, tendo o arguido, ao perceber que era um homem a ligar, chamado a ofendida de “puta”, “que devia ser o amante dela” e em acto contínuo atendeu os três telefonemas efectuados pelo militar, tendo num deles afirmado que a ofendida não se encontrava consigo, e no terceiro telefonema se dirigido ao militar dizendo “então vá cuidar dos tomates que tem na sua horta” e desligado a chamada.
41. Nesse mesmo dia, a ofendida com medo do arguido, fugiu de casa e deixou o telemóvel para trás.
42. O arguido, chateado, arremessou o telemóvel da ofendida para dentro da salamandra de casa da ofendida, deixando-o queimado.
43. A cada episódio de agressão, a ofendida tentava acabar a relação e o arguido começava a chorar copiosamente, pedia muitas desculpas, punha-se de joelhos, e ficava à porta da casa da ofendida horas a fio, tocava à campainha três a quatro vezes seguidas, entre as 04:00 e as 06:00 da manhã, até que a ofendida cedesse e o deixasse entrar, tendo isto sucedido ciclicamente, só tendo cessado quando o arguido ingressou no estabelecimento prisional.
44. Nas ocasiões em que a ofendida acabava com ele e o arguido queria voltar, por pelo menos três vezes distintas, o arguido entrou no prédio onde reside a ofendida contra a vontade e sem o consentimento desta e ficava escondido dentro da garagem, ou nas escadarias à espera que a ofendida voltasse do trabalho.
45. Em Fevereiro de 2022 o arguido ingressou no estabelecimento prisional de Beja para cumprir pena de prisão efectiva à ordem do processo n.º 144/20.2GJBJA.
46. Dentro do estabelecimento prisional o arguido telefonou à ofendida de mês em meio em mês e meio até 08.03.20243.
47. Nesses telefonemas, quando a ofendida lhe disse que não quer continuar a relação, que quer seguir a vida dela, o arguido riu-se e disse-lhe: “não é assim, tu sabes que não vai ser assim”; que “ela era dele, que ia sempre dele, que quando ele saísse da prisão ela ia continuar a ser dele”.
48. Sempre que o arguido lhe liga da cadeia, a ofendida bloqueia o número e, após, o arguido liga-lhe de outro número diferente.
49. Numa dessas chamadas telefónicas da prisão, o arguido disse à ofendida num tom sério que “ia sair da prisão mais cedo, que vinha de precária, e que quando saísse de precária ia ter com ela, que a ia encontrar, que ia à procura dela, que ela era dele, que há-de ser sempre dele e que ia à procura dela quando saísse” mesmo sabendo que a ofendida não o queria ver.
50. A ofendida ficou aterrorizada e em pânico ao ouvir estas afirmações do arguido, não só por tudo o que tinha acontecido antes, mas por ver que o arguido não respeita a sua vontade de não o querer na sua vida.
51. Devido a este comportamento do arguido, a ofendida passou a ter de ter apoio psicológico e os ataques de pânico de que já padecia e que já estavam controlados, começaram a ocorrer de forma mais intensa e descontrolada pelo comportamento do arguido.
52. O arguido agiu sempre com o propósito conseguido de perturbar, amedrontar e agredir física e psicologicamente a ofendida fazendo-a temer pela integridade física, e de lhe causar, como efectivamente causou dores, humilhação e sofrimento, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a provocar tais resultados, que praticava alguns desses actos na residência da ofendida, sua namorada, o que quis e logrou.
53. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida
Dos antecedentes criminais do arguido:
54. O arguido sofreu as seguintes condenações no âmbito de procedimento criminal.
54.1 No processo n.º 208/18.2GBABF, que correu termos no 1.º Juízo Local do Tribunal Judicial de Albufeira, por sentença datada de 2019.01.09, o arguido foi condenado na pena de 55 (cinquenta e cinco) dias de multa à taxa diária de 5,00 euros, e ainda na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pela prática, em 2018.02.10, de factos que consubstanciam um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1 al. a) ambos do Código Penal (de ora em diante C.P.), ambas declaradas extintas pelo cumprimento.
54.2 No processo n.º 144/20.2GJBJA, que correu termos no Juízo Central Criminal do Tribunal judicial de Beja, tribunal comum colectivo, por acórdão datado de 2021.10.26, e transitado em julgado em 2021.11.25, o arguido foi condenado na pena de 3 (três) anos de prisão efectiva, pela prática, em 2020.10.05, de factos que consubstanciam a prática de 3 (três) crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º n.º 1 do C.P., e de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º n.º 1 al. a) e b) do C.P.
Das condições pessoais do arguido:
55. O arguido nasceu em (….).
56. Constitui-se o mais novo, cerca de 8 anos, de dois irmãos, filhos de um casal de mediana condição sócio económica.
57. A união de facto dos progenitores terminou quando o arguido tinha 8 anos de idade, tendo o arguido permanecido à guarda da progenitora até cerca dos 17 anos, tendo decidido ir viver com o progenitor por existência de conflitos com a mãe.
58. Concluído o 9.º ano de escolaridade, durante a adolescência.
59. Completou Curso de Serralharia Civil, no Centro de Formação Profissional de Aljustrel, há cerca de 12 anos.
60. Posteriormente frequentou Curso na área de hotelaria, em Faro, do qual veio a desistir.
61. Possuidor do Curso de Nadador-Salvador, durante três épocas balneares integrou-se no contingente de vigilância em praias algarvias.
62. Manteve durante alguns anos, atividade laboral de serralheiro civil, sem vínculo laboral de efetividade, nas minas de Aljustrel e Neves Corvo, para empresas subempreiteiras que laboravam nas mesmas.
63. O arguido manteve-se inativo em termos laborais, desde os primeiros meses de 2020.
64. Este manteve um relacionamento afetivo com A, com união de facto durante alguns anos e do qual nasceram dois filhos, F e G, de 8 e 4 anos de idade, respetivamente.
65. A união do casal entrou em rutura há 4 anos. Os filhos encontram-se à guarda da respetiva avó materna, residente em Cascais.
66. O relacionamento entre duas famílias, do arguido e da ex-companheira, é cordato e próximo, verificando-se um contacto facilitado com os menores.
67. Encontra-se desde 03.02.2022 a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Beja.
68. O comportamento institucional tem decorrido de forma adaptada, sem registo de infrações em face do normativo que rege a vivência penitenciária.
69. Encontra-se integrado em trabalho, no bar da ala em que se aloja.
70. Concluiu Programa de Moral e Ética, relativo ao desenvolvimento de competências, e, recentemente, o ensino EFA – Secundário.
71. O arguido tem mantido adesão a iniciativas que lhe são propostas, nomeadamente a inserção/participação no Grupo de Teatro e Grupo Coral.
72. Dispõe de apoio familiar dos progenitores e dos atuais companheiros destes.
73. O arguido tem experiência de consumo de substâncias estupefacientes, que efetuava em contexto de eventos e festas com amigos, afirmando nunca ter criado habituação ou dependência de tais substâncias.
74. O arguido teve acompanhamento psicológico no estabelecimento prisional de Beja, desde o dia 03/02/2022 até ao dia 29/05/2023, altura em que deixou de ir às consultas por iniciativa própria, tendo tomado medicação – benzodiazepinas até 18/05/2023.

*
a. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevância para a boa decisão da causa, ficou por provar que:
a. O namoro tivesse terminado em Fevereiro de 2022.
b. O arguido aquando o descrito em 15) tivesse dito “daqui não foges que eu não te deixo fugir, ninguém vai ver”.
c. A ofendida tivesse de mudar constantemente o código de acesso ao seu telemóvel, uma vez que o arguido tinha crises de ciúmes por tudo e por nada, mas ainda assim o arguido estivesse sempre atento e descobria sempre o código actualizado de acesso ao telemóvel da ofendida.
d. O descrito em 18) tivesse ocorrido na sequência da vigilância ao telemóvel da ofendida.
e. Aquando descrito em 18) o arguido dissesse “que os matava aos dois”.
f. O arguido tivesse dito que as amigas da ofendida “não prestavam”, que “são falsas” “ela faz-te mal”.
g. Aquando o descrito em 23) o arguido tivesse tirado as chaves do carro à ofendida e tivesse dito em tom sério “daqui não vais embora”.
h. Aquando o descrito em 28) o arguido tivesse dito “não tens nada que me contrariar em frente aos meus amigos!
i. O descrito em 36) tivesse ocorrido no dia 30.12.2021 pelas 23:00.
j. Aquando descrito em 40) o arguido tivesse começado a discutir com o Militar P “o que é que tu queres??” “Este telemóvel é dos dois, ela está a tomar banho. Porque é que estão sempre a insistir nisto da Violência Doméstica? Se ela quiser é ela quem apresenta queixa!”.
k. Sempre que agredisse a ofendida o arguido dissesse, repetidamente, que a matava.
l. O arguido quando estava preso tivesse telefonado à ofendida a chorar e a pedir-lhe desculpa pelo seu comportamento”, que “aquilo não era ele, que ele não é assim, que estava mal psicologicamente, que não estava nele, que estava perturbado”.
m. O descrito em 49) tivesse ocorrido em 19.11.2023
*
C. MOTIVAÇÃO DE FACTO
Resultaram fundamentais para a formação da convicção do Tribunal, no que diz respeito aos factos provados, a conjugação, sob a égide do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, dos seguintes elementos de prova:
a. Documental
▪ Auto de notícia por violência doméstica datado de 30.11.2021, fls. 7 a 8
▪ Aditamento ao auto de notícia por violência doméstica datado de 30.11.2021, fls. 66 a 70, e 72 a 74;
▪ Auto de notícia por violência doméstica datado de 19.11.2023, fls. 212 a 216;
▪ Cota da GNR datada de 07.01.2022, fls. 89
▪ Fotogramas fls. 74, registo a cores ref.ª citius 34845751;
▪ Fotogramas fls. 189 a 191 (preto e branco) e fls. 226 a 227 (a cores)
▪ Informação sobre inexistência de armas de fogo, fls. 237
▪ T.I.R., a fls. 265;
▪ Certificado de registo criminal, ref.ª citius 2823190;
▪ Relatório social da D.G.R.S.P., ref.ª citius 2821309;
▪ Ofícios DGRSP, ref.ªs citius 2867605 e 2869565.
▪ Parecer DGRSP junto em aos autos em 31.10.2024, fls. 352.
b. Declarações prestadas pelo arguido
c. Testemunhal
▪ C, Declarações para Memória Futura no media studio (acta fls. 204);
▪ S;
▪ P, Militar da GNR;
▪ B;
▪ T;
▪ F, Militar da GNR.
Concretizando:
A motivação da matéria de facto reveste simplicidade, atendendo à prova produzida. De facto, o tribunal foi confrontado com duas versões dos factos em causa, uma versão melhor vertida na acusação e subscrita quase na sua totalidade pelo depoimento da ofendida, e a outra versão apresentada pelo arguido e na sua maioria oposta à vertida na acusação.
O arguido prestou declarações em sede de audiência de julgamento, descrevendo o relacionamento mantido com a ofendida como um relacionamento pautado pelo consumo excessivo de estupefacientes por ambos, que originava discussões frequentes em que eram proferidas por este as expressões injuriosas melhor vertidas na acusação, que mereciam idêntica resposta pela ofendida. Referiu que tanto arguido como ofendida, consumiam cocaína todos os dias, no mínimo meia a uma grama por dia, tendo ambos chegado a fazer consumos de 16 gramas por dia. Afirma ainda que tanto arguido como ofendida também consumiam diariamente o que chama de “drunfes”, na dose de 2 por dia, que eram comprimidos de cor rosa e/ou roxos, medicamentos ansiolíticos e antidepressivos que alegadamente a ofendida obtinha no local onde trabalhava, e consumia diariamente juntamente com o arguido. Afirma ainda terem sido ambos consumidores esporádicos de ecstasy e MDMA, consumindo tais produtos em média 2 vezes por mês.
Descreveu o relacionamento tido com a ofendida como sendo um relacionamento aberto, em que tanto o arguido como ofendida mantinham relações de cariz sexual com outras pessoas, e falavam entre si de tais factos. Quanto aos demais factos que extravasam o relacionamento descrito, nomeadamente quanto às agressões físicas perpetradas no corpo da ofendida, negou sempre a prática de tais factos, tendo ainda negado ter afirmado que iria matar a mesma em diversas ocasiões, tendo, contudo afirmado terem ocorrido os episódios que iremos chamar de “episódio do salto pela janela”, “episódio do carvoeiro” e “episódio do dia 27.11.2021”, contudo em contextos diferentes do vertido na peça acusatória, e em que este interveio alegadamente não como agressor mas como visualizador de comportamentos exaltados e injustificados da ofendida.
Com um discurso enjeitado relativo aos factos que lhe são imputados, afirmou ainda ser verdade que se escondia na casa, garagem e escadas do prédio onde a ofendida reside, e também atava com 30 nós os atacadores dos ténis da mesma, contudo descreve tais práticas como sendo meras brincadeiras. No mais, e quanto ao comportamento alegadamente obsessivo tido para com a ofendida, e alegadas expressões de que “és só minha” e afins, descreveu que nunca teve ciúmes, que desde que está preso acabou o relacionamento com a ofendida em Agosto de 2022, tendo entretanto até começado a namorar com outra pessoa que o visita regularmente no estabelecimento prisional, não querendo, contudo, quando instado para tal, dizer qual o nome de tal pessoa, nem o contacto móvel da mesma, mas apenas querer fazer acreditar o tribunal que nenhum relacionamento ou sentimento afetuoso ou, no entender do tribunal obsessivo, nutre pela ofendida.
Assim, afirma nada ter contra a ofendida, não obstante a mesma tivesse inventado as alegadas agressões que lhe são imputadas, tentando desde modo o arguido enjeitar a sua responsabilidade e convencer o tribunal de que o próprio e a ofendida teriam vivenciado um relacionamento disfuncional pautado pelo consumo excessivo de estupefacientes por ambos, que geraram meras discussões verbais entre ambos, sem mais. No mais, e quanto ao episódio da ofendida ter se lançado pela janela do 1.º andar da sua casa, o arguido afirma que tal aconteceu, contudo refere que não percebe o porquê de a ofendida ter praticado tal acto.
Dito isto, a versão trazida aos autos pelo arguido não é coerente, não sendo sequer consentânea nem com a demais prova produzida, nem com as regras da experiência, e logo não é plausível. De facto, não se vê como poderia a ofendida ser consumidora regular de chamadas drogas pesadas (cocaína) e continuar a desempenhar a sua actividade laboral regularmente, durante anos, sem a própria superior hierárquica da mesma, S, denotar quaisquer alterações comportamentais ou físicas na mesma. Depois, diga-se, que também não se equaciona como crível que ofendida e arguido pudessem chegar a consumir até 16 gramas de cocaína por dia, sem nunca terem sofrido qualquer efeitos físicos e psíquicos agudos importantes, relativo a sobredosagem e até internamento de urgência. Refira-se ainda que as diversas nódoas negras e a ocorrência de falhas de cabelo visíveis no corpo da ofendida, nunca foram justificadas pelo arguido, não tendo sido encontrada outra causa para as mesmas que não os actos praticados pelo arguido no corpo da ofendida, tendo as mesmas decorrido nos episódios que a ofendida, de um modo claro, escorreito, e contextualizado, narrou em sede de declarações para memória futura, e cujo depoimento mereceu total credibilidade ao tribunal.
Por outro lado, se salientar será ainda o facto de o arguido ter afirmado ter novo relacionamento amoroso com senhora que o vai visitar na prisão, e da própria prova documental junta aos autos pela ofícios da D.G.R.S.P., ref.ªs citius 2867605 e 2869565, não constar qualquer pessoa indicada como namorada para além da ofendida, nem qualquer visita feita pelo arguido no último ano de pessoa se sexo feminino que não seja tua mãe ou tia.
Por sua vez, a ofendida C em nenhum momento tentou diabolizar o arguido, muito pelo contrário. A mesma afirmou que quando ocorriam as discussões entre ambos, e o arguido a chamava de puta, e outros nomes injuriosos, a mesma ripostava, respondendo de igual modo. Contudo quanto às agressões físicas, afirma que nunca agrediu o arguido, sendo apenas vítima de agressões tentando mesmo em sede judicial justificar as mesmas afirmando que a maior parte sempre aconteceram quando o arguido tinha ingerido álcool, narrando o sucedido nos diversos episódios em que foi agredida de maneira emotiva e contextualizada. Este medo e tomada de consciência do comportamento violento e agressivo do arguido pela ofendida foi crescendo ao longo do namoro de ambos, tendo a mesma com o decorrer do tempo, e o número crescendo de episódios que chama de “estranhos” (atas as sapatilhas com 30 nós, umas às outras, esconder-se no escuro, não deixar a mesma dormir permanecendo acordado e falando para mesma sobre assuntos sem qualquer sentido, motivados por ciúmes infundados), e visualização de episódios em que o mesmo criava ideias obsessivas de que a mesma o estaria a trair, e mantinha e intensificada comportamentos de predominância e ascendência sobre a vítima, feito com que a mesma passasse já nos últimos meses a recear diariamente pela sua vida.
Assim, qualquer ser humano só se lançaria de uma janela, mesmo estando a mesma no 1.º andar, se sentisse algum perigo sério e fundado contra a sua vida. Ora, era neste “registo” que a ofendida passou a viver grande parte da sua vida, medo esse diário e gerado pelo arguido, pelas condutas perpetradas pelo mesmo, e terror psicológico que o mesmo a fazia sentir.
É claro no relato da ofendida, o medo que a mesma sente pelo arguido, bem como a pena que sente dele por ele ter sido interveniente num acidente de automóvel que gerou a morte de 3 pessoas, e ter sido condenado e preso por isso. Sendo ainda claro que é esta pena, e o sentimento afectivo que nutriu pelo arguido que fez com que a mesma também não se conseguisse afastar a cem por cento do arguido, traço também característico deste tipo de relacionamentos.
Assim, quanto aos factos constantes dos pontos 1) e 2) dos factos provados, advieram os mesmos da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, mais concretamente do depoimento da ofendida C, conjugado com o depoimento do arguido, que embora tenha afirmado não ter sido namorado desta, afirmou ter mantido relacionamento afectivo com a mesma durante tal lapso temporal, tendo inclusive identificado a mesma como namorada para efeitos de visitas no Estabelecimento Prisional de Beja. Por outro lado, a testemunha B, pessoa que conhece o arguido desde pequeno, pois trabalha com a mãe do mesmo num salão de cabeleireira que esta explora, afirmou que o D namorava e até tinha chegado a viver com a namorada C em Castro Verde, na casa da mesma.
Por sua vez, deu o tribunal como provados os factos melhor descritos nos pontos 3) a 51) dos factos provados, atento o depoimento prestado pela ofendida, que de uma maneira contextualizada, objectiva e emotiva narrou o por si vivenciado, e as agressões de que tinha sido vítima. A ofendida mesmo depois do por si vivenciado, afirma que só queria esquecer este processo, esta fase da sua vida, que teme que este mesmo processo só piore as coisas, e comportamentos do arguido, sendo claro o medo que sente pelo mesmo. De salientar que a ofendida começou o seu depoimento por narrar o episódio ocorrido em Setembro de 2021, no qual o arguido a amarrou pelo cabelo, e lhe arrancou parte do cabelo, ficando a mesma com várias peladas no couro cabeludo, e lhe desferiu vários pontapés em várias partes no corpo, dizendo que a ia matar, tendo descrito o sucedido chorando, e narrando o sucedido com dificuldade, atenta a clara dificuldade que detém em relembrar os actos de que foi vítima. Após, justifica o facto de ter saltado pela janela por ter entrado em pânico, e o arguido lhe ter dito que a iria matar, relatando esse episódio com uma objectividade e de maneira escorreita. No mais, a ofendida narrou com normalidade, como fazendo parte do seu dia a dia com o arguido, ser chamada de puta, de merda, ser o seu emprego desvalorizado, ter o mesmo logrado afastar a mesma dos seus amigos, por desvalorizar os mesmos, e ser a mesma constantemente vigiada pelo arguido, e acusada de o andar a trair.
O depoimento da ofendida foi ainda corroborado em parte pela testemunha S, que trabalha com a ofendida há 11 anos, e afirmou ter-se apercebido que desde 2021 que visionou em diversas vezes manchas negras no corpo da ofendida, sendo que quando perguntava à mesma a origem de tais nódoas, a ofendida arranjava sempre desculpas (tinha caído, tinha sido assaltada, etc). Só após ver C com partes do cabelo arrancado, tal testemunha decidiu abordar novamente a ofendida perguntando insistentemente o que se passava, tendo só aí a ofendida, já em estado de medo constante e temor pela sua vida, narrado tudo o por si vivido com o arguido desde o início do namoro, e afirmado que todas as nódoas negras, bem como falta de cabelo teriam a sua causa de agressões físicas praticadas pelo arguido no corpo da ofendida. Foi esta mesma testemunha a Autora dos registos fotográficos constantes dos autos, 74 registo a cores ref.ª citius 34845751, tendo ainda sito esta a pessoa que teve a coragem de denunciar estes factos às autoridades, dando origem ao aditamento ao auto de notícia por violência doméstica datado de 30.11.2021, fls. 66 a 70, e 72 a 74. Referiu ter visionado os olhos da ofendida negros, manchas negras no corpo da ofendida, nos braços, nas pernas, visualizando ainda a ofendida com o que chama ter sido “cabeça aberta” (traumatismo craniano leve). O depoimento desta testemunha, por ter sido prestado de modo escorreito, contextualizado, e objectivo, mereceu total credibilidade ao tribunal.
Também foi claro para a testemunha P, militar da GNR, o medo que se fazia sentir na vida de C, tendo o mesmo confirmado o vivenciado por si e descrito no ponto 40) dos factos provados. De referir que após tal telefonema, esta testemunha deslocou-se à casa da ofendida para tentar falar com a mesma, tendo visionado a ofendida a entrar com o carro na sua garagem, negando-se falar com os militares. Tal episódio deu origem à Cota da GNR datada de 07.01.2022, fls. 89, cuja autoria foi confirmada pela testemunha.
Por sua vez, e quanto à queda da janela, a testemunha D, vizinha da ofendida, afirmou num determinado dia ter ouvido um estrondo, e ter aberto a porta da parte da frente da sua casa, tendo visto a ofendida T na rua. Quanto questionada sobre pormenores, a testemunha mostrou-se nervosa, inquieta, com medo, tendo-se refugiado em respostas como não me lembro, ou não sei de mais nada.
Mesmo medo se fez sentir no tribunal ao longo do depoimento da testemunha T, que por conhecer o arguido, afirmou abertamente saber que C tinha sido namorada do arguido, que a mesma vinha diversas vezes buscar o mesmo de carro ao cabeleireiro da mãe do arguido, sendo que quanto a todo o resto, consumo de estupefacientes, condutas violentas, personalidades violentas, respondeu de forma evasiva, claramente omitindo factos com relevância para a causa.
Tal medo, e consequente desorientação por vezes sentida pela ofendida foi ainda visível pela testemunha F, militar da GNR, quando interpelou a ofendida em Novembro de 2023 quando a mesma se encontrava num lugar ermo, sozinha, completamente desorientada, tendo dito que o arguido mesmo estando preso lhe continuava a telefonar várias vezes. Tal episódio deu origem ao auto de notícia por violência doméstica datado de 19.11.2023, fls. 212 a 216, cuja autoria foi confirmada por tal testemunha.
Refira-se ainda que o arguido, durante o seu depoimento, acabou por confirmar a prática de alguns destes factos, a saber, que fazia nós nos ténis da ofendida, e atava os ténis uns aos outros, (ponto 8) dos factos provados), que era conhecedor que a ofendida sofria de ansiedade e de ataques de pânico (ponto 9) dos factos provados), que se escondia no escuro na casa da ofendida (ponto 10) dos factos provados), que chamava à ofendida “que ela era uma puta”; “uma merda”, que era alcoólica (ponto 12 dos factos provados), que a ofendida saltou da janela (ponto 16) dos factos provados), que o mesmo fazia uso do telemóvel da ofendida, visualizando todo o seu conteúdo (ponto 17) dos factos provados), colocava defeitos às amigas da ofendida dizendo que a ofendida era uma “burra” porque não via que as pessoas se aproveitavam dela” (ponto 21) dos factos provados), que foi o próprio que partiu o ecrã táctil do carro da ofendida, e que em 07.01.2023 teria atendido o telefonema efectuado pelo militar P, e obstado a que o mesmo falasse com a ofendida, tendo afirmado ter dito algo parvo ao mesmo (ponto 40) dos factos provados), não se recordando do conteúdo, mas recordando-se que atirou o telemóvel para a salamandra (ponto 42) dos factos provados).
No mais, quanto aos factos contantes dos pontos 52) e 53) dos factos provados, como factos internos que são, deduzem-se pelos factos externos imputados ao arguido, conjugados com as regras da experiência comum e do normal acontecer. De facto, o arguido perpetra as condutas melhor descritas anteriormente, com o único propósito de atingir a ofendida da sua honra e consideração, maltratando a mesma propositadamente. Resulta do circunstancialismo apurado e lido à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida (desde logo atento o carácter inequívoco de tais condutas, insusceptíveis de permitir se vislumbre quaisquer outros intuitos que não os descritos) que o arguido evidenciou perfeita consciência e vontade de praticar os mencionados factos, agindo sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram socialmente desvaliosas e criminalmente puníveis, visando com as mesmas maltratar a ofendida.
No que diz respeito aos antecedentes criminais do arguido constantes do ponto 54), 54.1) e 54.2) dos factos provados, resultam os mesmos do certificado de registo criminal, ref.ª citius 2823190.
Quanto aos factos descritos nos pontos 55) e 74), concernentes às condições sócio-económicas do arguido resultaram tais factos do T.I.R., a fls. 265, Relatório social da D.G.R.S.P., ref.ª citius 2821309 e Parecer DGRSP junto em aos autos em 31.10.2024, fls. 352.
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Atento o exposto, e porque foi produzida prova em sentido diverso, deu o tribunal como não provados os factos constantes nos pontos a), g), i), j) e m) e dos factos não provados, atenta a prova produzida em sentido contrário ou diverso. Os factos constantes dos pontos b), c), d), e), f), h), k) e l) dos factos não provados assim o foram atenta a ausência de prova nesse sentido.
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IV. DO DIREITO
i. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Fixada a factualidade com relevância para a boa decisão da causa, cumpre proceder à respectiva subsunção jurídica, sendo certo que o arguido apenas será responsabilizado penalmente caso tenha praticado um facto típico, ilícito, culposo e punível (artigo 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal, de ora em diante C.P.P.).
O arguido vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 26.º e a 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2, al. a) do Código Penal (de ora em diante C.P.).
O crime de violência doméstica está previsto no artigo 152.º, n.º 1 que dispõe:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Por sua vez, ao que aqui interessa, dispõe o artigo 152.º, n.º 2 do C.P. que:
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos
(…)
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”.
O bem jurídico protegido pela incriminação legal “(…) é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos nomeadamente os que “afectem a dignidade pessoal do cônjuge(…)” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/9/2010, processo n.º 1885/07.5PAVNG.P1, relator José Carreto; e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/4/2010, proc. n.º 13/07.1GACTB.C1, relator Alberto Mira, disponíveis em www.dgsi.pt).
Trata-se de um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção), na medida em que a sua consumação pressupõe, respectivamente, uma lesão no bem jurídico, e uma alteração do mundo físico, distinta da conduta (Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2.ª Edição, 2010, pág. 76 e 46).
Da análise do preceito resulta a complexidade do crime de violência doméstica, o qual contempla uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito ativo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias) (cf. Alexandre Oliveira, «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar», 2.ª ed., Centro de Estudos Judiciários, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2020, disponível em www.cej.pt, p. 118).
Trata-se de um crime específico, relevando a relação especial entre o sujeito ativo e passivo da conduta criminosa que pode assumir qualquer das formas melhor descritas nas alíneas do n.º 1 do art. 152.º do Código Penal.
É de salientar, no que toca, em especial, às relações de namoro e às relações análogas aos cônjuges, que segundo André Lamas Leite, o que realmente importa é a existência de “(…) uma certa estabilidade em tal relação interpessoal, que se não presume apenas e tão-só do vínculo formal do casamento (…), mas da existência de uma proximidade existencial efectiva (…)”, para afastar quaisquer relações sexuais passageiras, ocasionais ou fortuitas, já quando após o terminus daquelas relações estáveis (e do casamento), e o consequente findar da proximidade existencial, o que realmente importa, não é uma baliza temporal fixa e arbitrária, mas que a violência esteja ainda ligada àquelas relações e não seja uma violência perfeitamente alheia à relação, como a que ocorre, no nosso exemplo, entre ex-companheiros no âmbito de um incidente rodoviário. (Cfr. Alexandre Oliveira em «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar», 2.ª ed., Centro de Estudos Judiciários, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2020, disponível em www.cej.pt, p. 124).
O tipo objectivo consiste na prática de maus tratos, conceito este que engloba: (i) a violência física, ou seja, a ofensa corporal (qualquer conduta que origine ou seja susceptível de ocasionar ofensa do corpo ou da saúde da vitima, entre as quais, bofetadas, pontapés, murros, empurrões, arranques de cabelo, lançamento de objectos contundentes, estrangulamento, fustigação de cintos ou correias, entre muitos outros); (ii) a violência psíquica - humilhações, provocações, molestações, ameaça, insultos, injúrias, condutas vexatórias, comportamentos possessivos, isolamento, privação de convívio com familiares e amigos, destruição de objectos pessoais; (iii) a violência económica (negação de acesso ao dinheiro, negação do direito de trabalhar); (iv) espiritual (negação de valores e crenças culturais ou religiosas ou obrigação de aceitação de determinadas crenças ou valores de ordem religiosa ou cultural) (Cfr. neste sentido, vide, “Dos Maus Tratos ao Cônjuge à Violência Doméstica: um passo à frente na tutela da vítima?”, in R.M.P. n.º 107, pág. 102).
Dito isto, é claro que os comportamentos subsumíveis ao crime de violência doméstica são, frequentemente, subsumíveis a outras incriminações, sendo apenas puníveis a título de violência doméstica “se pena mais grave lhe não couber”. Esta cláusula de subsidiariedade expressa geral faz com que o tipo incriminador de violência doméstica seja preterido a favor do tipo legal que prevê uma punição mais severa, cumprindo, contudo, notar que a autonomização dos factos provados não obsta à ponderação, no caso concreto, de um eventual concurso efetivo entre o crime de violência doméstica e o crime mais severamente punido pelo nosso ordenamento jurídico (cf. acórdão do venerando Tribunal da Relação de Évora de 24-05-2018, proc. n.º 1/15.4GGMMN.E1, disponível em www.dgsi.pt).
De salientar ainda, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de Janeiro de 2010, relator Jorge Dias, disponível in www.dgsi.pt, que “(…) o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal, ou semelhante (…)”.
Sufraga o Tribunal a corrente jurisprudencial que vinha sustentando que para a verificação do crime será bastante uma única conduta (de resto, atenta a atual redação legal, a violência doméstica pode emergir de factos reiterados ou não), ponto é que se revista de uma gravidade intrínseca tal que, de per se, revela o forte desvalor das condutas associadas a este tipo, expressando, dalguma forma, “da parte do agente, crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária” (Cfr., neste sentido, aresto do Tribunal da Relação de Évora, de 25/01/2005, publicado na Colectânea de Jurisprudência n.º 180, ano XXX, tomo I, 2005, p.260; Acórdão do S.T.J., de 14/11/1997, in C.J., ano V, tomo III, p.235). Sem embargo, não será errado dizer-se que, na generalidade dos casos, o crime ganha corpo através de um conjunto de comportamentos que se prolongam no tempo, e que formam uma unidade de sentido idónea a atingir a dignidade da pessoa humana.
Relativamente à violência doméstica na vertente de violência psicológica, a reforma levada a cabo pela Lei n.º 59/2007, Portugal aderiu em 2013 à Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul em 11/5/2011 (doravante, Convenção de Istambul). Ora, a Convenção de Istambul, logo no seu artigo 3.º,al. b), refere que a «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima”, sem qualquer referência, portanto, a requisitos objetivos ou subjetivos acrescidos.
Por outro lado, é de salientar o facto de que também o tribunal sufraga o entendimento de que o crime de violência doméstica, pelo menos de forma residual, constitui também um crime específico próprio, justificando a subsunção de algumas condutas que não encontrariam tutela em sede dos demais tipos de crime previstos no nosso ordenamento. Neste ponto, Taipa de Carvalho destaca, “situações de maus tratos psíquicos (como, p. ex., humilhações, ameaças não abrangidas pelo artigo 153.º, ou o chamado “assédio moral”) que, embora possam in se não configurar uma autónoma infracção”, podem configurar, “quando reiteradas, um mau trato psíquico abrangido pela ratio e pela letra do artigo 152.º”. Nestes casos, é, portanto, “a especial relação – que, no presente ou no passado, existe ou existiu entre o agente a vítima – que fundamenta a ilicitude e a punição do agente”. Também Nuno Brandão fala de microviolência continuada, onde “a opressão de um dos (ex)-parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação” (Alexandre Oliveira em «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar», 2.ª ed., Centro de Estudos Judiciários, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2020, disponível em www.cej.pt, p. 127).
O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. O conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é aqui fundamental para a conformação do dolo do agente. No caso de crime agravado pelo resultado, o resultado agravante é imputável ao arguido se ele tiver procedido negligentemente em relação a este (nos termos do disposto no artigo 18.º do C.P.).
In casu, atentas as considerações à factualidade tida por demonstrada, já supra elencada, a qual se dá por integralmente reproduzida (pontos 1) a 51) dos factos dados como provados relativos à acusação), entende-se que se encontram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, agravado nos termos do disposto no n.º 2 al. a) do preceito. Saliente-se que, as condutas descritas no ponto 3), 4), 5), 6), 7), 8), 9), 10), 11) e 13) são consideradas uma forma de mau trato psicológico, pois que outro motivo teria o arguido para praticar tais condutas, que não incomodar a paz e sossego da ofendida e a sua integridade psíquica, quando não a deixava dormir ou a obrigava a desatar os nós por eles feitos nos ténis, e a chamava de velha.
Considera-se igualmente que o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, perfeitamente conhecedor da censurabilidade e ilicitude das suas condutas, visando com as mesmas maltratar a ofendida, bem sabendo a idade que a mesma tem, aterrorizando-a e humilhando-a, ao ofendê-la na sua honra e consideração e ao causar-lhe receio, perfeitamente ciente que as expressões que lhe dirigia eram a tanto adequadas, intimidando-a, vexando-a e maltratando-a psicologicamente, assim como anulando a sua auto estima, menorizando-a perante si e perante a própria. Conclui-se assim estar preenchido o elemento subjectivo da norma incriminadora em apreço, tendo o arguido actuado com dolo directo (artigo 14.º, n.º 1 do C.P.).
Considera-se igualmente que a conduta do arguido também é ilícita, porque contrária à ordem jurídica, e culposa, pois, nas concretas circunstâncias em que o arguido estava inserido, era-lhe exigível a adopção de outra conduta possível e não lesiva dos bens jurídicos tutelados por este tipo de crime.
Preenchidos que estão, assim, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito e não ocorrendo, qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa, dúvidas não subsistem de que o arguido D se constituiu, desta forma, autor material de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do C.P.
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ii. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME.
Qualificados os factos, segue-se a escolha da pena a aplicar ao arguido, bem como a determinação da sua medida concreta.
Assente a prática pelo arguido de factos que consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do C.P., cumpre determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar, sendo que o processo de determinação da pena em concreto compreende três fases distintas:
i. O apuramento da moldura penal abstractamente aplicável aos factos dados como provados, bem como a aferição da existência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes, susceptíveis de actuar sobre a mesma.
ii. A escolha da pena a aplicar, caso o tipo de crime em apreço a contemple, em consonância com o disposto no artigo 70.º do Código Penal (fase eventual).
iii. A determinação da pena concreta dentro da moldura apurada, atento o disposto no artigo 71.º do Código Penal.
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O crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do C.P., é punido com pena de é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
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No caso concreto, não foram apuradas quaisquer circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes que impliquem a modificação ou alteração da moldura do crime em apreço.
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a. DA ESCOLHA DA PENA PRINCIPAL DE PRISÃO OU PENA DE MULTA
O artigo 70.º do Código Penal estabelece que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. O sistema punitivo português tem, como primeiro objectivo, um efeito pedagógico e ressocializador, sendo a pena detentiva ou privativa da liberdade encarada como a ultima ratio. De facto, as finalidades da punição prendem-se, essencialmente e primeiramente, com uma função pedagógica e ressocializadora, visando a recuperação social do delinquente.
Neste sentido, e segundo Figueiredo Dias, “são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa (…) e a sua efectiva aplicação” (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Aequitas, Editorial Notícias, pág. 331). Com efeito, à escolha da pena presidem apenas considerações e finalidades exclusivamente preventivas, com prevalência dada à prevenção especial de socialização.
No caso em concreto, relativamente ao crime de violência doméstica agravada, aqui em consideração, o mesmo somente é punido com pena de prisão, motivo pelo qual nada há a determinar, sendo esta pena privativa da liberdade a que será aplicada ao arguido.
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b. DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA PENA PRINCIPAL
Segundo o art. 71.º do Código penal, a determinação da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. A culpa reflecte a vertente pessoal do crime, assegurando que a pena não irá violar a dignidade da pessoa do arguido, sendo esta limite inultrapassável da pena (artigos 40.º, 70.º e 71.º do C. Penal). Por outo lado, nunca a medida da pena poderá descer a um nível inferior às exigências de prevenção evidenciadas no caso concreto.
As exigências de prevenção na determinação da pena reflectem-se em dois domínios: (i) no domínio da sociedade, visando restabelecer nela a confiança na norma violada e a sua vigência (prevenção geral positiva); (ii) no domínio pessoa do agente, tentando a sua reintegração e o respeito pelas normas jurídicas (prevenção especial positiva).
Entre o limite máximo da pena, fixado pela culpa, e o limite mínimo, determinado pelas necessidades de prevenção geral positiva, actuam as necessidades de prevenção especial de socialização, de modo a que a pena evite, tanto quanto possível, a quebra da inserção social do agente e permita a sua reintegração na sociedade (cfr. Figueiredo Dias, cf. «Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime», Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 321 a § 334).
Estes vectores da medida da pena são concretizados pelos factos de determinação da medida concreta da pena que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Alguns desses factores são elencados no art. 71.º, n.º 2 do Código Penal, a título exemplificativo. Sendo assim, na determinação da medida concreta da pena valorar-se-ão o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências, a intensidade dolosa do agente, as suas condições pessoais, a sua conduta anterior e posterior ao facto, as exigências de prevenção e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente, ou contra ele, tendo em conta as exigências de futuros crimes.
Desde logo, o Tribunal deverá atender ao princípio da proibição da dupla valoração, mediante o qual não devem ser apreciadas, na determinação da medida da pena, circunstâncias que integrem o tipo de crime, na medida em que já foram tomadas em consideração pelo legislador quando tipificou a conduta.
Em desfavor do arguido:
- as necessidades de prevenção geral são elevadas, atenta a crescente consciencialização da comunidade acerca do flagelo que a prática do crime em apreço se tem vindo a tornar, assumindo enorme premência a necessidade de se acautelarem as referidas necessidades de prevenção geral no sentido positivo (no sentido de que os prevaricadores são exemplarmente punidos e destarte neutralizados, permitindo se crie sentimento de segurança e confiança na comunidade);
- O dolo, que foi directo, logo na modalidade mais grave.
- o grau de ilicitude dos factos, que ainda assim é médio para o elevado, atendendo ao modo de execução dos mesmos, nos termos supra descritos: quanto a este aspecto há que ter em consideração o lapso de tempo durante o qual perduraram as condutas do arguido, ou seja durante aproximadamente um ano e quatro meses; que foram várias as formas de agressão – verbais, murros e pontapés e cabelo arrancado; e mesmo após de o arguido estar preso continuou a contactar a ofendida para tentar manter o “domínio sobre a mesma” o que, no conjunto, permite concluir por um grau de ilicitude já médio/alto;
- as necessidades de prevenção especial, que se mostram muitíssimo relevantes, atentando os já consideráveis antecedentes criminais do arguido (note-se, não tanto pelo facto de o arguido averbar um número significativo de condenações no seu certificado de registo criminal mas sim, essencialmente, pelas condenações em si mesmas consideradas, as quais se reportam à prática num processo de 1 crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e em outro processo de 3 (três) crimes de homicídio por negligência e 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, acrescendo a circunstância de os factos aqui em causa haverem sido perpetrados parcialmente após o trânsito em julgado da condenação em pena de prisão efectiva, o que é inequivocamente revelador de uma personalidade totalmente indiferente ou até mesmo avessa ao direito, evidenciando o arguido uma postura demonstrativa da não interiorização do desvalor das suas condutas passadas.
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: quanto a este aspecto, o Tribunal tem em consideração que o arguido agia essencialmente animado pela ingestão de bebidas alcoólicas e consumo de estupefacientes e normalmente motivado por ciúmes;
- Relativamente à conduta posterior aos factos, assume relevância a ausência de sentido crítico relativamente à conduta que adotou, pois, tendo decidiu prestar declarações, não admitiu ter praticado grande parte dos factos pelos quais está a ser julgado, tentando descontextualizar grande parte dos factos ocorridos, e com os quais pretendia atingir e afectar psicologicamente a vítima, o que conseguiu.
Assim, e depois de tudo devidamente ponderado, e atentos os critérios do art. 71.º do C.P., julga-se proporcional e adequado, condenar o arguido, pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do C.P. de uma pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão.
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c. DA PENA DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO.
Atenta a determinação da pena de prisão, coloca-se a questão da sua substituição por alguma das penas previstas, para o efeito, no Código Penal, sendo que o tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade.
À luz dos princípios da necessidade e da subsidiariedade, os quais presidem à intervenção penal, bem como do princípio da proporcionalidade, o qual deverá prevalecer na aplicação das sanções penais, o tribunal deve privilegiar a aplicação de penas não privativas da liberdade. Este dispositivo normativo consubstancia, ainda, uma decorrência de uma das matrizes orientadoras do sistema jurídico penal português, i.e., da almejada reinserção social daquele que, à luz do regime jurídico penal vigente, prevaricou, a qual poderá ser colocada em crise pelo afastamento do agente do seu meio natural de vida e pela sua integração num estabelecimento prisional cujos efeitos crimine-nos são reconhecidos.
Relativamente à pena de prisão e caso se encontrem verificados os pressupostos legais, o tribunal tem o poder-dever de ponderar a respetiva substituição por multa (cf. artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal), por proibição do exercício de profissão, função ou atividade (cf. artigo 46.º, n.º 1, do Código Penal) ou por trabalho a favor da comunidade (cf. artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal), sendo que se impõe, ainda, a ponderação da eventual suspensão da execução da pena de prisão (cf. artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal).
Da análise dos artigos 46.º, n.º 1; 58.º, n.º 1 e 50.º, n.º 1, todos do Código Penal, infere--se o critério geral que subjaz à substituição da pena de prisão: a pena de substituição terá de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição ou, conforme enuncia o artigo 45.º do Código Penal, a pena de prisão não será exigível para prevenir o cometimento de futuros crimes, o que nos reconduz ao disposto no já mencionado artigo 70.º do Código Penal.
Assim, uma pena não privativa da liberdade apenas se revelará adequada e suficiente caso se encontrem asseguradas as finalidades da punição, previstas no artigo 40.º do Código Penal, e que se reconduzem, exclusivamente, a considerações de natureza preventiva. De facto, o tribunal deve ponderar as necessidades de prevenção geral (como meio de «protecção de bens jurídicos») e de prevenção especial (como meio de «reintegração do agente na sociedade») que o caso concreto suscite. Em caso de conflito, o conteúdo mínimo da prevenção geral positiva, i.e., a realização adequada e suficiente da finalidade de proteção do bem jurídico violado com a prática do crime, deverá prevalecer e, consequentemente, fundamentar a aplicação de uma pena privativa da liberdade ainda que a prevenção especial se encontre assegurada sem tal pena (cf. Maria João Antunes, «Penas e medidas de segurança», Almedina, 2018, p. 77). Realce-se, ainda, que a culpa não assume, neste particular, qualquer relevância ponderativa, sendo apenas apreciada aquando da determinação da medida da pena.
Tal como nos ensina Figueiredo Dias, divisa-se um critério geral de substituição da pena, «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respetivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. (...) exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa (...)» (cf. Figueiredo Dias, «Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime», Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 497).
Ora, no caso em apreço, foi aplicada uma pena de prisão de 3 (três) anos e 2 (dois) meses, pelo que após análise dos pressupostos formais das hipóteses legais de substituição da pena de prisão aplicada, conclui-se que o tribunal não pode determinar substituição por multa (1 ANO) (cf. artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal), nem por pena de trabalho a favor da comunidade (2 ANOS) (cf. artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal), atenta à concreta pena de prisão aplicada.
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DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Nos termos do artigo 50.º do Código Penal, “1 - o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2 – o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (MAIA GONÇALVES, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 191). Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
A este propósito, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-03-2015, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador Luís Ramos, disponível em http://www.dgsi.pt, defendeu-se que “I - A suspensão da pena assenta na formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes. II - Na ponderação da personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias do mesmo, o tribunal terá que ter em mente que a suspensão da execução da pena de prisão apenas poderá ser aplicada se sustentar e viabilizar os desígnios de prevenção especial - apoiando e promovendo a reinserção social do condenado - e geral - na perspectiva em que a comunidade não encare a suspensão, como um sinal de impunidade.”.
As modalidades da suspensão da execução da pena são as seguintes: [1] suspensão da execução da pena tout court, [2] suspensão da execução da pena com deveres, [3] suspensão da execução da pena com regras de conduta, [4] suspensão da execução da pena com deveres e com regras de conduta, [5] suspensão da execução da pena com regime de prova.
Ora, no caso vertente, entende este Tribunal que estamos perante um caso paradigmático em que se mostra indispensável a efectiva execução da pena de prisão, de modo que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias.
Na verdade, sem embargo o arguido ter apenas duas condenações, releva o facto de a segunda condenação estar relacionada com crimes contra a vida, bem como o facto de parte dos factos pelos quais o arguido está a ser julgado terem sido praticados já após o trânsito em julgado (que ocorreu em 2021.11.25) da decisão que aplicou ao arguido pena de prisão efectiva de três anos, no âmbito do processo n.º 144/20.2GJBJA, pena essa que lhe havia sido aplicada pela prática de 3 (três) crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º n.º 1 do C.P., e de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º n.º 1 al. a) e b) do C.P.. Assim, é preocupante a persistência em retomar a sua actividade criminosa, sendo a sua actuação demonstrativa da total indiferença relativamente à pena que lhe foi aplicada. De facto, o arguido demonstra não interiorizar, de todo, o desvalor das suas condutas passadas, persistindo na prossecução da sua actividade criminosa de crimes contra as pessoas, demonstrando indiferença, senão mesmo desprezo, para com a aplicação da justiça, consubstanciada nas penas que lhe foram sendo aplicadas,
Em suma, a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada mostra-se manifestamente insuficiente e inadequada para salvaguardar as necessidades de punição que o caso reclama, inexistindo substracto factual seguro, em face da conduta desviante do arguido, com base na qual este Tribunal possa (ainda) emitir um juízo de prognose favorável ao mesmo, de molde a fazer crer que a mera ameaça da pena de prisão cumpra as necessidades de punição. Com efeito, permitir que o arguido volte, como voltou no presente caso, a prevaricar, da forma que fez, seria transmitir uma perigosa e totalmente inadmissível mensagem de benevolência, com claros prejuízos para as prevenções especial e, sobretudo, geral.
Face ao exposto, neste caso concreto, deve concluir-se que a mera ameaça de prisão e a simples censura do facto manifestamente não realizariam as finalidades de punição do arguido, as quais reclamam a sua inocuização temporária em meio prisional, sob pena do mesmo persistir, como tem feito, na prática de comportamentos desviantes, bem como de se desvirtuar por completo as finalidades subjacentes ao sistema punitivo do Estado.
Pelo exposto, decide-se não suspender a execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido D, porquanto se entende estarmos perante um caso em que se justifica o cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
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DAS PENAS ACESSÓRIAS
Nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do C.P. “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”.
Cumpre, pois, apreciar se, in casu, a aplicação de tais medidas acessórias se mostram necessárias, adequadas e proporcionais. A aplicação de sanção acessória visa complementar e reforçar a aplicação da sanção penal principal (de prisão ou, quando legalmente prevista, de multa), tendo em vista assegurar a efectiva tutela disponibilizada pela lei. “As penas acessórias não deixam de ser consideradas como consequências jurídicas do crime, razão pela qual só podem ser pronunciadas na sentença ou no acórdão condenatório juntamente com uma pena principal, apesar de a sua aplicação visar finalidades específicas, de prevenção geral e defesa contra a perigosidade individual, e depender de pressupostos autónomos ligados aos factos praticados e da valoração dos critérios gerais de determinação da pena, incluindo a culpa. Defende-se, pois, que estas penas acessórias devem ser dotadas de uma moldura penal específica, que permita, em cada caso, a tarefa judicial de determinação da sua medida concreta” (Cfr. Paulo Guerra, em «Violência Doméstica (…) ob. cit, p. 322).
Sendo que na aplicação de tais sanções acessórias este tribunal está vinculado aos mesmos critérios e elementos de ponderação utilizados aquando da determinação concreta da sanção penal principal, designadamente tal sanção acessória terá de se conformar em função da gravidade da infracção (censurabilidade do facto) e da culpa (censurabilidade do agente), fazendo com que a sua aplicação não seja automática, mas sim gizada por critérios legais de necessidade, adequação e proporcionalidade.
Concretizando.
Nos presentes autos, resultaram provados, ao menos no essencial, os factos que vinham imputados ao arguido, configurando os mesmos a prática de um crime de violência doméstica agravada, existindo ainda o risco, atenta a natureza, forma e modo como tais factos foram praticados e a personalidade algo desviante do arguido, de poder persistir na prática de outros factos que possam colocar em perigo a saúde psíquica e a consideração honrosa e o bom nome da ofendida, pelo que, destarte, se mostra justificada a aplicação de uma sanção acessória de proibição, por qualquer meio, de contactos com a ofendida, pelo que, destarte, se mostra necessário acautelar as eventuais pretensões do arguido.
Nesta conformidade e tendo em consideração os elementos supra aduzidos, este tribunal julga necessário, adequado e proporcional aplicar ao arguido D a pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida C, durante o período de 3 (três) anos e 2 (dois) meses, a contar da data do trânsito em julgado desta sentença, sem necessidade da sua fiscalização por meios técnicos de vigilância eletrónica.
Finalmente, no que se refere à obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, a verdade é que a mesma se mostra inviabilizada pela reclusão que se determina.
Pelo exposto, decide-se pela não aplicação ao arguido de qualquer outra pena acessória que não a proibição de contactos com a ofendida.
(…).»


2.3. Conhecimento do mérito do recurso

2.3.1. O objeto do recurso em apreciação versa exclusivamente sobre matéria de direito.
Assim e analisada a sentença recorrida, não se vislumbrando que enferme de qualquer dos vícios decisórios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP – quais sejam: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova –, nem que ocorra qualquer nulidade de que este Tribunal ad quem devesse conhecer oficiosamente, cumprirá apenas apreciar e decidir das questões suscitadas no recurso.


2.3.2. Do erro de subsunção
Defende o arguido/recorrente existir erro no enquadramento jurídico-penal dos factos provados, porquanto, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, não se verifica qualquer das circunstâncias agravantes do crime de violência doméstica, previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 152º do Código Penal.
Em ordem a fundamentar o entendimento preconizado alega o recorrente que para se poder concluir pela subsunção jurídica dos factos a qualquer das circunstâncias agravantes, em função da ilicitude, elencadas no n.º 2 do artigo 152º do CP «haverá que ter em conta todas as outras circunstâncias suscetíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, há que fazer uma valorização global do mesmo, por forma a permitir a subsunção da conduta ao tipo privilegiado, valorização esta que pode decorrer não só da verificação de circunstâncias que diminuem a ilicitude do facto, como, também, da não ocorrência daquelas circunstâncias contempladas no crime-tipo».
Donde, conclui o recorrente, em face do desvalor da sua conduta – existindo ofensas e agressões físicas mútuas, sendo os meios utilizados os mais simples e os factos praticados num contexto de consumo de dragas por parte do recorrente e da vítima – o respetivo enquadramento jurídico-penal terá de fazer-se no n.º 1 do artigo 152º do CP.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de se mostrar correta a qualificação jurídica dos factos efetuada pelo Tribunal a quo, na sentença recorrida, ao crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal.
Apreciando:
Dispõe o artigo 152º do Código Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto, na parte que releva para a questão agora em apreciação, que:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
(…)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
(…).
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos
O n.º 1 do enunciado artigo 152º contém a descrição do tipo base ou fundamental do crime de violência doméstica e o n.º 2 prevê circunstâncias agravantes do crime.
A agravação do n.º 2, com referência à alínea a) e na parte que ao presente caso importa, qual seja, o agente praticar o facto «no domicilio comum ou no domicílio da vítima», justifica-se, como referem M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio[2], atenta a especial censurabilidade emergente da prática do facto criminoso em «espaço confinado, vedado a olhares alheios e por vezes aos ouvidos dos outros membros do grupo social» ou seja, no último reduto de proteção do ser humano, que tem consagração constitucional, no artigo 34º da CRP.
Foi intenção do legislador censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a ação do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas[3].
Como se refere no Acórdão da RC de 12/07/2022[4] «São, pois, duas ordens de razões que conduzem à agravação: por um lado, um maior aproveitamento da confiança e sentimento de segurança por parte da vítima decorrente de estar numa posição de maior tranquilidade [menos desperta para eventuais agressões]; por outro lado, a maior aptidão do “espaço” a obstaculizar a perceção de outros membros do grupo social.»
Diversamente do entendimento preconizado pelo recorrente, que salvo o devido respeito, não tem suporte legal[5], o preenchimento das circunstâncias agravantes elencadas no n.º 2 do artigo 152º do Código Penal, não depende de qualquer juízo de valoração global do facto, a aferir em função de outras circunstâncias que possam/devam ser ponderadas e suscetíveis de interferir na “graduação da gravidade do facto” – como acontece v.g. no referente às circunstâncias modificativas agravantes do crime de homicídio exemplificativamente previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132º do CP –, tratando-se antes de circunstâncias de funcionamento automático, taxativamente previstas.
Assim sendo, perante a matéria factual provada, dela resultando que uma significativa parte dos atos perpetrados pelo arguido/recorrente integrantes do crime de violência doméstica foram praticados no domicílio da vítima (cf. pontos 2 a 8, 10, 15, 16, 35, 40 a 42 da matéria de facto provada), tanto basta para que se mostre preenchida a agravação prevista na al. a), do n.º 2 do artigo 152º do Código Penal, pelo que, nenhuma censura merece a decisão recorrida, ao proceder à subsunção jurídica dos factos provados, atinentes à conduta do arguido/recorrente, ao crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.


2.3.3. Da medida da pena
O recorrente insurge-se contra a dosimetria da pena fixada na 1.ª instância, em 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão, reputando-a de injusta, desproporcional e desadequada.
Pugna para que a pena seja reduzida para medida coincidente com o limite mínimo da moldura penal abstrata aplicável – que é de dois anos de prisão, ficando afastado o limite mínimo de 1 ano de prisão propugnado pelo recorrente, dada a improcedência da pretensão recursiva da alteração da qualificação jurídica dos factos –, considerando o contexto em que os factos foram praticados, existindo “consumo de drogas por parte do recorrente e da vítima”, tendo o arguido “confessado os factos que efetivamente praticou e apresentado reservas quanto a outros que não praticou” e reconhecido o desvalor da sua conduta, demonstrando sentido crítico e censurável dos seus atos, pedindo desculpa à vítima, não revelando qualquer rancor o sentimento negativo para com a mesma e não registando antecedentes criminais pela prática de crime de violência doméstica.
O Ministério Público pugna pela manutenção da pena em que o arguido foi condenado na 1.ª instância.
Apreciando:
Na sentença recorrida foi o arguido condenado na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão.
A moldura penal abstrata aplicável ao crime de violência doméstica praticado pelo arguido/recorrente, é de 2 a 5 anos de prisão (cf. artigo 152º, n.º 2, do CP).
A concretização da pena, dentro da correspondente moldura legal, obedece aos critérios definidos nos artigos 40º, n.º 1 e n.º 2 e 71º do Código Penal.
Nos termos do disposto no artigo 40º do CP, a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente (n.º 1) e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2).
E em conformidade com o estatuído no artigo 70º do CP a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (n.º 1) e nessa determinação o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as circunstâncias elencadas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo.
A função primordial da pena consiste, assim, na proteção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva e tem sempre, como limite a culpa do agente.
Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se construirá a medida da pena.
A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena[6], sendo tal princípio expressamente afirmado no n.º 2 do art.º 40º do CP.
Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.
Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.
Assim, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, à prevenção geral a função de fornecer uma moldura de prevenção – cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é considerado pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências de defesa do ordenamento jurídico – e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao ora recorrente:
«(...)
- as necessidades de prevenção geral são elevadas, atenta a crescente consciencialização da comunidade acerca do flagelo que a prática do crime em apreço se tem vindo a tornar, assumindo enorme premência a necessidade de se acautelarem as referidas necessidades de prevenção geral no sentido positivo (no sentido de que os prevaricadores são exemplarmente punidos e destarte neutralizados, permitindo se crie sentimento de segurança e confiança na comunidade);
- O dolo, que foi directo, logo na modalidade mais grave.
- o grau de ilicitude dos factos, que ainda assim é médio para o elevado, atendendo ao modo de execução dos mesmos, nos termos supra descritos: quanto a este aspecto há que ter em consideração o lapso de tempo durante o qual perduraram as condutas do arguido, ou seja durante aproximadamente um ano e quatro meses; que foram várias as formas de agressão – verbais, murros e pontapés e cabelo arrancado; e mesmo após de o arguido estar preso continuou a contactar a ofendida para tentar manter o “domínio sobre a mesma” o que, no conjunto, permite concluir por um grau de ilicitude já médio/alto;
- as necessidades de prevenção especial, que se mostram muitíssimo relevantes, atentando os já consideráveis antecedentes criminais do arguido (note-se, não tanto pelo facto de o arguido averbar um número significativo de condenações no seu certificado de registo criminal mas sim, essencialmente, pelas condenações em si mesmas consideradas, as quais se reportam à prática num processo de 1 crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e em outro processo de 3 (três) crimes de homicídio por negligência e 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, acrescendo a circunstância de os factos aqui em causa haverem sido perpetrados parcialmente após o trânsito em julgado da condenação em pena de prisão efectiva, o que é inequivocamente revelador de uma personalidade totalmente indiferente ou até mesmo avessa ao direito, evidenciando o arguido uma postura demonstrativa da não interiorização do desvalor das suas condutas passadas.
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: quanto a este aspecto, o Tribunal tem em consideração que o arguido agia essencialmente animado pela ingestão de bebidas alcoólicas e consumo de estupefacientes e normalmente motivado por ciúmes;
- Relativamente à conduta posterior aos factos, assume relevância a ausência de sentido crítico relativamente à conduta que adotou, pois, tendo decidiu prestar declarações, não admitiu ter praticado grande parte dos factos pelos quais está a ser julgado, tentando descontextualizar grande parte dos factos ocorridos, e com os quais pretendia atingir e afectar psicologicamente a vítima, o que conseguiu.
Assim, e depois de tudo devidamente ponderado, e atentos os critérios do art. 71.º do C.P., julga-se proporcional e adequado, condenar o arguido, pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do C.P. de uma pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão.»
Entendemos ter o Tribunal a quo ponderado devidamente os elementos a que atendeu, na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, designadamente, quanto ao grau de ilicitude dos factos – tendo em conta o modo de execução dos mesmos, o contexto em que ocorreram e a sua gravidade –, à intensidade do dolo com que o arguido/recorrente atuou, ao grau da sua culpa e às exigências de prevenção geral e especial, que, no caso, se fazem sentir, merecendo-nos inteira concordância.
No referente às circunstâncias convocadas pelo recorrente que, em seu entender, impunham, que o quantum da pena fosse fixado no limite mínimo da moldura pena aplicável, referentes ao alegado consumo/abuso de drogas também por parte da recorrente e à alegada interiorização do desvalor e censurabilidade da sua conduta, não têm qualquer suporte na factualidade dada como provada e, como tal, não poderiam, como não podem, ser consideradas na determinação da medida da pena a aplicar.
No que diz respeito ao arrependimento, conforme se faz notar no Acórdão desta Relação de Évora, de 04/04/2013[7]«A admissão pelo arguido, em julgamento, de alguns dos factos da acusação, a confissão parcial, não implica o arrependimento; e os efeitos desencadeados pelo arrependimento também não decorrem, necessariamente, da confissão parcial.»
Para que o arrependimento possa relevar a favor do arguido, como circunstância atenuante, em sede de determinação da medida da pena, é necessário que resultem demonstrados atos que evidenciem que o arguido interiorizou o desvalor da sua conduta, que esta se inadequa à sua personalidade e que está determinado a não voltar a delinquir[8].
Ora, tal não resulta dos factos provados, sendo certo que os traços da personalidade do arguido/recorrente refletidos nos factos praticados e a postura de desculpabilização e de vitimização, manifestada em julgamento, atribuindo os seus atos ao consumo de estupefacientes, não são de molde a poder concluir-se pela existência de arrependimento sincero.
No tocante às exigências de prevenção geral, em relação ao crime de violência doméstica, tal como se considerou na sentença recorrida, são elevadas e, diremos mesmo prementes, vindo a aumentar exponencialmente o cometimento de tal tipo de crime, sendo por todos conhecidas as consequências trágicas que lhe estão associadas, a ponto de, frequentemente, culminarem na morte das vítimas, exigindo que seja reafirmada a manutenção da confiança da comunidade na validade da norma violada.
Relativamente às necessidades de prevenção especial, que, no caso, se fazem sentir, são também elevadas, já que, não obstante o arguido não registar condenações pela prática de crime de violência doméstica, a personalidade pelo mesmo evidenciada, ao cometer os factos apurados, potenciam o sério risco de reiteração da conduta criminosa, noutras relações que o arguido mantenha ou venha a manter.
Por todo o exposto, na ponderação de todas as enunciadas circunstâncias a atender na determinação da medida da pena, entendemos que a dosimetria da pena fixada pela 1.ª instância, em 3 (três) anos e 2 (dois) meses, dentro da moldura penal abstrata que lhe corresponde, revela-se ajustada, proporcional e adequada às necessidades de prevenção que no caso de fazem sentir, nos termos sobreditos, não ultrapassando a medida culpa do arguido. Não existe, por isso, fundamento para a redução da pena concreta aplicada.
Improcede, assim, também, esta vertente, do recurso.


2.3.4. Da suspensão da execução da pena de prisão
Pugna o recorrente para que a pena de prisão aplicada seja suspensa na sua execução, acompanhada de um rigoroso regime de prova, que “ateste a desvinculação ao consumo de estupefacientes”.
Fundamentando essa sua pretensão aduz não ter antecedentes criminais pela prática de crime de violência doméstica e que as exigências de prevenção especial não são de molde a exigir o cumprimento da pena de prisão, em reclusão, o que apenas “servirá para criar no Recorrente um sentimento de revolta por ver mais anos da sua vida inutilizados” e o facto de já se encontrar em cumprimento de outra pena de prisão, “fê-lo assumir e interiorizar o desvalor da sua conduta”, não estando, neste contexto e, na ótica do recorrente, arredada a possibilidade de o afastamento do arguido deste tipo de criminalidade e de a sua ressocialização, poderem ser alcançadas em liberdade, com a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos propugnados.
O Ministério Público pronuncia-se pela manutenção do julgado, defendendo que a substituição da pena de prisão pela de suspensão da execução, ainda que acompanhada de regime de prova, não permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da pena.
Apreciando:
Dispõe o artigo 50°, n.º 1, do Código Penal, que: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos[9].
São dois os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, enunciados no artigo 50º, n.º 1, do CP, sendo um de natureza formal, qual seja, que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos e outro de ordem material, qual seja, o de ser possível concluir que, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição.
O mencionado pressuposto material encerra uma dupla vertente, por um lado, que seja possível efetuar um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de que será possível alcançar a sua ressocialização, em liberdade, afastando-o da prática de futuros crimes e, por outro lado, exige-se que a suspensão da execução da pena de prisão, não contrarie ou coloque em causa a tutela da confiança e o sentimento comunitário de crença na validade das normas violadas.
Em relação ao juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido:
A suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime[10].
«Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto[11]
E há que ter presente que «esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se, pois, de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso»[12].
Por outro lado, para que possa decidir-se pela aplicação de tal pena de substituição é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na validade da norma jurídica violada.
Haverá, pois, que ter em conta as necessidades de prevenção manifestadas no sentimento jurídico da comunidade e daí que uma pena de substituição da prisão, como o é a suspensão da execução da pena, “não poderá ser aplicada, se com ela sofrer inapelavelmente … «o sentimento de reprovação social do crime»[13]”.
Em suma, como se escreve no Acórdão do STJ de 18/06/2015[14]:
«A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.
(…)
De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspetiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.
Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. (…)»
Volvendo ao caso dos autos, o Tribunal a quo fundamentou a não suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao ora recorrente, nos seguintes termos:
«(…) no caso vertente, entende este Tribunal que estamos perante um caso paradigmático em que se mostra indispensável a efectiva execução da pena de prisão, de modo que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias.
Na verdade, sem embargo o arguido ter apenas duas condenações, releva o facto de a segunda condenação estar relacionada com crimes contra a vida, bem como o facto de parte dos factos pelos quais o arguido está a ser julgado terem sido praticados já após o trânsito em julgado (que ocorreu em 2021.11.25) da decisão que aplicou ao arguido pena de prisão efectiva de três anos, no âmbito do processo n.º 144/20.2GJBJA, pena essa que lhe havia sido aplicada pela prática de 3 (três) crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º n.º 1 do C.P., e de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º n.º 1 al. a) e b) do C.P.. Assim, é preocupante a persistência em retomar a sua actividade criminosa, sendo a sua actuação demonstrativa da total indiferença relativamente à pena que lhe foi aplicada. De facto, o arguido demonstra não interiorizar, de todo, o desvalor das suas condutas passadas, persistindo na prossecução da sua actividade criminosa de crimes contra as pessoas, demonstrando indiferença, senão mesmo desprezo, para com a aplicação da justiça, consubstanciada nas penas que lhe foram sendo aplicadas,
Em suma, a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada mostra-se manifestamente insuficiente e inadequada para salvaguardar as necessidades de punição que o caso reclama, inexistindo substracto factual seguro, em face da conduta desviante do arguido, com base na qual este Tribunal possa (ainda) emitir um juízo de prognose favorável ao mesmo, de molde a fazer crer que a mera ameaça da pena de prisão cumpra as necessidades de punição. Com efeito, permitir que o arguido volte, como voltou no presente caso, a prevaricar, da forma que fez, seria transmitir uma perigosa e totalmente inadmissível mensagem de benevolência, com claros prejuízos para as prevenções especial e, sobretudo, geral.
Face ao exposto, neste caso concreto, deve concluir-se que a mera ameaça de prisão e a simples censura do facto manifestamente não realizariam as finalidades de punição do arguido, as quais reclamam a sua inocuização temporária em meio prisional, sob pena do mesmo persistir, como tem feito, na prática de comportamentos desviantes, bem como de se desvirtuar por completo as finalidades subjacentes ao sistema punitivo do Estado.
Pelo exposto, decide-se não suspender a execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido D, porquanto se entende estarmos perante um caso em que se justifica o cumprimento de uma pena de prisão efectiva.»
Merece-nos inteira concordância a decisão do Tribunal a quo de não suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido.
Com efeito:
- O arguido – que tem atualmente 35 anos de idade – praticou alguns dos factos que integram o crime de violência doméstica em causa nos presentes autos, após ter sido condenado, por acórdão transitado em julgado, em 25/11/2021, proferido no âmbito do processo n.º 144/20.2GJBJA, pela prática de três crimes de homicídio por negligência e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena única de 3 anos de prisão e tendo iniciado o cumprimento dessa pena em 03/02/2022, ainda assim, estando no Estabelecimento Prisional, o arguido não se absteve de continuar a atemorizar a vítima, depois desta ter posto termo ao relacionamento, contatando-a telefonicamente, através de diversos números, afirmando que a vítima é dele e que irá ser sempre dele e que quando saísse da prisão, em saída precária, a iria procurar e encontrar e que ela continuaria a ser dele.
A descrita conduta do arguido/recorrente é reveladora de falta de interiorização do desvalor da sua conduta para com a vítima, manifestando um sentimento de posse relativamente à mesma, como se de “coisa sua se tratasse” e de indiferença perante a situação de cumprimento de pena efetiva de prisão em que se encontra.
- As caraterísticas da personalidade do arguido, reveladas na prática dos factos, evidenciam traços de violência, agressividade, excessiva impulsividade e dificuldade de autocontrole, autocentrada e desrespeitadora da vontade do outro, o que potencia o risco de reiteração da conduta criminosa.
Neste quadro, entendemos que não é possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade.
Os fundamentos aduzidos pelo recorrente para pugnar pela suspensão da execução da pena, salvo o devido respeito, não podem ser acolhidos, fazendo-se notar que a ressocialização do agente, que se almeja alcançar com a aplicação de qualquer pena (cf. artigo 40º, n.º 1 do CP), visando prevenir a reincidência, depende em muito do próprio agente, da atitude positiva ou negativa que adote em relação ao seu empenho no processo de reintegração na sociedade.
Ora, no presente caso, os traços da personalidade do arguido refletidos na prática dos factos, eventualmente, exponenciados pelo consumo de substâncias estupefacientes, conquanto o arguido rejeite ter criado habituação/dependência, não tendo suporte na matéria factual provada a alegação do recorrente de que o cumprimento da pena de prisão em que se encontra o tenha feito “ assumir e interiorizar o desvalor da sua conduta”, persistindo até 08/03/2024, em contatar telefonicamente a vítima, depois desta ter terminado o relacionamento e feito saber que não o querer na sua vida, enfatizando o arguido, nesses telefonemas, sentimentos de posse relativamente à vitima e que a irá procurar e encontrar quando sair da prisão, denota falta de interiorização do desvalor e censurabilidade da conduta delituosa assumida.
Por outro lado, ante as considerações explanadas na sentença recorrida, sendo bastantes elevadas as exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente ao crime de violência doméstica por cuja prática o arguido é condenado e considerando a personalidade impulsiva e com traços de violência, que evidencia, afigura-se-nos que o conteúdo mínimo destas últimas exigências, para que não fiquem defraudadas as expectativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos e a confiança comunitária na validade das normas jurídicas violadas, só ficará assegurado com a efetiva execução da pena de prisão aplicada.
Concluímos, assim, tal como o Tribunal a quo, que a suspensão da execução da pena não satisfaria as finalidades da punição, impondo-se a execução da prisão para que tais finalidades da punição sejam realizadas
Consequentemente, impõe-se julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido D e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (artigo 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
Notifique.

Évora, 25 de março de 2025
Fátima Bernardes
Helena Bolieiro
Renata Whytton da Terra
__________________________________________________
[1] Corrigindo-se alguns lapsos de escrita detetados.
Verificando-se existir lapso na ordenação das alíneas das Conclusões, não se procedeu à respetiva correção para evitar eventual confusão na referência feita às mesmas, em sede de apreciação do recurso.
[2] In Código Penal – Parte geral e especial com notas e comentários, 3.ª ed., Almedina, 2018, pág.701.
[3] Cf. Teresa Beleza, “Violência Doméstica”, Revista do CEJ, n.º 9, pág. 289 e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direito do Homem, 3ª edição, 2015, UCE, pág. 593.
[4] Proferido no proc. n.º 386/20.0PBVIS.C1, in www.dgsi.pt.
[5] Convocando o recorrente em apoio da tese propugnada, argumentos expendidos pela jurisprudência no tocante ao crime de tráfico de estupefacientes, no confronto entre o tipo base do artigo 21º e o crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25º, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (cf. entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 5/11/2014, proc. n.º 99/14.2YRFLS, de 29/10/2020, proc. n.º 65/16.3GBSLV.E1.S1 e de 09/12/2021, proc. n.º 774/19.5JAPDL,S1, acessíveis in www.dgsi.pt) e enunciando o recorrente, entre as normas que considera terem sido violadas o artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (cf. alínea UU) das conclusões do recurso).
[6] Cf. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, pág. 215.
[7] Proferido no proc. n.º 1137/10.3PCSTB.E1, in www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. do STJ de 21/06/2007, proc. n.º 2042/07-5, Ac. deste TRE de 14/01/2014, proc. n.º 7/11.2GBPTM.1, Ac. da RP de 24/04/2013, proc. 491/07.9PASTS.P1 e Ac. da RC de 30/05/2012, proc. nº 192/11.3TACBR.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[9] Cf. Cons. Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 191 e Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pág. 341.
[10] Cf. Ac. do STJ de 23/11/2011, proc. nº. 127/09.3PEFUN.S1, in www.dgsi.pt.
[11] Cf. Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 343.
[12] Idem, pág. 344.
[13] In ob. cit., pág. 334
[14] Proferido no proc. n.º 270/09.9GBVVD, acessível in www.dgsi.pt