Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
669/20.0T8FAR-A.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO
PROVA
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Com a reforma do Código de Processo Civil assistiu-se a um reforço dos poderes do juiz, reconhecendo-se uma função mais interventiva deste, nomeadamente com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.
II. Mas, o princípio do inquisitório, a que se reporta o artigo 411º do Código de Processo Civil, coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da auto responsabilidade das partes, não podendo ser invocado para, sem mais, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes.
III. Cabe à parte que invoca um direito ou àquela contra quem a invocação é feita o ónus de alegar e provar, nos termos conjugadamente decorrentes do disposto nos artigos 342.º do Código Civil e 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, os factos constitutivos do seu direito ou da sua defesa, sendo que a dúvida sobre a sua realidade e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o mesmo aproveita, em face do comando ínsito no artigo 414.º do Código de Processo Civil.
IV. A reclamação contra a relação de bens no actual regime do inventário não constitui mero incidente do processo de inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa, obrigando a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.
V. Nem o direito à prova é absoluto nem o princípio do inquisitório serve de remédio para todos os males, designadamente quanto se pretenda por esta via suprir diligências de prova que não foram oportunamente requeridas, quando a parte o podia fazer e não tenha invocado dificuldade ou impossibilidade na sua obtenção.
VI. Sendo a data relevante para o apuramento do acervo dos bens que compõe a herança a data da sua abertura, que corresponde à data do falecimento do seu autor, no caso em ../../2019, e não resultando da prova produzida a “suspeita” de intervenção da cabeça-de-casal no negócio em causa, estando provado que não representou a inventariada no mesmo, nem qualquer indício, minimamente credível, de que esta fez sua a quantia que coube à inventariada na venda de imóvel efectuada em 23/01/2007, não tinha o tribunal que ordenar oficiosamente a produção de outras provas.
VII. Do mesmo modo, tendo o tribunal ordenado diligências requeridas, deferindo parcialmente a pretensão da requerente, e indeferido as pretendidas informações sobre a conta da interessada, relativamente à qual se diz ter sido doada a quantia de € 100.000, ou dela se ter apropriado, por entender que contendia com direitos protegidos por sigilo bancário, não se vendo que tenha havido reacção contra tal indeferimento de meio probatório requerido e não resultando da prova já produzida, designadamente das informações bancárias prestadas, a indiciação de factos que apontem no sentido de que foi feita a doação de tal montante à mesma interessada ou que esta fez sua tal quantia, não ocorre fundamento, para que se determine a produção de novas diligências probatórias, concretamente as pedidas em relação às contas tituladas por esta interessada, com levantamento do sigilo bancário.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Recurso de Apelação n.º 669/20.0T8FAR-A.E1

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. Nos autos de inventário n.º ...... [Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Competência Genérica ... – Juiz ...], a que se procede por óbito de AA, em que é requerente e cabeça-de-casal BB e interessados, além da requerente, CC, filhas da de cujus, e DD e EE, como donatários e netos da falecida, foi proferido o despacho (ref.ª 127109956), de 22/02/2023, que decidiu da reclamação apresentada pela interessada CC contra a relação de bens e de “questão controvertida” apresentada pela interessada e cabeça-de-casal BB, na qual, na parte que releva para o presente recurso, decidiu-se o seguinte:
«I – DA RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS APRESENTADA PELA INTERESSADA CC:
Por requerimento datado de 07.007.2020 (cfr. ref.ª 8015678), veio a interessada CC reclamar da relação de bens apresentada pela Cabeça-de-Casal nomeada nestes autos – BB – em 02.03.2020 (cfr. com o requerimento inicial), nos termos do disposto no art. 1104º, n.º 1, al. d), do CPC, nos seguintes termos:
(…)
d) Omissão de verba do activo: alega a interessada que a Requerente e Cabeça-de-Casal, ainda em vida da inventariada e fazendo uso de procurações a sai passadas e ao seu marido, vendeu a parte que pertencia àquela de um prédio misto, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...32 e na rústica sob o artigo 197 secção AE da freguesia ..., pelo preço de € 225.000,00, tendo o produto da venda sido dividido por dois, cabendo à inventariada a quantia de € 112.500,00, que o depositou numa conta bancária titulada pela Autora ou por esta co-titulada, devendo ser relacionada;
(…)
Procedeu-se a várias diligencias de prova para apuramento desta matéria, nomeadamente, procedeu-se à notificação do banco Santander Totta para vir aos autos indicar qual o montante titulado pelo seguro PPR associado à conta bancária n.º ...20, da qual a inventariada era titular, à data da sua morte; à notificação da Interessada CC para vir aos autos juntar certidão predial do prédio misto sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...32 e na rústica sob o artigo 197 Secção AE da freguesia ...; à notificação da Cabeça-de-Casal para vir aos autos juntar uma cópia da escritura pública de compra e venda do prédio misto sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...32 e na rústica sob o artigo 197 Secção AE da freguesia ..., tendo como referencia o contrato promessa de compra e venda junto a fls. 43 a 45 dos autos (cfr. despacho com a ref.ª 121411416).
Foi solicitada mais documentação bancária a várias entidades, a qual se mostra junta aos autos.
Encontra-se o Tribunal em condições de apreciar a presente reclamação e não se afigurando necessária a produção de prova, cabe decidir da pertinência do relacionamento/alteração dos bens acima indicados e objecto da presente reclamação.
Analisemos os sucessivos pontos, com base nas declarações das partes e da prova documental junta aos autos.
(…)
*
Quanto à alínea d): omissão de verba do activo:
Invoca a Interessada reclamante que a Cabeça-de-Casal, ainda em vida da inventariada e fazendo uso de procurações a sai passadas e ao seu marido, vendeu a parte que pertencia à Inventariada de um prédio misto, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...32 e na rústica sob o artigo 197 secção AE da freguesia ..., pelo preço de € 225.000,00, tendo o produto da venda sido dividido por dois, cabendo à Inventariada a quantia de € 112.500,00, que o depositou numa conta bancária titulada pela Autora ou por esta co-titulada, devendo por isso ser relacionada.
Em resposta, veio a Cabeça-de-Casal dizer que actuou como representante de sua mãe e de seu tio no negócio e que da leitura da procuração junta se percebe que se trata de uma procuração, datada de 1989, para compra e não para venda de imóveis.
Analisemos, antes de mais, os documentos trazidos aos autos pelas Interessadas.
Pela Interessada reclamante CC foi junto com a reclamação (cfr. ref.ª 8015678) um contrato promessa de compra e venda, datado de 24.10.2006, outorgado pela Inventariada e seu irmão FF e esposa AA, na qualidade de promitentes vendedores e GG, na qualidade de promitente compradora de um prédio misto sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...21 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...32 e na matriz predial rústica sob o artigo ...97 da secção AE da freguesia ... e o prédio rústico sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...21 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...07 da secção AE da freguesia ....
O preço acordado pela venda dos imóveis foi de € 225.000,00, devendo a promitente compradora entregar a quantia de € 56.250,00 a título de sinal e antecipação de pagamento do preço, o que fez, com a entrega de dois cheques no valor cada um de € 28.125,00 (cuja cópia também se mostra junta com o contrato).
Pela mesma Interessada foi junta uma procuração datada de 09.10.1989, através da qual a Inventariada AA constituiu seu bastante procurador HH, a quem deu poderes precisos para, em seu nome e do seu marido, outorgar e assinar uma escritura de justificação, pela qual ela e o marido e terceiras pessoas, se declaram donos e legítimos possuidores, na proporção de metade para cada um, de um prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...34 da secção AE, da freguesia ..., bem como para vendê-lo pelo melhor preço.
Ora, desde já podemos daqui concluir que não é verdade, nem que esta procuração comprove que a Cabeça-de-Casal, fazendo uso desta procuração, outorgou o contrato promessa em representação da Inventariada – que como já vimos, outorgou pelo seu próprio punho esse contrato promessa de compra e venda – nem é verdade que tal procuração se reporte apenas a poderes para vender, senão também para assinar uma alegada escritura de justificação notarial.
Seja como for, não há dúvidas que tal procuração nada tem que ver com o contrato de promessa de compra e venda supra referido, já que se reportam a prédios totalmente distintos.
Pela Cabeça-de-Casal foi junta aos autos (cfr. ref.ª 9385178), certidão da escritura de compra e venda dos mesmos prédios objecto do contrato promessa de compra e venda acima referido, outorgada em 23.01.2007, pela Inventariada e seu irmão, na qualidade de vendedores e GG na qualidade de procuradora de II, na qualidade de compradora, pelo preço global de € 225.000,00, que aí se dizia já recebido.
Foi tal aquisição, por compra registada pela Ap. ...4 de 02.02.2007, conforme certidão do registo predial junta com a ref.ª ...75.
Mais nenhuma prova foi produzida quanto a esta matéria.
Da documentação junta é possível extrair que efectivamente, a Inventariada era titular do direito de propriedade, na proporção de ½ dos dois prédios acima descritos e que, em vida – mais concretamente em 23.01.2007 – os vendeu a um terceiro, pelo preço global de € 225.000,00 – cabendo-lhe a quantia correspondente a metade no valor de € 112.500,00, que recebeu.
Não é correcto, como afirmou a Interessada reclamante que a Cabeça-de-Casal tenha tido alguma intervenção neste negócio, nomeadamente na qualidade de procuradora da Inventariada, como também não resultou provado, seja por que meio for, que a quantia que competia à Inventariada tenha sido depositada numa conta bancária titulada ou co titulada pela Cabeça-de-Casal.
Desconhece-se, aliás, qual o destino dado à quantia de € 112.500,00 correspondente a metade do preço que cabia à Inventariada, o que atenta a data da celebração do negócio de compra e venda (23.01.2007) e a data da sua morte (02.03.2019), ou seja, mais de doze anos depois, não é despiciendo pensar que foi utilizada pela Inventariada, em seu próprio benefício.
Facto é que da informação bancária fornecida aos autos (cfr. informação prestada pelo Banco de Portugal com a ref.ª 10084508, conjugada com as informações prestadas pelo Banco Santander Totta com a ref.ª 10106627), não é possível comprovar que tal montante estivesse depositado em alguma das contas bancárias da Inventariada.
Por outro lado, não logrou a Interessada reclamante provar que a Cabeça-de-Casal tenha feito sua tal quantia, como alega, não tendo sequer resultado da prova junta que tenha tido qualquer intervenção no negócio em causa.
Face ao exposto, por total falta de prova, indefere-se a reclamação nesta parte.
(…)
*
II – DA “QUESTÃO CONTROVERTIDA” APRESENTADA PELA INTERESSADA CABEÇA-DE-CASAL BB:
Em sede de requerimento inicial, veio a Cabeça-de-Casal alegar duas questões:
(…)
b) Segunda questão: um depósito bancário, titulado pela conta n.º ...74, do Millennium BCP:
Diz a Cabeça-de-Casal que a Inventariada AA era titular de um depósito bancário, titulado pela conta n.º ...74, do Millennium BCP, no valor de € 100.000,00 e que em 12.06.2018, reverteu para uma outra conta bancária em nome da Interessada CC, filha da Inventariada, aberta no mesmo dia, tendo liquidado a primitiva conta.
Alega que no mesmo balcão, posteriormente, em 25.06.2018, adicionou a sua filha CC como titular, tendo esta Interessada voltado a transferir o mesmo montante para a conta primitiva. Acrescenta que, nesse mesmo dia, esta Interessada procedeu a um levantamento no valor de € 9.000,00.
Em resposta, a Interessada CC não nega a existência dessa conta bancária. O que alega é que esse montante foi aplicado num depósito VIP do Millennium BCP na data de 25.04.2018 e que desconhece a situação do depósito a prazo à data do óbito.
Da documentação junta aos autos pela Cabeça-de-Casal e pela referida instituição, podemos conclui que efectivamente a Inventariada era titular de uma conta de depósito a prazo, no Millennium BCP, com o n.º ...74, no valor de € 100.000,00. Extrai-se, ainda, que tal montante foi aplicado na constituição de um depósito VIP com o n.º ...66, em 25.04.2018, data do seu vencimento. Sabe-se, também, que tal aplicação/instrumento financeiro/depósito bancário foi encerrado em 16.07.2018, ou seja, em data anterior à morte da inventariada (cfr. informação bancária junta com o requerimento inicial ref.ª 7718525, informação bancária prestada pelo Millennium BCP ref.ª 10221999 e ref.ª 9412538 e informação bancária prestada pelo Banco de Portugal ref.ª 10084508).
Mais nenhuma informação é possível retirar da prova documental junta aos autos. Sendo certo que as Interessadas CC e BB tão-pouco requereram a produção de outro qualquer tipo de prova quanto a esta matéria.
Nesta medida, não é possível concluir, tal como pretende a Cabeça-de-Casal, que o saldo bancário de € 100.000,00 que existia na aludida conta bancária a prazo n.º ...74, do Millennium BCP, passou a integrar o património da Interessada CC, fosse porque esta dele se locupletou, fosse por doação em vida da Inventariada, sua mãe.
Nesta medida, atenta a data do encerramento da dita conta bancária (em 16.07.2018), ou seja, em data anterior à morte da Inventariada (02.03.3019), não havendo qualquer indicação em contrário, é legitimo ao Tribunal concluir que esta dele dispôs em vida em seu próprio benefício.
Recorde-se que a data relevante para o apuramento do acervo de bens que compõe a herança é a data da sua abertura, que corresponde à data do falecimento do seu autor (cfr. art. 2031º e art. 2162º, ambos do Código Civil).
Desta forma, por falta de prova da sua existência à data da morte da Inventariada, conclui-se que a verba n.º 3, da relação de bens, não integrava o acervo hereditário daquela a partilhar nestes autos, pelo que deve ser excluída da mesma. (…)»

2. Inconformados com a decisão proferida vieram os co-interessados DD e EE interpor recurso, o qual delimitaram e fundamentaram nos termos e com as conclusões seguintes:
A. O presente recurso vem interposto do despacho com a ref.ª 127109956, assinado 22-02-2023, na parte em que o mesmo refere:
“Quanto à alínea d): omissão de verba do activo (…) Face ao exposto, por total falta de prova, indefere-se a reclamação nesta parte.” [quantia de € 112.500,00 correspondente a metade do preço que coube à inventariada pela venda do prédio misto sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74];
“b) Segunda questão: um depósito bancário, titulado pela conta n.º ...74, do Millennium BCP (…) Desta forma, por falta de prova da sua existência à data da morte da Inventariada, conclui-se que a verba n.º 3, da relação de bens, não integrava o acervo hereditário daquela a partilhar nestes autos, pelo que deve ser excluída da mesma.” [saldo bancário de € 100.000,00 que existia na aludida conta bancária].
B. Os recorrentes entendem que a “falta de prova” aventada pelo Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, se deveu à violação do poder-dever de indagação oficiosa, consagrado no artigo 411.º do CPC, ao qual está vinculado.
C. O Tribunal “a quo”, relativamente à quantia de € 112.500,00, solicitou às partes, tão-só, as respectivas escritura pública de compra e venda e certidão predial, fazendo “tábua rasa” do requerido no art.º 22 da contestação e resposta às questões controvertidas pela interessada CC.
D. Não ordenou a realização de mais nenhuma diligência, no que respeita àquela quantia.
E. Por outro lado, o Tribunal “a quo”, relativamente à quantia de € 100.000,00 existente na conta bancária n.º ...74, solicitou ao Banco Millennium BCP e ao Banco de Portugal o respectivo saldo, movimentos e extractos bancários.
F. E ficou satisfeito com as informações inconclusivas e tardias facultadas pelo Banco Millennium BCP, e com os resultados da consulta à base de dados de contas apresentados pelo Banco de Portugal, que não incluem informação, como é consabido, sobre saldos, movimentos ou extractos bancários.
G. Ora, o Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, ao invés de ter assumido, com ligeireza, que o destino das aludidas quantias de € 112.500,00 e de € 100.000,00 foi o proveito próprio da inventariada, deveria ter ordenado o seu cabal esclarecimento. Trata-se de um poder-dever.
H. Este poder-dever de indagação oficiosa foi sendo sucessivamente reforçado nas várias reformas do CPC.
I. Com efeito, na reforma do CPC de 2013, assistimos a um reforço dos poderes do juiz, reconhecendo-se uma função mais interventiva a este, nomeadamente com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, já consagrados na revisão do CPC de 1995-1996.
J. Nessa reforma, verificou-se uma forte compressão do princípio do dispositivo e um reforço, como dissemos, do princípio inquisitório no plano da instrução, plasmado no artigo 411.º do CPC.
K. Acresce que, no próprio processo de inventário, assistiu-se ao reforço dos poderes inquisitórios e de direcção e gestão processual do juiz, com a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, que aprovou um novo regime jurídico, não só em virtude dos princípios gerais constantes do CPC, que lhe passaram a ser directamente aplicáveis, mas também por tais poderes terem sido explicitamente acolhidos em várias das suas normas, como o artigo 1105.º, n.º 3, do CPC (possibilidade de realização oficiosa de quaisquer diligências probatórias antes da decisão de saneamento).
L. Todavia, os recorrentes reconhecem que esses poderes-deveres inquisitórios não são ilimitados quanto à determinação de provas.
M. Com efeito, as partes não estavam dispensadas de indicar e carrear provas nos autos.
Aliás, fizeram-no.
N. Porém, trata-se de apurar o destino de duas quantias muito significativas, cuja averiguação se faz pelos extractos bancários da inventariada, por isso, de difícil acesso; pelo que o Tribunal “a quo” tinha o dever de procurá-las.
O. Os recorrentes também reconhecem que, havendo necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio, o juiz tem um dever oficial de agir; não se verificando esse pressuposto, inexistirá aquele dever.
P. No caso em apreço, as diligências probatórias são necessárias para a dissipação das dúvidas sobre o destino das aludidas quantias de € 112.500,00 e de € 100.000,00 e, sobretudo, para o cumprimento da função do inventário – fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à (correcta) partilha de bens.
Q. Por fim, os recorrentes não refutam que a data relevante para o apuramento do acervo de bens que compõe a herança é a data da sua abertura, que corresponde à data do falecimento do seu autor.
R. Todavia, tal apuramento implica, também, trazer aos autos valores e/ou bens que foram doados e/ou “apropriados” por algum dos herdeiros, em vida da inventariada, se os houver ou, pelo menos, impõe-se que o Tribunal “a quo” faça essa tentativa, sob pena de não proceder a uma justa/ verdadeira composição dos quinhões de cada interessado.
S. Em suma, o Tribunal “a quo” tendo ficado, como ficou, a pressupor o destino das aludidas quantias de € 112.500,00 e de € 100.000,00, podia e devia ter determinando novas diligências probatórias adequadas ao esclarecimento de tal facto.
T. Ao não o fazer, violou um dos princípios orientadores das sucessivas reformas do CPC – o princípio do inquisitório –, previsto no artigo 411.º do CPC, actuação que consubstancia nulidade, e que aqui se invoca.
U. Face a todo o exposto, solicita-se ao venerando Tribunal “ad quem” que ordene ao Tribunal “a quo” cabal esclarecimento sobre o destino das aludidas quantias de € 112.500,00 e de € 100.000,00, através da realização das seguintes diligências probatórias:
– Relativamente à quantia de € 112.500,00: intimar as entidades bancárias onde a inventariada tinha contas tituladas ou co-tituladas à data da outorga da escritura de compra e venda do prédio misto sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74, desde essa data até à data que se considere criteriosamente razoável, para que venham juntar aos autos extractos bancários e/ou outra documentação comprovativa do(s) cheque(s) emitido(s) a favor da inventariada referente àquele valor, do(s) seu(s) depósito(s) em conta bancária e os respectivos titulares, e da sua movimentação/ destino.
– Relativamente à quantia de € 100.000,00: intimar o Banco Millennium BCP para que venha juntar aos autos extractos bancários e/ou outra documentação comprovativa do saldo/ movimentação daquele valor, desde a data da sua aplicação em depósito VIP até à data que se considere criteriosamente razoável,
Termos em que, dando V. Exas, venerandos/as Desembargadores/as, provimento ao presente recurso e substituindo o despacho recorrido por outro que determine a realização das diligências probatórias requeridas no art.º 47.º das alegações, se fará a costumada justiça.

3. Também pela interessada e cabeça-de-casal, BB, foi interposto recurso do mesmo despacho, delimitado à questão do depósito bancário titulado pela conta n.º ...74, do Millennium BCP, no valor de € 100.000,00, apreciada na decisão recorrida, com os fundamentos que sintetizou nas seguintes conclusões do recurso:
A. O presente Recurso tem por objecto apenas a decisão do Tribunal a quo a ponto II. b) “Segunda questão: um depósito bancário, titulado pela conta n.º ...74, do Millennium BCP”;
B. A decisão recorrida dá como provado que “[…] efectivamente a Inventariada era titular de uma conta depósito a prazo, no Millennium BCP, com o n.º ...74, no valor de € 100.000,00”;
C. E conclui que “Mais nenhuma informação é possível retirar da prova documental junta aos autos. Sendo certo que as Interessadas CC e BB tão-pouco requereram a produção de outro qualquer tipo de prova quanto a esta matéria”;
D. Acrescentando que “Nessa medida, atenta a data de encerramento da dita conta bancária (em 16.07.2018), ou seja, em data anterior à morte da Inventariada (02.03.2019), não havendo qualquer indicação em contrário, é legítimo ao Tribunal concluir que esta dele dispões em vida em seu próprio beneficio”;
E. Ora, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, tal não corresponde à verdade;
F. Tal, por duas ordens de razões:
G. A primeira, porque a Requerente, Cabeça-de-Casal, desde o início dos Autos que tem pugnado por esclarecer a questão controvertida dos valores monetários em questão, não só juntando prova documental, como solicitando a produção de prova que não foi concretizada ou que foi insuficientemente respondida pelas entidades oficiadas pelo Tribunal a quo;
H. A segunda, porque a sequência cronológica dos factos permite aferir que a Inventariada não dispôs dos montantes em vida em seu próprio benefício;
I. De facto, em sede de Requerimento inicial, a artigos 23 a 25, a Cabeça-de-Casal desde logo fez referência ao referido montante de €100.000,00, corroborando-o com a documentação junta com a Relação de Bens;
J. Após resposta, pela Interessada, às questões controvertidas levantadas em sede de Requerimento Inicial, a Cabeça-de-Casal, em Requerimento com a Ref.ª 39741678, a pontos 14. a 16., insiste no esclarecimento sobre o destino concedido ao montante em causa, pedindo afinal que "Por fim, REQUER que seja a Interessada instada a fornecer os dados necessários para que se possa conhecer a situação da aplicação financeira realizada”;
K. Tendo o Tribunal a quo intimado diversas entidades bancárias e tendo todas fornecido respostas insatisfatórias, a Requerente insiste em Requerimento com a Ref.ª 41748629, a ponto 32., que sejam as entidades bancárias intimadas a fornecer todas as informações sobre todas as contas e transferências entre contas tituladas pela Inventariada e pela Interessada, bem como as aplicações financeiras, reiterando o pedido a final, em “C”;
L. Tendo o Banco de Portugal, nessa sequência e após oficiado pelo Tribunal, juntado aos Autos informação sobre contas e produtos financeiros da Inventariada, mas sem discriminação de quaisquer valores e sem fazer o mesmo relativamente à Interessada;
M. Pelo que, em bom rigor, a solicitação de produção de prova, por parte da requerente, nunca foi atendida na íntegra, mas existe e encontra-se nos Autos, ao contrário do que afirma a decisão do Tribunal a quo;
N. Prova essa que, conforme melhor se exporá seguidamente, é de suma pertinência para que possa ser avaliada condignamente a necessidade de redução de liberalidades, e em que medida;
O. Conforme alegado anteriormente, a sequência dos factos, só por si, corrobora também que o montante em causa, de 100.000,00€, foi doado e astutamente dissipado, por forma, não só a ocultar a própria doação, como a contornar as regras da quota disponível e da natureza da conta solidária;
P. Assim, para melhor esclarecer os Autos e o Venerando Tribunal, foi a seguinte a sequência cronológica dos acontecimentos, em consonância com o que se disse em Requerimento Inicial e articulados posteriores:
a. Em 23 de Janeiro de 2018, a inventariada D. AA, na qualidade de única titular de conta bancária no ..., abre uma conta no Millennium BCP, balcão do ..., cujo gestor, à data, era o Senhor JJ, e transfere da conta primitiva para esta mais recente, a quantia de €100.000,00;
b. Em 12 de Junho de 2018, a inventariada desloca-se ao balcão do Millennium BCP de ... e procede ao levantamento da totalidade do montante de €100.000,00;
c. Nesse mesmo dia, é aberta uma conta no mesmo balcão, com a identificação ...95, cuja titular é a Interessada CC, para o qual é transferido o montante de €100.000,00;
d. Note-se que, nesta data, e conforme exposto nos Autos, a única titular da conta bancária para a qual foi transferido o montante era a Interessada CC;
e. Tendo sido nessa data, e com essa específica transferência, que se concretizou e efectivou a Doação da Inventariada, a favor da Interessada;
f. Também em 12 de Junho de 2018, a cabeça-de-casal tem conhecimento da operação bancária, e desloca-se a ..., onde confirma a realização da mesma, pessoalmente. No mesmo dia, a Inventariada e a Cabeça-de-casal cortam relações, não voltando a se encontrar ou falar até ao óbito daquela primeira, no início de Abril de 2019;
g. Contudo, em 25 de Junho de 2018, estando a Interessada CC já na posse da totalidade do montante em causa, transforma a conta identificada em "c.", em conta solidária;
h. Em 5 de Julho de 2018, a Inventariada efectua um levantamento de cerca de €9.000,00 (nove mil euros);
i. Poucos dias depois, em 13 de Julho, a referida conta, entretanto solidária, do Millennium BCP, é encerrada, e aberta, uma vez mais, uma outra conta, desta feita no Santander Totta, também solidária, onde é depositada a quantia de €91.262,00 (noventa e dois mil, duzentos e sessenta e dois euros);
j. No dia 18 de Julho é feita uma subscrição de seguro financeiro equilibrado, no montante de €25.000,00;
k. Posteriormente, dia 27 de Julho de 2018, é feita uma aplicação no valor de €25.000,00, num plano PPR a 10 anos e 3 meses, PPR esse com características de risco;
l. Recorde-se que a Inventariada, à data, somava 85 anos de idade e já convivia com diversas maleitas;
m. Na referida aplicação financeira, é nomeada como única beneficiária, em caso de morte, a Interessada CC. Na prática, nada mais se tratou que uma nova doação, uma forma astuta de contornar não só os limites da quota disponível, como das dificuldades e presunções inerentes à solidariedade das contas bancárias, tudo em exclusivo benefício da Interessada;
n. Entre 27 de Julho e 17 de Dezembro de 2018, a saúde da Inventariada vai-se deteriorando ainda mais;
o. Em 18 de Dezembro, a Cabeça-de-Casal toma conhecimento de que a Inventariada se encontrava nos Serviços de Observação do Hospital ..., com indícios de pneumonia;
p. Em 16 de Janeiro de 2019, a Inventaria regressa à sua casa em ..., em prognóstico reservado;
i. No mesmo dia, a Interessada adquire mais um seguro financeiro através da conta Santander. Ou por outra, só pode ter sido a Interessada a fazer o referido Seguro Financeiro, pois a Inventariada, não só tinha retornado nesse dia a casa, como se encontrava acamada;
w. Dia 25 de Janeiro, a Cabeça-de-Casal toma conhecimento, através da Interessada, de que a Inventariada foi institucionalizada em Lar sito em ...;
x. Dia 29 de Janeiro, a Interessada aproveita a oportunidade e faz mais um seguro financeiro;
y. A saúde da Inventariada vai-se degradando gradualmente, vindo a falecer em 2 de Março de 2019;
z. Nesse mesmo dia, 2 de marco, a Interessada faz a 4 últimas aplicações em seguros financeiros, delapidando assim a quase totalidade do remanescente dos valores depositados na conta bancária do Santander aqui referida;
Q. Ora, por esta descrição dos factos, não só se reforça a necessidade de produção de prova solicitada pela Requerente ao longo dos Autos, ainda hoje não condignamente correspondida, como se demonstra a forma como o montante de 100.000,00 foi dissipado, por iniciativa da própria Interessada e em seu beneficio exclusivo, assim desrespeitando a quota disponível que estaria na disposição da Inventariada, e desvirtuando a legítima de cada herdeiro;
R. A doação, nos termos do Código Civil, artigos 940.º e ss. do C.C., firmou-se quando a Inventariada transferiu o montante em causa para uma conta bancária, à data, exclusivamente titulada pela Interessada;
S. O facto de a Interessada, em momento posterior, ter convertido essa conta bancária em conta solidária, não impacta a doação, posto que o montante depositado já era, para todos os efeitos, propriedade da Interessada, por doação;
T. Mais, se prova que a Inventariada não pode ter feito todas as aplicações financeiras em causa, quer seja por algumas terem sido feitas quando a mesma se encontrava acamada, como pelo facto de outras terem sido feitas no dia em que a mesma faleceu;
U. De resto, não sendo coincidência que uma das aplicações financeiras tenha como exclusiva beneficiária, em caso de morte da Inventariada, a própria Interessada;
V. Não se podendo, portanto, em boa consciência, acompanhar a presunção, feita pelo Tribunal a quo, que a Inventariada dispôs do montante em vida e em seu benefício.
Nestes termos, e demais de Facto e de Direito que V. Exas„ Venerandos Desembargadores, certa e Doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser considerado procedente, por provado, e em consequência, ser revertida a Decisão do Tribunal a quo na parte respeitante à eliminação da verba de €100.000,00 da Relação de bens, sendo ordenada a produção de prova solicitada em articulados próprios e ordenando-se o levantamento de sigilo bancário relativamente à Interessada em causa, se necessário for.
Assim se fazendo JUSTIÇA!

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Os recursos foram admitidos, como de apelação, com subida conjunta em separado dos autos principais e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Quanto ao 1º recurso (o dos interessados DD e EE) se, na apreciação das questões em causa, ocorreu a violação do princípio do inquisitório, devendo ter sido ordenas as diligências que os recorrentes referem; e
(ii) No que se refere ao 2º recurso (o da interessada, Cabeça-de-Casal, BB), se deviam ter sido ordenadas as diligências probatórias solicitadas nos articulados.
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III – Fundamentação Fáctico-Jurídica
1. O recurso interposto pelos interessados DD e EE, abrange as decisões relativa ao indeferimento da reclamação (i) quando à falta de relacionação da quantia de € 112.500,00, correspondente à que coube à inventariada pela venda do prédio misto sito em ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...74, e (ii) quanto ao depósito bancário titulado pela conta n.º ...74 do Millennium BCP.
Quanto à primeira decisão, entendem os recorrentes que a falta de prova aventada pelo Tribunal a quo, no despacho recorrido, acima transcrito, se deveu à violação do poder-dever de indagação oficiosa, consagrado no artigo 411º do Código de Processo Civil, não tendo ordenado a realização de mais nenhuma diligência, sendo que, no segundo caso, ficou satisfeito com as informações facultadas pelo Millennium BCP e com os resultados apresentados pelo Banco de Portugal, violando também aqueles deveres de indagação oficiosa.
Vejamos:

2. Concorda-se com os recorrentes no sentido de que com a reforma do Código de Processo Civil se assistiu a um reforço dos poderes do juiz, reconhecendo-se uma função mais interventiva deste, nomeadamente com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, mas o princípio do inquisitório, a que se reporta o artigo 411º do Código de Processo Civil, coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da auto responsabilidade das partes, não podendo ser invocado para, sem mais, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes.
A instrução, como decorre do disposto no artigo 410º do Código de Processo Civil, “… tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.”.
Por seu turno, preceitua o artigo 341.º Código Civil , que rege sobre a função das provas, que estas visam a demonstração da realidade dos factos.
Daí que, à parte que invocar um direito ou àquela contra quem a invocação é feita, cabe alegar e provar, nos termos conjugadamente decorrentes do disposto nos artigos 342.º do Código Civil e 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, os factos constitutivos do seu direito ou da sua defesa, relativamente aos quais, a dúvida sobre a sua realidade e sobre a repartição do ónus da prova, se resolve contra a parte a quem o mesmo aproveita, em face do comando ínsito no artigo 414.º do Código de Processo Civil.
No que se reporta ao processo de inventário, como se concluiu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30/03/2023 (proc. n.º 215/21.8T8VVD-A.G1):
«I- Com a entrada em vigor da Lei no 117/2019 de 13 de Setembro, passando o processo de inventário a situar-se sistematicamente no âmbito do CPC, a este processo especial serão plenamente aplicáveis os princípios gerais do Código, bem como o regime do processo comum de declaração, com as adaptações necessárias.
II- Com este novo modelo procedimental, o processo de inventário é uma verdadeira acção, e a reclamação contra a relação de bens já não constitui um incidente do processo de inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa, mas obriga a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.»
Efectivamente, como se prescreve no nº 1 do artigo 1104º do Código de Processo Civil (Oposição, impugnação e reclamação) – aditado pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, “[o]s interessados directos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação:
a) Deduzir oposição ao inventário;
b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;
c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;
d) Apresentar reclamação à relação de bens;
e) Impugnar os créditos e as dívidas da herança.”
Como decorre deste preceito, uma vez citados, os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar numa única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos, em face dos factos alegados no requerimento inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, incluindo a pronúncia sobre as suas declarações e sobre os documentos apresentados.
Porém, impendendo sobre as partes este ónus de alegação e prova, cujo incumprimento acarreta inexoráveis consequências para a parte onerada, tal não significa que o juiz não tenha actualmente não só poderes como deveres inquisitórios, no que tange aos factos necessitados de prova, a que alude o citado artigo 410.º do Código de Processo Civil.
Efectivamente, atento o princípio do inquisitório ínsito no artigo 411.º do Código de Processo Civil, na instrução da causa “[i]incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Em comentário a este preceito Lebre de Freitas e BB, observam que “[n]este domínio o juiz tem poderes mais amplos do que no domínio da investigação de factos, na medida em que pode determinar quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes (…).
Os poderes-deveres do juiz estabelecidos pelo artigo em anotação não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, como mostra o segmento “mesmo oficiosamente”. Ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes a medida em que necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.”. (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina 2017, págs. 239 e 240)
Assim, não há dúvidas que o tribunal, no uso dos poderes inquisitórios que o artigo 411.º do Código de Processo Civil lhe confere, pode determinar as diligências que repute necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio relativamente a factos oportunamente alegados, e naturalmente, determinar a produção de prova que repute pertinente.
Importa lembrar que o princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, comporta o direito das partes à produção de prova sobre os factos carecidos de demonstração, que encontra concretização, entre outras, na norma do n.º 2 do artigo 2º do Código de Processo Civil, de acordo com a qual a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
Porém, nem o direito à prova é absoluto nem o princípio do inquisitório serve de remédio para todos os males, designadamente quanto se pretende por esta via suprir diligências de prova que não foram oportunamente requeridas, quando a parte o podia fazer e não tenha invocado dificuldade ou impossibilidade na sua obtenção.

3. No caso em apreço, no que se reporta à questão da (i) falta de relacionação da quantia de € 112.500,00, correspondente à parte que coube à inventariada pela venda do prédio misto sito em ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...74, lembremos que o que se pretende é que se relacione, como bem integrante da herança tal quantia que a cabeça-de-casal depositou numa conta bancária titulada pela Autora ou por esta co-titulada, dizendo-se que aquela venda foi feita pela cabeça-de-casal ainda em vida da inventariada e fazendo uso de procurações àquela passadas e ao seu marido.
Ora, em face da prova produzida, concluiu-se na decisão recorrida que não era verdade, nem a procuração junta comprova, que a Cabeça-de-Casal, fazendo uso desta procuração, outorgou o contrato promessa em representação da Inventariada.
Acresce que, pela Cabeça-de-Casal foi junta aos autos (cfr. ref.ª 9385178) certidão da escritura de compra e venda dos mesmos prédios objecto do contrato promessa de compra e venda referido nos autos, outorgada em 23.01.2007, pela Inventariada e seu irmão, na qualidade de vendedores e GG na qualidade de procuradora de II, na qualidade de compradora, pelo preço global de € 225.000,00, que aí se dizia já recebido, sendo que, da documentação junta se extrai a conclusão que cabia à inventariada a quantia correspondente a metade no valor de € 112.500,00, que recebeu.
E concluiu-se que não é correcta a firmação de que a Cabeça-de-Casal tenha tido alguma intervenção neste negócio, nomeadamente na qualidade de procuradora da Inventariada, como também não resultou provado, seja por que meio for, que a quantia que competia à Inventariada tenha sido depositada numa conta bancária titulada ou co-titulada pela Cabeça-de-Casal, referindo-se, neste aspecto, à informação bancária fornecida aos autos (cfr. informação prestada pelo Banco de Portugal com a ref.ª 10084508, conjugada com as informações prestadas pelo Banco Santander Totta com a ref.ª 10106627).
Assim, não tendo a Cabeça-de-Casal tido intervenção no negócio em causa, como havia sido invocado, nem resultando dos elementos probatórios recolhidos qualquer indicio de onde resulte ter a mesma feito sua a quantia que coube à inventaria proveniente da venda do dito imóvel, não vemos que como sustentar a necessidade de oficiosamente se determinar a realização de quaisquer outras diligências probatórias, designadamente a intimação das entidades bancárias onde a inventariada tinha contas tituladas ou co-tituladas para juntarem extractos ou documentação relativa ao depósito do valor em causa desde a data da outorga da escritura “até à data que se considere criteriosamente razoável”.
Salvo o devido respeito, não se vê qual o critério que justifique tal pretensão, bastando lembrar que a venda em causa ocorreu em 23/01/2007 e que a data relevante para o apuramento do acervo de bens que compõe a herança é a data da sua abertura, que corresponde à data do falecimento do seu autor (cfr. art. 2031º e art. 2162º, ambos do Código Civil), no caso em ../../2019, e não se provou a “suspeita” de intervenção da cabeça-de-casal no negócio, nem qualquer indício, minimamente credível, de que esta fez sua a quantia em causa.
E é irrelevante que se tenha presumido que a referida quantia tenha sido utilizada pela inventariada em seu benefício, pois o que está em causa é saber se se justifica a realização oficiosa de novas diligências de prova, o que, no caso não ocorre.

4. E o mesmo sucede em relação (ii) ao depósito bancário titulado pela conta n.º ...74 do Millennium BCP, onde valem idênticas considerações em relação ao princípio do dispositivo.
Quanto a esta concreta situação, invocou a Cabeça-de-Casal, BB, que também recorre desta decisão, que a Inventariada AA era titular de um depósito bancário, titulado pela conta n.º ...74, do Millennium BCP, no valor de € 100.000,00 e que, em 12.06.2018, reverteu para uma outra conta bancária em nome da Interessada CC, filha da Inventariada, aberta no mesmo dia, tendo liquidado a primitiva conta.
Alega que no mesmo balcão, posteriormente, em 25.06.2018, adicionou a sua filha CC como titular, tendo esta Interessada voltado a transferir o mesmo montante para a conta primitiva. Acrescenta que, nesse mesmo dia, esta Interessada procedeu a um levantamento no valor de € 9.000,00.
Da documentação junta aos pela Cabeça-de-Casal e pela referida instituição bancária, como se diz na sentença, e não é impugnado, “podemos conclui que efectivamente a Inventariada era titular de uma conta de depósito a prazo, no Millennium BCP, com o n.º ...74, no valor de € 100.000,00. Extrai-se, ainda, que tal montante foi aplicado na constituição de um depósito VIP com o n.º ...66, em 25.04.2018, data do seu vencimento. Sabe-se, também, que tal aplicação/instrumento financeiro/depósito bancário foi encerrado em 16.07.2018, ou seja, em data anterior à morte da inventariada (cfr. informação bancária junta com o requerimento inicial ref.ª 7718525, informação bancária prestada pelo Millennium BCP ref.ª 10221999 e ref.ª 9412538 e informação bancária prestada pelo Banco de Portugal ref.ª 10084508).”.
Ou seja, à data do óbito da inventariada (03/03/2019), o dito depósito VIP já não existia, pois foi encerrado em 16/07/2018, e não vemos que da prova produzida exista qualquer indício probatório de onde resulte objectivamente, e não por meras concepções subjectivas, a suspeita, minimamente sustentável, que tal quantia foi integrada no património da interessada CC, seja por doação ou por a ter feito sua, como melhor se explicitará no ponto 5 desta decisão, a respeito do recurso da cabeça-de-casal, de modo a que o tribunal devesse proceder oficiosamente a novas diligências probatórias, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 411º do Código de Processo Civil, designadamente a mencionada pelos recorrentes (intimar o BPC para juntar aos autos os extractos bancários e/ou outra documentação comprovativa do saldo/movimentação daquele valor, “desde a data da sua aplicação em depósito VIP até à data que se considere criteriosamente razoável”).

5. Como se referiu, também a cabeça-de-casal, BB, recorre desta última decisão, invocando que, em bom rigor, a solicitação de produção de prova, por parte da requerente, nunca foi atendida na íntegra, relatando sob a conclusão P) a sequência cronológica dos acontecimentos, que alega a respeito do montante dos € 100.000,00 em falta.
Vejamos:
No requerimento inicial do inventário, sob a epígrafe “Da questão controvertida” a requerente do inventário BB, a respeito da “redução de liberalidades”, aludiu no ponto 23 “a um depósito bancário, titulado pela conta n.º ...74, do Millennium BCP, em nome da autora da herança, no valor de €100.000,00 (cem mil euros) que, em 12 de Junho de 2018, reverteu para uma outra conta bancária em nome da filha CC, aberta no mesmo dia e no mesmo balcão em que liquidou a primitiva conta”, tendo relacionado este valor de crédito sob a verba n.º 3, sob a designação “Conta Bancária número ...74 do Millenium BCP, titulada pela autora da herança e por CC”.
A interessada respondeu invocando que: «14º Quanto à verba nº 3, verifica-se que o extracto bancário faz referência a um saldo à data de 2018-01-31, mais de um ano antes do óbito da de cujus; 15º Sendo que o montante de 100.000,00 euros foram os mesmos aplicados em depósito VIP do Millennium BCP em data de 2018/04/25, sendo que se desconhece a situação do depósito a prazo à data do óbito, sendo esse o momento relevante para atribuição do crédito, que vai, assim, impugnado para todos os efeitos legais.»
Na sequência de notificação pelo Tribunal, de 28/09/2021, veio o Banco Millennium BCP informar que, “com os elementos enviados, não consta dos nossos ficheiros, que a Sra. AA (NIF ...71) seja ou tenha sido, à data do óbito, titular oi co-titular de quaisquer contas”.
Em 24/03/2022, pelo requerimento ref.ª 9922220, veio a Cabeça-de-Casal requerer, no que para o caso releva, a intimação do Banco de Portugal e do Millennium BCP para “fornecer TODAS as informações relativamente a contas bancárias ou outros produtos financeiros e bancários tituladas tanto pela Inventariada como pela Interessada CC, co-tituladas por ambas ou possibilitadas de intervenção da Interessada, de qualquer natureza (autorização de movimentação, por exemplo), ou quaisquer produtos de que a Interessada seja ou já tenha sido Beneficiária, bem como os extractos dos movimentos entre as referidas contas e produtos financeiros ou bancários.”.
Sobre tal pretensão recaiu o seguinte despacho de 14/04/2022 (ref.ª 123903136):
«Por ser relevante para o apuramento dos bens que compõem o acervo hereditário a partilhar nestes autos, defere-se parcialmente ainda o requerido pela Cabeça-de-Casal e determina-se a notificação do Banco de Portugal e o Banco Millennium BCP, para no prazo de 20 dias, virem informar os autos sobre todas as contas bancárias ou outros produtos financeiros e bancários titulados pela Inventariada, seja como única titular ou co-titular, seja ainda como autorizada a movimentar, bem como sobre quaisquer produtos de que a Inventariada seja ou já tenha sido beneficiária, juntando os extractos dos movimentos entre as referidas contas e produtos financeiros ou bancários, indeferindo-se o restante requerido por contender com direitos de terceiros cobertos pelo sigilo bancário.»
Nesta sequência juntou o Banco de Portugal o Mapa relativo às contas e instrumentos financeiros titulados em nome da inventariada, com indicação das respectivas datas de abertura e encerramento (ofício junto com a ref.ª 10084508, em 22/06/2022), e o Millennium BCP respondeu, em 22/06/2022, informando que “AA deixou de ser nossa cliente em 16/07/2018”.
Como resulta do despacho de 14/04/2022, o tribunal recorrido apenas deferiu parcialmente a pretensão da requerente, que indeferiu no que se reporta às pretendidas informações sobre a conta da interessada CC, por entender que contendia com direitos protegidos por sigilo bancário, não se vendo que tenha havido reacção contra tal indeferimento de meio probatório requerido.
Acresce que, na sequência das informações prestadas, não foi requerida qualquer outra diligência probatória.
Assim, o tribunal pronunciou-se sobre as provas requeridas, deferindo as que teve por legalmente admissíveis e relevantes para a decisão, indeferindo as demais.
Ora, como se diz na decisão recorrida, da documentação junta aos pela Cabeça-de-Casal e pela referida instituição bancária, “podemos conclui que efectivamente a Inventariada era titular de uma conta de depósito a prazo, no Millennium BCP, com o n.º ...74, no valor de € 100.000,00. Extrai-se, ainda, que tal montante foi aplicado na constituição de um depósito VIP com o n.º ...66, em 25.04.2018, data do seu vencimento. Sabe-se, também, que tal aplicação/instrumento financeiro/depósito bancário foi encerrado em 16.07.2018, ou seja, em data anterior à morte da inventariada (cfr. informação bancária junta com o requerimento inicial ref.ª 7718525, informação bancária prestada pelo Millennium BCP ref.ª 10221999 e ref.ª 9412538 e informação bancária prestada pelo Banco de Portugal ref.ª 10084508).”.
Ou seja, como se disse, à data do óbito da inventariada (03/03/2019), o dito depósito VIP já não existia, pois foi encerrado em 16/07/2018.
Neste contexto, ainda que se possa discutir se o referido montante foi, ou não, gasto pela inventariada, certo é que não existem elementos probatórios que apontem no sentido de que foi feita a doação de tal montante à interessada CC, ou que esta fez sua tal quantia, de molde a deferir-se o pedido de diligências, que a recorrente menciona, quanto às contas desta interessada, com levantamento do sigilo bancário.
Assim, improcede também este recurso.

6. Em face do exposto, improcedem ambas as apelações, com a consequente confirmação das decisões recorridas.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes as apelações e, em consequência, manter as decisões recorridas.
Custas de cada um dos recursos a cargo dos respectivos apelantes.
*
Évora, 23 de Maio de 2024
Francisco Xavier
José António Penetra Lúcio
Maria João Sousa e Faro
(documento com assinatura electrónica)