Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
112/24.5T8OLH-D.E1
Relator: ANABELA RAIMUNDO FIALHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
PREJUÍZO PARA OS CREDORES
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – O Tribunal da Relação não pode apreciar a impugnação da matéria de facto se o apelante não observar os ónus que lhe assistem, previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC.
II – A comunicação da resolução em benefício da massa insolvente tem que ser dirigida às partes intervenientes no ato a resolver, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do CIRE, inexistindo a obrigatoriedade de a mesma ser igualmente dirigida aos respetivos mandatários.
III – Aquele que, sendo credor em processo especial de revitalização de uma empresa recebe, em dação em cumprimento não prevista no respetivo plano de recuperação e estando o mesmo em incumprimento, um imóvel de valor patrimonial superior ao do seu crédito, age de má fé, na aceção constante do artigo 120.º, n.º 5, do CIRE.
IV – A ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente é uma ação de simples apreciação, não cabendo no seu âmbito a decisão quanto a pedido de ressarcimento à parte interveniente no ato resolvido de despesas suportadas com a efetivação de tal ato, designadamente, notariais.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 112/24.5T8OLH-D.E1

Tribunal a quo
Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão -Juiz1
Recorrente: …, Lda. (Autora)
Recorrida: Massa Insolvente de …, S.A. (Ré)

***
Sumário: (…)
***

Acordam as Juízas na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
(…), Lda. instaurou a presente ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, pedindo que seja julgada improcedente a resolução extrajudicial da dação em cumprimento celebrada em 31 de julho de 2023, mediante a qual adquiriu o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial sob o artigo (…), denominado Lote …, com o valor patrimonial de € 280.469,11, pertencente à Insolvente (…), S.A.. Alegou que inexiste fundamento para a resolução, pedindo que se mantenha o negócio nos exatos termos formulados ou, caso assim não se entenda, que se declare a nulidade do ato de resolução, por falta de notificação da respetiva declaração à sua mandatária; em alternativa e caso opere a resolução, pediu que seja ressarcida por parte da insolvente e da massa insolvente, quer do seu crédito, quer do valor gasto em despesas tidas com a escritura de dação em cumprimento.
A massa insolvente de (…), S.A. deduziu oposição, pugnando pela validade da resolução operada pelo sr. Administrador da Insolvência.
Após realização de tentativa de conciliação infrutífera, foi proferido saneador-sentença, no qual o tribunal a quo decidiu o seguinte:
a) Julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade da resolução com fundamento na falta de requisitos de forma, na falta de fundamentação e na falta de comunicação ao mandatário forense da Autora;

b) Julgar improcedente a excepção de caducidade invocada pela Autora;

c) Julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência, declarar válida e eficaz a resolução operada por comunicação de 05.08.2024, descrita nos factos provados (factos provados n.ºs 12 e 23);

d) Julgar verificado o erro na forma do processo relativamente ao pedido subsidiário da Autora de satisfação do seu crédito e do ressarcimento das despesas com a dação;

e) Condenar a Autora nas custas”.

Inconformada, a Autora interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das seguintes conclusões, que se transcrevem:
I. A Recorrente impugna a sentença do tribunal a quo, que julgou improcedente a ação
de impugnação da resolução extrajudicial da dação em cumprimento celebrada em 31-07-2023.
II. A decisão recorrida padece de nulidade processual, pois a declaração resolutória não
foi notificada à mandatária da Recorrente, coartando o contraditório e impedindo o início válido do prazo do artigo 125.º do CIRE.
III. Tal omissão integra nulidade (artigo 195.º do CPC) que deve ser declarada, invalidando a eficácia da resolução.
IV. Subsidiariamente, a sentença violou o artigo 607.º, n.º 4, do CPC, ao dar como provado o facto 9 sem fundamentação adequada, não existindo suporte documental e factual para a alegada ausência de pagamentos a outros credores.
V. Não se provaram os pressupostos de má-fé do artigo 120.º, n.º 5, do CIRE: a) inexistem factos que demonstrem conhecimento pela Recorrente de insolvência atual ou iminente; b) o Administrador de Insolvência não alegou, nem provou tal ciência; c) a escritura foi outorgada onze meses antes da declaração de insolvência, sem qualquer sinal externo de crise.
VI. A presunção do artigo 120.º, n.º 4, do CIRE não opera, pois, a dação ocorreu fora do período suspeito.
VII. A ausência de registo predial não constitui indício de dolo, nem integra qualquer presunção legal de má-fé.
VIII. A sentença não demonstrou a prejudicialidade do ato, não se apurou o valor de mercado do imóvel, nem se provou diminuição patrimonial da massa insolvente.
IX. O PER homologado pelo douto Tribunal da Relação admite expressamente a dação em cumprimento, como forma de liquidação dos saldos devidos a clientes/credores.
X. Diversos credores receberam lotes em dação no mesmo contexto, o que comprova prática uniforme aceite pela devedora.
XI. O princípio da igualdade impõe idêntico tratamento à Recorrente, negar-lhe o benefício viola a ratio decidendi do douto Acórdão, que homologou o plano.
XII. Após trânsito em julgado do PER, a devedora readquiriu plenos poderes de gestão, a dação constitui ato legítimo de cumprimento do plano, não sujeito a autorização prévia e o facto de terceiro realizar a escritura, não demonstra qualquer tipo de má-fé, pelo contrário, o cumprimento do PER.
XIII. A interpretação restritiva do Tribunal a quo frustra a confiança negocial que sustenta o regime do PER.
XIV. O Administrador de insolvência não demonstrou que a dação fosse celebrada para
defraudar credores, pelo contrário, extinguiu passivo sem saída de liquidez.
XV. A decisão viola, assim, os artigos 120.º, 122.º e 126.º do CIRE, bem como o princípio da boa-fé (artigo 762.º, n.º 2, do CC).
XVI. Caso assim não se entenda, e caso se mantenha a resolução, a sentença incorre em
erro de direito ao excluir o pedido subsidiário de restituição pecuniária, por considerar existir erro na forma de processo.
XVII. O artigo 126.º, n.º 5, do CIRE impõe a restituição integral (natural ou pecuniária) dos efeitos do ato resolvido, sem necessidade de ação autónoma.
XVIII. A omissão de pronúncia sobre o reembolso de emolumentos notariais e demais despesas configura nulidade da sentença (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC).
XIX. A jurisprudência dominante reconhece que tais quantias constituem dívidas da massa exigíveis à luz do artigo 172.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
XX. A manutenção da decisão recorrida cria insegurança jurídica, desincentiva a adesão
dos credores aos PER e contraria a função económico-social do regime de revitalização.
XXI. Deve, pois, ser revogada a douta sentença e julgada procedente a ação, declarando-se ineficaz a resolução extrajudicial e mantendo-se válida a dação em cumprimento.
XXII. Subsidiariamente, caso se entenda manter a resolução, deve a Massa Insolvente ser condenada a restituir à Recorrente o montante a título de despesas notariais, registos
e restantes despesas relacionadas com a dação, acrescido de juros de mora legais desde a citação.
XXIII. Em qualquer caso, impõe-se a condenação da Massa nas custas, nos termos do artigo 527.º do CPC.
XXIV. Nestes termos e nos mais de direito, requer-se a V. Exas. que acolham o presente
recurso, revogando a decisão impugnada pelos fundamentos expostos”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

1.1. Questões a decidir
Considerando as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a decidir:
1.1.1. Deve proceder a impugnação da matéria de facto, no que diz respeito ao facto 9 dos factos provados?
1.1.2. A falta de notificação da declaração resolutória por parte do senhor Administrador de Insolvência à senhora Mandatária da Recorrente constitui uma nulidade que afeta a eficácia da resolução?
1.1.3. Mostram-se verificados, no caso, os fundamentos da resolução previstos no artigo 120.º do CIRE?
1.1.4. A sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia quanto ao pedido da Recorrente de reembolso de emolumentos notariais e demais despesas efetuadas com a escritura de dação em cumprimento?

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Factos considerados provados na decisão recorrida:
1- (…), Lda. tem como como objeto social e atividade principal a “Importação, exportação e comercialização de materiais de suporte à construção, tais como galvanizados, torneiras, PVC (tubos), polietileno, fibrocimento, plásticos, ferro para betão armado, aços, cimento, tijolos e equipamento para piscinas e produtos para energias renováveis, fabrico, comércio, importação, exportação de equipamentos para energias renováveis, de biomassa e biocombustíveis”.
2- Durante o ano de 2018, a Impugnante forneceu diversos bens e materiais à Insolvente, com o intuito de construir as diversas moradias sitas em (…).
3- No âmbito do serviço prestado, foram emitidas diversas faturas.
4- A 27.01.2021, a sociedade (…), S.A. apresentou-se a processo especial de revitalização, que pendeu sob o n.º 83/21.0T8OLH neste Juízo de Comércio de Olhão, no qual interveio como Credora a ora Autora (…), Lda..
5- Nesse PER, foi reconhecido um crédito a (…), Lda. no valor de € 231.105,95.
6- Por decisão do Tribunal da Relação de Évora de 13.01.2022, foi homologado o plano de recuperação da sociedade.
7- O plano de recuperação previa as seguintes dações em cumprimento:
i. Lote 17 para o credor (…) e (…);
ii. Lote 19 para o credor (…) e (…);
iii. Lote 28 para o credor (…) e (…);
iv. Lote 38 para o credor (…);
v. Lote 49 para o credor (…);
vi. Lote 58 para o credor (…) e (…); e
vii. Lote 22 para o credor (…) e (…).
8- Relativamente a fornecedores e outros credores, o plano de recuperação previa o seguinte:
“4.2.3.2 Créditos Comuns – valor total: € 903.716,60.
Fornecedores gerais e outros credores
Os fornecedores e outros credores de natureza comercial, receberão o pagamento idêntico aos restantes credores, em 120 prestações mensais com início 6 meses após a aprovação do PER e com a primeira prestação em junho de 2022;
• O plano de pagamentos será faseado e em prestações constantes;
• Perdão de juros vencidos, incluindo os juros que tenham sido capitalizados e vincendos;
• Pagamento de 100% do capital da dívida;
• Carência de 6 meses contado após a trânsito em julgado e homologação do plano;
• Pagamento do capital em 120 prestações mensais; (…)”.
9- No final de 2022, a sociedade (…), S.A. deixou de cumprir as medidas do plano de recuperação a que estava sujeita.
10- Desde 2018 (inclusive) que as contas da sociedade não são certificadas por revisor oficial de contas, por falta de documentos e impossibilidade de realizar o trabalho de revisão.
11- A 22.03.2023, (…), administrador único da sociedade (…), S.A., deu entrada em estabelecimento prisional para cumprimento de pena de cinco anos e oito meses de prisão, pela prática dos crimes de burla qualificada e falsificação agravada, a que tinha sido condenado no processo comum colectivo n.º 706/10.6TAFAR que pendeu no Juízo Central Criminal de Faro.
12- Por escritura pública de 31.07.2023, representada por (…), na qualidade de gestor de negócios, a Insolvente deu em dação em cumprimento a (…), Lda. o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial sob o artigo (…), denominado Lote …, com o valor patrimonial de € 280.469,11, ratificada por (…) a 07.08.2023.
13- Tal transmissão foi levada ao registo em Junho de 2024.
14- A 30.01.2024, (…) e (…) vieram requerer a insolvência da sociedade (…), S.A..
15- Por sentença de 27.06.2024, transitada em julgado, o Tribunal declarou a insolvência da sociedade (…), S.A. e nomeou administrador da insolvência (…).
16- (…), na qualidade de administrador da insolvência de (…). S.A., remeteu à Credora (…), Lda. carta registada com aviso de recepção datada de 05.08.2024, e entregue à Credora a 07.08.2024, com o seguinte teor:
“Exmos. Senhores,
Venho contactar V. Exa. na qualidade de Administrador de Insolvência da sociedade “(…), S.A.”, cujo processo corre termos pelo Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o n.° 112/24.5T80LH.
No exercício das minhas funções constatei que, com data de 31 de julho de 2023, foi outorgada a escritura de “Dação em Cumprimento", no Cartório Notarial da Dra. (…), em que lhe é transmitido um imóvel, a saber:
• Prédio urbano, composto por moradia de dois pisos com garagem e piscina, destinado a habitação, denominado “Lote …", situado em (…), na freguesia de (…), concelho de Olhão, inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do registo Predial de Olhão sob o n.º (…), da referida freguesia de (…). Constato igualmente que foi atribuído ao bem dado em cumprimento o valor de € 280.469,11 (duzentos e oitenta mil e quatrocentos e sessenta e nove euros e onze cêntimos), valor este que foi o objeto da Dação em Cumprimento.
Também se constata que o contrato foi submetido a registo predial em 25-06-2024, tendo sido averbado na ficha do prédio com a Ap. (…), de (…).
Verifica-se assim que no Processo Especial de Revitalização que correu termos pelo Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o n.° 83/21.0T8OLH o plano de recuperação aprovado pelos credores e homologado pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09/092021 (Apelação n.º 83/21.0T8OLH-A.E1) não contempla a dação em cumprimento do designado "Lote …" e que o incumprimento do referido plano já era evidente pelo menos desde o final do ano de 2022.
Considerando que a Massa Insolvente de (…), S.A. está fortemente prejudicada pela "Dação em Cumprimento” efetuada a favor de V. Exa. e que:
1. Foi e é um acto prejudicial à Massa Insolvente e praticado nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

2. Foi praticado de má-fé, nomeadamente por à data da escritura da “Dação em Cumprimento” conhecer a situação de insolvência de (…), S.A. ou, pelo menos, a iminência dessa insolvência, bem como estar consciente do seu carácter prejudicial;

3. À data da escritura da Dação em Cumprimento a sociedade já estava a incumprir o plano de revitalização, aprovado e homologado no Processo Especial de Revitalização que correu termos pelo Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o n.º 83/21.0T8OLH; e

4. Foi feita a Dação em Cumprimento de imóvel não contemplado no plano de revitalização aprovado e homologado no Processo Especial de Revitalização que correu termos pelo Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o n.º 83/21.0T8OLH, num claro acto de privilégio injustificado de um credor.
Venho, na qualidade de Administrador da Insolvência da sociedade (…), S.A., nos termos dos n.ºs 1, 2, 4 e 5 do artigo 120.º e do n.º 1 do artigo 123.º todos do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março), efectivar por este meio, a resolução da Dação em Cumprimento, efetuado pela sociedade insolvente a favor de V. Exa. através de escritura outorgada em 31/07/2023 e registado na ficha da Conservatória do Registo Predial de Olhão seguinte:
Ficha n.º (…), freguesia (…), com a Ap. (…), de 2024/06/25”.
16- A referida comunicação da resolução não foi remetida à Ilustre Mandatária Forense da Credora (…), Lda.”.

2.1.2. A decisão recorrida entendeu que inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa.

2.2. Objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto
O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (doravante, CPC) prevê que o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Neste momento processual, há que considerar ainda o artigo 662.º do CPC, cujo n.º 1 prevê que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por outro lado e recorrendo ao escrito por Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2024, págs. 228-9), há que considerar que, quando uma parte, em sede de recurso, pretenda impugnar a matéria de facto nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, impõe-se-lhe o ónus de:
a) (…) “indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;
b) (…) “especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinem uma decisão diversa quanto a cada um dos factos”.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”.
Tais ónus traduzem, como também refere Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Neste contexto, há que decidir se deve proceder a impugnação da matéria de facto alegada pela Recorrente, segundo a qual o ponto 9 dos factos dados como provados terá de ser considerado não provado, “porque o tribunal a quo não fundamenta os motivos e razões pela qual considera aquele facto como provado, remetendo apenas para a informação do processo de insolvência e apensos (…)”.
Ora, na fundamentação da matéria de facto, escreveu o Senhor Juiz da primeira instância que “Os factos provados sob os n.ºs 9 e 10 emergem do relatório do administrador da insolvência apresentado no processo principal de insolvência de que os presentes autos são apenso”.
A Recorrente, por seu turno, não cumpriu o ónus de especificar “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, previsto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC, pelo que, conforme decorre do n.º 1 da mesma norma, a impugnação não pode deixar de ser rejeitada.

2.2.2 A falta de notificação da decisão de resolução da dação em cumprimento à senhora Mandatária da Recorrente
Entende a Recorrente que a decisão recorrida padece de nulidade processual, uma vez que a declaração resolutória não foi notificada à sua mandatária, coartando, assim, o contraditório e impedindo o início válido do prazo previsto no artigo 125.º do CIRE, omissão que, no seu entender, constitui uma nulidade, conforme previsto no artigo 195.º do CPC, tendo como efeito a invalidade da resolução.
Ora, desde logo, parece resultar da linha de argumentação da Recorrente alguma confusão entre os vícios da sentença e a eventual inobservância dos requisitos formais da resolução.
Vejamos, então.
A resolução em benefício da massa insolvente está regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, constituindo, a par da impugnação pauliana, um dos mecanismos destinados a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente. É da competência do administrador da insolvência (cfr. artigo 123.º) e, uma vez operada a resolução, pode a mesma ser impugnada judicialmente pelas pessoas por ela afetadas.
A resolução em benefício da massa insolvente visa, pois, a reconstituição do património do devedor, permitindo a destruição de atos prejudiciais a esse património. Com a resolução pretende-se recuperar bens que saíram do património do devedor, através de atos praticados nos dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência, quer o tenham sido em benefício próprio, quer no de terceiros. Tal mecanismo permite recuperar bens ou direitos que o devedor tentou subtrair à massa, em prejuízo dos credores.

A par dos requisitos gerais da resolução em benefício da massa insolvente – que a seguir se analisarão – prevê o artigo 123.º do CIRE, no seu n.º 1, um requisito de forma, estatuindo que “A resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção (…). Daqui resulta, pois, com clareza, a atribuição de legitimidade ativa para o exercício do direito de resolução ao administrador da insolvência; quanto à legitimidade passiva, deverá a mesma ser dirigida contra ambas as partes no ato que se pretende resolver (neste sentido, Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 5ª ed., pág. 203).
No que diz respeito à forma do exercício do direito de resolução, escreve o referido autor, no mesmo local, que “Em coerência com o regime geral da resolução, que estabelece que a mesma se pode fazer por simples declaração à outra parte (artigo 436.º, n.º 1, do CC), o artigo 123.º, n.º 1, não exige que a resolução seja realizada por acção judicial, bastando-se para o efeito com uma simples comunicação por carta registada com aviso de recepção”.
No presente caso, não suscita qualquer dúvida o facto de ter sido observada pelo senhor Administrador de Insolvência a forma da declaração resolutória, já que a mesma foi remetida por carta registada com aviso de receção. A questão que se coloca é saber se tal comunicação teria que ser dirigida (também) à senhora Mandatária da Recorrente, como é entendimento desta.
Expressando entendimento diverso, escreveu o senhor Juiz do tribunal a quo o seguinte: “A resolução do contrato, nos termos do disposto nos artigos 436.º, n.º 1 e 224.º, n.º 1, do Código civil, pode fazer-se mediante simples declaração unilateral receptícia à outra parte. Ora, o artigo 123.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não exige que a resolução seja efectuada mediante comunicação simultânea para a contraparte e para advogado da contraparte. Não o exige também o regime geral da resolução do negócio jurídico instituído no Código Civil. A comunicação da resolução do negócio a que aludem os artigos 120.º e seguintes Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não é um acto processual. Assim sendo, é aplicável o regime do Código Civil, sendo a resolução eficaz com a sua comunicação à outra parte. No caso, tendo sido comunicada à credora (…), Lda., a resolução operada pelo administrador da insolvência é eficaz, não se verificando qualquer nulidade ou sequer irregularidade do acto. Pelo que improcede a pretensão da Autora nesta parte”.
E, de facto, entendemos que lhe assiste razão.
Com efeito, sendo o direito de resolução exercido extrajudicialmente, a respetiva declaração tem que ser dirigida às partes intervenientes no ato que se pretende resolver – no caso, a Recorrente e a sociedade insolvente, a (…), S.A. –, não existindo qualquer obrigatoriedade de notificação/comunicação aos respetivos mandatários, como se se tratasse de uma comunicação efetuada no âmbito de uma ação judicial pendente, mas bastando que se dirija “declaração à outra parte” (cfr. artigo 436.º, n.º 1, do CC), “muito embora com exigência de formalidades mínimas na declaração, o que se compreende dada a natureza da situação…” (João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2009, pág. 438).
Assim, tendo o sr. Administrador da Insolvência dirigido a declaração resolutória à parte interveniente no negócio jurídico, pela forma legalmente exigida, nenhum vicio há a apontar à comunicação efetuada, nem ao decidido em primeira instância a este respeito.

2.2.3. Requisitos gerais da resolução em benefício da massa insolvente
O artigo 120.º do CIRE, com a epígrafe “Princípios gerais”, inaugura o Capítulo relativo à resolução em benefício da massa insolvente, dispondo o seguinte:
1 - Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
2 - Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.
3 - Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.
4 - Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.
5 - Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias:
a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;
c) Do início do processo de insolvência.”
(…)
A declaração de resolução deve integrar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação. A impugnação, através da ação prevista no artigo 125.º CIRE, visa a negação dos factos invocados para fundamentar a resolução operada pelo Administrador da Insolvência.

A lei estabelece, assim, os seguintes requisitos gerais da resolução:
a) Realização pelo devedor de determinado ato;
b) Prejudicialidade do ato em relação à massa insolvente;
c) Verificação desse ato nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) Existência de má fé do terceiro.

Entende a Recorrente que, no caso, não se verificam os pressupostos legais previstos no citado artigo 120.º do CIRE para a resolução da dação em cumprimento, porquanto “não se provaram os pressupostos da má-fé, a presunção prevista no n.º 4 não opera e não se demonstrou a prejudicialidade do ato, já que não se apurou o valor de mercado do imóvel, nem se provou diminuição patrimonial da massa insolvente”. Para além disso, alegou ainda que o PER homologado pelo Tribunal da Relação admite expressamente a dação em cumprimento, como forma de liquidação de dívidas a credores da Insolvente.
Discorrendo sobre os referidos requisitos, escreveu-se na sentença recorrida:
Para efeitos do disposto no n.º 2 do citado artigo 120.º, é prejudicial para a massa insolvente, logo para os credores, qualquer acto que enfraqueça qualitativamente ou quantitativamente a garantia patrimonial dos credores.
No caso, ao contrário do alegado, a dação em cumprimento à Autora (descrita nos factos provados sob os n.ºs 12 e 13) não estava contemplada no plano de recuperação aprovado e homologado no PER, conforme resulta do facto provado sob o n.º 7.
As dações em cumprimento previstas no plano de recuperação respeitavam aos Credores que haviam celebrado contratos - promessa de compra e venda de imóveis com a Insolvente e que esta havia incumprido.
A Autora era fornecedora de bens (materiais de construção) à Insolvente, pelo que o seu crédito tem natureza comercial.
Ora, relativamente a estes credores o plano de recuperação não previa quaisquer dações em pagamento, mas antes uma carência de seis meses, o pagamento do crédito em 120 prestações e o perdão de juros.
A Autora foi parte no PER e notificada do plano de recuperação que foi homologado.
Assim sendo, a Autora tinha claro conhecimento de que ao aceitar a dação em pagamento de 31.07.2023 (descrita nos factos provados sob os n.ºs 12 e 13) não estava a fazê-lo a coberto do plano de recuperação, mas antes em violação do plano.
Ou seja, a Autora sabia que o plano estava a ser incumprido – por ser participante directa em tal incumprimento, ao aceitar a referida dação – o que redundaria em saber que a sociedade (…), S.A., se não ainda insolvente, estaria necessariamente em situação de insolvência iminente.
(…)
Em síntese, a dação em pagamento do prédio urbano é um acto prejudicial para a massa insolvente, na medida em que enfraquece qualitativa e quantitativamente a garantia patrimonial dos credores.
Por outro lado, a Autora agiu de má-fé, na medida em que tinha conhecimento de que a sociedade (…) estava, pelo menos, em situação de insolvência iminente e de que a dação em pagamento colocaria em causa a garantia patrimonial dos demais credores.
Estão assim preenchidos os pressupostos para a resolução em benefício da massa, que é válida e eficaz”.
Perante este entendimento, há, pois, que tomar posição.
Assim, por escritura pública datada de 31 de julho de 2023, a insolvente entregou à Recorrente, por via de dação em cumprimento, um imóvel com o valor patrimonial de € 280.469,11.
A dação em cumprimento, também chamada de "dação em pagamento", é um instituto do direito civil, através do qual o devedor entrega ao credor um bem diferente do originalmente devido, com o objetivo de extinguir a dívida. Prevê o artigo 837.º do CC que “A prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento”. A dação em cumprimento corresponde, pois, a uma das formas de extinção das obrigações e consiste na realização de uma prestação diferente da devida com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir a obrigação.
No caso, com a dação em cumprimento do imóvel, pretenderia a Insolvente “libertar-se” da dívida comercial para com a Recorrente, reconhecida no processo especial de revitalização. Porém, conforme bem se refere na sentença recorrida, neste processo, relativamente aos crédito de natureza comercial, “comuns” – como era o da Recorrente – constava do respetivo plano de recuperação o perdão de juros e o pagamento integral do montante em dívida, em 120 prestações mensais, com um período de carência de 6 meses contados do trânsito em julgada da sua homologação (que veio a ocorrer por via do acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, proferido a 13 de janeiro de 2022 no processo n.º 83/21.0T8OLH.E1), sendo que a dação em pagamento foi expressamente prevista apenas em relação a credores com os quais a Insolvente havia celebrado contratos-promessa de venda e relativamente aos imóveis objeto desses contratos. Aliás, no referido acórdão (do qual a Recorrente foi notificada) escreveu-se até o seguinte: “quanto às dações em pagamento como meio de liquidar dívidas fora do contexto dos credores promitentes compradores que se analisou, considerando a natureza dos bens de que a devedora é proprietária, designadamente imóveis e equipamentos necessários à prossecução do seu objecto social, trata-se de solução que, com probabilidade, tornaria inviável a recuperação da requerente. Em todo o caso, sempre se dirá que na hipótese da insolvência vir a ser declarada não está de modo algum demonstrado nos autos que o produto da venda dos bens da devedora (…) seria suficiente para satisfazer na totalidade ou em maior medida os credores comuns, atendendo à existência de credores titulares de créditos preferenciais”.
Ora, considerando o exposto, é de concluir, como o tribunal a quo, que a dação em pagamento à Recorrente, de um bem com valor patrimonial superior ao que lhe foi reconhecido em dívida no âmbito do processo especial de revitalização da Insolvente, efetuada cerca de meio ano antes do inicio do processo de insolvência prejudicou a massa insolvente, na medida em que diminuiu a possibilidade de satisfação dos credores da insolvência, alguns deles com créditos preferenciais ao seu (como sejam, laborais ou ao Estado).
Resta, assim, verificar se a Recorrente terá ou não agido de má fé.
No presente caso, não se verificando a presunção prevista no artigo 120.º, n.º 4, do CIRE, há que ter presente o n.º 5 da mesma norma, segundo o qual entende-se por má fé, o conhecimento pelo terceiro, à data da prática do ato a resolver, das seguintes circunstâncias: a) da situação de insolvência do devedor; b) do caráter prejudicial do ato e da situação de insolvência iminente do devedor; c) do inicio do processo de insolvência.
No presente caso, entendeu o sr. Administrador da Insolvência que, à data da celebração da escritura da dação em cumprimento, a Recorrente conhecia a situação da iminência da insolvência e estava consciente do caráter prejudicial do ato, entendimento que mereceu o acolhimento do tribunal a quo e não pode deixar de contar também com o nosso apoio.

Assim, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, (in CIRE anotado, Lisboa, Quid Juris, 2008, pág. 73) “A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já actual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exactamente pela insuficiência do activo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível. Haverá, pois, que levar em conta a expectativa do homem médio face à evolução normal da situação do devedor, de acordo com os factos conhecidos e na eventualidade de nada acontecer de incomum que altere o curso dos acontecimentos (citado in acórdão do TRL de 17/06/2025, processo n.º 5036/21.5T8SNT-C.L1-1, relatora Manuela Espadaneira Lopes).
No presente caso, até pelo especial conhecimento que a Recorrente detinha quanto à situação patrimonial da Insolvente – já que era parte interessada e participou ativamente no processo de revitalização da mesma –, sabia que, ao celebrar o negócio jurídico em causa diminuía o seu património e, por essa via, prejudicava credores que se encontravam em melhor posição creditícia que a sua, por meio de ato não previsto no plano de recuperação. Acresce que, sabendo – como sabia – que o plano de revitalização não era cumprido e que o imóvel que lhe foi entregue em dação em pagamento (de valor patrimonial superior ao do seu crédito) constituía o local da sede da Insolvente (informação que consta do relatório elaborado pelo sr. Administrador da Insolvência e junto ao processo de insolvência a 07/08/2024), não podia também deixar de saber que a insolvência era iminente. Aliás, não terá sido ingénuo o facto de o registo do ato ter ocorrido quase um ano após a celebração da escritura da dação em cumprimento.
Assim, contrariamente ao que invocou a Recorrente, encontram-se preenchidos os requisitos para a resolução do negócio declarada pelo sr. Administrador de Insolvência, conforme carta registada datada de 05/08/2024, que lhe foi enviada e na qual aquele invocou expressamente cada um dos fundamentos com base nos quais entendia estarem verificados os pressupostos para a resolução do negócio.
Assim, também nesta parte, deve ser mantida a decisão que julgou improcedente o pedido de impugnação da resolução da escritura pública de dação em pagamento realizada no dia 31 de julho de 2023.

2.2.4. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia
A Recorrente insurgiu-se ainda quanto à sentença proferida pelo tribunal a quo, na parte em que a mesma não conheceu do seu pedido subsidiário para que fosse a Massa Insolvente condenada a restituir-lhe o montante despendido com despesas notariais, registos e “restantes despesas relacionadas com a dação”, acrescido de juros de mora legais desde a citação, caso se entendesse ser de manter a resolução, considerando que a sentença está ferida de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por omissão de pronúncia.
A este propósito, escreveu-se na sentença recorrida:
Na petição inicial, a Autora pede ao Tribunal que “caso opere a resolução deve a Impugnante ser ressarcida por parte da Insolvente e da massa insolvente, quer do seu respetivo crédito, quer do valor gasto de despesas tidas com a escritura de dação em pagamento”.
Ora, a acção de impugnação da resolução em benefício da massa (artigo 125.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) é uma acção de simples apreciação negativa. De acordo com o artigo 10.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Civil, as acções de simples apreciação negativa têm por fim obter unicamente a declaração da inexistência de um direito ou de um facto, visando assim definir uma situação jurídica tornada incerta.
Assim sendo, verifica-se erro na forma de processo relativamente ao pedido subsidiário da Autora de satisfação do seu crédito e do ressarcimento das despesas com a dação – artigo 193.º do Código de Processo Civil.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
Prevê o citado artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento”.
Decorre desta norma que o vício que afeta a decisão advém de uma omissão (1º segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º segmento da norma). Este preceito legal deve ser articulado com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, que prevê que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo não se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Conforme se escreveu no acórdão do STJ de 08/02/2024, “a omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas, ou que o juiz oficiosamente deve apreciar” (processo n.º 995/20.8T8PNF.P1.S2, in dgsi).
Tendo presente as breves considerações expostas, é patente, a nosso ver, que a decisão recorrida não padece do apontado vício de nulidade. Com efeito, o tribunal a quo não deixou de se pronunciar quanto ao pedido que lhe foi apresentado pela Recorrente, entendendo, porém – bem –, que não podia conhecê-lo no âmbito da presente ação.
Conforme ali se referiu, a ação de impugnação da resolução é uma ação de simples apreciação negativa, uma vez que com ela se pretende, apenas, obter a declaração da inexistência do direito à resolução exercido pelo administrador de insolvência. Escreveu a este propósito Marisa Vaz Cunha (in Garantia Patrimonial e Prejudicialidade, Almedina, 2017, pág. 288, citada no acórdão do TRL de 17/06/2025): “Com efeito, não existem dúvidas quanto à qualificação da acção com acção declarativa de simples apreciação. Nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do CPC, estas acções visam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto. É o que está em causa no disposto no artigo 125.º: saber se pode ser resolvido em benefício da massa o acto prejudicial invocado pelo administrador da insolvência”.
É bem verdade que, de acordo com o previsto no artigo 126.º, n.º 1, do CIRE, a resolução em benefício da massa insolvente tem efeitos retroativos e conduz à reconstituição da situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado ou omitido, designadamente, impondo ao terceiro a obrigação de restituir à massa insolvente os bens ou valores prestados pelo devedor (cfr. artigo 126.º, n.ºs 4 e 5) e impondo à massa, em certos termos, a obrigação de restituir ao terceiro o objeto por ele prestado. Trata-se, pois, de um direito potestativo de natureza extintiva, que implica que as partes regressem à situação em que se encontrariam se não tivessem celebrado o negócio, assim se operando a extinção do vínculo contratual (cfr. Acórdão do TRL de 12/11/2024, processo n.º 3679/22.9T8VFX-B.L1-1, in www.dgsi.pt).
Vigorando a declaração resolutiva, seja porque o terceiro a quem foi dirigida não a impugnou, seja porque a impugnou e não obteve ganho de causa, segue-se uma de duas situações: ou o terceiro entrega voluntariamente os bens ou não os entrega; incumprindo o terceiro a obrigação de apresentar os bens, o administrador da insolvência tem que propor uma ação destinada à condenação do terceiro a entregar os bens e à fixação de um prazo para o efeito. A esta ação reporta-se o n.º 2 do artigo 126.º do CIRE.
Resulta, pois, do exposto que o pretendido pela Recorrente, no que diz respeito ao ressarcimento das despesas por si suportadas (aliás, não concretizadas) com vista à celebração do negócio de dação em cumprimento não tem cabimento nos presentes autos e, por isso, bem andou o tribunal recorrido, também quanto a esta questão.
Improcede, assim, a apelação, devendo confirmar-se a decisão recorrida.

3. DECISÃO
Nestes termos, acordam as Juízas desta 2ª Secção Cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.

*
Évora, 30 de outubro de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Anabela Raimundo Fialho (Relatora)
Cristina Dá Mesquita (1ª Adjunta)
Maria Isabel Calheiros (2ª Adjunta)