Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ ANTÓNIO MOITA | ||
Descritores: | MAIOR ACOMPANHADO FUNDAMENTAÇÃO CRITÉRIO DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE | ||
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Data do Acordão: | 06/27/2025 | ||
Votação: | DECISÃO SINGULAR | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ALTERADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
Área Temática: | CÍVEL | ||
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Sumário: | I- No tocante a medidas de acompanhamento a aplicar ao beneficiário o Tribunal pode não seguir o proposto pelo perito ou o que foi promovido pelo Ministério Público, desde que fundamente a sua posição. II- O critério basilar no julgamento do processo de maior acompanhado assenta, não propriamente em critérios de legalidade estrita, mas antes em critérios de conveniência e oportunidade em função do que ficar factualmente demonstrado em cada caso concreto. III- Decretar medidas de acompanhamento diferentes entre si, com impacto diverso em termos de alcance e de limitação de exercício de direitos, consoante o beneficiário se encontre em contexto de descompensação mental, ou devidamente medicado, remete para um quadro de menor objectividade passível de gerar dificuldades na execução quotidiana do mesmo, o que se revela indesejável. IV- A medida de acompanhamento deve restringir-se ao estritamente necessário. | ||
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Decisão Texto Integral: | Decisão singular do objecto do recurso (artigo 656º do Código de Processo Civil)
Apelação nº 199/24.0T8CTX.E1 – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo de Competência Genérica do Cidade 1 Apelante: Ministério Público Apelado/Beneficiário: AA *** I – RELATÓRIO O Ministério Público instaurou a presente ação especial de acompanhamento de maior, relativamente a AA, alegando, em síntese, que este padece de perturbação afetiva bipolar, tendo sofrido inúmeros internamentos, voluntários e involuntários, por abandono da terapêutica oral prescrita, esclarecendo que em 8-03-2024, deu entrada no serviço de urgência de psiquiatria do Hospital Distrital de Cidade 2 tendo lá permanecido por um mês, acrescentando que em 22-04-2024 foi avaliado em consulta de psiquiatria e apresentou oscilações de humor e dificuldade em gerir a terapêutica prescrita, percepcionando-se, de forma atual e permanente, uma incapacidade para o mesmo zelar pela sua saúde e pela sua pessoa, atendendo ao seu historial de saúde mental, aos internamentos psiquiátricos recorrentes por falta de toma de medicação e à instabilidade habitacional, dado viverem diversas pessoas consigo que gera instabilidade no seu quotidiano e nas suas rotinas. Concluiu, peticionando o decretamento do acompanhamento do beneficiário, sendo-lhe aplicadas medidas de representação especial de acompanhamento médico geral e de especialidade, nomeadamente para tratamento dos episódios maníacos com sintomas psicóticos, em função das necessidades, com eventual tratamento farmacológico e medidas de apoio psicossociais, com eventual permanência/internamento em Lar Residencial, Unidade de Cuidados de Saúde ou outra e administração de bens. Para exercer o cargo de acompanhante o Ministério Público propôs o filho do beneficiário BB. Foi conferida publicidade à ação, mediante comunicação à Conservatória do Registo Civil, nos termos do disposto no artigo 893.º, n. º2, do Código Processo Civil. O beneficiário foi citado e deduziu contestação, na qual negou existirem oscilações de entrada e saída de pessoas na sua residência, bem como que tenha problemas relacionados com a toma regular da medicação e bem assim que o seu dinheiro não chegue até ao final do mês, terminando a pugnar pela improcedência da ação. Procedeu-se à audição direta e pessoal do beneficiário, à inquirição da médica psiquiátrica, Dr.ª CC, dos filhos daquele, BB e DD e da sua vizinha, EE. Por fim foi proferida sentença que contem o seguinte dispositivo: “Face a tudo o exposto, decide-se julgar a presente ação procedente e, em conformidade: A. A. decretar o acompanhamento do beneficiário AA, através das seguintes medidas: A.1. nos períodos de descompensação do beneficiário: A.1.1. representação geral e de administração total de bens, nos termos do artigo 145.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código Civil; A.1.2. restrição do exercício dos direitos pessoais do beneficiário, ao artigo do previsto no artigo 147.º, n. º2, do Código Civil; A.1.3. restrição do direito do beneficiário executar livremente negócios da vida corrente, nos termos do disposto nos artigos 147.º, n. º1 e 127.º, n. º1, alínea b), do Código Civil; A.1.4. acompanhamento médico geral e de especialidade e tratamento farmacológico, ao abrigo do artigo 145.º, n. º1, alínea e), do Código Civil. A.2. nos períodos em que o beneficiário se encontra devidamente medicado: A.2.1. assistência do beneficiário, mediante apoio do mesmo na tomada de decisões relacionadas com a sua saúde (frequência de consultas, realização de exames/tratamentos/cirurgias e internamentos hospitalares inerentes, excluindo os atos e internamentos objeto da Lei de Saúde Mental, que continuam a ser regulados nos exatos termos aí previstos), ao abrigo do artigo 145.º, n. º1, alínea e), do Código Civil. A.2.2. supervisão da regularidade na toma da medicação do modo prescrito pelos médicos por parte do beneficiário, nos termos do artigo 145.º, n. º1, alínea e), do Código Civil. A.2.3. acompanhamento médico geral e de especialidade e tratamento farmacológico, ao abrigo do artigo 145.º, n. º1, alínea e), do Código Civil. B. Consignar que as medidas referidas em A) se tornaram convenientes desde a terceira década de vida do beneficiário. A. C. Nomear, como acompanhante do beneficiário, o seu filho BB, residente na Rua 1 Cidade 1, a quem caberá a execução das medidas referidas em A) A. D. Nomear como acompanhante substituta do beneficiário, a sua filha DD, residente na Avenida 2 Cidade 1, a quem caberá a execução das medidas referidas em A), em caso de impossibilidade do acompanhante nomeado em C). A. E. Dispensar a constituição do conselho de família. F.Determinar que a revisão oficiosa da presente decisão ocorrerá no prazo de três anos, a contar do seu trânsito em julgado G.Consignar que até 26-06-2024, o beneficiário não outorgou testamento vital, procuração para cuidados de saúde ou outro ato de manifestação antecipada de vontade relevante. Sem custas, por dele estar isento o processo de acompanhamento de maior, ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n. º2, alínea h), do Regulamento de Custas Processuais.” * Irresignado, veio o Digno Requerente apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora enunciando as seguintes conclusões: “1 - Não se concorda com a decisão sob recurso quando refere que as medidas de acompanhamento determinadas relativamente a AA serão umas nos períodos de descompensação do beneficiário e outras nos períodos em que o beneficiário se encontra devidamente medicado. 2 - Entende o Ministério Público que tal decisão é contraproducente, por ser subjetiva e geradora de dúvidas quando surgir o momento de tomar qualquer decisão em benefício do requerido. Na verdade, questionamo-nos quem, como e em que momento vai avaliar se o beneficiário se encontra ou não descompensado, para que se esteja em condições de determinar se se aplicam ao mesmo as medidas do ponto A.1 ou as medidas do ponto A.2 da sentença do tribunal a quo. 3 - Ficou evidenciado nos autos – conforme factos provados números 3 e 5 a 12 – que o Requerido é incapaz de providenciar a si mesmo pela toma constante da medicação de que carece, pelo que importa acautelar já essa situação. 4 – Isto justifica que se aplique ao caso a medida (única, que poderá vir a ser modificada ou cessada) de acompanhamento de representação especial ao Requerido AA, atribuindo ao acompanhante a responsabilidade de supervisionar a regularidade na toma da medicação por parte do acompanhado e a responsabilidade de aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos ao Requerido (i.e., decisões de saúde), ao abrigo do preceituado no artigo 145.º, n.º 2, alínea b), segunda parte, do Código Civil. 5 - A aludida alteração à decisão proferida impõe-se para obviar à indefinição que o legislador não quis em que quer o acompanhado quer o acompanhante ficariam quanto à amplitude dos seus poderes, consoante o momento e o agente avaliador. 6 - Estamos em crer que o tribunal a quo incorreu em errada interpretação do previsto no artigo 145º, n.º 2, do Código Civil e, num sentido mais lato, do Regime dos Maiores Acompanhados consagrado em tal diploma legal, tanto mais que o significado da apreciação livre das provas é o que resulta dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, pelo que a Mma. Juiz podia (e a nosso ver devia) ter-se afastado dos pareceres periciais juntos aos autos. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente e, caso assim se entenda, revogando a decisão recorrida e aplicando, em substituição das supra referidas medidas (alternativas) de acompanhamento a medida (única) de acompanhamento de representação especial ao Requerido AA, atribuindo ao acompanhante a responsabilidade de supervisionar a regularidade na toma da medicação por parte do acompanhado e a responsabilidade de aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos ao Requerido (i.e., decisões de saúde), ao abrigo do preceituado no artigo 145.º, n.º 2, alínea b), segunda parte, do Código Civil, assim se fazendo JUSTIÇA.” * Não foi apresentada resposta ao recurso. * O recurso foi recebido na 1ª Instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, afigurando-se nada haver a alterar a tal. * Atendendo à simplicidade da questão a decidir proferir-se-á de seguida decisão sumária, ao abrigo do disposto nos artigos 652º, nº 1, c) e 656º, do Código de Processo Civil. * II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que, in casu, importa apenas saber se devem ou não ser revogadas as medidas aplicadas pelo Tribunal a quo na sentença recorrida nos termos sustentados pelo Ministério Público. * III – FUNDAMENTOS DE FACTO Na sentença recorrida ficou discriminada a seguinte matéria de facto: “Da discussão da causa resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos: 1. AA nasceu em ...-...-1958, na freguesia e concelho do Cidade 1. 1. 2. O beneficiário tem dois filhos: a. BB; e b. DD. 3. O beneficiário padece, pelo menos, desde a terceira década da sua vida, de perturbação bipolar tipo I e de perturbação neurocognitiva ligeira, enquadráveis nos códigos 6A60 e 6D71, respetivamente da 11.ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial da Saúde (CID-11). 4. Além do referido em 3), o beneficiário padece de diabetes mellitus. 5. Em consequência do referido em 3), o beneficiário necessita do apoio de terceiros para preparar e tomar a medicação. 6. Por causa do aludido em 3), o beneficiário tem acompanhamento psiquiátrico desde os 28 anos, sendo que, na década de 90, sofreu múltiplos internamentos, designadamente 7 (sete) na Casa da Saúde do Local 3 e 12 (doze) no Hospital Distrital de Cidade 2, por episódios maníacos com sintomas psicóticos. 7. Nas situações de abandono da toma da medicação oral, o beneficiário fica descompensado, sai de casa adotando um discurso delirante, místico e religioso, referindo que “vê tudo cor de rosa, sentindo-se feliz e acredita que é Jesus Cristo”. 8. Nos dias 18-05-2023 e 12-10-2023, o beneficiário foi internado de urgência na sequência de condução ao hospital psiquiátrico por quadro maníaco caracterizado por alterações do comportamento, elação do humor, ideação delirante persecutória, megalómana e mística, em contexto de incumprimento da sua terapêutica habitual. 9. No dia 08-03-2024, o beneficiário deu entrada no serviço de urgência de psiquiatria do Hospital Distrital de Cidade 2, tendo lá permanecido por um mês. 10. No dia 28-08-2024, o beneficiário foi internado involuntariamente no serviço de Psiquiatria do Serviço de Urgência da Unidade Local de Saúde da ... e teve alta em 25-11-2024. 1. 11. Não obstante o mencionado em 3), o beneficiário, quando devidamente medicado: a. sabe ler e escrever e interpretar o que lê; b. desloca-se e orienta-se sozinho na via pública; c. reconhece o valor do dinheiro e estabelece a sua equivalência em bens; d. sabe fazer contas; e. paga as suas contas; f. movimenta a sua conta bancária com o cartão de multibanco e faz levantamentos; g. é autónomo nas atividades da vida diária, designadamente, consegue ir às compras, cozinhar e utilizar os transportes. 12. Em períodos de descompensação, a patologia mencionada em 3) afeta as emoções, o pensamento e o comportamento do beneficiário, com perda da qualidade de vida e autonomia, podendo ocorrer gastos excessivos. 13. O beneficiário reside sozinho, em casa própria. 14. O beneficiário faz medicação injetável mensal, a qual lhe é administrada no domicílio, pela equipa de psiquiatria do Hospital Distrital de Cidade 2. 15. A medicação do beneficiário é preparada pela farmácia quinzenalmente. 16. O beneficiário aufere uma pensão de velhice de cerca de 600,00 € (seiscentos euros). 17. O beneficiário visita regularmente os filhos e telefona-lhes diariamente. 18. BB declarou aceitar desempenhar as funções de acompanhante. 19. DD declarou aceitar desempenhar as funções de acompanhante substituta. 20. Até 26-06-2024, o beneficiário não outorgou testamento vital, procuração para cuidados de saúde ou outro ato de manifestação antecipada de vontade relevante. * Factos não provados Com relevo para a decisão da causa, não se provou que: A. A. Na residência do beneficiário, exista grande oscilação de entrada e saída de pessoas, por este arrendar quartos a diversas pessoas de nacionalidade estrangeira. B. O dinheiro do beneficiário não chegue até ao final do mês, por fumar muito. * Os demais factos alegados foram excluídos por terem sido considerados instrumentais, irrelevantes para o objeto do processo, conclusivos ou conceitos de direito.” * IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO A questão objecto deste recurso prende-se apenas e só em saber se o beneficiário deve ficar sujeito ao leque de medidas que foram decretadas na sentença recorrida, ou se bastará o regime de medidas sufragado pelo Ministério Público. Comparando os regimes mostra-se inquestionável que as medidas decretadas na sentença recorrida são mais abrangentes do que o pretendido pelo Digno Apelante, visto que este último não requereu a aplicação em alternativa de medidas condicionadas pelo estado de descompensação do beneficiário, ou do cumprimento pelo mesmo da devida medicação. Vejamos, então, de que lado estará a razão. Desde logo importa reter que o recurso em apreço não se entende à matéria de facto tida como provada na sentença recorrida a qual, por isso, consideramos neste momento como consolidada. Começando por abordar a matéria em apreço do ponto de vista substantivo temos que decorre do artigo 138.º do Código Civil (doravante apenas CC), que: “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.” Já no artigo seguinte (139.º), previu-se que: “1.O acompanhamento é decidido pelo tribunal […]; 2. Em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.” Resulta, por seu turno, do previsto no artigo 140.º do CC, respeitante à “Decisão Judicial”, que: “1. O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem estar, a sua recuperação, o pleno exercício da todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença. 2. A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.” Saltando agora para a dimensão adjectiva do processo de acompanhamento de maior verificamos que resulta do artigo 891.º do CPC, o seguinte: “1.O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juíz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes. 2.Em qualquer altura do processo, podem ser requeridas ou decretadas oficiosamente as medidas que a situação justificar.” Já do artigo 904.º do mesmo diploma legal decorre o seguinte: “[…] “2. As medidas de acompanhamento podem, a todo o tempo, ser revistas ou levantadas pelo tribunal, quando a evolução do beneficiário o justifique. 3. Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892.º e seguintes, correndo os incidentes respetivos por apenso ao processo principal.” No artigo 892.º do CPC, estatui-se que: “1. No requerimento inicial, deve o requerente, além do mais: […] b)Requerer a medida ou medidas de acompanhamento que considere adequadas.” Em consequência dos normativos acabados de identificar e transcrever percebemos, desde logo, sem margem para rebuços, que ao processo de acompanhamento de maior aplica-se, com as adaptações que se revelem necessárias ao caso concreto, o disposto nos artigos 986.º, n.º 2, 987.º e 988.º, todos do CPC. Diz-nos o n.º 2, do artigo 986.º, respeitante aos poderes do julgador, que: “2. O tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juíz considere necessárias.” Por seu turno, decorre do artigo 987.º, sempre do mesmo diploma legal, atinente ao “Critério de julgamento”, que “Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.” Em comentário a este preceito dizem-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado, Vol II”, 2020- Reimpressão, Almedina, pág. 437), o seguinte. “Decorre desta norma que o critério decisório não está confinado à aplicação estrita do direito como configurado previamente de forma abstrata. Sempre que a aplicação do direito estrito não confira uma tutela adequada aos interesses em causa, o juiz deve alicerçar a sua decisão em razões de oportunidade ou de conveniência, adotando as medidas mais aptas à satisfação do interesse, mesmo que estas não estejam exaustivamente tipificadas na lei. O julgador deve fazer uso das “regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida” (Pais do Amaral, Direito Processual Civil, p.96), de molde a descobrir e adotar a solução mais conveniente para os interesses em causa […]” Retornando ao regime processual específico do processo de acompanhamento de maior verificamos que no artigo 900.º do CPC, epigrafado “Decisão” consta expresso que: “1.Reunidos os elementos necessários, o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do Código Civil e, quando possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.” Atentemos no que prevê o artigo 145.º do Código Civil, epigrafado “Âmbito e conteúdo do acompanhamento” “1.O acompanhamento limita-se ao necessário. 2. Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes. […] b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa neste caso das categorias de atos para que seja necessária; c) administração total ou parcial de bens; d)Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos; e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas. 3. Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica. 4.A representante legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família. […]” Sobre o conteúdo e efeitos da sentença proferida no processo especial de acompanhamento de maior refere Pedro Callapez (“Acompanhamento de Maiores”, in “Processos Especiais”, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, pág. 113), o seguinte: “ […] o juiz não se encontra vinculado à medida de acompanhamento que haja sido requerida, podendo optar por outra que se revele mais adequada ao caso concreto, seja ela mais ou menos gravosa. Decretado o acompanhamento e atendendo à flexibilidade que caracteriza o novo regime, este pode compreender uma ou mais medidas de apoio, designadamente a autorização para a prática de certos atos ou categorias de atos, na administração total ou parcial de bens ou alguns bens ou, nos casos mais graves, a representação. […] No decretamento das medidas de acompanhamento, deve o juiz realizar um cuidado juízo de ponderação, em face do principio da necessidade e da supletividade. Em particular note-se que, por via de regra, o estatuto do maior acompanhado não implica quaisquer alterações na capacidade de exercício (ou de gozo), de direitos pessoais ou relativamente a negócios da vida corrente, só se verificando tal limitação quando a lei ou a sentença assim o impuser […] De resto, o âmbito da intervenção do acompanhante é relativamente flexível e permite uma postura dinâmica (e crítica) do juiz […], sendo certo que, mesmos para os atos em que tal juízo de necessidade seja válido, a intervenção do acompanhante pode traduzir-se em representação, assistêencia ou “intervenções de outro tipo” […]” Aqui chegados baixemos ao caso concreto. Não vem questionada no recurso a necessidade de decretar o acompanhamento através de medida(s) ao beneficiário AA, o qual, de acordo com o que resultou assente na sentença recorrida sob os pontos 3., 5. a 10 e 12 revela um quadro de saúde mental carecido de medicação regular que num cenário de falta/abandono da toma da mesma o descompensa psiquicamente de forma grave e séria impossibilitando-o de exercer pessoalmente, de forma plena e consciente, os seus direitos, assim como de cumprir os seus deveres. No âmbito da instrução dos autos foram carreados aos mesmos, além do mais, um relatório de perícia psiquiátrica forense datado de 03/09/2024 e um aditamento ao mesmo datado de 02/10/2024, sendo que nas conclusões do relatório inicial foi mencionado que “5. Do ponto de vista psiquiátrico-forense, não se nos afigura que o requerido esteja impossibilitado de continuar a exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, pelo que clinicamente não se justifica, para já, o decretamento de medidas de acompanhamento de maior.”, ao passo que no aditamento elaborado cerca de um mês volvido ficou a constar que […] “Assim, atendendo a que o requerido atualmente se encontra em fase de descompensação grave da sua doença e face às alterações psicopatológicas descritas no Relatório de Avaliação Clínico-Psiquiátrica em Internamento Involuntário de Urgência, bem como nos diários clínicos do internamento, considera-se que o requerido não se encontra capaz “de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”, pelo que do ponto de vista médico-legal poderá beneficiar de medidas de acompanhamento, nomeadamente de representação geral, com administração total de bens, bem como atribuir ao acompanhante a responsabilidade de aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos (i.e., decisões de saúde). Nos termos do artigo 147º, nº 2, do Código Civil, sugere-se a restrição ao requerido do exercício do seu direito pessoal de testar.” Verifica-se, assim, que após ter sido confrontado com elementos clínicos que antes desconhecia o perito médico que subscreveu o relatório pericial de 03/09/2024 corrigiu a sua posição quanto à (des)necessidade de medida(s) de acompanhamento a aplicar ao beneficiário. Finda a instrução da causa o Ministério Público promoveu nos autos a 12/03/2025 o seguinte: “Comprovado que está que o Requerido necessita da assistência de terceiros para o apoiar com a toma da medicação do modo prescrito pelos médicos, só essa prática lhe permitindo manter a capacidade para gerir de modo autónomo as atividades do seu dia-a-dia, e tendo em conta a disponibilidade manifestada pelos seus filhos, promove-se a implementação de medidas de acompanhamento em benefício do Requerido, bem como que seja nomeado seu acompanhante o seu filho BB e sua acompanhante substituta a sua filha DD, os quais devem auxiliar e, se necessário, substituir o pai nos tratamentos e medicação que o mesmo carece de cumprir para manter as suas patologias do foro psiquiátrico controladas, nomeadamente para evitar que o mesmo constitua perigo para si próprio e para terceiros, mormente enquanto não logra ser integrado em instituição adequada a providenciar pelos cuidados de que o mesma necessita, como é a Casa de Saúde do Local 3 e para que consiga continuar a gerir a sua pessoa e os seus bens, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 138.º e 140.º, n.º 1, do Código Civil. […] Tendo em conta a doença de que padece o beneficiário, e sem prejuízo do respeito pelos interesses, pela autonomia e autodeterminação do mesmo e por aquelas que serão ou seriam (presumivelmente) as suas preferências e vontades, impõe-se cometer ao acompanhante o regime da representação especial, atribuindo ao acompanhante a responsabilidade de supervisionar a regularidade na toma da medicação por parte do acompanhado e a responsabilidade de aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos ao Requerido (i.e., decisões de saúde), ao abrigo do preceituado no artigo 145.º, n.º 2, alínea b), segunda parte, do Código Civil. Tal regime é o único capaz de salvaguardar os interesses do beneficiário e de cumprir os desígnios e finalidades legalmente previstos da medida de acompanhamento, sendo, por isso, necessário, nos termos do disposto no artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil. Por tal se revelar necessário e proporcional, deve ser limitado o direito de testar do Requerido, na senda, aliás, do que consta do aditamento ao relatório da perícia médico-legal, nos termos do disposto no artigo 147.º, n.º 2, do Código Civil.” Conforme já demos nota acima o Tribunal recorrido veio a decidir aplicando ao beneficiário o quadro de medidas definido no dispositivo da sentença, distinguindo as medidas de acompanhamento que decretou consoante o beneficiário se encontre em período de descompensação (medidas mais gravosas e limitativas dos direitos do beneficiário), ou se encontre em períodos em que o mesmo esteja “devidamente medicado” (estas menos gravosas e limitativas dos aludidos direitos). Importa desde já salientar que nos termos do disposto no artigo 389.º do CC “A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal”, o que, a nosso ver, deve abranger a proposta, ou sugestão que seja efectuada pelos peritos quanto a medidas de acompanhamento e/ou apoio a decretar. Do que já fomos referindo percebemos que no tocante a medidas de acompanhamento a aplicar ao beneficiário o Tribunal recorrido seguiu por uma via que não refletiu nem o que acabou por ser proposto pelo perito no aditamento de 02/10/2024, nem o que foi promovido pelo Ministério Público na promoção de 12/03/2025, o que não lhe estava vedado fazer desde que fundamentasse a sua posição, (o que logrou fazer na sentença recorrida), uma vez que o critério basilar no julgamento deste tipo de processo, como já vimos supra, assenta não propriamente em critérios de legalidade estrita mas antes em critérios de conveniência e oportunidade em função do que ficar factualmente demonstrado em cada caso concreto. Sem embargo, tendo como pano de fundo os princípios da necessidade e supletividade que enformam a aplicação de medidas de acompanhamento a maiores, aflorados, respectivamente, nos artigos 138.º, 145.º, n.º 1 e 140.º, n.º 2, do CC, afigura-se-nos que a solução a que chegou o Tribunal recorrido não se revela como a mais acertada para o caso em apreço. Na verdade, decretar medidas de acompanhamento diferentes entre si, com impacto diverso em termos de alcance e de limitação de exercício de direitos, consoante o beneficiário se encontre em contexto de descompensação mental, ou devidamente medicado, remete para um quadro de menor objectividade passível de gerar dificuldades na execução quotidiana do mesmo, o que se revela indesejável. Com efeito, não esqueçamos que o beneficiário está sujeito a medicação oral e injectável/intravenosa, sendo certo ainda que a avaliação do que seja “descompensação do beneficiário” e “devidamente medicado”, designadamente se o mesmo estiver a cumprir uma das medicações e a outra não (como tem sucedido com a terapêutica oral), poderá ficar dependente de subjectividades, na certeza de que o dispositivo da sentença tão pouco esclareceu quem deve fazer essa avaliação, em que momento e de que modo. De resto, no caso concreto ainda se dirá que o acompanhamento do beneficiário em causa deverá pressupor que o mesmo se mantenha “devidamente medicado”, o que também por isso torna, a nosso ver, desnecessário prever medidas para um quadro de “descompensação do beneficiário”, que, porém, a suceder de forma imprevista, sempre poderá justificar uma intervenção urgente, a título provisório/cautelar, de acordo com o disposto nos artigos 139.º, n.º 2, do CC e 891.º, n,º 2, do CPC., ou a modificação ou revisão das medidas aplicadas em vigor, nos termos previstos nos artigos 149.º e 155.º, do CC, podendo passar pelo internamento urgente (cfr. artigo 148.º do CC). Parece-nos, assim, correcta a percepção do Apelante quando refere na motivação recursiva que: “[…] Na verdade, ficou evidenciado nos autos – conforme factos provados números 3 e 5 a 12– que o Requerido é incapaz de providenciar a si mesmo pela toma constante de tal medicação, pelo que importa acautelar já essa situação. No entanto, aquilo a que o tribunal a quo deu azo, a nosso ver, no caso em apreço, foi a que quer o acompanhado quer o acompanhante ficassem na dúvida acerca da amplitude dos seus poderes, consoante o momento e o agente avaliador. Tal indefinição é, a nosso ver, contraproducente, por ser subjetiva e geradora de dúvidas que, quando se justificar a tomada de qualquer decisão em benefício do requerido, irá potenciar.” Como igualmente nos parece adequado, por necessário, conveniente e proporcional aos factos demonstrados no processo, a medida proposta pelo Ministério Público muito centrada (e bem) em fazer face à incapacidade quotidiana, devidamente assente nos autos, revelada pelo beneficiário para, sem apoio de terceiros, preparar e tomar a medicação oral. A este propósito deixamos ainda expresso o pensamento de Miguel Teixeira de Sousa (in “O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais - O novo regime Jurídico do Maior acompanhado” E-book do Centro de Estudos Judiciários, 2019, pág 46): “[…] Recorde-se que a medida de acompanhamento se deve restringir ao estritamente necessário (art. 145.º, n.º 1, CC), pelo que o juiz não deve decretar nem uma medida que seja excessiva atendendo às necessidades do beneficiário, nem uma medida que seja insuficiente considerando essas mesmas necessidades.” Em face do exposto, sem necessidade de mais considerações, procederá o recurso interposto pelo Apelante. * V – DECISÃO Pelo exposto concede-se provimento ao presente recurso de Apelação interposto pelo Ministério Público e em consequência decide-se: a. Revogar a sentença recorrida no tocante ao ponto A. do dispositivo da mesma, o qual passará a ter a seguinte redacção: A. Decretar o acompanhamento do beneficiário AA, através da seguinte medida: Representação especial ao beneficiário AA, atribuindo ao acompanhante a responsabilidade de supervisionar a regularidade na toma da medicação por parte do acompanhado e a responsabilidade de aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos ao beneficiário (decisões de saúde), ao abrigo do disposto no artigo 145.º, n.º 2, alínea b), segunda parte do Código Civil. b. Manter no mais o decidido na sentença recorrida, designadamente o determinado nos pontos B. a G. do dispositivo da mesma. c. Não são devidas custas judiciais. * DN. * ÉVORA, 27/06/2025, José António Moita (Juiz-Desembargador relator, com assinatura certificada electronicamente na parte superior esquerda da primeira página desta decisão). |