Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA FRANCISCO | ||
Descritores: | ERRO DE JULGAMENTO REFORMATIO IN MELIUS | ||
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Data do Acordão: | 01/28/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | O Tribunal de recurso não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos concretos objeto da impugnação forem Insuscetíveis de assumirem relevância jurídica e não tiverem quaisquer consequências a nível da decisão de direito a proferir. O recorrente que invoca a existência de um erro de julgamento tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas e que sustentam uma decisão diversa, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude. O critério legal de apreciação da culpa é um critério abstracto, que deve ter em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal. Atento o disposto no art.º 402º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o arguido que foi condenado e não recorreu pode beneficiar do recurso interposto pelo responsável cível. A decisão de recurso, ainda que de natureza cível, poderá alterar factos considerados provados pelo Tribunal recorrido, com reflexo na culpabilidade do arguido, sendo consentida pela lei uma reformatio in melius. A verificação de que o comportamento descuidado da vítima também contribuiu para a produção do acidente implica uma diminuição da pena aplicada ao arguido, bem como uma diminuição do montante indemnizatório inicialmente atribuído à vítima. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1 – Relatório No processo comum singular nº 198/13.8GCPTM, do Tribunal da Comarca de …, Juízo Local Criminal de … – Juiz …, o Ministério Público acusou AA, solteiro, …, nascido a … de 1980, em …, filho de BB e de CC, residente na …, …, em …, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo art.º 148º, nº 1 do Cód. Penal. A assistente DD pediu a condenação da EE, S.A.: (i) no pagamento da quantia de € 600.000,00 (seiscentos mil euros), a título de indemnização pelos danos presentes e futuros que suportou com a conduta do arguido, e (ii) no pagamento do que se vier a liquidar em execução de sentença, relativo a despesas médicas, medicamentosas, exames, consultas, cirurgias, internamentos, tratamentos de fisioterapia, tratamentos dentários, recuperação funcional e quaisquer outras despesas decorrentes dos danos físicos, psíquicos e sequelas do acidente. O Centro Hospitalar …, E.P.E. pediu a condenação da EE, S.A. no pagamento da quantia de € 29.774,58 (vinte e nove mil, setecentos e setenta e quatro euros e cinquenta e oito cêntimos), a título de reembolso do que despendeu com o tratamento médico de DD. O arguido e a EE, S.A. apresentaram contestação escrita. Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular e após comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, por sentença proferida e depositada a 16 de março de 2018, foi decidido: «(…) julgar a acusação improcedente, por não provada e, em consequência: a) absolver o arguido AA da prática, como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, na pessoa de DD, de que vinha acusado; b) absolver a EE, S.A. dos pedidos de indemnização civil contra si deduzidos pelo C.H. … e DD; c) custas a cargo dos demandantes, sem prejuízo da isenção e apoio judiciário de que beneficiam.» Desta decisão interpuseram recurso a assistente e o Ministério Público, tendo este Tribunal da Relação, por acórdão proferido a 12 de março de 2019, nos termos dos arts.º 426º, nº 1 e 426º-A, nºs 1 e 2, ambos do Cód. Proc. Penal, ordenado o reenvio do processo para novo julgamento parcial. Devolvido o processo à 1.ª Instância, foi elaborada nova sentença – proferida e depositada a 8 de julho de 2019 – onde se manteve a parte decisória supra transcrita. Na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público e pela assistente, este Tribunal da Relação, por acórdão proferido a 23 de fevereiro de 2021, ao abrigo do disposto nos arts.º 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, declarou nula a sentença e ordenou a elaboração de nova sentença, expurgada da omissão do exame crítico da prova relativamente ao pedido de indemnização civil formulado por DD, Devolvido o processo à 1.ª Instância, foi proferida nova sentença – proferida e depositada a 8 de julho de 2021 – onde se manteve a parte decisória já transcrita. Desta decisão interpuseram recurso a assistente DD e o Centro Hospitalar …, E.P.E.. Efetuado o exame preliminar, entendeu-se ocorrer a situação prevista na alínea a) do nº 6 do art.º 417º do Cód. Proc. Penal, e, por decisão sumária proferida a 8 de junho de 2022: (i) declarou-se que o cumprimento do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de março de 2019, pela Senhora Juíza que havia realizado o julgamento anterior acarreta a nulidade prevista na alínea a) do art.º 119º do Cód. Proc. Penal, por violação das regras legais relativas ao modo de determinar a constituição do Tribunal; (ii) declarou-se que a nulidade assinalada acarreta a invalidade de todos os atos praticados no processo após o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de março de 2019, que ordenou o reenvio do processo para novo julgamento parcial; (iii) declarou-se que o novo julgamento parcial, a realizar, compete ao Tribunal que vier a ser competente, de acordo com o disposto no art.º 426º-A do Cód. Proc. Penal. Desta decisão sumária veio a EE, reclamar para a conferência, na sequência do que foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação de Évora, datado de 13 de setembro de 2022, no qual se decidiu não conhecer do objeto dos recursos interpostos pela assistente DD e pelo Centro Hospitalar …, EPE., mantendo a decisão sumária anterior. Devolvido o processo à 1.ª Instância, foi proferida nova sentença, datada de 15/12/2023, de cuja parte decisória consta o seguinte: “Em face de tudo quanto acima ficou exposto, julgo a acusação provada e procedente; o pedido cível deduzido pela assistente, parcialmente provado e parcialmente procedente; e o pedido cível deduzido pelo Hospital, provado e procedente, e, em consequência: 1) Condeno o arguido AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. º 148., n. º 1 do CPenal, na pena de 80 [oitenta] dias de multa. à taxa diária de €5,50, num total de €440,00 (a que correspondem 52 dias de prisão subsidiária, caso o arguido não pague, voluntária ou coercivamente, a multa aplicada). 2) Mais condeno o arguido na pena acessória de proibição de condução de qualquer categoria de veículos motorizados por um período de 4 (quatro) meses, cfr. art.º 69.º, n.º 1, al. a) do CPenal, devendo o mesmo entregar, na secretaria deste tribunal, ou em qualquer posto policial, a respectiva carta de condução, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão, cfr. art.º 69.º, n.º 3 do CPenal, e art.º 500º, n.º2 do CPP, SOB PENA DE INCORRER NA PRÁTICA DE UM CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. 3) Condeno a SEGURADORA “EE, SA” no pagamento, à demandante DD, da quantia de €95.406,25 (noventa e cinco mil, quatrocentos e seis euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora legais, contados desde a data da prolação desta sentença até efetivo e integral pagamento, absolvendo do demais. 4) Mais condeno a SEGURADORA no pagamento à demandante DD, dos danos patrimoniais vindouros que se mostrem ser consequência da conduta do arguido, que vierem a ser liquidados em execução de sentença, nos termos do art.º 82º do CPP. 5) Condeno ainda a SEGURADORA no pagamento ao Centro Hospitalar …, EPE da quantia de €29.774,58 (vinte e nove mil, setecentos e setenta e auatro euros e cinquenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora legais, contados desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil, até efetivo e integral pagamento. (…)” * O arguido e o Ministério Público não interpuseram recurso da decisão. * Inconformada com aquela decisão, veio a EE, S.A. interpor recurso, pedindo que sejam julgados improcedentes os pedidos de indemnização civil e absolvida a recorrente dos pedidos formulados pela demandante DD e pelo demandante Centro Hospitalar …, EPE, para o que formulou as seguintes conclusões: “1. A Douta Sentença proferida pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” viola, entre outros, o disposto nos artigos nos artigos 483º, 505º e 570º do Código Civil, bem como dos artigos 24º, 25º, n.º 1, 35.º, 43º, 99º, 100º 1 e 103º, n.º 3 todos do Código da Estrada. 2. Os Pontos 66, 67 e 68 do elenco dos factos provados e os pontos 1 e 2 encontram-se em contradição com a prova produzida, testemunhal e documental, para além de contrariarem as regras da experiência comum. 3. Ademais, correspondem a juízos conclusivos extraídos de alguma da matéria de facto que encerram, em si mesmos, a resposta à questão jurídica que o Tribunal tem de resolver, pelo que devem ser expurgados da parte da decisão relativa à matéria de facto. 4. A MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” não conjugou as declarações prestadas pelo Arguido, os depoimentos prestados pelas testemunhas com os documentos e os elementos objetivos constantes dos autos. 5. Os meios de prova que impunham decisão diferente são: as declarações prestadas pelo Arguido na sessão do Julgamento realizada no dia 19.02.2018 [entre o minuto 03:00 a 03.03, o minuto 05:42 e o 5:51 e entre o minuto 11:10 e o 13:00] e na sessão do Julgamento realizada no dia 15.11.2023 [entre o minuto 06:55 e o 07:07 e entre o minuto 10:59 e o 11:33] o depoimento prestado pela testemunha FF na sessão do julgamento realizada no dia 01.03.2018 [entre o minuto 01:58 e o minuto 06:56] a participação de acidente de viação elaborada pelo militar GG o croquis e registo fotográfico elaborado pela GNR e enviado aos autos em 09.03.2018 o relatório/informação elaborado pela GNR quanto ao tempo de reação, distância de reação e de travagem, enviado aos autos em 09.03.2018 6. A MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” não conjugou as declarações prestadas pelo Arguido, com os depoimentos prestados pelas testemunhas referidas e com os documentos e os elementos objetivos constantes dos autos, nem com as regras do normal acontecer, advenientes da experiência comum. 7. O raciocínio da MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” parte do pressuposto que a Demandante DD se encontrava a proceder à travessia da via, facto que não consta do elenco dos factos provados e que ninguém atestou. 8. Em nenhum ponto do elenco dos factos provados se fez constar que a Demandante procedia à travessia da faixa de rodagem correspondente à Rua … e, no caso afirmativo, se o fazia da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda em relação ao sentido de marcha do veículo 9. Em relação ao posicionamento da Demandante na via, apenas se deu como provado que a mesma se encontrava ao centro da faixa de rodagem, trajando roupa escura, 10. O local provável de embate situa-se cerca de 2 a 3 metros após o início da curva para a direita – considerando o sentido de marcha do veículo –, tendo por base as declarações prestadas pelo Arguido e os demais elementos objetivos, nomeadamente a posição final do veículo, a posição final do corpo da Demandante, a ausência de rastos de travagem e os cálculos relativos à velocidade. 11. A única iluminação existente no local era a proveniente dos faróis do veículo conduzido pelo Arguido que, na posição de médios, têm apenas um alcance de 30 metros, sendo certo que, como resulta dos factos provados, o embate se verifica cerca de 2 a 3 metros após o início da curva – atento o sentido de marcha do veículo –. 12. A iluminação proveniente dos faróis do veículo apenas permitiria ao Arguido ver a Demandante quando o veículo completasse a manobra de mudança de direção para a direita, sendo elementar concluir, face às regras da experiência comum, que o Arguido não tinha qualquer possibilidade de se aperceber da presença da Demandante antes de iniciar aquela manobra. 13. Para além de trajar roupa escura, a Demandante DD encontrava-se ao centro da faixa de rodagem sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa que advertisse os demais utentes da via pública – nomeadamente dos condutores – para a sua presença. 14. A MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” devia ter dado como provado que o Arguido apenas se poderia ter apercebido da presença da Demandante no centro da faixa de rodagem quando o veículo completasse a manobra de mudança de direção à direita, por ser esse o momento em que aquela seria alcançável pela iluminação proveniente dos faróis do veículo; 15. A MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” devia ter dado como provado que a Demandante se encontrava no centro da faixa de rodagem sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa que advertisse os demais utentes da via pública – nomeadamente dos condutores – para a sua presença; 16. A conclusão de que o Arguido poderia ter avistado atempadamente a Demandante se se tivesse distanciado mais do veículo que o precedia parte do pressuposto, não demonstrado, de que a Demandante seria visível para os condutores que, tais como o do ligeiro de mercadorias e o Arguido, circulavam na EM …, antes mesmo de acederem à Rua …. 17. O veículo ligeiro de mercadoria prosseguiu a marcha pela EM …, sendo certo que, por força da configuração da via, isso implicou a realização de uma curva para o lado esquerdo, ao passo que o Arguido, pretendendo aceder à Rua …, teve de realizar uma manobra de mudança de direção à direita. 18. Os elementos documentais disponíveis nos autos, designadamente os relativos ao local do acidente, e os depoimentos prestados pelas testemunhas não permitem concluir, como conclui a MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” que o Arguido não teve tempo de ver a Demandante na via porque o veículo que o precedia lhe retirava a visibilidade. 19. Não resulta fixada a concreta distância a que o veículo conduzido pelo Arguido circulava do veículo ligeiro de mercadorias, sendo impossível concluir qual a medida da visibilidade que este retirava àquele. 20. Entre o início da curva de acesso à Rua … e o local onde o veículo conduzido pelo Arguido se imobilizou distam 16 metros – cf. Ofício da GNR de 09.03.2018 21. O veículo não deixou registado no pavimento qualquer rasto de travagem, pelo que, à luz das regras da experiência comum, a travagem do veículo até à sua completa imobilização não foi brusca – cf. Participação do Acidente elaborada pelo militar GG e confirmado pelo relatório elaborado Agente Principal FF 22. O tempo reação de um condutor - tempo que decorre entre a percepção de um obstáculo e o exacto momento em que o condutor atua – pode variar entre 0,75 e 2 segundos, situando-se o tempo médio, considerando um condutor médio, em 1 segundo. 23. Durante o tempo de reação, o veículo continua a movimentar-se à mesma velocidade, percorrendo determinada distância, designada por distância de reação. 24. À distância de reação haverá que somar a distância de travagem – entendida como a distância percorrida entre o momento em que o condutor inicia a travagem e aquele em que o veículo pára efetivamente. 25. De acordo com o Ofício da GNR de 09.03.2018, se um condutor imprime ao veículo uma velocidade de 40km/hora e se depara com um obstáculo leva aproximadamente 27 metros até à completa imobilização do veículo, dos quais 11 metros correspondem à distância de reação e 16 metros correspondem à distância de travagem. 26. Entre o momento em que o Arguido se apercebeu do obstáculo [apenas no momento do embate] e a completa imobilização do veículo, este terá percorrido uma distância total de 13 a 14 metros. 27. Nessa distância de 13 a 14 metros incluem-se a distância de reação e a distância de travagem, o que permite concluir, usando as equações matemáticas fornecidas pela GNR – que o veículo não circulava à velocidade de 40 km/h, mas a uma velocidade próxima dos 20 km/h. 28. Ainda que se considere nesta equação a distância equivalente ao comprimento do veículo [4 metros], constata-se que o veículo terá percorrido uma distância total de 17 a 18 metros até à sua completa imobilização, o que aponta para uma velocidade instantânea de cerca de 30 km/h. 29. O facto do local provável de embate se situar 2 ou 3 metros após o início da curva para a direita, conjugado com os vários cálculos relativos à velocidade e com o facto da Demandante se encontrar ao centro da faixa de rodagem, permite concluir que o acidente sempre se verificaria, independentemente da velocidade a que o veículo circulasse. 30. Tendo por base as declarações prestadas pela Demandante na sessão do Julgamento realizada em 19.02.2018 [minuto 15:11 e entre o minuto 20:20 e o minuto 20:45] deve ser aditado ao elenco dos factos provados o seguinte facto: “A Demandante DD conhecia bem aquele local, por ali circular com frequência, nomeadamente para ir beber café ao aeródromo”. 31. Acresce que, à data dos factos, a Demandante residia na …, em …, ou seja, na localidade onde se verificou o acidente. 32. Apesar de se tratar de um facto meramente instrumental, é relevante para a apreciação do comportamento da Demandante DD e do seu nexo de causalidade em relação ao acidente dos autos. 33. No quadro circunstancial apurado, seria impossível para qualquer outro condutor médio, numa noite escura, num sítio ermo, sem iluminação artificial, circulando a uma velocidade não concretamente apurada, mas que os elementos objetivos disponíveis permitem estimar ser inferior a 30km/h, inicia uma curva para o lado direito e se depara com um obstáculo mesmo no meio da faixa de rodagem, conseguir evitá-lo. 34. O Arguido, no exercício da condução, acautelou que da sua realização não resultava perigo ou embaraço para o trânsito. 35. Circulava a velocidade reduzida, sinalizou previamente a sua intenção de mudar de direção à direita e não tinha qualquer possibilidade de, antes de concluir essa manobra, após o início da curva, onde se deu o embate, aperceber-se de qualquer obstáculo aí existente. 36. O acidente ocorreu numa noite escura, num local sem qualquer iluminação artificial e que a Demandante se encontrava apeada no meio da faixa de rodagem toda vestida de preto, sem fazer uso de qualquer colete refletor ou qualquer dispositivo de sinalização luminosa que advertisse para a sua presença. 37. Ainda que se conclua que o Arguido, ao realizar a manobra de mudança de direção à direita, não parou, nem reduziu a velocidade que imprimia ao veículo – que, como vimos, se situa no limiar dos 30km/h –, certo é que a Demandante não se apresentava visível, não sendo exigível ao Arguido ou a qualquer outro condutor medianamente diligente colocado em idênticas circunstâncias que a visse, na justa medida em que não tinha forma de a ver. 38. A MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” omitiu qualquer apreciação acerca do comportamento da Demandante e da sua relevância para a verificação do acidente; 39. Para a MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” o facto de a Demandante se encontrar apeada, no meio da faixa de rodagem, logo a seguir a uma curva, numa noite escura, num local sem iluminação artificial, que a própria conhecia bem, vestida com roupa escura e sem fazer uso de qualquer colete refletor ou qualquer dispositivo de sinalização luminosa que advertisse para a sua presença terá sido absolutamente indiferente para a ocorrência dos presentes autos. 40. Essa conclusão não é consentânea com a prova produzida, nem com as regras da experiência comum e juízos de normalidade, tanto mais que a Demandante conhecia bem o local, residia na localidade e era muito mais fácil para si aperceber-se da aproximação do veículo do que o inverso. 41. O Arguido não violou qualquer disposição estradal, não lhe sendo imputável um juízo de censura relativamente à ocorrência do presente acidente, nem exigível a adoção de qualquer comportamento que tivesse permitido evitar a sua ocorrência 42. A Demandante violou o disposto nos artigos 99º e 100º do Código da Estrada, para além do especial dever de cuidado, por não ter sinalizado a sua presença na via ou advertido os condutores para a sua presença ou certificando-se de que podia ocupar a faixa de rodagem sem perigo de acidente. 43. Perante o quadro fáctico apurado, afigura-se manifestamente exagerado o montante indemnizatório de 95.000,00€ arbitrado pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” a título de danos não patrimoniais.” * Também inconformada com a decisão, no que concerne ao valor da indemnização arbitrada, veio DD, assistente e demandante cível, interpor recurso, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a condenação da “EE, S.A.” no pedido de indemnização civil no montante de EUR. 500.000,00 (quinhentos mil euros), para o que formulou as seguintes conclusões: “ 1º- Vem o presente recurso, interposto da douta Sentença proferida e depositada no dia 15 de dezembro de 2023, que julgou a Acusação Pública procedente, determinando a condenação da Seguradora “EE, S.A.”, no pagamento à Demandante, da quantia de 95.406,25 euros (noventa e cinco mil, quatrocentos e seis euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros legais, contados desde a data da prolação desta Sentença até efectivo e integral pagamento, e ainda no pagamento dos danos patrimoniais vindouros que se mostrem ser consequência da conduta do arguido, que vierem a ser liquidados em execução de sentença, nos termo do art.º 82º do CPP, e do mais da mesma constante. 2º- Entende a Recorrente que, e sempre com a devida vénia por diverso entendimento, em face do Direito aplicável e da matéria de facto doutamente fixada, o douta Sentença ora em Recurso nunca poderá ser confirmada, merecendo o presente Recurso provimento, determinando-se a sua revogação, e substituindo-se por Decisão que determine a condenação da Demandada ora Recorrida “EE, S.A.” no pedido de indemnização civil no montante de EUR. 500.000,00 (quinhentos mil euros). 3º- É dado incontroverso que a Recorrente sofreu, em consequência do acidente, das lesões corporais dele resultantes e das sequelas permanentes que a afectam, danos de natureza não patrimonial que, pela sua extensão e gravidade, indiscutivelmente reclamam e merecem tutela reparadora. 4º- E é atendendo à extensão, natureza e gravidade desses danos, mas não podendo menosprezar os valores fixados pelos tribunais superiores para situações similares, que se entende a indemnização fixada pelo Tribunal a quo, é manifestamente insuficiente e desadequada em função dos danos sofridos pela Recorrente, não sendo ajustada à reparação dos danos em causa. 5º- Para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos, obedecendo ao comando da lei que lhe manda julgar de harmonia com a equidade, tem, para o efeito, de atender a determinados factores acima expostos, e ainda a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada, de modo a que, tudo ponderado, o levem a concluir pelo valor pecuniário que considere como o justo, para, no caso concreto, compensar o considerando as lesões, dores e incómodos que padeceu, os tratamentos, exames, consultas a que foi sujeita, incapacidade permanente, perda de capacidade de ganho, e o sofrimento por que passou, para além de sequelas permanentes, em função dos factos provados, mormente descritos nos pontos 11,12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 36, 27, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61. e 62; e atendendo à extensão, natureza e gravidade desses danos, mas não podendo menosprezar os valores fixados pelos tribunais superiores para situações similares, que se entende ser ajustada à reparação dos danos em causa, devendo fixar-se a título de dano biológico, tido como dano patrimonial, o valor de € 150.000,00, e a título de danos não patrimoniais o valor de € 350.000,00, perfazendo o valor total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros). 6º- Ora, não esquecendo que o acidente se deveu a culpa exclusiva do arguido, condutor do veículo. 7º- O Tribunal recorrido fez uma menos correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, com violação dos artigos Art.ºs 496º n.º 1, 494º e 483º n.º 1 todos do Código Civil.” * Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo. * EE, S.A. apresentou resposta ao recurso da demandante cível, pugnando pela sua improcedência e formulando as seguintes conclusões: “1. A Recorrente insurge-se contra os montantes indemnizatórios fixados na douta Sentença proferida pela MM.ª Juiz do Tribunal a quo. 2. A Recorrente pugna pela fixação da indemnização a título de dano biológico na sua vertente patrimonial no montante de 150.000,00€ e, a título de dano biológico na sua vertente não patrimonial, na quantia de 350.000,00 €. 3. A douta Sentença proferida pelo MM.º Juiz do Tribunal “a quo” merece reparo, em conformidade com o sustentado no recurso autónomo apresentado pela Recorrida. 4. A douta Sentença, a merecer reparo no tocante aos montantes indemnizatórios, sempre o deverá ser em virtude dos mesmos pecarem por excesso e não por defeito, conforme sustenta a Recorrente. 5. Resulta provado que, pese embora a Recorrente tenha ficado com sequelas decorrentes do acidente, as mesmas “[…] não afectam de maneira grave a possibilidade de usar o corpo e a capacidade de trabalho […]”. 6. A Recorrente não provou que trabalhava com regularidade nas limpezas. 7. A Recorrente não provou a alegada perda de rendimentos. 8. A esfera patrimonial da Recorrente não foi afetada. 9. A Recorrente não logrou provar ser, até ao momento do acidente, uma pessoa alegre e jovial. 10. A Recorrente não provou que tinha como passatempo realizar passeios/andar de bicicleta. 11. A Recorrente não provou os sentimentos de desgosto, tristeza e indignação decorrentes da privação do seu passatempo. 12. A Recorrente não logrou provar a “disfunção sexual” decorrente do acidente em causa. 13. A Recorrente não provou os sentimentos de tristeza, sofrimento, injustiça e humilhação decorrentes da alegada “disfunção sexual” de que padece. 14. A jurisprudência nacional tem vindo a considerar montantes indemnizatórios inferiores, como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/01/2023 [Proc. N.º 9934/17.2T8SNT.L1-6] e ainda do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2012 [Proc. N.º4129/06.3TBSXL]. 15. Perante o quadro fáctico exposto, os montantes indemnizatórios fixados pecam por excesso, ao invés de defeito.” * O Ministério Público na primeira instância não apresentou resposta aos recursos. * Nesta Relação, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer: “ I. No presente processo, em 15.12.2023 , foi proferida sentença : • condenando o arguido, AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. p elo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal o na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 5,50 euros, num total de 440 euros, o bem como na pena acessória de proibição de condução de qualquer categoria de veículos motorizados por um período de 4 quatro) meses; • condenando a seguradora "EE, SA" o no pagamento, à demandante DD, ▪ da quantia de 95 406,25 euros (noventa e cinco mil, quatrocentos e seis euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora legais, contados desde a data da prolação desta sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo do demais. ▪ dos danos patrimoniais vindouros que se mostrem ser consequência da conduta do arguido, que vierem a ser liquidados em execução de sentença, nos termos do artigo 8 2.º do CPP; o no pagamento, ao Centro Hospitalar …, EPE, da quantia de 29 774,58 euros (vinte e nove mil, setecentos e setenta e quatro euros e cinquenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora legais, contados desde a data da notificação para contestar o pedido cível, até efectivo e integral pagamento. Dessa sentença recorreram • a demandante civil DD , pugnando pela sua revogação e « substituição por Decisão que determine a condenação da Demanda da ora Recorrida “EE, S.A.” no pedido de indemnização civil no montante de EUR. 500.000,00 (quinhentos mil euros) »; • a demandada EE, S.A .., - pugnando pela modificação da matéria de facto provada: ▪ retirando do elenco de factos provados os que agora constam dos artigos 66, 67 e 68, e do elenco dos factos não provados os que agora constam dos artigos 1 e 2; ▪ aditando aos factos provados o facto: “A Demandante DD conhecia bem aquele local, por ali circular com frequência, nomeadamente para ir beber café ao aeródromo”. - argumentando de em matéria de Direito (verificação dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil à luz do quadro factual apurado, especialmente a culpa dos intervenientes no acidente, o dano e o nexo de causalidade, bem como os montantes indemnizatórios arbitrados); - pedindo, em consequência, a revogação da decisão recorrida e substituição por outra que julgue improcedente os pedidos de indemnização civil e absolva a Recorrente dos pedidos formulados pela Demandante DD e pelo Demandante Centro Hospitalar …, EPE. III. Os recursos foram correctamente admitidos: com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo. IV. Ao recurso interposto pela demandante DD respondeu a demandada EE, S.A.; o Ministério Público junto do tribunal recorrido não respondeu a qualquer recurso, embora devesse tê-lo feito relativamente ao recurso da demandada EE, S.A., que impugna factos provados / não provados determinantes para a responsabilidade criminal do arguido, pois o recurso interposto pelo responsável civil aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais - artigo 402.º, n.º 2, alínea c), do CPP. Por esse motivo, emitiremos parecer restrito ao recurso da demandada EE, S.A. e, neste, à matéria de facto impugnada e suas consequências jurídicopenais. V. Não se vislumbra fundamento para rejeição do recurso e que obste ao seu conhecimento – artigos 417.º, n.º 6, e 420.º, n.º 1, a contrario, do CPP. VI. Apreciação do recurso da demandada EE, S.A. a. Quanto aos factos provados / não provados 1. Alega a recorrente que os pontos 66, 67 e 68 do elenco dos factos provados e os pontos 1 e 2 do elenco dos factos não provados consubstanciam conclusões que prendem com a definição da responsabilidade pela ocorrência do acidente de viação dos presentes autos e, nesse sentido, devem ser expurgados da parte da decisão relativa à matéria de facto. Alega que «[o]s factos” em causa são de tal forma conclusivos que a respetiva impugnação, em vez de apontar os concretos meios de prova que implicam decisão diversa, impõe a reapreciação de todo o enquadramento jurídico postulado na douta Sentença». Não obstante, faz depois a reapreciação de alguns meios de prova. Afigura-se-nos, que, com excepção do que respeita a pequena parte do facto provado 67, não assiste razão à recorrente. Vejamos porquê. 2. Da acusação deve constar, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada – artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Deverão estar descritos, pois, para além do mais, todos os factos que integram todos e cada um dos elementos típicos de cada crime imputado ao arguido, incluindo: elementos objectivos e subjectivos; factos respeitantes às formas do crime (consumação e tentativa); factos respeitantes à participação [autoria (diferentes formas) e cumplicidade]; factos integrantes da culpa. Faltando qualquer um deles não haverá crime. Serão esses factos que terão de ser considerados provados (artigo 374.º, n.º 2, do CPP) para que o arguido possa ser condenado pela prática do crime. Factos relevantes para a existência de crime não são apenas «quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior», como, citando ALBERTO DOS REIS, defende a recorrente. São todos aqueles que constituem os elementos descritos no tipo, incluindo, pois, os de âmbito subjectivo: os que constituem o dolo (respeitantes ao conhecimento do facto e vontade de o praticar), alguns que respeitam à negligência (como veremos infra) e a culpa (designadamente, mas não só, os que respeitam à consciência da ilicitude do facto – artigo 17.º, n.º 1, do Código Penal). Quanto aos elementos típicos, não pode ainda esquecer-se que os tipos de ilícito se servem de elementos de dupla natureza: descritivos, que são apreensíveis através de uma actividade sensorial (p. ex., matar, magoar, destruir), não sendo necessária qualquer valoração, e normativos, que só podem ser compreendidos através de valoração jurídica ou cultural (Sobre esta distinção, cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS et. al., Direito Penal – Tomo I – Questões Fundamentais – A Doutrina Geral do Crime, 3.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2019, pp. 335-336, JOSÉ DE FARIA COSTA, Direito Penal, Lisboa: Imprensa Nacional, 2017, pp. 238-239, e GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português – Teoria do Crime, 2.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, pp. 28-29.) Quais são esses factos depende sempre do tipo de crime em causa. 3. Estando imputado ao arguido a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 148.º, n.º 1, e 15.º do Código Penal, há que fazer umas breves considerações sobre esse crime relevantes para determinar que factos devem ou não ser objecto de prova e consequente juízo de “provados / não provados”. Determina o n.º 1 do artigo 148.º do Código Penal que quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. O artigo 15.º do mesmo diploma, por sua vez, define o que é uma conduta negligente como aquela em que o agente, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actua sem se conformar com a sua realização, ou nem sequer chega a representar essa realização. Esta noção reduz-se ao que, em termos analíticos, e seguindo JESCHECK, se poderá denominar de violação do dever objectivo de cuidado (desvalor da acção) e a produção, causalidade e previsibilidade do resultado (desvalor do resultado). O dever objectivo de cuidado manifesta-se em duas vertentes: uma interna, outra externa. Cuidado interno é o dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma penal e valorar esse perigo de modo a agir de forma adequada a evitá-lo. O cuidado externo, por sua vez, obriga o agente a ter uma conduta tendente a evitar o resultado. Desdobra-se em três exigências principais: 1. dever de omitir acções perigosas; 2. dever de actuar prudentemente em situações perigosas; 3. dever de preparação e informação prévia. Os deveres de cuidado externo especiais que, na situação dos autos, se impunham ao arguido são os resultantes da legislação estradal, nomeadamente do Código da Estrada. A relação entre o evento e a conduta, a causalidade do resultado, não se basta na negligência com a mera causalidade natural; é ainda necessário que se estabeleça um nexo de imputação objectiva, ou seja, que se determine que, de entre as várias condições que concorreram para que o evento se desse, foi a conduta do agente que especificamente o causou. Para que se possa estabelecer este nexo de imputação é sempre necessário provar que o resultado poderia ter sido evitado com uma conduta conforme ao dever de cuidado (evitabilidade do resultado), por um lado, e que a norma cominadora do dever de cuidado violada tivesse precisamente como fim evitar a produção ou o perigo de produção de eventos como o produzido no caso concreto (isto é, que o resultado típico caia sobre a esfera de protecção da norma). ROXIN definiu em que termos se deve apreciar se o resultado teria ou não sido evitado com uma conduta conforme ao dever de cuidado (cf. Problemas Fundamentais do Direito Penal, 2.ª ed., Lisboa, Vega, 1993, pp. 257 e 258). Com o que se chamou doutrina da potenciação ou incremento do risco, veio a entender-se que se deve imputar objectivamente o resultado ao agente quando a sua conduta tenha aumentado de forma inequívoca e insustentável o perigo para o bem jurídico protegido. Assim sendo, esta imputação objectiva deve ser negada sempre que, não obstante o aumento do risco de produção do resultado, se conclui que aquele preciso resultado, com forte probabilidade, sempre se produziria, ainda que o agente adoptasse uma conduta conforme ao cuidado. Nestes termos, para além dos factos que respeitam à concreta conduta objectiva do agente-arguido (a que se realiza no mundo exterior), há que provar se existia ou não dever de cuidado, se o agente representou ou previu o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma penal, se se conformou ou não com a realização desse resultado, se o resultado poderia ter sido evitado com uma conduta conforme ao dever de cuidado, se o agente era ou não capaz de realizar tal conduta, e se, de entre as várias condições que concorreram para que o evento se desse, foi a conduta do agente que especificamente o causou. Para além, claro, do que é imprescindível para a existência de culpa: a consciência da ilicitude do facto. Não pode, no entanto, esquecer-se que também os crimes negligentes têm um tipo objectivo e um tipo subjectivo, i. e., elementos típicos objectivos e elementos típicos subjectivos (Cf. nesse sentido JORGE DE FIGUEIREDO DIAS et. al., ob. cit., pp. 1032-1034, e GERMANO MARQUES DA SILVA, ob. cit., pp. 127-128.), podendo ser do tipo descritivo ou tipo normativo. P. ex., entre os elementos típicos objectivos normativos está a existência do dever de cuidado e entre os elementos típicos subjectivos descritos está a representação da realidade. 4. O que consta do artigo 66 dos factos provados é o nexo causal entre um facto e outro, e a evitabilidade deste. O tribunal deu como provado – e bem – que foi porque o arguido não reduziu a velocidade do automóvel que embateu no corpo da ofendida. Ou seja, este é o facto que respeita ao imprescindível nexo de imputação objectiva entre acção (no caso) e resultado, por um lado, e à evitabilidade do mesmo (se foi porque não abrandou que embateu, se tivesse abrandado não teria embatido). Sem a prova deste facto não seria o arguido condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência. Trata-se de um facto (embora normativo), não de apreciação de direito. A este propósito sublinhe-se que, efectivamente, como exposto na sentença, se o arguido tivesse reduzido a velocidade o embate não teria ocorrido. A recorrente refuta tal facto, assentando a sua argumentação no seguinte: • «a iluminação proveniente dos faróis do veículo apenas permitiria ao Arguido ver a Demandante quando o veículo completasse a manobra de mudança de direção para a direita, sendo elementar concluir, face às regras da experiência comum, que o Arguido não tinha qualquer possibilidade de se aperceber da presença da Demandante antes de iniciar aquela manobra»; • «ainda que o veículo de mercadorias não circulasse à frente do veículo conduzido pelo Arguido, este não teria possibilidade de se aperceber da presença da Demandante ao centro da faixa de rodagem da Rua … senão quando concluísse a manobra de mudança de direção à direita para aceder a esse arruamento»; • «atento o posicionamento da Demandante ao centro da faixa de rodagem, o acidente sempre se verificaria, independentemente da velocidade a que o veículo circulasse». É fácil de perceber que não assiste razão à recorrente: se, naquelas condições, o arguido reduzisse (como era seu dever, o que abordaremos no ponto seguinte) a velocidade até ao nível em que ficasse com condições de ver tudo o que existisse à sua frente (fosse pessoa, animal ou objecto) e de parar antes de embate, poderia e teria parado antes do embate. Foi porque não reduziu a velocidade a esse ponto que embateu. Quer a recorrente sustentar que se o arguido conduzisse a 5 km/h não teria visto a ofendida e que sempre lhe embateria? Tal só sucederia se estivesse a dormir ou completamente distraído (não ponderando aqui condutas dolosas). Note-se que se considerou provado que «[f]oi no momento em que se apercebeu da presença de DD na via, no início da curva, que o arguido embateu com a parte frontal do seu veículo no corpo da mesma», facto que o arguido não impugna. 5. No artigo 67, deu-se com o provado que o arguido «[a]giu, assim, sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, não tendo previsto, como podia e devia, as consequências que poderiam resultar e de facto, resultaram de tal condução imprudente». Neste artigo, creio que apenas merece censura (que a recorrente lhe dirige como um todo) na parte em que refere que o arguido agiu sem o cuidado a que estava obrigado, por repetir sem concretizar a letra do artigo 15.º, n.º 1, do Código Penal, sendo por isso necessariamente conclusivo, e, depois, a qualificação da condução como imprudente, em que também há um juízo conclusivo e valorativo da conduta do arguido à luz do que é um conceito indeterminado (a prudência). No mais, o que é dado como provado, é que (i) o arguido podia ter mantido a conduta a que era obrigado por lei (que é um elemento típico objectivo e que é imprescindível para que tivesse culpa), que (ii) o arguido não previu as consequências que podiam resultar da sua conduta (elemento típico subjectivo), e que (iii) as podia ter previsto (elemento típico objectivo que, com o anterior, é imprescindível para distinguir a negligência consciente da inconsciente). Já que essas consequências resultaram da sua condução é repetição de outros factos já considerados provados. A fundamentação de todos esses factos – que, na verdade, a recorrente não ataca – está feita na sentença de forma pormenorizada e não passível de censura. Há apenas que concretizar os factos que traduzem o dever de cuidado a que estrava obrigado e eliminar a qualificação da condução como imprudente (o que é desprovido de quaisquer consequências para a determinação da responsabilidade criminal do arguido). Ora, como supra exposto, o dever de cuidado que no caso legalmente se lhe impunha era o de reduzir a velocidade até que pudesse parar no espaço livre e visível à sua frente. A este propósito, note-se – e porque a recorrente também aborda tal aspecto – que, como muito bem exposto na sentença, o arguido tinha o dever legal de reduzir a velocidade antes de realizar a manobra de mudança de direcção à direita. A recorrente refuta tal dever, assentando a sua argumentação no seguinte: • «No quadro circunstancial apurado, seria impossível para qualquer outro condutor médio, numa noite escura, num sítio ermo, sem iluminação artificial, circulando a uma velocidade não concretamente apurada, mas que os elementos objetivos disponíveis permitem estimar ser inferior a 30km/h, inicia uma curva para o lado direito e se depara com um obstáculo mesmo no meio da faixa de rodagem, conseguir evitá-lo»; • que o arguido «[c]irculava a velocidade reduzida, sinalizou previamente a sua intenção de mudar de direção à direita e não tinha qualquer possibilidade de, antes de concluir essa manobra, após o início da curva, onde se deu o embate, aperceber-se de qualquer obstáculo aí existente». Tratando-se da conduta do arguido em causa nestes autos a condução de automóvel na via pública, os deveres objectivos de cuidado que no caso se lhe impunham eram, antes de mais, os previstos no Código da Estrada. Este é um elemento típico normativo, devendo pois constar dos factos imputados, do objecto da prova e do elenco de factos provados ou não provados. Analisando o Código da Estrada, facilmente se identificam os deveres que ao arguido se impunham – e que, aliás, foram bem identificados na sentença recorrida –, que aqui transcrevemos e realçamos: • O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente – artigo 24.º, n.º 1; • Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados [no caso, respeitados], o condutor deve moderar especialmente a velocidade nas localidades ou vias marginadas por edificações, nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida – artigo 25.º, n.º 1, alíneas c) e h); • Ao mudar de direcção, o condutor, mesmo não existindo passagem assinalada para a travessia de peões ou velocípedes, deve reduzir a sua velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões ou velocípedes que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via em que vai entrar – artigo 103.º, n.º 3. Ora, da conjugação destes normativos resulta cristalino que, como é imposto a todos os condutores, o arguido tinha o dever de circular a velocidade que lhe permitisse parar em segurança no espaço livre e visível à sua frente; tratando-se de mudança de direcção, o arguido tinha o especial dever de reduzir a velocidade, se necessário até ao ponto em que tivesse de parar o veículo, para deixar passar os peões que aí atravessassem a via. É absurdo o argumento da recorrente de que se não há visibilidade para a via para onde se vai mudar de direcção, não há dever de reduzir a velocidade! É precisamente o contrário: quanto menor a visibilidade, maior o dever de cautela, reduzindo a velocidade de modo a estar sempre em condições de parar no espaço livre e visível. A interpretação da recorrente retira do âmbito de aplicação da norma do artigo 103.º, n.º 3 – de clara e exclusiva finalidade de protecção dos peões (e velocípedes) contra os atropelamentos – os casos mais graves, em que, por qualquer motivo (v. g., nevoeiro denso, chuva intensa, ângulo do cruzamento ou entroncamento), não tem o condutor boa visibilidade para via para onde quer mudar direcção, o que obviamente não tem qualquer sustentação hermenêutica atendível. Neste ponto, deverá assim ser parcialmente procedente o recurso, alterando-se o facto para: «O arguido estava obrigado e era capaz de reduzir a velocidade até que pudesse parar no espaço livre e visível à sua frente, não tendo previsto, como podia e devia, as consequências que poderiam resultar e que, de facto, resultaram de tal condução». 7. O que consta do artigo 68 dos factos provados («O arguido estava ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei.») é inquestionavelmente um facto, embora de âmbito subjectivo: o conhecimento que uma pessoa tem em determinado momento é um facto que pode ser objecto de prova (o que é feito, p. ex., em qualquer avaliação escolar ou académica). O conhecimento da ilicitude penal da conduta («estava ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei») é elemento imprescindível ao juízo de culpa do arguido, como exposto. Não sendo tal facto apurado e considerado provado (ainda que, por regra, através de prova indirecta, em maior ou menor medida, pois, com raras excepções (v. g., por declaração do próprio arguido) não é possível prova directa sobre o conhecimento que ele tinha em determinado momento. 8. Em síntese: o que a recorrente pretende é que, retirando tais factos do elenco dos provados, deixe de poder ser imputado ao arguido o crime negligente por que foi condenado e, consequentemente, deixe o mesmo de ser civilmente responsável pelos danos que causou, assim se eximindo a recorrente à assunção dessa responsabilidade. Porém, com de parte do facto 67, não lhe assiste razão. 9. Os factos não provados 1 e 2 constam da contestação do arguido. No n.º 1, está apenas descrito um facto: se o arguido podia ou não ter percebido atempadamente a presença da ofendida na via, nas circunstâncias aí descritas. É, como supra exposto, um facto relevante para a determinação da negligência. Estando na contestação, não merece qualquer censura o facto de ter sido apreciado (e considerado como não provado), e não, como ora pretende a recorrente, que fosse considerado como “não escrito”. O n.º 2, porém, contém, efectivamente, um juízo conclusivo que não se traduz em qualquer facto: quando afirma que foi a assistente que, ao caminhar na via e não na berma da estrada, sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa, deu causa ao acidente. Note-se, diferentemente do que sucede quanto ao facto provado 66, não se diz que foi a assistente que foi embater no automóvel (no que não haveria qualquer problema), antes de formula logo e apenas um juízo de responsabilidade pelo acidente. Quanto a este facto, merece provimento o recurso da demandada, sendo o facto retirado da lista dos não provados. De qualquer forma, a inserção de tais factos no elenco dos não provados em nada afecta a pretensão da recorrente, como se afigura irrelevante para o seu recurso a retirada desse lote do n.º 2. b. Facto a aditar Considera a Recorrente que devia ser aditado ao elenco dos factos provados o seguinte facto: “A Demandante DD conhecia bem aquele local, por ali circular com frequência, nomeadamente para ir beber café ao aeródromo”. Sustenta tal pretensão afirmando que, «[a]pesar de se tratar de um facto meramente instrumental, certo é que não deixa de ter relevância para a apreciação do comportamento da Demandante DD, concretamente para aferir se esse comportamento foi causal do acidente dos autos». Contrariamente a essa afirmação, o conhecimento que a ofendida pudesse ter do local é absolutamente irrelevante para determinar se a sua conduta foi ou não causal do acidente: o que releva é a conduta da mesma, que consta já dos factos provados (facto 7: «[…] ofendida DD que seguia no meio da faixa de rodagem, trajando roupa escura»), não se era ou não a primeira vez que ela passava naquele local e por que motivo o fazia. O relevo da conduta da ofendida foi já objecto de apreciação expressa na sentença recorrida. O pretendido conhecimento da ofendida seria, sim, relevante se à mesma estivesse a ser imputado qualquer crime nestes autos, pelos motivos supra expostos. Mas não está. Assim sendo, é facto irrelevante que não deve constar dos factos provados, ainda que se considere que do mesmo tenha sido produzida prova em julgamento. VII. Pelo que fica exposto, somos de parecer que o recurso da demandada EE, S.A.: i. deve ser julgado em conferência por não ter sido requerida a audiência e não ser necessário proceder à renovação da prova – artigo 419.º, n.º 3, do CPP. ii. deve ser julgado parcialmente procedente no que respeita ao facto provado 67, alterando-se o mesmo na sentença para «O arguido estava obrigado e era capaz de reduzir a velocidade até que pudesse parar no espaço livre e visível à sua frente, não tendo previsto, como podia e devia, as consequências que poderiam resultar e que, de facto, resultaram de tal condução»; iii. deve ser julgado parcialmente procedente no que respeita ao facto não provado 2, que deve ser eliminado do elenco desses factos; iv. deve ser julgado improcedente no que respeita à demais pretendida modificação da matéria de facto provada / não provada, mantendo-se inalterada nessa parte a sentença recorrida, e, consequentemente, em tudo o que respeita à condenação criminal do arguido.” * Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo as recorrentes vindo acrescentar ao já por si alegado. * Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência. * 2 – Objecto do Recurso Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt,). Assim sendo, as questões a apreciar no presente recurso consistem em saber se: - houve ou não erro de julgamento quanto aos factos dados como provados e não provados apontados pela recorrente EE; - o arguido foi responsável ou o único responsável pela ocorrência do acidente de viação em apreço nos autos; - é adequado e proporcional o montante indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais à demandante cível. * 3- Fundamentação: 3.1. – Fundamentação de Facto A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação: Com relevância para a boa decisão da causa, apuraram-se os seguintes factos: FACTOS PROVADOS (fixados na sentença de 16.03.2018): 1. No dia 26.01.2013, cerca das 20:00, o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros marca … modelo …, com a matrícula … na Estrada Municipal …, no sentido de marcha …-…. 2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, DD deslocava-se, apeada, no sentido … em direcção ao …. 3. Tinha, desse local, perfeita visibilidade da EM … e dos veículos que aí circulavam vindos do …, a uma distância bastante considerável. 4. A noite estava boa, embora escura, o piso estava seco e no local inexistia iluminação artificial. 5. O arguido circulava na artéria acima indicada atrás de um veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula não apurada e a velocidade não superior a 40km/hora. 6. Ao chegar ao entroncamento com a Rua …, o dito veículo de mercadorias prosseguiu a sua marcha pela Estrada Municipal … enquanto o veículo conduzido pelo arguido seguiu na direcção da Rua …. 7. Imediatamente após ter saído da traseira do aludido veículo de mercadorias e no exacto momento em que iniciou o desvio para a direita, o arguido deparou-se com a ofendida DD que seguia no meio da faixa de rodagem, trajando roupa escura. 8. Foi no momento em que se apercebeu da presença de DD na via, no início da curva, que o arguido embateu com a parte frontal do seu veículo no corpo da mesma. 9. Após, acionou os travões e logrou imobilizar o seu veículo a aproximadamente 16 metros do inicio da curva, vindo o corpo da ofendida DD a ser projectado numa distância de 3,30 metros à frente do local onde o veículo ficou imobilizado. 10. O arguido chamou a GNR e o INEM e permaneceu no local junto à ofendida. 11. DD foi, posteriormente, transportada por uma ambulância para o C.H…., onde foi internada e recebeu assistência médica e medicamentosa. 12. Como consequência directa e necessária do descrito embate, a ofendida sofreu as seguintes lesões: traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento, traumatismo facial, traumatismo da coluna vertebral (fractura da D10 sem sinais neurológicos), hemotórax, derrame pleural esquerdo, traumatismo abdmoninal com laceração do baço, fractura da tíbia direita e luxação do joelho esquerdo. 13. Lesões que lhe determinaram um período de défice funcional temporário total de 182 dias e um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 662 dias. 14. A data da consolidação das lesões é fixável em 03.11.2004. 15. A ofendida apresenta como sequelas relacionáveis com o evento, dorso lombalgia residual e artoplastia total do joelho esquerdo, que afectam, mas não de maneira grave, a possibilidade de utilizar o corpo e a capacidade de trabalho. 16. Das lesões sofridas não resultou, em concreto, perigo para a sua vida. 17. O quantum doloris é fixável no grau 5 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente. 18. O défice funcional permanente de integridade físico-psíquica é fixável em 20%, sendo previsível a existência de danos futuros, pelo agravamento das sequelas permanentes. 19. As sequelas sofridas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares. 20. O dano estético permanente é fixável no grau 4 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente. 21. Em 26.05.2017, a ofendida apresentava, ainda, como danos permanentes: -cicatriz linear não operatória na face, com 22cm de comprimento, apenas discretamente visível e outra de 9cm na região media frontal e a restante com extensão até à região parietal esquerda, disfarçável pelo cabelo; -cicatriz de forma estrelada, com 1,5cm de maior largura da região lateral do hemitorax esquerdo; -cicatriz operatória da região anterior e interna do terço proximal da perna direita, com 12 cm e outras duas com 1 cm cada da face interna do terço distal da perna com aparente edema e dor da face antero interna e proximal com boa estabilidade do joelho com 130º de flexão e encurtamento aparente de 2cm e boa mobilidade do tornozelo; -cicatriz operatória da região anterior do joelho esquerdo e mediana com 16 cm com limitação da flexão 90º e boa estabilidade ligamentar e aparente amitrofia de 2,5cm da perna e boa mobilidade do tornozelo; -dor e contratura paravertebral do segmento dorso lombar sem aparentes alterações neurológicas e sem alterações da estática vertebral. Mais se apurou em julgamento, que: 22. O tempo de reacção de um condutor perante um obstáculo varia entre 0,75 e 2 segundos, situando-se o tempo médio em 1 segundo. 23. A distância média de reacção de um condutor num veículo que circule: - a 40km/hora é de 11 metros; - a 50km/hora é de 13,88 metros; - a 60km/hora é de 16,66 metros. 24. A distância média de travagem de um veículo que circule: - a 40km/hora é de 16 metros; - a S0km/hora é de 25 metros; - a 60km/hora é de 36 metros. Relativamente aos pedidos de indemnização civil e com relevo para a decisão da causa, provou-se que: 25. Por escrito particular titulado pela apólice 01418902, o arguido transferiu para a EE, SA. a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo identificado em 1. 26. À data do sinistro, a demandante tinha … anos de idade. 27. Em consequência do embate a demandante sofreu ferimentos e fortes dores, que foram determinantes para ser imobilizada e transportada de urgência para o Centro Hospitalar …, onde foi internada. 28. Após o atropelamento de que foi vítima, a ofendida apresentava múltiplas escoriações a nível fácil, ferida tipo escalpe na região fronto parietal esquerda, ferida da órbita esquerda, hematoma ao nível do olho esquerdo, contusão da perna esquerda e coxa direita. 29. Foi operada à perna direita e lhe foi feita imobilização da perna esquerda com tala gessada, designadamente, operada a fratura da tíbia por encavilhamento aparafusado, tratamento conservador da fratura dorsal, joelheira de controlo da flexão/ extensão à esquerda. 30. Foi observada por Cirurgia geral e Ortopedia, foram-lhe colocadas botas gessadas em ambos os membros inferiores, tendo sido suturada a ferida na cabeça e feita ligadura de proteção. 31. Ficou internada em Ortopedia cerca de um mês e depois foi transferida para uma Unidade de Média Duração e Reabilitação, designadamente o …, em …, onde foi admitida em 19.03.2013: nesta data, apresentava dorso-lombostato durante período de levante, durante 8-12 semanas, 32. Nessa altura, o membro inferior direito exibia sinais inflamatórios como edema, rubor e aumento da temperatura ao nível do joelho, perna e pé, apresentava limitação de amplitude de movimento na flexão do joelho (85º), apresentava défice de força muscular no mesmo membro. 33. O membro inferior esquerdo, foi imobilizado com tala dinâmica de estabilização lateral e antero-posterior, sem sinais inflamatórios relevantes, contudo com instabilidade articular marcada antero-posterior e lateral e sinais de compromisso neurológico, igualmente com défice de força muscular associado. 34. Sob o ponto de vista funcional deambulava em cadeira de rodas com condução, assumindo posição ortostática com auxílio de andarilho com elevação do assento e ajuda moderada de terceiros, sem capacidade para a marcha numa fase inicial por défice de força muscular marcado, apresentava igualmente dependência moderada a máxima ao nível dos autocuidados. 35. Devido à obesidade e depressão crónica, o pós-operatório foi complicado. 36. A evolução foi lenta mas positiva do seu quadro clínico-funcional, tendo retirado o colete de estabilização dorso-lombar, sem queixas e/ou alterações funcionais a nível da coluna dorsal. 37. Sob o ponto de vista motor, obteve ganhos de força muscular ao nível do membro inferior direito, nomeadamente, a nível da musculatura flexora de anca e extensora de joelho, contudo manteve sinais inflamatórios ao nível das faces laterais e anterior do terço proximal da perna (edema e rubor) exacerbados com o esforço e carga a nível do membro. 38. Manteve ortótese dinâmica de estabilização a nível do joelho esquerdo, e mantendo instabilidade articular antero-posterior e lateral, assim como atrofia muscular evidente e queixas álgicas associada, mobilização ativa e passiva. 39. Em 18.02.2013, a demandante foi forçada a comprar material ortopédico, designadamente, uma joelheira com controle de flexão e extensão e um dorsolombostato, com o que despendeu a importância de € 280,00. 40. Foi forçada a sujeitar-se a diversas consultas no Serviço de Ortopedia do Hospital …, em …, nomeadamente em 04.07.2013, 03.10.2013 e 07.11.2013, tendo suportado despesas de deslocação no montante total € 108.00 e o montante de € 18.25, respeitante a refeições. 41. Em 28.05.2014, foi operada no Hospital …, ao joelho, artroplastia total do joelho cimentada com sacrifício do ligamento cruzado posterior e preservação da rótula, fazendo marcha com auxílio de duas canadianas, ficando com uma flexão de 115º e extensão de (-) 10º. 42. Em 18.12.2015 apresentava queixas de dor nos joelhos e coluna dorso-lombar, inchaço frequente do joelho direito, dificuldade de marcha, dificuldade na mobilização dos joelhos, dificuldade em subir e descer escadas e dificuldade nas tarefas domésticas. 43. Em exame objectivo realizado nessa mesma data, evidenciou-se uma doente obesa com dificuldade na marcha, embora possível sem recurso a canadianas, dor na transição dorsolombar, cicatrizes operatórias, limitação da mobilidade do joelho esquerdo, com flexão limitada a 90%, artoplasia total do joelho esquerdo bem tolerada e funcional e calcificações do LCI na inserção proximal. 44. A demandante ficou com sequelas ao nível da cognição e afetividade, designadamente, está mais esquecida e com relativa perda de memória. 45. Na sequência dos factos, a demandante foi viver para casa da progenitora porque necessitou de auxílio para as atividades do dia-a-dia (lavar-se, vestir-se, calçar-se, etc), e ainda hoje não conseguindo pegar em pesos e realizar algumas tarefas domésticas. 46. Necessita de apoio de familiares ou terceiros para realizar algumas as tarefas domésticas, ficando na dependência funcional da sua progenitora. 47. Apresenta marcha claudicante, com recurso a ajudas técnicas, designadamente uma canadiana. 48. As sequelas sofridas são limitativas a nível familiar, de lazer e desportivo. 49. Durante o período em que esteve internada a Demandante deixou de conviver, locomover, tinha dificuldade de dormir e de estar deitada e estar em qualquer posição e foi forçada a sujeitar-se a um período prolongado de tratamentos, consultas e exames. 50. Quando passou a ser acompanhada, em regime ambulatório, tem-se sujeitado a diversas consultas e exames médicos. 51. A demandante sente-se inibida, frustrada, complexada, com sentimentos de inferioridade e com menor autoestima. 52. Sente-se complexada e triste com o seu aspeto físico. 53. Em consequência das supra citadas lesões, causadas direta e necessariamente do sinistro, a demandante deixou de poder cuidar da sua filha menor, à data do sinistro porquanto deixou de conseguir pegar ao seu colo, o que lhe provocou profunda tristeza e angustia. 54. À data do embate, a demandante era saudável, robusta. 55. Em consequência do acidente, a saúde do Demandante ficou definitivamente abalada. 56. Sente-se desgostosa, desanimada, desesperada, nervosa e abalada e chora com facilidade. 57. O que tudo agravou a sua depressão crónica. 58. A demandante sofre pelo facto de ter ficado com as cicatrizes supra referidas, sente-se envergonhada, e inibida de mostrar a sua face e membros inferiores. 59. Sente complexada e triste com o seu aspeto físico, sentimento que manifesta perante familiares e amigos, 60. Sente-se inibida de ter contacto público, sentindo-se bastante vergonha e constrangimento. 61. Em consequência das lesões sofridas e dores permanentes, a Demandante viu-se forçada a ingerir e usar regularmente medicamentos analgésicos, relaxantes musculares, nomeadamente, comprimidos para atenuar as dores permanentes. 62. Em consequência das dores permanentes, sofre de insónias e tem dificuldades em adormecer, vindo-se forçada a consumir medicamentos analgésicos, sem os quais não consegue dormir. 63. Na sequência do atropelamento de que foi vitima, a assistência prestada à ofendida pelo C.H…. ascende a € 29.774,58. * MAIS SE PROVOU (após a reabertura da audiência – reenvio): 64. O arguido, antes de entrar na Rua …, accionou os piscas, sinalizando a mudança de direcção à direita. 65. O arguido ao sair da EM … e entrar na Rua …, manteve a velocidade a que seguia, até embater na assistente DD. 66. O arguido, por não ter abrandado a velocidade que imprimia ao seu veículo, antes tendo mantido a velocidade a que seguia, apesar de encetar a manobra de mudança de direcção para a direita, a fim de entrar na Rua …, num local sem iluminação pública, à entrada de um ajuntamento de casas, sem passeios a ladear a estrada, mas por onde é frequente peões caminharem, acabou por embater no corpo de DD, que circulava apeada naquela via. 67 Agiu, assim, sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, não tendo previsto, como podia e devia, as consequências que poderiam resultar e de facto, resultaram de tal condução imprudente. 68. O arguido estava ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei. 69. O arguido conhecia aquela estrada, por ali circular com frequência, nomeadamente para se dirigir à casa da sua sogra. 70. Não havendo alternativa para os peões, é comum haver pessoas a caminhar junto às bermas da estrada, para se dirigirem às casas situadas nas imediações da mesma ou para se dirigirem ao comércio situado em …. * Provaram-se, ainda, os seguintes factos relativos à situação pessoal do arguido: 71. O arguido é …, auferindo cerca de 700 euros mensais. 72. Vive com a sua agora mulher, em casa própria, estando esta desempregada. 73. Suporta uma prestação mensal no valor de cerca de 270 euros, referente a empréstimo contraído para aquisição de habitação. 74. Estudou até ao 9º ano. 75. Não regista antecedentes criminais e não registava, à data do acidente, qualquer infracção no seu registo individual de condutor. * III. FACTOS NÃO PROVADOS Não se provaram quaisquer outros factos, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria. 1. O arguido nunca se poderia ter apercebido atempadamente da presença da ofendida, uma vez que não era expectável encontrar um peão a circular a pé, no meio da faixa de rodagem, após uma curva, de noite, num local de visibilidade quase nula, com uma indumentária escura e sem fazer uso de qualquer colete reflector ou qualquer dispositivo de sinalização luminosa. 2. Foi a assistente que, ao caminhar na via e não na berma da estrada, sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa, deu causa ao acidente. 3. A assistente seguia de costas voltadas para o sentido de marcha em que circulava o arguido no seu veículo. 4. Em consequência direta e necessária das lesões sofridas decorrentes do sinistro, a demandante sente dor na cabeça, e quando respira fundo, na zona onde teve o dreno torácico à esquerda. 5. A nível funcional, a Demandante sente a testa dormente e sente o olho esquerdo inchado e seco. 6. Desde a data do sinistro, e sob indicação clínica, foi forçada a não realizar quaisquer esforços. 7. Em consequência do sinistro, a demandante sofreu ainda um traumatismo dentário, perdendo os dentes na zona frontal da boca, necessitando de colocar os dentes 18, 17, 11 e 23 e ainda uma prótese, orçamentados em€ 580,00. 8. As próteses a colocar carecem de revisões periódicas, e ainda a médio/longo prazo a substituir as próteses dentárias que ainda terá que colocar. 9. Desde a data do sinistro, que a demandante não tem dentes na zona frontal da boca, porque não capacidade económica para suportar o pagamento de um tratamento dentário, sentindo-se consequentemente bastante vergonha e constrangida, acanhada, com vergonha em sorrir e em contatar com terceiros. 10. A demandante deixou de conseguir lavar, confecionar e dar refeições diárias, não conseguindo varrer ou limpar a sua habitação, 11. Também não consegue conduzir, viaturas automóveis, perdendo assim, em consequência do acidente, uma diminuição acentuada de autonomia para conduzir veículos automóveis ficando consequentemente dependente de terceiros para realizar viagens. 12. No âmbito laboral, ficou igualmente limitada na execução de tarefas, não conseguindo ficar em pé, sem ajuda de canadiana, sofrendo de dores permanentes. 13. Antes do acidente, a demandante era bem constituída, trabalhadora, alegre, jovial, e vivia em harmonia com o marido e filha, demais pessoas do meio e era voluntariosa no trabalho. 14. Antes dos factos a demandante trabalhava com regularidade em limpezas. 15. A demandante não tinha antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes antes do sinistro. 16. Sentindo ainda que passou a ser olhada por algumas pessoas com piedade e que nunca mais terá o mesmo corpo. 17. À data do acidente, a demandante tinha o passatempo de andar de bicicleta, sendo o seu único passatempo e de longa data, que nutria uma intensa atividade e amor. 18. Por força do acidente dos autos, a demandante teve de abandonar tal atividade física, o que acontece até à presente data, e que ficará definitivamente de o fazer, porquanto ficou incapacitada de pegar em pesos, de fazer esforços, em função das permanentes dores na zona lombar e membros inferiores, não se conseguindo equilibrar na bicicleta. 19. A atividade lúdica que a demandante praticada antes do facto gerador do dano, ficou praticamente comprometida, o que lhe provocou um profundo desgosto, tristeza, indignação, e revolta. 20. Alterando-lhe por completo a normalidade da sua vida social, e viu a sua proverbial boa disposição afetada, provocando-lhe pesar e angústia, visto não poder praticar a única atividade lúdica que tinha antes do sinistro, deixando de poder desfrutar momentos de lúdicos com a sua filha menor, sendo esta atividade desportiva e lúdica fundamental para si. 21. Os medicamentos analgésicos que se vê forçada a consumir, provocam-lhe fadiga e sono, e estão assim a ter efeitos colaterais na sua saúde. 22. Das lesões sofridas do sinistro sofreu, conjugado com as dores daí decorrentes e o uso recorrente de medicamentos analgésicos, perturbações no desejo sexual, nomeadamente, perturbação da excitação sexual e perturbações do orgasmo. 23. Vem padecendo de inibição do desejo sexual, e de praticamente ausência de qualquer atividade sexual e de orgasmos. 24. Esta disfunção sexual (pós-traumática) decorrente do sinistro que causou na demandante debilidade que a impedem de reger com normalidade a sua vida sexual, sendo um dos danos que pela sua gravidade afetou a plena comunhão de vida sexual. 25. Desde a data do acidente a demandante praticamente não tem tido qualquer relação sexual, que seja pelas dores que sente, seja pela falta de inibição do desejo sexual, associado ao traumatismo e uso de medicamentos analgésicos, perturbando necessariamente a sua vida sexual e perturbações da relação com o seu marido, inclusive um afastamento permanente deste. 26. Vê-se a demandante, não ter relações sexuais satisfatórias, decorrentes das lesões. 27. Antes do sinistro, a demandante e o seu companheiro acompanhavam-se mutuamente no dia-a-dia, com manifestações de carinho, solidariedade, amizade e boa e sã convivência, mantendo uma vida sexual plena. 28. A demandante que quer manter os laços matrimoniais com o seu companheiro, está impedida, devido ao estado de saúde desta, de consumar o matrimónio, de comungar plenamente com ela, sendo certo que o romântico amor platónico caindo bem aos poetas, não calha bem com o dia-a-dia da nossa sociedade de hoje, não se podendo, por isso, exigir à Demandante, que leve uma vida de asceta, sendo certo que a sua idade à data do acidente - … anos, lhe permite ter um normal desempenho sexual. 29. Sofreu assim a demandante um prejuízo sexual de grau 4, numa escala até 7. 30. Com efeito, as limitações físicas sofridas pela demandante, e o uso permanente de medicamentos analgésicos, que lhe vão acompanhar a vida toda, está e estará a impedi-la de realizar uma das formas de plena comunhão de vida, através do direito ao sexo conjugal na constância do matrimónio causando diretamente, com isso, um dano a si, e no seu cônjuge que se vê impossibilitado de realizar, também, o débito conjugal/interesse comum que pertence a ambos em comunhão. 31. Acresce que, e conforme supra descrito, a disfunção sexual (pós-traumática) decorrente do sinistro, desencadeou igualmente na demandante um estado de ansiedade emocional e de perturbação psicológica e frustração sexual. 32. Provocando à demandante grave pesar e angústia, bem como grande sofrimento e tristeza e um forte sentimento de injustiça e humilhação. No demais não se responde, como acima ficou consignado, por se tratar de matéria de direito, conclusiva, respeitante a meios de prova ou sem relevo para o objecto do processo. * B) Da convicção do Tribunal: Salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova, nos termos do art.º 127º do CPP deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador. Importa, porém, ressalvar que, no presente caso, em virtude do reenvio parcial e do legal impedimento do Juiz que interveio no julgamento anterior, a convicção do julgador há-de respeitar ao julgamento em que participou. Por isso importa manter, quer na factualidade, quer na motivação da matéria de facto, o que ficou exarado na sentença inicial, na parte em que não foi posta em causa pelo reenvio. Porém, os factos julgados na sequência do reenvio, que foram apurados com base nas provas agora produzidas, e cuja formação da convicção adiante se explanará, importam uma modificação essencial na apreciação global dos factos, e, por isso, nas consequências jurídicas a extrair dos mesmos, nos termos consentidos pelo próprio reenvio. Por isso que, e para evitar contradições, se afigure legítimo eliminar, da sentença original, os factos e a motivação que dali constavam que se mostram contrariados pela prova produzida na sequência do reenvio, adaptando-se, quando tal seja possível, o texto ali exarado, em função da apreciação global da factualidade apurada (quer a fixada na sentença original, na parte não posta em causa pelo reenvio, quer a agora fixada, na sequência deste). Posto isto: Ponderados todos os meios de prova produzidos em juízo (declarações do arguido, declarações da assistente, depoimento das testemunhas inquiridas e prova documental e pericial junta aos autos), à luz das regras da lógica e da normalidade do acontecer, resultaram apurados os factos acima elencados, sendo que os que se deram como não provados resultaram da ausência de prova ou do sentido contrário da prova produzida. Assim: 1.(Quanto aos factos da sentença de 16.03.2018 – transcrição): O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade, beneficiando da imediação, dispensando-se a descrição pormenorizada dos depoimentos prestados uma vez que a prova se encontra devidamente registada em suporte magnético. Valorou, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido AA, que nos pareceram sinceras e humildes e nos mereceram credibilidade, não se vislumbrando no discurso e postura que evidenciou qualquer tentativa de desresponsabilização relativamente ao sucedido. Descreveu as circunstâncias espácio temporais em que conduzia o seu veículo automóvel no sentido aeródromo e a localidade dos …, fazendo alusão ao facto de a noite ser escura e de o local não possuir iluminação pública. Garantiu que conduzia a uma velocidade moderada e não superior a 50km/hora. Circulava atrás de um veículo ligeiro de mercadorias que, por completo, lhe tapou a visibilidade da via à sua frente até ao momento em que realizou um desvio para a direita no entroncamento por forma a tomar a artéria que conduz ao interior dos …. Refere que foi nesse exacto momento, ou seja, quando faz o desvio para a direita e deixa de ter o veículo ligeiro de mercadorias em frente, que se apercebe da presença de um peão, completamente vestido de escuro - e sem assinalar, de alguma forma, a sua presença, nomeadamente com colete reflector -, no meio da via e automaticamente embate no mesmo. Adianta que, por ser absolutamente imprevisível, só depois do embate conseguiu travar e imobilizar o seu veículo uns metros à frente, sendo que o corpo da ofendida permaneceu em cima do capot enquanto ainda circulou e foi, depois, projectado daí para a faixa de rodagem. Assegurou, convictamente e sem hesitações, que o embate com a ofendida ocorreu em plena faixa de rodagem, no início da curva e no meio da via, refutando em absoluto que a tenha apanhado na berma ou próximo desta, assinalando que atingiu o corpo da ofendida com a parte frontal do seu veículo, precisamente no meio. Apesar de no local inexistirem passadeiras, referiu que existe um espaço para trânsito de peões entre a linha longitudinal e o rail de protecção situados à direita da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha, desconhecendo de onde vinha a ofendida. Instado, afirmou que o acidente não foi presenciado por ninguém e que foi o próprio a accionar os meios de emergência, não removendo o seu veículo do local onde ficou imobilizado até à chegada das autoridades. Já DD apresentou versão substancialmente diversa e, em nosso entender, salvo o devido respeito por opinião diversa, pouco ou nada congruente com a demais prova produzida, não nos merecendo qualquer credibilidade no que concerne ao exacto local onde circulava e à dinâmica do acidente. Concretamente, do pouco que afirmou ter recordação, referiu que se deslocava de casa até ao … para tomar café – confirmando trajar umas calças e blusa pretas-, sendo que depois de atravessar a estrada e colocar-se na berma – mencionando que no local inexiste qualquer rail de protecção -, viu uma carrinha branca que circulava no sentido …-…, após o que se apercebeu de outras luzes, “deixando de ver em seguida”. No mais, fez referência às lesões sofridas, aos tratamentos que lhe foram prestados e às sequelas e consequências que o acidente que a vitimou implicaram na sua vida, alterando-a significativa e definitivamente até à presente data. GG, militar da GNR que se deslocou ao local e elaborou o croqui do acidente de viação, atestou as diligências que fez aí chegado, os exíguos elementos que foi possível recolher e o teor das declarações feitas ‘in loco’ pelo condutor, confirmando o teor dos autos e croqui juntos ao processo. Descreveu, igualmente, o local, afirmando ser bastante escuro e não possuir iluminação artificial – embora existissem candeeiros públicos, à data não estavam acesos – explicando inexistirem passadeiras, sinais de travagem ou de manobras evasivas e apontando a localização dos danos que verificou no veículo – confirmando o teor das fotografias de fls. 416. Da percepção que teve, no local, afirmou que “o peão estava mesmo no meio da via” – já que, de outro modo, não teria sido atropelado, os danos no veículo seriam laterais e este teria de bater no rail de protecção - e não na berma, onde havia espaço suficiente para circular, e que o condutor “não viu o peão porque não o conseguiria ver” – dado que era extremamente difícil vê-lo naquele local, escuro, na medida em que saía da traseira de outro veículo. Diversamente, afirmou que “o peão teria de ter avistado o veículo a grande distância” – porquanto daquele local existe boa visibilidade para a artéria que vem do …. HH, conhecido da ofendida, apesar de não ter presenciado o acidente, afirmou ter-se aí deslocado logo após ter ouvido alguém comentar a ocorrência do sinistro. Foi, contudo, notoriamente parcial e tentou validar a versão da ofendida, que contudo, não colheu, no sentido de o corpo desta se encontrar próximo da berma. Com relevo, mencionou que o veículo não foi mexido, permanecendo no exacto local em que o encontrou. II e JJ, respectivamente mãe e padrasto da ofendida, revelaram conhecimento directo e pessoal das lesões que padeceu DD, dos tratamentos a que teve de se submeter e das alterações que a sua vida sofreu após os factos. Afirmaram, ainda, que esta nunca trabalhou, era doméstica à data do sinistro, vivia com bastantes carências económicas e o seu casamento já estava “por um fio”, tendo-se divorciado entretanto. Mais confirmou a progenitora que a ofendida tem actualmente um namorado e JJ que esta nunca conduziu veículos motorizados e nunca lhe conheceu qualquer hobbie, para além da igreja que frequentava. Por último, inquirido ao abrigo do preceituado no art. 340º do C.P.Penal, FF, militar do NICAV da GNR esclareceu que das diligências realizadas ficou convicto que o local de embate se situou, não no ponto assinalado no croqui anexo à participação de acidente, correspondente ao sitio onde o veículo ficou imobilizado, mas alguns metros mais atrás, porquanto o veículo, que vinha em andamento, ainda circulou e travou até parar. À semelhança do participante, igualmente concluiu que a infeliz vítima circulava, seguramente, no eixo da via, sendo impossível que seguisse junto ao rail de protecção e que o embate ocorreu exactamente no meio da parte frontal do veículo conduzido pelo arguido, admitindo como provável que DD tivesse permanecido em cima do capot por alguns metros até ser projectada para o solo. Em face da ausência de marcas de travagem, afirmou não ter conseguido precisar a velocidade a que o arguido circulava, estando estabelecido para aquele local o limite máximo de velocidade em 50 km/hora. No mais teceu, em nossa opinião, considerações puramente subjectivas, não alicerçadas em quaisquer elementos objectivos recolhidos no local. Ora, Aqui chegados, e produzida a prova, algumas notas se impõem. Em primeiro lugar importa salientar que o sinistro não foi presenciado por qualquer testemunha, sendo que os únicos depoimentos presenciais são, precisamente, o do arguido e da ofendida, que como referido supra diferem substancialmente. E quanto à dinâmica do acidente cumpriria apurar, em síntese, onde se situou o ponto provável de embate. Já que a partir desse ponto muitas outras considerações se poderiam tecer e conclusões se poderiam assumir. Contudo, a inexistência de marcas conclusivas no terreno impõem que o Tribunal conjugue a prova produzida, quer com as regras da experiência comum e juízos de normalidade, como com elementos que estão cientificamente comprovados no que respeita à condução rodoviária, nomeadamente os constantes da informação prestada pelo NICAV da GNR. Comecemos pela posição do veículo. Temos como assente, até por haver consenso das partes nesse sentido, que à frente do veículo conduzido pelo arguido circulava um veículo ligeiro de mercadorias, veículo este que invariavelmente, pelas suas dimensões, obstruía a visibilidade do arguido para o espaço à sua frente. Também resulta provado que tal veículo seguiu na direcção de … enquanto o veículo … fez um desvio para a direita. Quanto ao local onde circulava, apeada, a ofendida. Desde logo, a posição em que o veículo ficou imobilizado após o embate, o trajecto que percorreu, a localização dos danos causados no mesmo e o exacto ponto onde o corpo ficou depositado, ou seja, onde foi assinalada a poça de sangue, levam-nos a concluir, imperiosamente, que, diversamente do declarado por esta, a ofendida não circulava nem na berma, nem próximo dela, mas, efectivamente, no eixo da via. Tendo por base estas duas certezas, cumpre aferir, então, do local de embate. Apesar de ter deliberadamente faltado à verdade, as declarações prestadas pela ofendida, se bem analisadas, acabam por corroborar, em parte, a versão do arguido, porquanto também ela salienta que imediatamente após a carrinha passar, viu outras luzes e deu-se o embate, momento em que perdeu os sentidos. Daí se pode extrair, por outras palavras, que as luzes surgem no início do desvio, já que é nessa altura que o veículo ligeiro de mercadorias faz a curva para a esquerda e permite-lhe ter visibilidade para o veículo que lhe segue, após o que se dá o embate. É, assim, face a esses dados, nossa forte convicção que o embate ocorreu precisamente no início do desvio para a direita, atento o sentido de marcha do … e no eixo da via. Nem ocorreu antes, o que implicaria que o veículo não guinasse para a direita, como sucedeu, mas prosseguisse a sua marcha quase em frente, na direcção do muro aí existente. Nem depois, no ponto assinalado no croqui, que, evidentemente se trata não do ponto de embate mas de imobilização após travagem. E a corrobora-la, temos elementos que são inquestionáveis, como o tempo de reacção, a distância de reacção e a distância de travagem consoante a velocidade. * O arguido circulava numa faixa de rodagem estreita, com curvas acentuadas e atrás de outro veículo. Apesar de inexistirem rastos de travagem, cremos que será possível, pela posição em que o veículo ficou imobilizado, perceber, aproximadamente, a sua velocidade. Sabemos, agora, que entre o início da curva e o local onde o veículo ficou distam aproximadamente 16 metros. Também sabemos que a travagem não foi abrupta, tanto mais que não deixou rastos no pavimento. Então, importa socorrer-nos dos tais elementos objectivos e perceber qual o tempo médio de reacção e as distâncias de reacção e de travagem. Por tempo de reacção entende-se a quantidade de tempo que decorre entre a percepção de um obstáculo e o exacto momento em que se actua – seja pela travagem ou por recurso a uma manobra evasiva -, já que, por mais rápidos que sejam os seus reflexos, nenhum condutor consegue reagir instantaneamente. E tal tempo reacção poderá variar entre 0,75 e 2 segundos, situando-se o tempo médio, considerando um condutor médio, em 1 segundo. Sucede que, durante o tempo de reacção, ou seja, durante esse segundo que previsivelmente um condutor médio demora a reagir, o veículo continua a movimentar-se à mesma velocidade, percorrendo determinada distância, que será tanto maior, quanto mais elevada a velocidade. À distância percorrida durante o tempo de reacção chama-se distância de reacção. Assim, temos que se o arguido circulasse a 40km/hora percorreria, até accionar o sistema de travagem, 11 metros, se circulasse a 50km/hora percorreria 13,88 metros e, por fim, se circulasse a 60km/hora percorreria 16,66 metros. Haverá ainda de atender à distância de travagem, que consiste na distância percorrida entre o momento em que o condutor começa a travar e aquele em que o veículo pára. Transpondo os dados obtidos para a situação dos autos, verificamos que se o arguido circulasse a 40km/hora percorreria até imobilizar o veículo 16 metros, se circulasse a 50km/hora percorreria 25 metros e se circulasse a 60km/hora percorreria uma distância de 36 metros. Importante será perceber que estas distâncias se contabilizam a partir do momento em que acciona o travão, ou seja, após percorrida a distância de reacção. O que equivale a dizer que um veículo que circule a uma velocidade de 40km/hora e se depare com um obstáculo leva aproximadamente 27 metros até parar, um veículo que circule a 50km/hora leva 38,88 metros e se circular a 60km/hora percorre uma distância de 52,66 metros até finalmente se imobilizar. Reiteramos o que ficou dito supra. Entre o início da curva e o ponto em que o veículo ficou distam 16 metros. A que deverá acrescer o perímetro do próprio veículo que será de aproximadamente 4 metros. Podemos, assim, agora, concluir de forma bastante segura que o arguido circulava impreterivelmente a velocidade inferior a 40km/hora, já que, em condições adversas – sem ângulo de visão até àquele momento e num local escuro e sem iluminação – conseguiu reagir e, seguidamente, travar em cerca de 20 metros, sem que, aliás, o tenha feito de forma abrupta. Não podemos também esquecer os dados também objectivos e conhecidos que referem o grau elevadíssimo de probabilidade de morte de um peão em caso de atropelamento a velocidade igual ou superior a 50km/hora, que felizmente não se verificou. Retomando todos os factos até aqui assentes … O local de embate terá ocorrido no início do desvio para a direita, atento o sentido de marcha do veículo. E o arguido circulava a velocidade inferior a 40km/hora. Depara-se, aí, súbita e inesperadamente, com um obstáculo, escuro – a ofendida vinha toda vestida de negro-, no eixo da via, quando desfaz a curva. Embate, levando o corpo da ofendida em cima do capote trava em cerca de 20 metros. Impõe-se, então, que nos questionemos: Era expectável o aparecimento de tal obstáculo no meio da via? Ou seja, poderia o arguido tê-lo previsto e ter adequado a sua condução à sua presença? Numa apreciação perfunctória, pareceria que não. Com efeito, na estrada em causa não existe passadeira ou qualquer outra sinalização respeitante à travessia de peões; nem existe passeio a ladear as bermas, ou mesmo qualquer estabelecimento Junto ao local do embate, que permitisse antecipar a presença de alguém na via. Ademais, como ficou assente, a ofendida iniciou a travessia da via num local sem iluminação, à noite, e junto a um entroncamento, vestindo roupas escuras. Era, pois, pouco visível. Porém, resultou da prova produzida, em função do reenvio, o seguinte: o arguido, apesar de ter accionado os piscas antes de iniciar a mudança de direcção à direita (foi o que o mesmo declarou e nenhuma prova produzida foi adequada a contrariar tal versão, já que a assistente, não chegou a ter, disso, qualquer percepção e não existem outras testemunhas presenciais dos factos), assim que saíu de trás do veículo de mercadorias (porque este seguiu pela EM …, contornando a curva), seguindo a uma distância, constante, entre os 2 e os 5 metros deste, entrou na Rua …, virando ligeiramente à direita, o que fez sem reduzir a velocidade, apesar de manter que não viria a mais de 40150 Km/h. Ou seja, segundo o arguido (e não foi produzida prova que o contrariasse), o mesmo não parou, nem reduziu a marcha, ao entrar na Rua …. Donde, legitima-se daqui concluir que o arguido, que circularia a uma velocidade de cerca de 40 km/h (facto assente na sentença inicial), confiou que a via à sua frente estaria desimpedida, tanto mais que era de noite, no Inverno e pela hora do jantar (20h00), numa via pouco movimentada àquela hora. Sucede que, também resultou apurado, em face das declarações do arguido, que o mesmo conhecia bem aquela via, já que por ali circulava frequentemente, dado que a sua sogra mora ali perto. Ora, nas imediações da via (a cerca de 60 a 80 metros), encontra-se o … de …, onde existe um Café, frequentado por alguns locais de …. Por outro lado, junto à via existem casas dispersas antes de se entrar na localidade. A estrada que liga … aos … (EM …) não é, pelo menos entre o aeródromo e a localidade, ladeada por passeios. Por isso que, os locais costumem deslocar-se, quando apeados, seja para irem ao dito Café, seja para irem das suas casas (as tais, dispersas, antes da localidade) a quaisquer estabelecimentos comerciais existentes na localidade, justamente, pelas bermas da estrada em causa. Aliás, tal foi confirmado pela testemunha GG, Militar da GNR, que acorreu ao acidente, e que, pelo exercício das suas funções, conhece bem o local, tendo referido que era frequente ver, quando por ali passava, pessoas a caminhar pelas bermas da via, já que não existe outra passagem para peões, apesar de as bermas serem quase inexistentes, a via ser estreita e o fluxo de trânsito ser intenso. Também referiu que existem casas nas imediações do local do embate e que as pessoas que ali vivem, quando se deslocam a pé, até aos estabelecimentos que existem na localidade, próximo do local do acidente (oficina, mercearia, etc), têm que caminhar pela berma. Ora, como se referiu, o arguido conhecia a via, por ali circular com frequência, quando se deslocava a casa da sua sogra. Donde, justamente por isso, não podia desconhecer que as bermas, ainda que exíguas, eram usadas para a passagem de peões, sendo certo que existiam casas nas imediações e que logo à frente se entraria na localidade de …. Ou seja, pese embora não tivesse contado com a presença da ofendida na via, o mesmo deveria contar com a possibilidade de haver peões na berma, ou a atravessar a via, para aceder à berma. Donde, era previsível que, mesmo àquela hora (20h00) pudessem haver pessoas a caminhar pela berma e, portanto, a atravessar a estrada que dá acesso à mesma. Assim, impunha-se, a quem sabe da possibilidade da presença de peões no local, tomar redobradas cautelas, tanto mais que era noite e não havia iluminação pública. Sucede, ainda, que, pese embora o arguido circulasse a uma velocidade de cerca de 40 km/h (segundo o que se deu por assente na sentença inicial e que não foi posto em causa pelo reenvio) ou seja, não teria ultrapassado os limites de velocidade para o local, o certo é que o arguido tinha um veículo de mercadorias à sua frente (segundo o próprio, sem janelas traseiras), ou seja, tapando-lhe a visibilidade da via à sua frente, até porque seguia a poucos metros de distância do mesmo (no mínimo, 2 metros, no máximo, 5 metros). Sem embargo, ciente da pouca visibilidade que aquela distância lhe proporcionava, manteve a velocidade. Ou seja, não cuidou de reduzir a velocidade para aumentar a distância a que seguia daquela viatura, e ter, assim, um maior alcance de visão sobre a via à sua frente. Do mesmo modo, assim que a referida viatura seguiu pela EM …, desenhando uma curva, altura em que o arguido voltou a ter visibilidade sobre a via à sua frente, o mesmo seguiu pela via da direita (Rua …), mantendo a mesma velocidade. Ou seja, o arguido nunca adequou a velocidade às condições concretas daquela via. O arguido, sabendo que tinha um veículo à sua frente que lhe tapava a visibilidade, e sabendo que ia virar para a via da direita (ainda que numa ligeira curva), num local sem iluminação pública, mas por onde é comum passarem pessoas, não reduziu a velocidade, por forma a avaliar das condições de segurança para realizar a manobra. E foi porque o não fez, que não teve tempo de ver a ofendida na via (ainda que a mesma vestisse roupas escuras – mas no Inverno, também é muito comum as pessoas vestirem roupas escuras – e viesse numa via sem iluminação, à noite). É certo que a testemunha GG, que é Militar da GNR, referiu que não era necessário sinalizar a intenção de entrar na Rua … com piscas, já que se vai praticamente em frente (quem segue pela EM … é que curva, no entroncamento, à esquerda, sendo a entrada para a Rua …, como que a continuação, em frente, da via principal), nem era necessário reduzir a velocidade, já que, pela configuração da via, quem por ali passe, tem que seguir a uma velocidade reduzida, sob pena de se poder despistar (existe uma curva muito apertada alguns metros antes). Porém, o seu depoimento, nesta parte, reflectirá, porventura, uma visão mais pragmática e conforme com a sua experiência pessoal, do que propriamente uma interpretação das regras de circulação rodoviária. Com efeito, e ouvido o Guarda Principal FF, que elaborou o relatório final do acidente de trânsito, e que exerce funções, desde 2012, na investigação de acidentes de viação, o mesmo concluíu, pela análise dos elementos constantes dos autos, sobre os quais elaborou o referido relatório, que, pese embora não lograsse determinar a velocidade a que o arguido seguiria, sempre teria que seguir a uma velocidade excessiva, já que não conseguiu imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente a tempo de evitar a colisão com o peão. Ou seja, em face do ambiente envolvente (era noite, existiam árvores a ladear a estrada, a iluminação era fraca, e seguia um veículo à sua frente), o arguido deveria ter regulado a velocidade, adaptando-a àquelas circunstâncias, tanto mais que seguia atrás de um veículo, que lhe reduzia a visibilidade, e mudou de direcção à direita (apesar de se tratar de uma curva ligeira, trata-se de uma mudança de direcção). Ouvida a assistente, sobre a matéria do reenvio, nada a mesma logrou acrescentar, mantendo que só se lembra de ter visto uma luz e logo perdeu a consciência (ou seja, nada soube precisar acerca da sinalização de qualquer manobra ou da velocidade imprimida ao veículo). E a testemunha HH, que não presenciou o acidente, nada soube, também, a este respeito, esclarecer. Ora, os factos apurados na sequência do reenvio impõem uma visão global do acidente diversa daquela a que se chegou antes nos autos. Com efeito, não obstante a ofendida ter tido um comportamento que a colocou em risco (pois que decidiu deslocar-se, a pé, até ao Café …, à noite, atravessando a estrada, junto ao entroncamento com a Rua …, local onde não existe passadeira, e sem iluminação pública que a tornasse perfeitamente visível), o certo é que também se apurou que o arguido, que seguia logo atrás de um veículo comercial, não reduziu a velocidade a que seguia (embora pudesse ser de cerca de 40 km/h) por forma a distanciar-se daquele veículo e poder, assim, ter visibilidade plena para a via onde queria entrar, bem como para poder mudar de direcção para a direita em condições de segurança. E foi porque assim não fez, mantendo a velocidade, que o arguido não teve tempo de se aperceber da presença da ofendida na via, quando a mesma fazia a sua travessia. Assim, o arguido não agiu com o cuidado que devia e que podia ter tido. Na verdade, o arguido devia ter reduzido a velocidade, para se distanciar do veículo que seguia à sua frente, pois que o mesmo lhe impedia a visão da via à sua frente, e porque iria tomar a via da direita. E podia tê-lo feito, porque nada o impedia (nem motivos de ordem interna, nem defeitos do veículo ou da via ou outros motivos de ordem externa). Foi porque assim não fez – não tomou todos os cuidados que lhe eram exigíveis, tanto mais que se tratava de um local onde até é comum haver peões a circular – que o arguido não viu a ofendida e, por isso se deu o acidente. Em face de tudo o exposto, impunha-se alterar a matéria de facto nos termos consentâneas com a prova produzida após o reenvio, como se decidiu fazer. Importa, ainda, acrescentar, que os factos relativos à dinâmica do acidente resultaram apurados ante as declarações do arguido (na parte em que os admitiu, sem que prova houvesse que contrariasse a sua versão), conjugados com o depoimento das testemunhas que se deslocaram ao local, nomeadamente o Militar da GNR e o Guarda Principal do NICA V, que depuseram com a necessária isenção, conjugados com a prova documental existente nos autos (designadamente a participação do acidente, o exame ao local, o relatório final e os mapas e croquis e fotografias juntos aos autos). Já a versão dada pela assistente mostrou-se contrariada pela restante prova produzida (não podia, pelos motivos já acima explanados, ter sido colhida quando se encontrava já na berma, após ter concluído a travessia da estrada, pois que o que se provou foi que a mesma foi colhida no meio da via). Quanto às restantes testemunhas, ou não presenciaram os factos, ou, tendo acorrido ao local do acidente, após o mesmo, como sucedeu com a testemunha HH, limitou-se a esclarecer sobre o local onde a vítima ficou posicionada, o que não permite inferir o concreto local do embate, pelo que pouco relevo probatório assumiu o seu depoimento para o apuramento dos factos. Quanto aos factos respeitantes ao pedido cível, valoraram-se, para além dos documentos juntos aos autos e da prova pericial produzida, as declarações da assistente e o depoimento das testemunhas que, por terem privado com a mesma, antes e após o acidente, souberam esclarecer sobre as consequências físicas, psicológicas e económicas, que a mesma sofreu, tendo sido valorados os seus depoimentos na parte em que se mostraram coerentes e coincidentes entre si. Os factos dados como não provados resultam da insuficiência da prova produzida ou do sentido contrário da mesma. * O Tribunal atendeu, bem assim, ao teor dos documentos constantes de: - fls. 3 a 5, que integra o auto de denuncia; - fls. 9, 197 e 521 a 554, que constituem elementos referentes ao processo clínico da ofendida; - fls. 54 a 57 e 61, que constitui a participação de acidente de viação e as declarações prestadas pelo condutor; - fls. 95 a 98, que integra o auto de exame directo ao local; - Fls 107, que integra o registo individual de condutor, do arguido; - fls. 126 a 128, 134 e 416 e 417, que integram fotografias do veículo e vista panorâmica do local extraída do site “googleearth”; - fls. 129 a 133, que constituem vários croquis elaborados pelo NICAV consoante as versões apresentadas pelos vários intervenientes; - fls. 135 a 144, que constitui o relatório fotográfico do local; - Fls 145 a 154, que integra o relatório final elaborado pelo NICAV; - fls. 159 a 161, 174 a 177, 188 a 189, 212 a 213, 232 a 233, 235 a 236 e 596 a 600, que integram os relatórios de perícia de avaliação de dano corporal; - fls. 356 a 362, que integram facturas juntas pela ofendida; - fls. 370 a 373, que integram facturas hospitalares; - fls. 447 a 448, que constitui a apólice de seguro; - e às informações prestadas pela GNR de …, em aditamento ao croqui, e pelo NICAV da GNR no que concerne ao tempo e distância de reacção e distância de travagem, de fls 677 a 679 e de fls 690 a 691. * A prova da ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do teor do certificado do registo criminal de fls. 644. Os factos referentes à situação pessoal e económica do arguido resultam das declarações pelo mesmo prestadas em audiência de julgamento. (…)” * 3.2.- Mérito do recurso A demandada cível interpôs recurso pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue improcedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos pelos demandantes DD e Centro Hospitalar …, EPE e que a absolva dos mesmos. Como fundamento do seu recurso: • impugna a matéria de facto, pretendendo a supressão dos factos constantes dos pontos 66), 67) e 68) do elenco dos factos provados e dos pontos 1) e 2) dos factos não provados, bem como o aditamento ao elenco dos factos provados do seguinte: “A Demandante DD conhecia bem aquele local, por ali circular com frequência, nomeadamente para ir beber café ao …”; • impugna a decisão da matéria de direito - designadamente a verificação dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil à luz do quadro factual apurado, especialmente a culpa dos intervenientes no acidente, o dano e o nexo de causalidade, bem como os montantes indemnizatórios arbitrados. Por seu turno, a demandante cível vem discutir o montante indemnizatório que lhe foi atribuído na sentença recorrida, peticionando o seu aumento. Importa, neste momento, analisar as questões concretamente suscitadas pela demandada cível nestes autos. A) Impugnação da matéria de facto A matéria de facto impugnada é a seguinte: 1. Dos factos provados: “(…) 66. O arguido, por não ter abrandado a velocidade que imprimia ao seu veículo, antes tendo mantido a velocidade a que seguia, apesar de encetar a manobra de mudança de direcção para a direita, a fim de entrar na Rua …, num local sem iluminação pública, à entrada de um ajuntamento de casas, sem passeios a ladear a estrada, mas por onde é frequente peões caminharem, acabou por embater no corpo de DD, que circulava apeada naquela via. 67. Agiu, assim, sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, não tendo previsto, como podia e devia, as consequências que poderiam resultar e de facto, resultaram de tal condução imprudente. 68. O arguido estava ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei.(…)” 2. Dos factos não provados: “1. O arguido nunca se poderia ter apercebido atempadamente da presença da ofendida, uma vez que não era expectável encontrar um peão a circular a pé, no meio da faixa de rodagem, após uma curva, de noite, num local de visibilidade quase nula, com uma indumentária escura e sem fazer uso de qualquer colete reflector ou qualquer dispositivo de sinalização luminosa. 2. Foi a assistente que, ao caminhar na via e não na berma da estrada, sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa, deu causa ao acidente.(…)”. Considera ainda a recorrente que devia ser aditado ao elenco dos factos provados o seguinte: “A Demandante DD conhecia bem aquele local, por ali circular com frequência, nomeadamente para ir beber café ao …”. Para tanto, alega, em primeiro lugar, que os pontos 66, 67 e 68 do elenco dos factos provados e os pontos 1 e 2 do elenco dos factos não provados consubstanciam conclusões que se prendem com a definição da responsabilidade pela ocorrência do acidente de viação em apreço e, nesse sentido, devem ser expurgados da parte da decisão relativa à matéria de facto. Na perspectiva da recorrente, esta matéria deve ser retirada do elenco dos factos provados e não provados, porquanto todos eles correspondem a juízos conclusivos e encerram, em si mesmos, a resposta à questão jurídica que o Tribunal tem de resolver. Apreciemos a sua pretensão. Na verdade, como refere a recorrente na sua motivação de recurso, nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e o que é matéria de direito. É, porém, comummente aceite na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei é questão de direito. A propósito da distinção entre estas duas questões, de facto e de direito, veja-se, entre outros, o Acórdão do STJ datado de 7/05/09, proferido no processo nº 08S3441, em que foi relator Vasques Dinis, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ (…) III - No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos). IV - No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio. V - Para se saber se um embate de veículos foi ou não violento, basta conjugar a percepção colhida pelos sentidos de quem a ele assiste com as regras gerais da experiência, sem necessidade de elaborar no domínio das normas de direito, daí que o vocábulo "violentamente", utilizado para qualificar aquele fenómeno, representando um juízo não decorrente de qualquer operação de subsunção ou valoração jurídica e sem virtualidade para, por si só, fornecer a solução da controvérsia relativa à descaracterização de um acidente de trabalho, contém-se no domínio dos factos, não devendo, por conseguinte, aquele vocábulo ter-se por não escrito. VI - A afirmação de que "O sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego" reporta-se a um estado ou situação do foro interno, psíquico, do sinistrado, realidade cujo conhecimento se pode alcançar mediante a apreensão, pelos sentidos, e interpretação à luz das regras de experiência, de sinais revelados por comportamentos visíveis por outrem, sem qualquer necessidade de operações lógicas de subsunção a regras de direito, situando-se no domínio dos factos. (…)” Não obstante estar vedado ao Tribunal o recurso a conceitos de direito e à inclusão de juízos valorativos ou conclusivos no campo da matéria de facto, a jurisprudência vem defendendo a possibilidade de serem utilizados termos, conceitos ou adjectivos que densifiquem ou concretizem uma determinada realidade de facto ( cf. neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ datado de 28/09/17, proferido no processo nº 659/12.6TVLSB.L1-S1, em que foi relatora Fernanda Isabel Pereira, in www.dgsi.pt). Também Miguel Teixeira de Sousa, in “Matéria de facto; julgamento; “factos conclusivos”, Jurisprudência (785) 6-02-2018”, in Blog do IPPC, refere que a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra, dando como exemplo que “sob pena de se cair num inaceitável formalismo, não pode constituir motivo de censura que o tribunal, depois de considerar provados determinados factos que consubstanciam a violação de deveres de cuidado, conclua que está demonstrada a negligência da parte”, o que revela que a afirmação de factos já com certa conotação jurídico-valorativa dependerá, contudo, da prova de factos que a suportem. Veja-se ainda, a este respeito, o acórdão do STJ datado de 14/07/21, proferido no processo nº 19035/17.8T8PRT.P1.S1, em que foi relator Júlio Gomes, in www.dgsi.pt, onde se cita Miguel Teixeira de Sousa, nos seguintes termos:“ (…) A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há-de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há-de afetar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto”(…)”. Ainda neste último acórdão, considerou o STJ que: “(…) Mas mesmo sem ir tão longe e admitindo que o Tribunal possa excluir factos genuinamente conclusivos, importa ter em conta que, como já referiu este Supremo Tribunal: “Torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito (…) não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2007, processo n.º 07A3060, NUNO CAMEIRA) Importa, pois, verificar se o facto mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa. (…)”. Em suma, como refere Helena Cabrita, in “A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível”, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pág. 106 e 107, “os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a ação seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta”. Posto isto, voltando aos factos impugnados pela seguradora, verificamos que, na perspetiva desta recorrente, os pontos 66, 67 e 68 do elenco dos factos provados e os pontos 1 e 2 do elenco dos factos não provados da sentença recorrida correspondem, todos eles, a juízos conclusivos extraídos de alguma da matéria de facto e encerram, em si mesmos, a resposta à questão jurídica que o Tribunal tem de resolver, devendo, por isso, ter-se por não escritos. Porém, como refere o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação de Évora, nos moldes supra descritos, que perfilhamos: “ (…) Da acusação deve constar, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Deverão estar descritos, pois, para além do mais, todos os factos que integram todos e cada um dos elementos típicos de cada crime imputado ao arguido, incluindo: elementos objectivos e subjectivos; factos respeitantes às formas do crime (consumação e tentativa); factos respeitantes à participação [autoria (diferentes formas) e cumplicidade]; factos integrantes da culpa. Faltando qualquer um deles não haverá crime. Serão esses factos que terão de ser considerados provados (artigo 374.º, n.º 2, do CPP) para que o arguido possa ser condenado pela prática do crime. Factos relevantes para a existência de crime não são apenas «quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior», como, citando ALBERTO DOS REIS, defende a recorrente. São todos aqueles que constituem os elementos descritos no tipo, incluindo, pois, os de âmbito subjectivo: os que constituem o dolo (respeitantes ao conhecimento do facto e vontade de o praticar), alguns que respeitam à negligência (como veremos infra) e a culpa (designadamente, mas não só, os que respeitam à consciência da ilicitude do facto –artigo 17.º, n.º 1, do Código Penal). Quanto aos elementos típicos, não pode ainda esquecer-se que os tipos de ilícito se servem de elementos de dupla natureza: descritivos, que são apreensíveis através de uma actividade sensorial (p. ex., matar, magoar, destruir), não sendo necessária qualquer valoração, e normativos, que só podem ser compreendidos através de valoração jurídica ou cultural. Quais são esses factos depende sempre do tipo de crime em causa.(…)” Ora, ao arguido foi imputada a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, tendo a sentença recorrida considerado que o mesmo agiu com negligência inconsciente. O crime em apreço vem previsto no art.º 148º, nº 1 do Cód. Penal, pela seguinte forma: “Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.” Quanto ao que se deva entender por negligência, diz-nos o art.º 15º do mesmo diploma que: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.” Relativamente ao preenchimento dos elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto no art.º 148º do Cód. Penal, escreveu-se no Acórdão do TRG datado de 9/10/17, proferido no processo nº103/15.7GTVCT.G2, em que foi relatora Ausenda Gonçalves, in www.dgsi.pt, em moldes que integralmente subscrevemos, o seguinte: “I- São requisitos do tipo complexo do crime de ofensa à integridade física negligente: a violação do dever objectivo de cuidado; um resultado lesivo típico; a imputação objectiva desse resultado à conduta descuidada do agente; e o juízo de censurabilidade dessa conduta. II- Para além de um nexo de causalidade natural, a imputação objectiva exige que o resultado seja objectivamente previsível por uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente. III- A formulação do juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o resultado e o concreto processo causal, sendo essa capacidade apreciada em função das faculdades ou qualidades que ao agente assistem. IV- Visto que o arguido não previu a possibilidade de, naquele circunstancialismo, colidir com o veículo em que seguiam os ofendidos, provocando, desse modo, lesões na sua integridade física, foi inconsciente a negligência com que actuou. V- À luz da factualidade provada, conclui-se que o arguido, no exercício da condução, violou o dever objectivo de cuidado, mas, não tendo sequer representado o resultado, apesar de ter a capacidade individual de o evitar, não poderia ter previsto que no interior do veículo ligeiro de passageiros se encontrava mais do que um ocupante.(…)” O tipo de ofensa negligente é, assim, um tipo complexo que exige não só a violação de um dever de cuidado, como a produção de um resultado lesivo da integridade física e da saúde da vítima em consequência da violação pelo agente desse dever de cuidado. Como se refere no citado acórdão do TRG: “(…) Tal dever de cuidado, que pode ser violado por acção ou omissão, manifesta-se em duas vertentes: (i) o cuidado interno, enquanto dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo; (ii) o cuidado externo, enquanto dever de praticar um comportamento externo correcto, com vista a evitar a produção do resultado. O cuidado externo desdobra-se em três exigências principais, a saber: (i) o dever de omitir acções perigosas; (ii) o dever de actuar prudentemente em situações perigosas; (iii) o dever de preparação e informação prévia. Afirmada a lesão do dever objectivo de cuidado cumpre, depois, verificar se o resultado típico pode objectivamente ser imputado à conduta descuidada do agente. O resultado produzido, lesão (dano/violação) dos bens protegidos, deve encontrar-se numa relação tal com a acção violadora do cuidado que se permita afirmar que aquele tem como causa esta última. Questão delicada é, então, a de saber quando pode afirmar-se tal nexo. Exige-se desde logo um nexo de causalidade natural. O resultado tem de ter como sua causa natural a acção. Acresce, depois, a exigência de que tenha sido precisamente a acção violadora do dever de cuidado, de entre as várias condições que concorreram para que o evento se desse, aquela causa específica que produziu o resultado. É o designado nexo de causalidade adequada. «A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme às leis científico-naturais, previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art. 10º do Código Penal) e concretização do risco proibido criado, potenciado ou não diminuído no resultado». Como é sabido, uma acção será adequada para produzir um resultado (causalidade adequada) quando uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente, tivesse podido prever que, em circunstâncias correntes, tal resultado se produziria inevitavelmente (“prognóstico posterior objectivo”). Isto significa que só será objectivamente imputável um resultado causado por parte de uma acção humana quando a mesma acção tenha criado um perigo juridicamente desaprovado que se realizou num resultado típico (imputação objectiva do resultado à acção). Não basta a existência de nexo causal, é necessário que o resultado seja objectivamente previsível. Só é causa a condição que, em abstracto e de acordo com a experiência geral, é idónea a produzir o resultado típico. Quanto à culpa, o juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o resultado e o concreto processo causal. Esta capacidade é apreciada subjectivamente, isto é, em função das faculdades ou qualidades que ao agente assistem. Não pode censurar-se ao agente a violação do dever de cuidado objectivamente imposto quando esse mesmo agente tem uma capacidade individual inferior à do homem médio. Neste sentido, refere Eduardo Correia «é ainda necessário que o agente possa ou seja capaz segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais de prever ou de prever correctamente a realização do tipo legal de crime» – Direito Criminal, I, pág. 444.(…)”. Feitas estas considerações e voltando ao caso dos autos verificamos que no ponto 66 dos factos provados se descreve a forma como o arguido violou os deveres de cuidado de não circular com velocidade excessiva e de adequar a velocidade do seu veículo às condições de tempo e de lugar, a verificação do facto lesivo e o nexo de causalidade entre a violação dos deveres de cuidado pelo arguido e a produção do resultado lesivo. Analisado o ponto 66 dos factos provados, verificamos que do mesmo não constam enunciados conclusivos, mas antes que comporta vários factos materiais e juridicamente relevantes, que permitem chegar aos enunciados dos pontos 67 e 68 subsequentes. Na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz deve usar uma metodologia que permita uma fácil apreensão da realidade que considera demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, deve determinar, sem margem para dúvidas o desfecho da causa. É certo que o ponto 66 dos factos provados não prima pela clareza e não é escorreito, devendo ter sido repartido em vários segmentos para mais fácil compreensão da realidade fáctica que descreve. Porém, tal deficiente técnica descritiva não transforma os factos referidos no ponto 66 em enunciados conclusivos, não devendo os mesmos ser considerados como não escritos. No que concerne aos enunciados 67 e 68 dos factos provados também não se consideram os mesmos conclusivos, porquanto, na esteira dos factos descritos em 66, vêm concretizar e densificar o elemento subjectivo do tipo de crime negligente em apreço, traduzindo a violação pelo arguido dos mencionados deveres de cuidado, na vertente da negligência inconsciente, e a sua actuação culposa. Nos pontos 67 e 68 dos factos provados constam expressões com inegável conotação jurídica, mas que se situam na tal área de fronteira dos conceitos comummente aceites na descrição factual habitual dos elementos subjectivos dos tipos legais de crime, que são indispensáveis e que, a faltarem na descrição da matéria de facto, não permitem a condenação do agente pela prática do crime em causa. Em conclusão, considera-se que o que consta dos pontos 66, 67 e 68 dos factos considerados provados na decisão recorrida mais não é do que a descrição da violação dos deveres objectivos de cuidado pelo arguido, do resultado lesivo típico, da imputação objectiva desse resultado à conduta descuidada do agente e do juízo de censurabilidade dessa conduta, devendo por isso ser mantidos tal como estão redigidos. Quanto aos enunciados que constituem os pontos 1 e 2 da matéria de facto não provada, da sua supressão, nos termos requeridos pela recorrente, não resulta a prova do seu contrário, nem a mesma o peticiona. Verifica-se, assim, que a inclusão de tais enunciados no elenco dos factos não provados torna-os irrelevantes para a decisão da causa, ou seja, é como se não tivessem sido alegados. Ora, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processuais, consagrados nos arts.º 2º, nº 1, 6º, nº 1 e 130º do Cód. Proc. Civil, aplicáveis por remissão do art.º 4º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal de recurso não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos concretos objeto da impugnação forem insuscetíveis de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, assumirem relevância jurídica. Caso o faça, leva a cabo uma atividade processual que se sabe não ter quaisquer consequências a nível da decisão de direito, que não leva a qualquer alteração na decisão jurídica anteriormente alcançada, não tendo a apreciação dessa matéria qualquer efeito jurídico relevante, sendo, por isso, inútil ( cf. neste sentido os Acórdãos do TRC datado de 24/4/12, proferido no processo nº 219/10.6T2VGS.C1, em que foi relator Beça Pereira, e de 14/01/14, proferido no processo nº 6628/10.3TBLRA.C1, em que foi relator Henrique Antunes, ambos in www.dgsi.pt.). Ou seja, de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo do Tribunal da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa. Se os factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito, é inútil a sua reponderação. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição de tais factos, a solução e o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecerem inalterados. Em face do exposto, verifica-se que retirar do elenco dos factos não provados os enunciados em 1 e 2, por si só, não acarreta qualquer efeito útil para a decisão final da causa, pelo que é irrelevante, nessa perspectiva, que o conteúdo de tais enunciados seja ou não conclusivo. O mesmo se dirá quanto ao facto que esta recorrente pretende aditar à matéria de facto provada, pois saber se: “A Demandante DD conhecia bem aquele local, por ali circular com frequência, nomeadamente para ir beber café ao …”, em nada nos ajuda a determinar se a mesma violou ou não algum dever de cuidado a que, enquanto peão, estava obrigada na utilização e atravessamento da via e se, com isso, contribuiu, ou não, para a ocorrência do acidente em apreço. Face à irrelevância deste facto para o desfecho final da causa, entende-se não conhecer da pretensão da recorrente quanto ao seu aditamento ao elenco dos factos provados. Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto neste tocante. Sucede, porém, que subsidiariamente, a recorrente seguradora também impugnou a mesma matéria de facto nos seguintes termos: - Os Pontos 66, 67 e 68 do elenco dos factos provados e os pontos 1 e 2 encontram-se em contradição com a prova produzida, testemunhal e documental, para além de contrariarem as regras da experiência comum. - A MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” não conjugou as declarações prestadas pelo Arguido, os depoimentos prestados pelas testemunhas com os documentos e os elementos objetivos constantes dos autos. - Os meios de prova que impunham decisão diferente são: . as declarações prestadas pelo Arguido na sessão do Julgamento realizada no dia 19.02.2018 [entre o minuto 03:00 a 03.03, o minuto 05:42 e o 5:51 e entre o minuto 11:10 e o 13:00] e na sessão do Julgamento realizada no dia 15.11.2023 [entre o minuto 06:55 e o 07:07 e entre o minuto 10:59 e o 11:33] . o depoimento prestado pela testemunha FF na sessão do julgamento realizada no dia 01.03.2018 [entre o minuto 01:58 e o minuto 06:56] . a participação de acidente de viação elaborada pelo militar GG . o croquis e registo fotográfico elaborado pela GNR e enviado aos autos em 09.03.2018 . o relatório/informação elaborado pela GNR quanto ao tempo de reação, distância de reação e de travagem, enviado aos autos em 09.03.2018 6. A MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” não conjugou as declarações prestadas pelo Arguido, com os depoimentos prestados pelas testemunhas referidas e com os documentos e os elementos objetivos constantes dos autos, nem com as regras do normal acontecer, advenientes da experiência comum. . deveria ter sido dado como provado que: 1) O Arguido apenas se poderia ter apercebido da presença da Demandante no centro da faixa de rodagem quando o veículo completasse a manobra de mudança de direção à direita, por ser esse o momento em que aquela seria alcançável pela iluminação proveniente dos faróis do veículo; 2) A Demandante encontrava-se no centro da faixa de rodagem sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa que advertisse os demais utentes da via pública – nomeadamente dos condutores – para a sua presença. Ora, relativamente à impugnação da matéria de facto, verificamos que a reapreciação da mesma poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde a verificação desses vícios tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. No caso dos autos não foi invocado pelas recorrentes nenhum dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nem o seu preenchimento resulta da leitura da decisão recorrida, pelo que nada há a dizer quanto a esta matéria. Quanto à impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, verifica-se que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida, mas já não quando tais provas apenas permitirem uma outra decisão, a par da decisão recorrida. Neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal ( cf., Ac. TRL de 02.11.2021, no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.). Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt). O recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª instância não é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma, pois o poder de apreciação da prova do tribunal de recurso não é absoluto, nem se reconduz à realização integral de um novo julgamento da matéria de facto, em substituição do já realizado em 1ª instância. Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada. Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário. Verifica-se, pois, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso. Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova ( cf., neste sentido, Ac. STJ de 13/02/08, proferido no processo nº 07P4729, em que foi relator Pires da Graça, in www.dgsi.pt ). A lei não considera relevante a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal, até porque, se assim fosse, não seria possível existir qualquer decisão final. O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional. Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, estabelece também os limites da mesma, ou seja, os poderes de cognição do tribunal de recurso. Mesmo nos casos em que exista documentação dos atos da audiência, o recurso para o Tribunal da Relação não constitui, como já se referiu, um novo julgamento, no sentido de haver lugar a reapreciação integral da prova. Na verdade, como se refere no Ac. do TRL, datado de 26/10/21 ( proferido no processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, in www.dgsi.pt): «(…) apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…). As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos. (…)» Assim sendo, o que o Tribunal da Relação pode e deve fazer nesta matéria, em sede de recurso, é verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção. A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação de matéria de facto, decorre do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância. A imediação permite que o julgador tenha uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência. A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso. Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, em cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal. Para este efeito, como se escreveu no Ac. do TRL datado de 11/03/2021 ( proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt. ): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.»). Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP datado de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt). No mesmo sentido, se decidiu no Ac. do TRG datado de 28/06/2004 ( proferido no processo nº 575/04-1, em que foi relator Heitor Gonçalves, in www.dgsi.pt ), onde se refere que: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”. Em suma, o recorrente que invoca a existência de um erro de julgamento tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas e que sustentam uma decisão diversa, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude. Voltando ao caso dos autos, verificamos que a recorrente seguradora indicou concretamente os pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, assim como as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, salientou as partes da gravação dos depoimentos que este Tribunal de recurso deveria ouvir e referiu a versão dos factos que considera dever ser considerada provada. Pretende, assim, que se deem como provados os factos não provados 1 e 2, mas com as seguintes alterações: - “ 1) O Arguido apenas se poderia ter apercebido da presença da Demandante no centro da faixa de rodagem quando o veículo completasse a manobra de mudança de direção à direita, por ser esse o momento em que aquela seria alcançável pela iluminação proveniente dos faróis do veículo; 2) A Demandante encontrava-se no centro da faixa de rodagem sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa que advertisse os demais utentes da via pública – nomeadamente dos condutores – para a sua presença;” Alega, para tanto, que a sentença recorrida considerou ter sido o arguido quem deu causa ao acidente, por não ter abrandado a velocidade que imprimia ao seu veículo por forma a evitar a colisão com a vítima, considerando ainda que a vítima se encontrava a atravessar a estrada e não que a mesma se encontrava a circular no eixo da via ou perto do mesmo. Mais alega que, no entender do Tribunal “a quo”, tal constituiu a violação pelo arguido do dever de cuidado que não lhe permitiu mudar de direção para a direita em condições de segurança e de se aperceber da presença da ofendida na via, pois devia ter reduzido a velocidade para se afastar do veículo que o precedia, o que lhe teria permitido ganhar visibilidade para a via para onde pretendia entrar e, consequentemente, ver a ofendida a atravessar a estrada. Ora, analisada a prova produzida verificamos que resulta da mesma que o embate se deu na faixa de rodagem e não na berma, como pretendido pela vítima, tendo em conta os danos verificados no veículo conduzido pelo arguido, ao centro do capôt, a ausência de marcas de rodados na berma da estrada, a ausência de marcas nos rails de protecção laterais, a ausência de marcas de rasto de travagem do veículo do arguido, o local onde o veículo do arguido se imobilizou, após o embate, e o local onde a vítima ficou, após ter sido projectada. Na fixação dos factos apurados, o Tribunal a quo teve sobretudo em conta as declarações do arguido, que assumiu a sua responsabilidade na produção do acidente e descreveu de forma pormenorizada e credível a forma como o mesmo ocorreu, conjugadas com a participação do acidente de viação, o croquis e registo fotográfico elaborado pela GNR e com o relatório final elaborado pela GNR. Ouvidas as declarações do arguido resulta das mesmas que a vítima caminhava pelo meio da estrada e que o arguido só se apercebeu da presença da mesma na via quando lhe embateu e só depois é que travou e imobilizou o seu veículo uns metros mais à frente. O arguido declarou que vinha com pouca velocidade e que virou à direita, saindo de trás de um veículo de mercadorias que seguia à sua frente, tendo feito o sinal luminoso de mudança de direcção, sendo que o embate na vítima se deu dois ou três metros após ter virado à direita. As declarações do arguido estão em consonância com os documentos juntos aos autos e com os depoimentos das testemunhas GG e FF, militares da GNR que efectuaram a participação do acidente e realizaram as diligências de observação do local após o embate. O depoimento da vítima DD não permite nenhum esclarecimento adicional, na medida em a mesma declarou só ter visto umas luzes antes de sentir o embate do veículo e não se recordar de mais nada, tendo-se apurado que ficou com sequelas do acidente ao nível da memória. Entende a recorrente seguradora que a presença do veículo de mercadorias a circular à frente do veículo conduzido pelo arguido é absolutamente irrelevante para a visibilidade que o arguido pudesse ter da demandante, porquanto: - o acidente em causa nos autos não ocorreu na EM…, mas antes na Rua …; - ainda que o veículo de mercadorias não circulasse à frente do veículo conduzido pelo arguido, este não teria possibilidade de se aperceber da presença da demandante ao centro da faixa de rodagem da Rua … senão quando concluísse a manobra de mudança de direção à direita para aceder a esse arruamento; - a conclusão de que o arguido poderia ter avistado atempadamente a demandante se se tivesse distanciado mais do veículo que o precedia parte do pressuposto, não demonstrado, de que a demandante seria visível para os condutores que, tais como o do ligeiro de mercadorias e o arguido, circulavam na EM …, antes mesmo de acederem à Rua …; - os elementos documentais disponíveis nos autos, designadamente os relativos ao local do acidente, e os depoimentos prestados pelas testemunhas não permitem concluir, como conclui a MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” que o arguido não teve tempo de ver a demandante na via porque o veículo que o precedia lhe retirava a visibilidade. Sucede, porém, que a velocidade a que o arguido seguia se considera assente nos 40 Km/h, não tendo sido objecto do reenvio, pelo que não pode agora ser posta em causa, como a recorrente pretende fazer. Também não foi objecto do reenvio o facto de que o veículo do arguido seguia imediatamente atrás do veículo de mercadorias que o precedia, como consta do ponto 7 dos factos provados. Concatenada toda a prova produzida, e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, não é possível retirar da mesma a factualidade pretendida pela recorrente seguradora de que: “O Arguido apenas se poderia ter apercebido da presença da Demandante no centro da faixa de rodagem quando o veículo completasse a manobra de mudança de direção à direita, por ser esse o momento em que aquela seria alcançável pela iluminação proveniente dos faróis do veículo.” Na verdade estes factos não resultam do depoimento do arguido e das testemunhas inquiridas e acham-se em clara contradição com os factos descritos em 7 e 8 dos factos provados que não foram objecto de impugnação por parte da recorrente, nem o poderiam ser uma vez que não foram objecto do reenvio. Assim sendo, não poderão os mesmos ser dados como assentes e aditados ao elenco dos factos provados. Já quanto aos factos: “A Demandante encontrava-se no centro da faixa de rodagem sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa que advertisse os demais utentes da via pública – nomeadamente dos condutores – para a sua presença” que a recorrente pretende ver provados, entende-se que tais factos devem efectivamente ser aditados ao elenco dos factos provados, pois não só resultam das declarações do arguido e da vítima, como foram expressamente referidos no relatório final do sinistro, elaborado pela GNR de …, datado de 8/11/2013 e junto aos autos a fls. 145 e seguintes. Por outro lado, estes factos consistem numa concretização dos factos dados como provados em 7 e não impugnados, nem objecto do reenvio, mas que explicam o comportamento da vítima momentos antes do embate, o que se pode revelar útil na determinação da sua participação na produção do acidente em moldes que adiante consideraremos. B) Responsabilidade do arguido na produção do acidente A sentença recorrida considerou o arguido como o único responsável na produção do acidente em apreço nos autos. Por seu turno a recorrente seguradora pretende que se considere a vítima como a única responsável pela produção do acidente. A fim de resolvermos esta questão, importa atentar na matéria de facto apurada após as alterações agora efectuadas. Quanto ao comportamento do arguido e da vítima momentos antes do embate, apurou-se que: “1. No dia 26.01.2013, cerca das 20:00, o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros marca … modelo …, com a matrícula … na Estrada Municipal …, no sentido de marcha …- …. 2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, DD deslocava-se, apeada, no sentido … em direcção ao …. 3. Tinha, desse local, perfeita visibilidade da EM … e dos veículos que aí circulavam vindos do aeródromo, a uma distância bastante considerável. 4. A noite estava boa, embora escura, o piso estava seco e no local inexistia iluminação artificial. 5. O arguido circulava na artéria acima indicada atrás de um veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula não apurada e a velocidade não superior a 40km/hora. 6. Ao chegar ao entroncamento com a Rua …, o dito veículo de mercadorias prosseguiu a sua marcha pela Estrada Municipal … enquanto o veículo conduzido pelo arguido seguiu na direcção da Rua …. 7. Imediatamente após ter saído da traseira do aludido veículo de mercadorias e no exacto momento em que iniciou o desvio para a direita, o arguido deparou-se com a ofendida DD que seguia no meio da faixa de rodagem, trajando roupa escura. 8. Foi no momento em que se apercebeu da presença de DD na via, no início da curva, que o arguido embateu com a parte frontal do seu veículo no corpo da mesma. 9. Após, acionou os travões e logrou imobilizar o seu veículo a aproximadamente 16 metros do inicio da curva, vindo o corpo da ofendida DD a ser projectado numa distância de 3,30 metros à frente do local onde o veículo ficou imobilizado. (…) 64. O arguido, antes de entrar na Rua …, accionou os piscas, sinalizando a mudança de direcção à direita. 65. O arguido ao sair da EM … e entrar na Rua …, manteve a velocidade a que seguia, até embater na assistente DD. 66. O arguido, por não ter abrandado a velocidade que imprimia ao seu veículo, antes tendo mantido a velocidade a que seguia, apesar de encetar a manobra de mudança de direcção para a direita, a fim de entrar na Rua …, num local sem iluminação pública, à entrada de um ajuntamento de casas, sem passeios a ladear a estrada, mas por onde é frequente peões caminharem, acabou por embater no corpo de DD, que circulava apeada naquela via. 67 Agiu, assim, sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, não tendo previsto, como podia e devia, as consequências que poderiam resultar e de facto, resultaram de tal condução imprudente. 68. O arguido estava ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei. 69. O arguido conhecia aquela estrada, por ali circular com frequência, nomeadamente para se dirigir à casa da sua sogra. 70. Não havendo alternativa para os peões, é comum haver pessoas a caminhar junto às bermas da estrada, para se dirigirem às casas situadas nas imediações da mesma ou para se dirigirem ao comércio situado em ….” E apurou-se ainda que: “A Demandante encontrava-se no centro da faixa de rodagem sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa que advertisse os demais utentes da via pública – nomeadamente dos condutores – para a sua presença”. Decorre desta factualidade: 1- quanto ao arguido: - não se apurou a velocidade concreta a que seguia o seu veículo, sendo que não seguia a mais de 40 km/h, velocidade permitida para o tipo de estrada em causa; - não se apurou qual o espaço que mediava entre a frente do veículo do arguido e a traseira do veículo que o precedia antes de iniciar a manobra de mudança de direcção para a direita; - a noite era de inverno, estava escura e o local não tinha iluminação pública; - a estrada era perto de uma localidade, onde era previsível que pudessem existir pessoas a atravessá-la; - o arguido conhecia o local e as suas características por aí passar habitualmente; - a distância a que o arguido seguia do veículo que circulava à sua frente não lhe permitiu passar a circular na via onde se deu o embate em condições de segurança, com velocidade adequada às circunstâncias de tempo e de lugar. 2- quanto à vítima: - desconhece-se se a mesma circulava pelo centro da via ou se se encontrava apenas a atravessar a estrada, sendo que o podia fazer naquele local, face à inexistência de passadeiras de peões nas imediações; - mesmo que estivesse só a atravessar a estrada, da forma mais rápida e no trajecto mais curto possível, a vítima vestia de escuro e não sinalizou a sua presença na via, seja através de uma luz artificial ou de um colete reflector. Quanto à atribuição da culpa na produção do acidente, lê-se na fundamentação da decisão recorrida que: “(…) não obstante a ofendida ter tido um comportamento que a colocou em risco (pois que decidiu deslocar-se, a pé, até ao Café do …, à noite, atravessando a estrada, junto ao entroncamento com a Rua …, local onde não existe passadeira, e sem iluminação pública que a tornasse perfeitamente visível), o certo é que também se apurou que o arguido, que seguia logo atrás de um veículo comercial, não reduziu a velocidade a que seguia (embora pudesse ser de cerca de 40 km/h) por forma a distanciar-se daquele veículo e poder, assim, ter visibilidade plena para a via onde queria entrar, bem como para poder mudar de direcção para a direita em condições de segurança. E foi porque assim não fez, mantendo a velocidade, que o arguido não teve tempo de se aperceber da presença da ofendida na via, quando a mesma fazia a sua travessia. Assim, o arguido não agiu com o cuidado que devia e que podia ter tido. Na verdade, o arguido devia ter reduzido a velocidade, para se distanciar do veículo que seguia à sua frente, pois que o mesmo lhe impedia a visão da via à sua frente, e porque iria tomar a via da direita. E podia tê-lo feito, porque nada o impedia (nem motivos de ordem interna, nem defeitos do veículo ou da via ou outros motivos de ordem externa). Foi porque assim não fez - não tomou todos os cuidados que lhe eram exigíveis, tanto mais que se tratava de um local onde até é comum haver peões a circular - que o arguido não viu a ofendida e, por isso se deu o acidente. (…)”. Ou seja, a Mmª Juiz a quo reconheceu a violação de um dever de cuidado também pela vítima, mas não retirou daí quaisquer consequências jurídicas, tendo atribuído toda a responsabilidade na produção do acidente ao facto de o arguido não ter abrandado a velocidade que imprimia ao veículo por si conduzido antes de passar a seguir pela estrada onde se deu o embate. Analisada a factualidade apurada, impõe-se concluir que o arguido violou os seguintes deveres de cuidado previstos no Cód. Estrada: - O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis - art.º 18º, nº 1; - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente - art.º 24º, nº 1; - Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade nas localidades ou vias marginadas por edificações, nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida - art.º 25º, nº 1, alíneas c) e h); - Ao mudar de direcção, o condutor, mesmo não existindo passagem assinalada para a travessia de peões ou velocípedes, deve reduzir a sua velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões ou velocípedes que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via em que vai entrar - art.º 103º, nº 3. Quanto ao que se deva entender por visibilidade reduzida ou insuficiente, a mesma vem definida no art.º 19º do mesmo diploma nos seguintes termos: “considera-se que a visibilidade é reduzida ou insuficiente sempre que o condutor não possa avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 m.”. Importa ainda atentar que o art.º 35º, nº 1 do Cód. Estrada, estabelece que: “O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.” Ora, da conjugação de todos estes normativos resulta que o arguido tinha o dever de circular a velocidade que lhe permitisse parar em segurança no espaço livre e visível à sua frente e, tratando-se de mudança de direcção, tinha ainda o especial dever de reduzir a velocidade e, se necessário parar o seu veículo, para deixar passar peões que estivessem a atravessar a estrada por onde pretendia seguir. Não obstante o arguido seguisse dentro dos limites de velocidade permitidos para o tipo de via em que circulava, nos termos definidos pelo art.º 27º do Cód. Estrada, a verdade é que quanto menor a visibilidade, maior o dever de cautela, devendo a velocidade ser de modo a permitir ao condutor estar sempre em condições de parar no espaço livre e visível à sua frente, conforme decorre expressamente do previsto no art.º 103º, nº 3 do Cód. Estrada. Em conclusão, o arguido devia efectivamente ter reduzido a velocidade a que seguia para se afastar do veículo que o precedia, o que lhe teria permitido ganhar visibilidade para a via para onde pretendia entrar e, consequentemente, ver a ofendida a atravessar a via, tanto mais que efectuava aquele percurso habitualmente, não lhe sendo desconhecido o facto de poderem haver peões a circular ou até a atravessar aquela estrada, atenta a proximidade de habitações e cafés. Era exigível ao arguido, assim como a qualquer outro condutor medianamente diligente colocado em idênticas circunstâncias, que tivesse reduzido a velocidade a que seguia antes de entrar na via por onde passou a circular, coisa que o arguido podia ter feito, mas não fez. Ao não agir em obediência aos cuidados exigidos pelo Código da Estrada, podendo e devendo fazê-lo, o arguido embateu no corpo da vítima e desse embate resultaram as lesões supra descritas. Atento o disposto no art.º 487º, nº 2 do Cód. Civil, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. Consagra-se aqui o critério da culpa em abstracto, conforme à diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente e cuidadoso, em face do condicionalismo próprio do caso concreto. O critério legal de apreciação da culpa é, assim, um critério abstracto, ou seja, deve ter em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal. Em face da matéria de facto apurada, impõe-se a conclusão de que o arguido ao agir como agiu, podendo ter agido de outro modo, teve culpa na produção do acidente em apreço. Quanto à vítima, o Código da Estrada impunha que: - Artigo 99.º - Lugares em que podem transitar “1 - Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas. 2 - Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) Quando efetuem o seu atravessamento; b) Na falta dos locais referidos no n.º 1 ou na impossibilidade de os utilizar; (…) 4 - Sempre que transitem na faixa de rodagem, desde o anoitecer ao amanhecer e sempre que as condições de visibilidade ou a intensidade do trânsito o aconselhem, os peões devem transitar numa única fila, salvo quando seguirem em cortejo ou formação organizada nos termos previstos no artigo 102.º (…)” - Artigo 100.º- Posição a ocupar na via “1 - Os peões devem transitar pela direita dos locais que lhes são destinados, salvo nos casos previstos na alínea d) do n.º 2 do artigo anterior. 2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior, os peões devem transitar pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, a não ser que tal comprometa a sua segurança. 3 - Nos casos previstos nas alíneas b), c) e e) do n.º 2 do artigo anterior, os peões devem transitar o mais próximo possível do limite da faixa de rodagem.” É do conhecimento geral que a condução automóvel é uma actividade perigosa que a vida moderna consente, por se entender que a sua permissão é mais útil do que a sua proibição. Porém, com vista a atenuar os riscos que lhe são inerentes, exige-se aos condutores a observância de determinadas regras de cuidado, assim como aos peões, que não estão isentos de também as observar. Da matéria de facto provada resulta que a vítima circulava pelo meio da faixa de rodagem, numa noite escura, trajando de escuro, sem sinalizar a sua presença na via, num local que a mesma conhecia e por onde sabia circularem veículos automóveis com frequência, sem se ter certificado de que podia ocupar a faixa de rodagem sem perigo de acidente. Como se viu, a sentença recorrida reconheceu a violação destes deveres de cuidado por parte da vítima, mas não retirou daí quaisquer consequências, a nosso ver erradamente. É que atentos os factos apurados, quer o arguido, quer a vítima violaram deveres de cuidado, violação essa que fez com que os comportamentos de ambos contribuíssem para a produção do acidente. Estatui o art.º 570º, nº 1 do Cód. Civil que: “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.” Concatenada toda a prova produzida e avaliada toda a factualidade apurada, considera-se justo e proporcional considerar que o arguido contribuiu em 30% para a produção do acidente e a vítima em 70%, pois, não obstante a violação dos deveres de cuidado pelo arguido, foi o comportamento da vítima que contribuiu em maior percentagem para a produção do acidente em apreço. Do embate do veículo conduzido pelo arguido no corpo da vítima resultaram as lesões supra descritas, que as recorrentes não impugnaram. Mais à frente nos debateremos sobre a impugnação feita pelas recorrentes relativamente aos montantes indemnizatórios atribuídos à vítima na decisão recorrida. Porém, importa ainda antes atentar na responsabilidade criminal do arguido, na medida em que a decisão recorrida lhe atribuiu uma pena pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, com base no pressuposto de que o arguido foi o único culpado na produção do acidente em apreço nos autos, o que não sucedeu. C) Responsabilidade penal do arguido Não obstante o arguido e o Ministério Público não terem recorrido, não tendo sido interposto qualquer recurso relativo à parte criminal da decisão recorrida, diz-nos o art.º 402º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, que o recurso interposto pelo responsável civil aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais. Daqui decorre que o arguido que foi condenado e não recorreu pode beneficiar do recurso interposto pelo responsável cível, pois a decisão de recurso, ainda que de natureza cível, poderá alterar factos considerados provados pelo Tribunal recorrido e isso reflectir-se na culpabilidade do arguido, sendo consentida pela lei uma reformatio in melius ( cf. neste sentido Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, 2022, Almedina, pág. 938, e “ Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, vários autores, Tomo V, Almedina, anotação ao art.º 402º ). É o que sucede nos presentes autos. A decisão recorrida condenou o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5,50, num total de €440,00, a que correspondem 52 dias de prisão subsidiária, caso o arguido não pague, voluntária ou coercivamente, a multa aplicada. Mais condenou o arguido na pena acessória de proibição de condução de qualquer categoria de veículos motorizados por um período de 4 meses, nos termos previstos no art.º 69º, nº 1, al. a) do Cód. Penal. O crime de ofensa à integridade física por negligência vem previsto no art.º 148º, nº 1 do Cód. Penal, sendo punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Conforme supra se referiu, este é um crime complexo, sendo necessário para o seu preenchimento a violação de um dever objectivo de cuidado, um resultado lesivo típico, a imputação objectiva desse resultado à conduta descuidada do agente e o juízo de censurabilidade dessa conduta. Como se verificou, da factualidade apurada resulta o preenchimento pelo arguido de todos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo legal de crime, tendo o Tribunal recorrido considerado que o arguido praticou o crime na modalidade prevista no nº 1 do citado preceito legal, na forma de negligência inconsciente e, de entre o tipo de penas possíveis, optou pela aplicação de uma pena de multa. Reitera-se que estes segmentos da decisão não foram objecto de nenhum dos recursos interpostos nos autos, não podendo este Tribunal de recurso alterá-los no sentido de adoptar uma decisão mais desfavorável para o arguido. Por seu turno, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, vem prevista no art.º 69º, nº 1, alínea a) do Cód. Penal, pela seguinte forma: “ 1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos, no exercício da condução de veículo com motor ou no exercício da pilotagem de aeronave com ou sem motor, com violação das regras de trânsito rodoviário ou das regras do ar, respetivamente, e por crimes previstos nos artigos 289.º, 291.º, 292.º e 292.º-A (…).” (sublinhado nosso) Esta pena acessória, embora pressupondo a condenação do agente numa pena principal de prisão ou multa, relativamente à qual assume carácter assessório, constitui uma verdadeira pena, que limita ou restringe o direito do arguido a conduzir, devendo ser apreciada, quanto aos seus pressupostos e dosimetria, segundo as regras aplicáveis às penas principais (cf., neste sentido, por exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 389, e Acórdão do TRC datado de 16/02/22, proferido no processo nº 263/18.5GCACB-B.C1, em que foi relator Luís Teixeira, in www.dgsi.pt). Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada de acordo com os seguintes critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal: “ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena 1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.” Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Quanto à determinação concreta da pena de multa, estabelece o art.º 47º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal que: “1 - A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360. 2 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.” Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, as finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» Para Figueiredo Dias, nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena». Voltando ao caso dos autos, a sentença recorrida fundamentou a aplicação ao arguido das penas concretas em apreço pela seguinte forma: “ (…) Assim, e ao abrigo do nº 2 do art.º 71º do CPP cumpre atender: - Contra o arguido- a) grau de ilicitude: é mediano (o arguido circulava a uma velocidade, embora excessiva para as circunstâncias, de cerca de 40 km/h); b) Carácter negligente da conduta: que é de intensidade mediana. c) As consequências da sua conduta: por causa do acidente, a assistente sofreu lesões físicas, que lhe determinaram um importante período de incapacidade. - A favor do arguido - d) O arguido admitiu, no essencial os factos; e) O arguido não tem antecedentes criminais; f) O lapso de tempo significativo decorrido sobre os factos (2013), sem que haja notícia da prática de novos ilícitos. Em face de tudo quanto fica exposto e devidamente ponderado, afigura-se adequado punir a prática deste crime, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros (considerando a situação económica do arguido, tal como provada), num total de 440 euros. (…) Assim, e sob ponderação daquelas mesmas circunstâncias, acessoriamente, decido aplicar a pena de proibição de condução de veículos motorizados por um período de 4 (quatro) meses.” Analisada a decisão, verifica-se que o Tribunal recorrido relativamente ao arguido não teve integralmente em conta o seu comportamento posterior ao facto, traduzido na assistência que o mesmo prestou à vítima após a ocorrência do acidente, e o carácter essencial da sua colaboração para o esclarecimento dos factos, uma vez que a factualidade apurada resultou sobretudo da sua confissão, a qual foi determinante para a descoberta da verdade, face à inexistência de qualquer outra testemunha que tivesse presenciado o acidente. Por outro lado, são muito elevadas, e carecem de ser ponderadas, as necessidades de prevenção geral positiva, tendo em conta a grande sinistralidade rodoviária ainda existente no nosso país e os perigos para a saúde e para a vida de terceiros que a prática da condução potencia, geradores de insegurança social e justificadores de uma resposta punitiva firme, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas e na circulação rodoviária. Face a se ter considerado que a vítima contribuiu com o seu comportamento descuidado em 70% para a produção do acidente, esta circunstância também tem que ser ponderada na diminuição do número de dias da pena de multa a aplicar agora ao arguido. Assim, tudo visto e ponderado, considera-se adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena de 30 dias de multa. Quanto ao valor diário da multa, entendemos que o mesmo não é excessivo, atentas as condições económicas do arguido, não devendo ser alterado, uma vez que a pena de multa é suposto implicar um sacrifício económico para o agente, a fim de não ficar completamente esvaziada de qualquer conteúdo. Entende-se, assim, condenar o arguido numa pena de multa no valor global de 165 euros (cento e sessenta e cinco euros). Quanto à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor aplicada ao arguido, entende-se ser a mesma de manter, uma vez que foi fixada muito próxima do mínimo legal, devendo a mesma importar também para o arguido algum sacrifício, porquanto é de uma verdadeira pena que se trata. Também aqui ponderam as elevadas as exigências de prevenção geral relativamente a este tipo de crimes, atenta a frequência e a ligeireza com que se conduz no nosso país em desrespeito pelo cumprimento das normas de trânsito e pela vida, saúde e bens patrimoniais dos demais utentes da via pública, assim postos em perigo. D) Montante indemnizatório a pagar à vítima do acidente A decisão recorrida condenou a seguradora “EE, S.A.” no pagamento, à demandante DD, da quantia de €95.406,25 (noventa e cinco mil, quatrocentos e seis euros e vinte e cinco cêntimos), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais, contados desde a data da prolação desta sentença até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado. Desta parte da decisão veio DD interpor recurso, alegando que pela extensão, natureza e gravidade dos danos por si sofridos, e sem menosprezar os valores fixados pelos tribunais superiores para situações similares, entende ser ajustada à reparação dos danos em causa a fixação de uma indemnização a título de dano biológico, tido como dano patrimonial, no valor de € 150.000,00, e a título de danos não patrimoniais no valor de € 350.000,00, perfazendo o valor total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), tudo com fundamento em que, no seu entender, o acidente se deveu a culpa exclusiva do arguido, condutor do veículo. Por seu turno, a seguradora alega no seu recurso que, perante o quadro fáctico apurado, e a culpa da vítima na produção do acidente, se lhe afigura manifestamente exagerado o montante indemnizatório de 95.000,00€ arbitrado pelo Tribunal “a quo” a título de danos não patrimoniais. Atentas as motivações de recurso de ambas as recorrentes, verifica-se que ambas discordam do montante da indemnização atribuída à vítima do acidente a título de danos não patrimoniais, não tendo sido postos em causa os restantes segmentos da indemnização atribuída, nem os danos dados como provados. De acordo com o disposto no art.º 129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil. Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõem os arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil que tem a mesma os seguintes pressupostos: a) o facto ilícito, enquanto acção voluntária, ou omissão, violadora de bens jurídicos patrimoniais ou pessoais de terceiros; b) o nexo de imputação do facto ao lesante; c) a existência de um dano ou prejuízo causado pelo facto ilícito; d) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima. Segundo o disposto no art.º 496º, nº 1 do mesmo diploma, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve-se atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Ainda segundo o previsto no art.º 562º do Cód. Civil, a obrigação de indemnizar tem em vista a reconstituição da situação que existiria na esfera patrimonial do lesado se não tivesse ocorrido o facto causador da lesão. A indemnização por danos morais, visando uma compensação do lesado pelo sofrimento, é fixada segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts.º 496º, nº 4 e 566º, nº 3 do Cód. Civil, e actualizada ao momento do julgamento ( cf., neste sentido, Ac. STJ de 14/3/91, in BMJ 405, pág. 443 ). Importa, no entanto, determinar quais são os danos não patrimoniais indemnizáveis. Conforme é hoje unanimemente entendido, a gravidade do dano não patrimonial mede-se por um padrão objetivo, consoante as circunstâncias do caso concreto, devendo ser afastados fatores suscetíveis de traduzir uma sensibilidade exacerbada ou requintada do lesado (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 499, nota 1). O dano indemnizável deve ser assim um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades (cf., neste sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª Edição, pág. 606). A gravidade do dano deve, pois, aferir-se com recurso a critérios objectivos, como sejam a dignidade e o valor intrínseco do bem ou interesse jurídico violado. Não é, no entanto, possível estabelecer um paralelismo absoluto entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico violado, havendo outros factores que podem conferir gravidade ao dano, como por exemplo a intensidade da lesão, quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa, e a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos critérios da dignidade e da intensidade poderia ficar sem protecção. Na determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis cabem ainda os decorrentes de uma especial sensibilidade do lesado, como sejam a doença, a idade e a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais. Não são, no entanto, atendíveis os meros incómodos e pequenas contrariedades, que na perspectiva do lesado mereceriam a tutela do direito, mas que não passam no crivo de uma avaliação objectiva ou de mero bom senso. Quanto à definição de quais sejam os danos não patrimoniais indemnizáveis, destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha e a ansiedade, nele se incluindo também a própria dor, que no direito português abrange quer a dor física, quer o sofrimento moral. É ainda possível a ofensa de bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico e insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra ou a reputação. A ofensa objectiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral ( cf. neste sentido, Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375). Também Antunes Varela identifica os danos não patrimoniais com os prejuízos, como as dores físicas, os desgosto morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética, que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, pelo que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados pecuniariamente (in “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, 2003, pág. 602 e seguintes). Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os actos atentatórios da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero ( cf. neste sentido “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512). No entanto, como sustenta Vaz Serra, in BMJ, vol. 83º, pág. 85: “ (…) a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação”. Assim sendo, uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios. A decisão recorrida encontra-se, neste tocante, bem fundamentada de facto e de direito. Os danos morais sofridos pela vítima em resultado do acidente em apreço, tendo em conta a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efectivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhe uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos. Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso. Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem representar um enriquecimento injustificado do lesado à custa do lesante. Da análise desta parte da decisão recorrida decorre que foram bem ponderadas as circunstâncias que qualificam os danos sofridos pela vítima, tendo relevado para a apreciação desta questão que: - À data do acidente, a demandante tinha … anos de idade; - Foi submetida a cirurgia, permanecendo internada durante cerca de um mês, após o que foi transferida para uma unidade de média recuperação e reabilitação; - Foi recuperando gradualmente a sua mobilidade – primeiro com o auxílio de cadeira de rodas, depois com andarilho – dependendo da ajuda de terceiros para os autocuidados; - Em 28.05.2014 voltou a ser operada ao joelho; - As lesões sofridas determinaram-lhe um período de défice funcional temporário de 182 dias e um período de repercussão temporária na atividade profissional, num total de 662 dias, tendo sido fixada a data da consolidação das lesões, em 03.11.2014; - Ficou com sequelas: dorso lombalgia residual e artoplastia total do joelho esquerdo, as quais, não obstante, não afetam de maneira grave a possibilidade de usar o corpo e a capacidade de trabalho; - Numa escala de 7 graus, o sofrimento físico e psíquico da assistente, durante o período entre o acidente e a data da consolidação das lesões, foi fixado em 5 pontos; - O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica foi fixado em 20 pontos, sendo previsível a existência de danos futuros, pelo agravamento das sequelas permanentes; - Dano estético permanente fixado em 4 graus, numa escala até 7, sofrendo cicatrizes na face, e na região médio frontal – disfarçada pelo cabelo; na região lateral do hemitorax esquerdo; na perna direita e no joelho esquerdo; - Sofreu encurtamento aparente de 2 cm no joelho e dor e contratura paravertebral do segmento dorso lombar; - Em 18.12.2015, apresentava queixas de dor nos joelhos e coluna dorso-lombar, inchaço frequente do joelho direito, dificuldade de marcha, dificuldade na mobilização dos joelhos, dificuldade em subir e descer escadas e dificuldade nas tarefas domésticas; - Necessita de apoio de familiares ou terceiros para realizar algumas das tarefas domésticas; - Sofreu ainda sequelas do ponto de vista da cognição e afetividade, estando mais esquecida e com relativa perda de memória, sentindo-se inibida, frustrada, complexada e com sentimentos de inferioridade, devido ao seu aspeto físico decorrente do acidente; - Ficou emocionalmente abalada, triste e angustiada por não poder segurar a sua filha ao colo, desgostosa, desanimada e desesperada, chorando com facilidade, o que agravou a sua depressão crónica, usando regularmente medicamentos para atenuar as dores permanentes e para dormir. Importa atentar em que não se deram como provados todos os factos inicialmente alegados pela demandante cível quanto a esta matéria e que não foi feita nenhuma alteração à matéria de facto fixada neste tocante. Analisando a decisão recorrida e a factualidade apurada, considera-se que o montante de 95.000 € (noventa e cinco mil euros) de indemnização atribuído à ofendida DD, a título de compensação por danos não patrimoniais é um montante justo, adequado e proporcional, à luz da equidade, e consentâneo com a prática jurisprudencial nestas matérias. Sucede, porém, que tal quantia foi atribuída com base no pressuposto de que o arguido havia sido o único responsável pela produção do acidente em apreço nos autos, o que não se verificou, devendo a indemnização ser fixada nos termos do art.º 570º do Cód. Civil. Decorre do disposto no art.º 570º, nº 1 do Cód. Civil que quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. Tendo-se apurado que a vítima contribuiu em 70% para a produção do acidente em apreço, à luz da equidade e tendo em conta os danos concretos pela mesma sofridos, considera-se justo e proporcional atribuir-lhe uma indemnização no valor de 28.500,00 euros. Procede, assim, parcialmente o recurso da demandada cível, impondo-se alterar a decisão recorrida em conformidade. * 4. DECISÃO: Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar: A) totalmente improcedente o recurso interposto por DD; B) parcialmente procedente o recurso apresentado por EE, S.A., e, em consequência: - aditam ao elenco dos factos provados o seguinte: “A Demandante encontrava-se no centro da faixa de rodagem sem fazer uso de colete reflector ou de qualquer outro dispositivo de sinalização luminosa que advertisse os demais utentes da via pública – nomeadamente dos condutores – para a sua presença”; - alteram a decisão recorrida, condenando o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros, o que perfaz a multa global de 165 euros (cento e sessenta e cinco euros); - alteram a decisão recorrida, condenando EE, S.A. a pagar a DD a quantia de 28.500 € (vinte e oito mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da notificação para contestação do pedido cível até efectivo e integral pagamento, contabilizados às taxas legais sucessivamente em vigor para as obrigações civis; - absolvem EE, S.A. da restante parte do pedido de indemnização a título de danos não patrimoniais contra si deduzido nestes autos por DD; C) no mais confirmam a decisão recorrida. D) Atento o provimento parcial do recurso, são devidas custas que se fixam em 1/5 a cargo da EE, S.A. e 4/5 a cargo de DD. Évora, 28 de Janeiro de 2025 (texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora) Carla Francisco (Relatora) Laura Goulart Maurício Anabela Simões Cardoso (Adjuntas) |