Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
545/19.9T8STC-A.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Residindo a criança há mais de um ano, com caráter de permanência e estabilidade, num Estado-Membro (Luxemburgo), mantendo com o mesmo uma ligação de particular importância na aceção a que aludem as alíneas b) e d), do n.º 3, do artigo 15.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho de 27-11-2003, justifica-se a suspensão da instância da ação de alteração da regulação das responsabilidades parentais pendente no tribunal português, a fim de ser solicitado ao tribunal luxemburguês que se declare competente internacionalmente para conhecer da questão da alteração da regulação das responsabilidades parentais referentes ao menor.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 545/19.9T8STC-A.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ C..., Juízo de Família e Menores ...
Apelante: AA
Apelada: BB
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
No Apenso de alteração da regulação das responsabilidades parentais relativas à criança CC, nascida em ../../2016, filho de AA e de BB, foi proferido despacho, em 13-07-2023 (Ref.ª ...93), que vem a ser o recorrido, que decidiu o seguinte:
«Ora, efetivamente, pese embora este tribunal tivesse competência para a tramitação da presente ação à data da sua entrada em juízo, na medida em que a criança se encontrava, então, a residir em território nacional na área de jurisdição deste tribunal, o certo é que, entretanto, a criança, acompanhada da progenitora, fixou a sua residência no Grão-Ducado de Luxemburgo, estando aí a viver há mais de 1 (um) ano, com caráter de permanência e estabilidade, tendo, pois, com este Estado-Membro uma ligação de particular importância na conceção a que aludem as alíneas b) e d), do n.º 3, do artigo 15.º [do Regulamento (CE) n.º 2201/20003].
Nestes termos, este Tribunal decide, ao abrigo do citado artigo, suspender a presente instância e solicitar ao Tribunal Luxemburguês que, no prazo previsto para o efeito, se declare competente.
Tenha-se em consideração, no pedido a dirigir às autoridades luxemburguesas, o disposto no n.º 6, do artigo 15.º, diligenciando-se pelas competentes traduções.»

Inconformado, apelou o progenitor, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1ª- Vem o presente recurso interposto do douto despacho com a Ref.ª ...93, proferido no dia 13.07.2023 apenas notificado às partes em 29.09.2023, o qual ao abrigo do disposto no artigo 15º do Regulamento nº 2201//2000, de 27 de Novembro (certamente por certo lapso de escrita, uma vez o diploma em apreço é do ano de 2003), ordenou a suspensão da presente instância e solicitou ao tribunal luxemburguês que, no prazo previsto para o efeito, se declare competente para conhecer do mérito da causa”.
2ª- Em síntese, a fundamentação daquele douto despacho assentou no facto de correr termos nos tribunais luxemburgueses ação de regulação das responsabilidades parentais relativamente ao menor CC, o qual fixou residência no Grão-Ducado do Luxemburgo juntamente com a progenitora, estando ai a viver há mais de 1 (um ano), com caráter de permanência e estabilidade, tendo assim com este Estado-Membro uma ligação de particular importância na conceção a que aludem as alíneas b) e d) do nº3 do artigo 15º (que foi transcrito na íntegra);
3ª- Não sem antes ter considerado que os tribunais portugueses – concretamente o Juízo de Família e Menores ... - tivesse tido competência para a tramitação do processo à data da sua entrada em juízo, na medida em que criança se encontrava, então, a residir em território nacional na área de jurisdição deste tribunal, em conformidade com o artigo 8º do citado diploma legal.
4ª- O ora recorrente não se conforma com tal entendimento considerando que o douto despacho recorrido enferma de um erro fático-jurídico, que carece de retificação; daí o presente recurso.
5ª- Naquele foram violados os artigos 15º do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro, os artigos 62º, 63º e 94º do CPC, bem como o artigo 9º do RGPTC:
6º- Dispõe o artigo 62º do CPC, que: “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; (…)
7ª- Por sua vez, estatui o artigo 59 º do CPC, que: “ 1- Sem prejuízo do que se ache estabelecido em regulamentos europeus comunitários e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifiquem algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando a partes lhes tenham atribuído competência no termos do artigo 94º.”
8ª- Estipula ainda o artigo 9º do RGPTC, que: “ Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado (nº1); mas, “Se no momento da instauração do processo, a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido (…..)”(cfr. º7).
9ª-Os presentes autos de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais foram instaurados no Juízo de Família e Menores ... em 04.06.2020, pela progenitora do menor CC.
10ª-À data a criança encontrava-se a residir em Portugal, concretamente na vila de ..., aí residindo e frequentando a Creche Jardim de Infância de Grândola, bem como ambos os progenitores, tendo todos nacionalidade portuguesa.
11ª-Também em 27.09.2020 o progenitor da criança, o ora recorrente, instaurou processo de idêntica natureza, tendo peticionado que a residência do filho fosse fixada junto de si, o que veio a dar origem ao Apenso “B, passando ambos a serem apreciados; em simultâneo.
12ª- Foi designado o dia 05.07.2022, para a realização da Audiência de Julgamento, na medida em que o Tribunal a quo estava em condições de apreciar e decidir o mérito da causa, o que acabou por se frustrar em virtude da progenitora do menor ter-se ausentado de Portugal para o Luxemburgo no dia 19.05.2022, levando-o consigo.
13ª- Em 15.07.2022, teve lugar uma conferência de pais, vindo a ser ordenada a suspensão da instância no processo nº225/19...., pelo Juízo Local Criminal ..., tendo nessa ocasião sido fixado um novo regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais do menor CC que, de entre outros aspetos acautelou os convívios da criança com o progenitor até ao final do mês de Maio o corrente ano
14ª- Por douto despacho proferido no âmbito do sobredito processo nº 225/19...., em 22.03.2023, foi declarada extinta a sobredita pena acessória, facto que foi de imediato comunicado aos presentes autos, primeiro pelo aqui recorrente através da junção do douto despacho em apreço e posteriormente pelo Juízo Local Criminal ....
15ª- Perto dessa data o ora foi recorrente notificado por um Tribunal Luxemburguês para comparecer numa diligência judicial atinente a um novo processo de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais que a progenitora do menor instaurara naquele país, diligência essa agendada para o dia 24.04.2023.
16ª-Exerceu o seu contraditório por escrito, expondo os fundamentos de facto e de direito que a sustentaram, remetendo por correio registado para aquele Tribunal, tendo também providenciado pela respetiva tradução.
17ª-Até à presente data o aqui recorrente não foi notificado do que quer que seja referente a esse processo, apesar de estar munido de prova documental da reação do que remeteu aquele tribunal e os presentes autos apenas tomaram conhecimento da instauração de um novo processo num tribunal luxemburguês pela progenitora do menor, porque o ora recorrente comunicou essa situação.
18ª- O ora recorrente remeteu aos autos, em 30.05.2023 requerimento no qual reiterou o pedido deduzido em 22.03.2023, no sentido de que fosse ordenado o seu prosseguimento, considerando que já se verificara a condição a que a suspensão da instância determinada em 15.07.2022 ficara subordinada, o que acontecera no pretérito mês de Março do corrente ano.
19º- Nada tendo sido determinado, e porque se aproximavam a passos largos as férias judiciais do Verão, o ora recorrente deu entrada em juízo a outro requerimento – 10.07.2023 – peticionando que fosse designada data para a realização de uma conferência de pais em virtude do regime provisório fixado na última conferência apenas ter assegurado o regime de convívios da criança com o progenitor até ao dia 26.05.2023.
20ª- Nesta altura já era manifesto que a delonga dos autos importaria consequências nefastas para a vida da criança, e também para o progenitor, que foi ficando à mercê da vontade e imposições da requerente, o que se tornou uma realidade, que à presente data se mantem.
21ª- A inércia processual e as vicissitudes processuais que se verificaram no período compreendido entre o mês de Março do corrente e pretérito mês de Julho, fez com que tornasse possível afirmar-se que a criança vive no Luxemburgo há mais de 1 (um) ano.
22º- Mau grado o aqui recorrente ter agido processualmente de forma insistente e até repetitiva, na esperança de que os seus requerimentos fossem objeto de apreciação pelo Tribunal a quo, até porque chegou a epigrafa-los como ”URGENTES”.
23º- O Tribunal a quo nem sequer chegou a ordenar o terminus da suspensão da instância decretada em 15.07.2022 e por via disso prosseguimento dos autos; sendo que isso se lhe impunha, designando nova data para a realização da Audiência de Julgamento ou pelo menos nova conferência de pais.
24ª- O último regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais fixado já não se encontra válido, nem atual, o que tem tido consequências gravosas especialmente no que aos convívios da criança com o progenitor e família paterna respeita.
25ª-O douto despacho recorrido fez, pois, uma incorreta interpretação do artigo 15º do Regulamento CE) nº2201/2003, de 27 de Novembro.
26ª- Desconsiderando o Tribunal a quo todo o circunstancialismo supra que consta dos autos e a prova documental nos mesmos existente - relatórios sociais, audição técnica especializada, de entre outros - tendo feito uma incorreta aplicação do direito.
27ª- Com clareza resulta dos autos que a residência da criança, com caráter estável era em Portugal (na vila de ...), tendo neste país o seu centro de vida permanente e habitual de interesses; à data da instauração dos mesmos, ou seja, em 04.06.2020. (sublinhado e bold nossos)
28ª- Pois que, como se aludiu em sede de motivação, os presentes autos foram instaurados ainda a criança residia em Portugal, vindo a instância a ser suspensa quando a criança residia no Luxemburgo ainda nem tinham decorrido a 2 (dois) meses, e o circunstancialismo que determinou a referida suspensão da instância em 15.07.2022, veio a verificar-se no dia 22.03.2023, não sendo o Tribunal a quo alheio a isto. (sublinhado e bold nossos)
29ª- Deste modo, nos termos do disposto no artigo 8º do Regulamento (CE) Nº 2201/2003, de 27 de Novembro, aplicável aos presentes autos por força do artigo 1º, nº1, alínea b) e nº2, alínea a) do mesmo, o Juízo de Família e Menores ... é competente internacionalmente para apreciar e decidir a ação.
30ª-Concretamnte, caso os autos não tivessem estado suspensos além da data em que a pena acessória aplicada ao recorrente no processo acima identificado foi declarada extinta, não teria chegado a decorrer o período de 1 (um) ano, previsto no artigo 8º do Regulamento.
31º- O que de per si teria sido suficiente para que o Tribunal a quo optasse pela solução jurídica que verteu no despacho ora em crise.
32ª- O Tribunal a quo não fez uma análise de todo o manancial fático constante dos autos, tendo-se limitado a, de uma forma superficial a ordenar uma nova suspensão da instância.
33ª- Dispõe ainda o artigo 15º do Regulamento (CE), sob a epígrafe “Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a ação”, o legislador comunitário prevê, excecionalmente, que os tribunais de um Estado–Membro competentes para conhecer do mérito, ao considerarem que um tribunal de outro Estado–Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular se encontre mais bem colocado para conhecer do processo, e se a tal servir o interesse da criança, peçam ao Tribunal de outro Estado-Membro que se declare competente.
34º-E, de entre as diversas situações que o mesmo legislador identifica como reveladoras da existência de uma ligação particular entre a criança com um Estado-Membro, a saber: 1) A criança ter tido a sua residência habitual nesse Estado-Membro (alínea b), do nº 3 do artigo 15º); 2) A criança ser nacional desse Estado-Membro (alínea c) do nº3 do artigo 15º); 3) O titular da responsabilidade parental tiver a sua residência habitual nesse Estado-Membro(alínea d) do citado normativo legal); não é possível afirmar, ao invés do que fez o Tribunal a quo que seja com o Luxemburgo que existe uma ligação particular entre a criança e este país. (sublinhado nosso)
35ª-Transpondo o preceituado neste normativo legal para o caso dos autos, facilmente se extrai que mesmo está em consonância com a posição que o aqui recorrente vem defendendo, que é manifestamente contrária à vertida no douto despacho recorrido; uma vez que o menor
36ª-Isto porque, no sobredito preceito legal, o legislador comunitário prevê, excecionalmente, que os tribunais de um Estado–Membro competentes para conhecer do mérito, ao considerarem que um tribunal de outro Estado–Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular se encontre mais bem colocado para conhecer do processo, e se a tal servir o interesse da criança, peçam ao Tribunal de outro Estado-Membro que se declare competente.
37ª- E, de entre as diversas situações que o mesmo legislador identifica como revelando existir uma ligação particular entre a criança com um Estado-Membro, três são precisamente ter tido acriança a sua residência habitual nesse Estado-Membro (alínea b), do nº3 do artigo 15º), a criança ser nacional desse Estado-Membro (alínea c) do nº3 do artigo 15º), ou o titular da responsabilidade parental tiver a sua residência habitual nesse Estado-Membro (alínea d) do citado normativo legal).
38ª- O douto despacho recorrido apenas tomou em consideração a circunstância da criança se encontrar a residir no Luxemburgo há mais de 1 (um) ano, para concluir que ali se encontra com caráter de permanência e estabilidade, sendo o elemento temporal manifestamente insuficiente para aquilatar se o superior interesse daquela se mostra acautelado.
39º-Ademais inexiste nos autos qualquer informação imparcial e, por conseguinte, crível para poder proferir uma tal afirmação, sendo claramente insuficiente os requerimentos que a progenitora enviou para os autos, porque tão só expressam a sua opinião.
40ª- Dos preceitos legais citados e atendendo ainda aos considerandos do Regulamento (CE) nº 2201/2003 (cfr. Considerando 12º), as regras de competência em matéria de responsabilidade parental são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério de proximidade, justificando-se que o mérito de um processo seja jugado por tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, pois que, em princípio, estará ele melhor colocado/preparado para conhecer do processo. (sublinhado nosso)
41ª- No caso dos autos o Tribunal a quo apenas atentou no elemento literal da norma legal em apreço, sem curar de apreciar os elementos de facto constantes dos autos, o que culminou numa incorreta aplicação do direito. (sublinhado nosso)
42ª- Resulta dos autos que:
O menor CC nasceu em Portugal em ../../2016, tendo sido registado como cidadão português.
Teve a sua residência fixada na vila de ... até ao dia 19.05.2022; onde aliás ambos os progenitores também residiram – a progenitora até à referida data e o progenitor ainda na atualidade.
A criança frequentou um Infantário português até ter sido levada para o Luxemburgo, na data supra indicada; onde teve o seu grupo de pares e contato com a língua portuguesa e com os costumes deste país.
Teve ainda desde o seu nascimento, contato frequente – com uma base quase diária – com o progenitor e família paterna – avós e bisavó paternos, tios e uma prima pouco mais nova do que ele com quem experienciou brincadeiras e momentos felizes- e também, mas em menor escala, ainda chegou a privar com a avó e a bisavó maternas, entretanto falecidas.
Há um ano teve um irmão consanguíneo.
Nunca manteve em Portugal contatos com outros familiares maternos, não tendo pois tido qualquer tipo de ligação, nem laço afetivo com a família materna.
Tendo de forma abrupta sido levado para outro país, por decisão unilateral da progenitora, sem que sequer se tivesse procedido à sua audição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5º do RGPTC, para apurar a sua vontade e o seu sentir. (sublinhado e bold nossos)
43ª- Tudo impondo a conclusão de que a criança tinha em Portugal (na vila de ...) o seu centro de vida, sendo sem sombra de dúvidas o Juízo de Família e Menores o tribunal competente para julgar os presentes autos. (sublinhado nosso)
44º- Acresce que, foram ainda claramente violados o artigo 19º, nº s 2 e 3 do Regulamento, isto porque, de acordo com o disposto no seu nº2, “Quando são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes ações relativas à responsabilidade parental em relação a uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.”
45ª-Por seu terno, o seu nº3 dispõe: “Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo tiver sido instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo tiver sido instaurado em segundo lugar declara-se incompetente.
46ª- Claramente são os tribunais portugueses que são os melhores posicionados para tomar uma decisão acerca da regulação do exercício das responsabilidades parentai do menor CC, podendo formar a convicção com base nos elementos carrados para os autos pelas partes, e caso haja necessidade de obtenção de algum elemento probatório no Luxemburgo, poderão então socorrer-se dos instrumentos internacionais que existem para essa finalidade (cfr. Regulamento (CE) nº1206/2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos países da EU no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial, revogado e substituído pelo Regulamento (UE) nº2020/1783, a partir de 1 de Julho de 2022. (sublinhado e bold nossos)
47ª- Também de acordo com a jurisprudência do TJUE “a residência habitual” corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar. Para esse fim, devem ser tidas em consideração, nomeadamente, a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro e da mudança da família para esse Estado Membro, a nacionalidade do menor, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido Estado”.
48ª- Os elementos de proximidade que permitem fixar o conceito de residência habitual de uma criança com apenas 7 (sete) anos, devem também ser aferidos pela realidade dos progenitores que eram ambos residentes em Portugal.
49ª- É patente a relevância que se dá ao conceito de residência habitual, o qual conduz necessariamente a uma proximidade concatenada com o interesse superior do/a menor. Sobre esta matéria vídeo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Maio de 2022 (processo nº 9528/20.5T8SNT.L1-7: “O Regulamento não define o conceito de residência habitual, sendo que este conceito deve ser objeto de uma interpretação autónoma.
50ª -Na Jurisprudência, o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a questão nestes termos: (TJ 2/09/2009 (C-523-7); no qual se definiu o seguinte:
“O conceito de residência habitual, na aceção doo artigo 8º, nº1 do Regulamento nº2201/2003, de 27 de Novembro, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar. Para esse fim, devem se tidas em consideração, nomeadamente a duração, a regularidade, as condições e as razões de permanência no território de um estão-Membro e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade do menor, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido Estado. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar a residência habitual do menor tendo em cona o conjunto das circunstâncias de facto relevantes ao caso.”
51ª- Na Jurisprudência Nacional merecem destaque os seguintes Arestos do STJ: Acórdão do STJ, de 26.01.2017 (Olindo Geraldes):
I.“Nos termos do artigo 8º do Regulamento (CE) nº2201/2003, de 27 de Novembro, os tribunais de um Estado-Membro são competentes matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que esse processo for instaurado no Tribunal.
II- O conceito de residência habitual, ou permanente, traduz em especial uma ideia de estabilidade do domicílio, assente, designadamente, num conjunto de relações sociais e familiares, demonstrativas da integração na sociedade local.
III-Residindo a menor, desde que nasceu no Luxemburgo, com a mãe, que aí reside há cerca de oito anos, são os tribunais desse país competentes para conhecer da ação de responsabilidade parental relativa à menor.”
52ª- Vide ainda o Acórdão do STJ, de 28.01.2016 (Isabel Pereira):
“O Regulamento (CE) nº2201/2003, de 27 de Novembro, que revogou o Regulamento nº 1347/2000, de 29 de Maio, alargou o âmbito da competência no tocante às questões de responsabilidade parental, com a finalidade de garantir a igualdade de tratamento entre crianças, dispondo em relação a todos os filhos menores, independentemente da existência, ou não, de um vínculo matrimonial entre os pais e da conexão da questão relativa a responsabilidades parentais com eventual processo de dissolução do casamento.
II- Tal Regulamento – diretamente aplicável na nossa ordem jurídica – contem, entre o mais, regras diretas de competência internacional, quanto às matérias nela abrangidas, estabelecendo como regra geral, no seu nº8, nº1, a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança residia habitualmente à data em que seja instaurado o processo relativo à responsabilidade parental.
III- O TJUE, por Acórdão de 22.10.2010 considerou que a determinação do conceito de residência habitual há de ser feita à luz das disposições do dito Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando 12º; daí resultando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular no critério É patente a relevância que se dá ao conceito de residência habitual, o qual conduz
da regulação das responsabilidades parentais corresse os seus trâmites num tribunal alemão correr-se-iam sérios riscos de não poder acautelar da mesma forma o supremo interesse do menor, pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.”
53º- Por último, o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-06-2023, proferido no processo nº 6671/21.7T8LSB.A-L1-7, cujo Relator foi Edgar Taborda Lopes:
“ O Tribunal português é competente para tramitação de uma ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais intentada em 17/03/2021, pelo progenitor (português) contra a progenitora (espanhola), relativa a uma criança nascida em 2020, que sempre viveu com os pais em Portugal (com caráter estável, aí tendo tido o seu centro permanente e habitual de interesses) e que, na sequência de uma visita a Espanha a 21/12/2020, na época do Natal (autorizada pelo pia); não regressou, por opção da mãe que lá ficou a viver, terminando a relação.”
54ª- O Tribunal a quo não atentou no superior interesse da criança, não colheu a sua opinião e o seu sentir, não podendo a mesma ver a sua residência fixada no Luxemburgo para sempre apenas porque a sua progenitora assim o entendeu, tendo mudado para este país para ir “atrás” de um namorado com que travou conhecimento, e com essa decisão pretender valer-se da política do facto consumado, sendo que é em Portugal que o menor mantém as suas origens, os seus laços afetivos e as suas referências.
55ª- Por tudo o exposto, deve o douto despacho ora em crise ser revogado, devendo o expediente remetido ao tribunal luxemburguês ser devolvido ao Juízo de Família e Menores ..., por ser este o competente para decidir o mérito da causa e os autos prosseguirem seus termos em vista dessa finalidade.»

Na resposta ao recurso, o Ministério Público defendeu a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar se deve ser revogada a decisão recorrida por violar os precitos legais invocados pelo apelante.

B- De Facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório, a que se acrescenta, para melhor enquadramento da questão a decidir, o que de relevante se colhe da tramitação dos autos (cfr. despacho de 05-07-2022 proferido neste Apenso A):
«(i) Os autos tiveram início em 4 de Junho de 2020, com requerimento da progenitora, solicitando a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais uma vez que pretendia ir viver para o Luxemburgo, juntamente com o seu filho CC, nascido em ../../2016;
(ii) Citado, o progenitor discordou em fixar a residência da criança no estrangeiro;
(iii) Realizada a conferência no dia 09.12.2020, foi homologado o regime provisório por acordo dos progenitores, a vigorar por seis meses, tendo as partes sido remetidas para audição técnica especializada. Foi ainda determinado que a questão suscitada no âmbito do Apenso B fosse também objecto de decisão no âmbito destes autos;
(iv) Em 08.03.2021 foi junta aos autos a informação sobre a audição técnica especializada donde consta, designadamente, que os progenitores não chegaram a um consenso quanto à residência, convívios e alimentos à criança. Consta ainda que ambos os progenitores reconhecem, na generalidade, competências parentais um ao outro, reconhecendo ainda a progenitora que o filho demonstra agrado nos convívios com o pai;
(v) Realizada nova conferência no dia 16.06.2021, foi homologado novo regime provisório por acordo dos pais, a vigorar por um ano, e foram as partes notificadas para apresentação de alegações e/ou apresentarem prova;
(vi) As alegações do progenitor e da progenitora mostram-se juntas aos autos a 30.06.2021 e a 01.07.2021, tendo o progenitor requerido a realização de perícias médico-legais, as quais foram deferidas a 21.12.2021.
(vii) Notificado o progenitor para que procedesse em 10 dias ao pagamento dos preparos para despesas referentes às perícias por si requeridas, sob pena de não realização da mesma, o mesmo veio informar que não tem capacidade financeira para custear os preparos.
(viii) Por despacho de 29.04.2022, para além do mais, foi a não realização da diligência requerida, face à ausência de pagamento daquele preparo para despesas e foi designada data para realização de audiência final, a qual após cumprimento do disposto pelo artigo 151.º do CPC veio a ser designada para o dia 05.07.2022.
(ix) A progenitora veio pugnar pela inutilidade superveniente da lide, uma vez que detém o exercício exclusivo das responsabilidades parentais, não necessitando, assim, de autorização do progenitor para fixar a sua residência no estrangeiro, pois o progenitor foi condenado no âmbito do processo comum n.º 225/19...., por decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância em 12.11.2020, tendo sido inibido do exercício daquelas pelo período de um ano, por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25.01.2022, transitado em julgado em 02.03.2022;
(x) Notificado, veio o progenitor opor-se ao requerido, solicitando o prosseguimento dos autos.
(xi) O Ministério Público promoveu o indeferimento do requerimento apresentado pela progenitora;
(xii) Em 19.05.2022 a progenitora informou que se encontrava a residir com o filho no Luxemburgo, na morada que indicou;
(xiii) Por requerimento apresentado no dia 20.05.2022 o progenitor informou que a progenitora tomara unilateralmente a decisão, nada lhe tendo comunicado, solicitando o imediato regresso da criança a Portugal;
(xiv) Por requerimento de 23.05.2022 a progenitora veio informar ter como CC a qualidade de residentes no Luxemburgo e que a criança já se encontrava inscrita em estabelecimento pré-escolar, cuja frequência iniciaria em Junho, solicitando uma nova regulação das responsabilidades parentais em conformidade com a situação actual de CC;
(xv) Por despacho de 28.06.2022 foi indeferido o requerido pela progenitora quanto á inutilidade superveniente da lide, tendo sido considerado que o informado pelos progenitores quanto à nova residência da criança se encontrava sob juízo no Apenso designado pela ...;
(xvi) Por despacho de 30.06.2022 foi considerado que tendo em conta que o recurso interposto da decisão proferida no apenso C, que determinou o regresso imediato da criança a Portugal, foi admitido nessa data com efeito suspensivo do processo, deveriam os presentes autos, tal como aqueles, aguardar pela decisão definitiva daquela questão, o que foi determinado tendo sido dada sem efeito a data designada para a audiência final, ficando a tramitação destes autos suspensa até à decisão do recurso admitido com efeito suspensivo no apenso C;
(xvii) O apenso C tem por base requerimento do progenitor de 23.05.2022, pelo qual intentou acção tutelar comum de natureza urgente, visando a determinação do regresso do menor a Portugal, já que na vigência do acordo provisório de regulação das responsabilidades parentais e contrariamente a este, a mãe ausentara-se com o menor para o Luxemburgo em 18.05.2022, tendo aí passado a residir com o mesmo;
(xviii) Por despacho proferido nesse Apenso em 25.05.2022 foi fixada a urgência desses autos e determinada a notificação da progenitora para diligenciar pelo regresso imediato de CC a Portugal, devendo a mesma informar, no prazo de 5 dias, a data de regresso do mesmo a território nacional. M[ais] foi a progenitora advertia de que, não regressando a Criança a Portugal poderiam ser accionados os mecanismos internacionais para assegurar o seu imediato retorno, tendo sido determinado que se informasse o pai de que poderia ainda assim accionar os mecanismos da Convenção Internacional de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, directamente junto da Autoridade Central Portuguesa;
(xix) Pela progenitora foi interposto recurso daquela decisão, o qual, por despacho de 30.06.2022 veio a ser admitido, com efeito suspensivo do processo.»
Consta ainda dos autos (incluindo Apenso C):
1. Em 13-07-2022, foi proferido Acórdão no Apenso C que revogou o despacho referido em (xviii) no qual foi dito que a deslocação do menor foi lícita, sem prejuízo de levantada a inibição do exercício das responsabilidades parentais, ser desenhado um novo regime que estabeleça a guarda, visitas e demais matérias que o caso exija, sempre em prol do superior interesse da criança.
2. Por decisão de 15-07-2022 e, atendendo ao decidido no Acórdão supra referido foi fixado novo regime provisório de exercício das responsabilidades parentais que, para além do mais, fixou a residência do menor junto da mãe no Luxemburgo, com exercício exclusivo das responsabilidades parentais, tendo fixado um regime de visitas ao progenitor; e, determinou a suspensão destes autos até que se mostre extinta a pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais.
3. Por despacho de 07-09-2022 manteve-se a suspensão dos autos ordenada no despacho de 15-07-2022, o que foi reiterado por despacho de 13-10-2022.
4. A Direção-Geral de Reinserção Social (DGRSP) informou nos autos, por ofício de 16-09-2022, que a congénere luxemburguesa procedeu ao arquivamento de pedido de regresso do menor a Portugal atento o decidido no Acórdão da Relação de Évora proferido 13-07-2022.
5. O Acórdão proferido no Apenso C transitou em julgado e a pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais decorreu entre 02-03-2022 e 02-03-2023 (Cfr. despacho de 22-03-2023).
6. Por despacho de 22-05-2023 foi ordenada a notificação do progenitor para esclarecer se participou na diligência agendada no Tribunal Luxemburguês para 25-04-2023 a realizar na ação de regulação das responsabilidades do menor CC que ali corre termos, e se foi alcançado algum acordo.
7. Em 29-05-2023, o progenitor fez juntar aos autos um requerimento onde alega, para além do mais, que exerceu expressamente o contraditório no processo luxemburguês, não tendo obtido qualquer resposta daquele tribunal, requerendo o prosseguimento dos presentes autos, com designação de data para a realização de conferência de pais ou de audiência de julgamento, julgando-se competente o tribunal onde corre termos este processo para a sua tramitação até decisão final.
8. Em 29-06-2023, o progenitor apresentou novo requerimento onde reitera o anterior (supra ponto 7).
9. Em 10-07-2023, apresentou novo requerimento onde pugna pela fixação de um período temporal para o menor vir a Portugal de férias para conviver com o pai e família paterna.
10. Em 13-07-2023 foi proferida a decisão recorrida.

C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
Defende o recorrente que o tribunal a quo fez uma má interpretação dos artigos 15.º do Regulamento (EU) 2201/2003, do Conselho de 27 de novembro (que também costuma ser identificado como Regulamento Bruxelas II bis[1]), dos artigos 62.º, 63.º e 94.º, do Código de Processo Civil (CPC), e artigo 9.º do Regime Jurídico do Processo Tutelar Cível (RGPTC), porquanto e, em suma, o tribunal português (no caso, o Juízo de Família e Menores ...) é o competente para apreciar a questão em litígio, uma vez que à data da instauração da presente ação de alteração das responsabilidades parentais, o menor residia em ..., tendo ali o seu centro de vida estabilizado; mais defendendo que todo o concreto circunstancialismo que levou à alteração de residência do menor para Luxemburgo não retira competência internacional ao tribunal português onde corre a presente ação.
Já no despacho em crise foi decidido que estando o menor a residir há mais de um ano, à data do despacho, com caráter de permanência e estabilidade num Estado-Membro (Luxemburgo), mantendo com o mesmo uma ligação de particular importância na aceção a que aludem as alíneas b) e d), do n.º 3, do artigo 15.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho de 27-11-2003, justifica-se a suspensão da presente instância a fim de ser solicitado ao tribunal luxemburguês que se declare competente para conhecer da questão da alteração da regulação das responsabilidades parentais referentes ao menor.
Assim, o que está em causa neste recurso é apenas e tão só decidir se os factos supra relatados suportam a decisão recorrida ao decidir que, por o menor residir no Luxemburgo há mais de um ano, com caráter de permanência e estabilidade, mantendo com o Luxemburgo uma ligação de particular importância na aceção a que aludem as alíneas b) e d), do n.º 3, do artigo 15.º do Regulamento (EU) n.º 2201/2003, deve a presente ação ser suspensa de modo a permitir que se solicite ao tribunal luxemburguês que aceite a competência internacional para decidir sobre a alteração da regulação das responsabilidades parentais relativas ao menor em causa.
Para apreciação da questão importa referir que não há dúvida alguma que o tribunal português tem, ab initio, competência para a presente ação considerando que a competência é um pressuposto processual, uma condição necessária para que os tribunais de uma determinada ordem jurídica, no seu conjunto, possam pronunciar-se sobre determinada causa, tendo-lhe advindo essa competência pelo facto de, no momento em que a ação foi instaurada, ambos os progenitores e o menor residirem em Portugal (cfr. artigos 59.º, 62.º, 63.º e 94.º do CPC, sendo que o artigo 9.º do RJPTC apenas é chamado à colação em termos de definir a regra de competência interna territorial, o que pressupõe que se encontre estabelecida a competência internacional do tribunal português).
Todavia, a criança alterou a sua residência durante a pendência do processo e passou a residir com a mãe no Luxemburgo, o que já sucedia há mais de um ano à data da prolação do despacho recorrido.
O que suscita, então, a questão da transferência da competência internacional do tribunal português em favor da competência internacional do tribunal luxemburguês, sendo de chamar à colação o artigo 15.º do citado Regulamento Bruxelas II bis, cuja aplicação prevalece sobre o direito interno por via do artigo 59.º, n.º 1, do CPC, e por decorrência do disposto no artigo 8.º, n.º 4 da CRP e artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
O referido artigo 15.º é um preceito que exceciona a regra do artigo 8.º do mesmo Regulamento (a qual consagra um princípio fundamental em termos de competência internacional, atribuindo-a ao Estado-Membro onde a criança tem a sua residência habitual), regulando as situações de «Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a ação».
O preceito estipula as condições em que essa transferência pode ocorrer:
(i) O tribunal de um Estado-Membro competente para conhecer do mérito pode considerar que um tribunal de outro Estado-Membro, com o qual a criança tenha uma ligação particular, se encontra mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspetos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança (n.º 1 do artigo 15.º);
(ii) E se assim for, pode o tribunal onde corre o processo suspender a instância em relação à totalidade ou a parte do processo em questão e convidar as partes a apresentarem um pedido ao tribunal desse outro Estado-Membro, nos termos do n.º 4; ou pedir ao tribunal do outro Estado-Membro que se declare competente nos termos do n.º 5 (n.º 1, alíneas a) e b) do artigo 15.º);
(iii) A transferência apenas é aplicável a pedido de uma das partes, ou por iniciativa do tribunal ou a pedido do tribunal do outro Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, nos termos do n.º 3., sendo que nas duas últimas situações, pelo menos, uma das partes tem de aceitar a transferência (n.º ..., alíneas a), b), c), do artigo 15.º);
(iv) A criança tem de ter uma ligação particular com um Estado-Membro na aceção do artigo 2.º, n.º 3, do Regulamento (ou seja, com qualquer Estado-Membro, com exceção da Dinamarca) e desde que verificada qualquer da condições previstas nas alíneas a), b), c), d) e e) do artigo 15.º);
(v) O tribunal do Estado-Membro deve fixar um prazo para a instauração de um processo nos tribunais do outro Estado-Membro, sob pena de decorrido o prazo, sem o processo estar instaurado, continuar a ser competente o tribunal onde corre o processo instaurado de acordo com as normas do artigo 8.º a 14.º (n.º 4 do artigo 15.º):
(vi) E, finalmente, o tribunal desse outro Estado-Membro pode declarar-se competente no prazo de 6 meses a contar da data em que tiver sido insaturado o processo com base nas alíneas a) ou b) do n.º 1, se tal servir o superior interesse da criança em virtude das circunstâncias específicas do caso; situação em que o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar renuncia à sua competência; em caso contrário, continua a ser competente nos termos dos artigo 8.º a 14.º (n.º 5 do artigo 15.º).

No caso em apreço, o tribunal português pediu ao tribunal luxemburguês que se declare competente nos termos do n.º 5 do artigo 15.º, no pressuposto de que já se encontra instaurada, a pedido da mãe do menor (aceitando, assim, a competência daquele tribunal luxemburguês), naquele Estado-Membro, um processo de alteração das responsabilidades parentais referente ao menor, alegando o tribunal português que existe uma ligação particular com o Grão-Ducado do Luxemburgo por ali já residir o menor com a mãe há mais de um ano.
O que significa que a situação que os autos apresentam permite o pedido de transferência de competência para o tribunal luxemburguês em ordem a se pronunciar sobre a alteração das responsabilidades parentais do referido menor (em relação ao regime que foi decretado no tribunal português) atento o prescrito no referido artigo 15.º, n.º 1, alíneas a) e b), n.º 2, alíneas a), b) e c), 3, alínea a).
Sendo que o referido pedido de transferência de competência determina a suspensão dos autos que correm termos em Portugal até que o tribunal do outro Estado-Membro (luxemburguês) se pronuncie, o que, de acordo com o estado dos autos aquando da subida do recurso a este Tribunal da Relação de Évora ainda não tinha ocorrido.
Portanto, basicamente o que está em causa neste recurso é tão só a questão da suspensão dos presentes autos, porquanto ainda não se sabe se o tribunal luxemburguês aceita ou não o pedido de transferência de competência do tribunal português nos termos supra referidos.
De qualquer modo, residindo o menor com a mãe no Luxemburgo há mais de um ano à data do despacho recorrido, ali tendo a mãe fixado residência e arranjado trabalho, e tendo a criança tenra idade (tinha na data da ida para o Luxemburgo 6 anos) sempre residido com a mãe mesmo quando estavam em Portugal, estando já integrada na escola no país onde reside atualmente, afigura-se-nos que esses factos são suficientes e adequados para se considerar que o menor tem uma ligação particular com o pais onde reside, que justifica o pedido de transferência de competência, o qual salvaguarda, por essa razão, o superior interesse da criança (sem prejuízo, obviamente, do que vier a decidir o tribunal luxemburguês).
Sublinhando-se que na aceção do n.º 2 do artigo 15.º, a ligação particular da criança a um Estado-Membro advém das circunstâncias referidas nas alíneas a) a d) do n.º 3 do mesmo preceito, tendo as mesmas caráter alternativo, ou seja, e no caso, estão verificadas por a criança e um dos progenitores ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro, encontrando-se, pois, presente o princípio da proximidade do tribunal com a realidade em discussão.
Embora o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 não defina o conceito «residência habitual», o significado da expressão deve ser interpretado em conformidade com os objetivos e finalidades do mesmo.
O TJUE já teve ocasião de se pronunciar sobre o conceito de «residência habitual», na aceção dos seus artigos 8.º e 10.º, defendendo que deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar (Ac. de 22-12-20, proc. C-497/10 PPU: Barbara Mercredi/Richard Chaffe).
Podemos, assim, dizer que o conceito «residência habitual» corresponde, no fundo, ao local onde se encontra organizada a vida da criança, em termos de maior estabilidade e permanência, onde desenvolve habitualmente a sua vida, em suma, onde está radicada.
Por outro lado, na interpretação do referido Regulamento é necessário ter em mente os considerandos (12) e (13) do mesmo, onde consta:
«(12) As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.»
«(13) No interesse da criança, o presente regulamento permite que o tribunal competente possa, a título excepcional e em certas condições, remeter o processo a um tribunal de outro Estado-Membro se este estiver em melhores condições para dele conhecer. Todavia, nesse caso, o segundo tribunal não deverá ser autorizado a remeter o processo a um terceiro tribunal.»
Sublinhando-se que, como foi referido no Acórdão da Relação de Lisboa de 27-03-2012[2], «(…) em sede de aferição da competência internacional do tribunal de um Estado-Membro para conhecer de uma acção de regulação do exercício do poder paternal, as regras comunitárias não devem ser aplicadas de uma forma mecânica, simplista, antes se impõe que a regra geral do nº 1, do artº 8º, seja aplicada sob reserva (como o refere o nº 2, do artº 8º), não olvidando nunca o superior interesse da criança e o critério da proximidade (ou como refere o artº 15º, o tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular).”
No que concerne ao superior interesse da criança, finalidade última em matérias onde estão em causa os direitos das crianças, apesar de ser um conceito indeterminado, é consensual que é um critério legal orientador que tem de ser aferido em face das concretas circunstâncias de cada caso e sempre na perspetiva de defesa dos direitos da crianças, que é o leit motiv de toda a regulação da intervenção estadual[3], bem como da submissão dos poderes-deveres que enformam as responsabilidades parentais àquele princípio, abrangendo, assim, em termos mais latos, as questões referentes à competência internacional dos tribunais chamados a decidir estas matérias.
Em face dos critérios enunciados no Regulamento supra referido e estando em causa uma deslocação lícita da criança para outro Estado-Membro como sucede no caso em apreço (o que decorre do decidido no Acórdão da Relação de Évora de 13-07-2022 proferido no Apenso C), onde passou a residir com a mãe (com o beneplácito do tribunal português como decorre do regime provisório de 15-07-2022 que fixou a residência do menor junto da mãe no Luxemburgo, com exercício exclusivo das responsabilidades parentais, tendo fixado um regime de visitas ao progenitor) e a frequentar um estabelecimento de ensino, tendo a mãe estabilizada a sua situação profissional naquele país, é de concluir que o menor mantém com o país onde passou a residir uma ligação particular e que é no superior interesse do mesmo que seja o tribunal luxemburguês a pronunciar-se sobre as questões colocadas em sede de alteração do regime de regulação das responsabilidades parentais fixado provisoriamente em Portugal.
Ademais, cabe acrescentar que, apesar de todos os instrumentos de cooperação internacional vigente entre os Estados-Membro, o tribunal com maior proximidade da residência atual da criança terá sempre, por regra, maior facilidade na obtenção dos elementos necessários à tomada de decisão e decidir em função da realidade próxima e atualizada da criança, tudo sem prejuízo da cooperação entre tribunais dos dois Estados-Membros envolvidos, aliás, como é dito e acutelado no n.º 6 do artigo 15.º do Regulamento Bruxelas II bis.
Por outro lado, ao progenitor não fica coartado o direito de intervir no processo luxemburguês, aliás, como já sucedeu e se deu conta no alinhamento dos factos supra (cfr. pontos 6 e 7).
O que não pode verificar-se, como é bom de ver sem necessidade de maiores explicações, é que a mesma questão esteja a ser discutida em simultâneo em tribunais de dois Estados-Membros, sob pena de potencial contradição nas decisões que viessem a ser tomadas, com patente desrespeito do superior interessa da criança envolvida, pelo que, em face de todo o circunstancialismo supra elencado e das normas aplicáveis acima referidas, bem andou o tribunal a quo ao proferir o despacho em crise.

Contra-argumenta o recorrente, desprazido com o decidido, no sentido de imputar ao tribunal recorrido responsabilidade pela inércia e vicissitudes na tramitação do processo entre março e julho de 2023, alegando que «(…) fez com tornasse possível afirmar-se que a criança vive no Luxemburgo há mais de 1 (um) ano.» (Conclusão 21.ª).
Da análise da tramitação destes autos resulta que esta afirmação não tem qualquer suporte na realidade, que o recorrente parece querer ignorar. A criança foi viver para o Luxemburgo com a mãe de forma lícita como já acima referido, havendo notícia nos autos que tal sucedeu em 19-05-2022, altura em que o recorrido se encontrava suspenso do exercício das responsabilidades parentais por força da condenação pela prática de um crime de violência doméstica contra a progenitora, tendo o período da suspensão ocorrido entre 02-03-2022 e 02-03-2023. Ou seja, quando a suspensão terminou já a criança residia licitamente no Luxemburgo há mais de dez meses.
Portanto, não foi a inércia do tribunal que determinou esta realidade, mas sim os atos do ora recorrido.
Acresce que na previsão do artigo 15.º do Regulamento Bruxelas II bis não existe um período mínimo de residência da criança no pais para onde foi viver para a sua aplicação.
Quando muito, por força do artigo 9.º, n.º 1, do mesmo Regulamento, poderá dizer-se que não se pode operar a transferência de competência durante os primeiros três meses de permanência no país para onde foi residir por o tribunal do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança manter a sua competência, aliás, em derrogação do princípio vertido no artigo 8.º.
Ora, o referido prazo de três meses há muito que se encontrava esgotado quando cessou a pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais, o que significa que a afirmação expressa na Conclusão 30.º não se pode ter como correta.
Também refere o apelante que na aferição do critério de proximidade e da ligação particular da criança a um dos países em causa nos autos, e, no fundo, do superior interesse da mesma, não se pode ignorar que nasceu em Portugal, que aqui viveu até aos seis anos, integrada no seio da família alargada dos pais, que os pais também são portugueses e que, por força do artigo 19.º, n.º 2 e 3 do Regulamento, quando são instauradas diferentes ações relativas à responsabilidade parental em relação à mesma criança em tribunais de Estados-membros diferentes, que tenham o mesmo pedido e causa de pedir, a suspensão deve ocorrer no tribunal onde foi instaurada em segundo lugar a ação até ser estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.
Quanto a esta argumentação cabe dizer que o preceito invocado não se aplica ao caso em apreço porque não está em causa a competência internacional do tribunal português aquando da instauração da presente ação para apreciar o diferendo sobre as responsabilidades parentais que opõe os pais do menor.
No caso previsto no artigo 19.º do Regulamento Bruxelas II bis o que está em causa é a atribuição dessa competência a um dos Estados-Membros e não a transferência de competência do Estado-Membro onde já corria termos o processo para outro Estado-Membro por a criança ali passar residir e ser necessário, em face da alteração da residência habitual, decidir a questão da alteração de uma regulação de responsabilidades existentes e decidida no anterior país onde a criança residia habitualmente.
Acresce que o recorrente ao invocar todo o circunstancialismo vivencial da criança em Portugal, ignora que a realidade se alterou por passar a residir com caráter estável e duradouro no pais de acolhimento.
Repetindo-se, contudo, que a transferência de competência ainda está em averiguação e sob decisão por parte do tribunal luxemburguês que tem de aceitar a transferência de competência.
Por agora, e à data da prolação do despacho recorrido, o que estava em causa era tão só saber se estavam preenchidos os requisitos para o acionamento do artigo 15.º do Regulamento Bruxelas II bis, e a resposta é afirmativa como decorre de tudo o que vem sendo dito.
Por conseguinte, improcedem todas as Conclusões recursórias, não se verificando a violação dos normativos referidos pelo apelante, nem de outros, confirmando-se a decisão recorrida.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 09-05-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria José Cortes (1.ª Adjunta)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
_________________________________________________
[1] Este Regulamento foi revogado pelo Regulamento (Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25/06), mas aplica-se aos presentes autos (Cfr. artigo 100.º deste último Regulamento, cuja norma transitória dispõe do seguinte modo: «1. O presente regulamento é aplicável apenas às ações judiciais intentadas, aos atos autênticos formalmente exarados e aos acordos registados em 1 de agosto de 2022 ou numa data posterior.
2. O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 continua a ser aplicável às decisões proferidas em ações judiciais intentadas, aos atos autênticos exarados e aos acordos que se tornaram aplicáveis no Estado-Membro em que foram celebrados antes de 1 de agosto de 2022 e que sejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do referido regulamento.»).
[2] Proc. n.º 22246/15.7T8SNT.L1-7, em www.dgsi.pt.
[3] Veja-se, assim, entre outros, o artigo 4.º, alíneas a), e) e f) da Lei n.º 147/99, de 01/09, artigos 18.º, n.º1 e 2, 36.º, n.º5, 69.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, artigos 3.º, 9.º, n.ºs 1, 2, e 3 da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada por Portugal em 26/01/1990 e artigo 7.º da Declaração dos Direitos das Crianças, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/1959; e o Anexo à Recomendação n.º R (84) sobre as responsabilidades parentais (adotada pelo Comité de Ministros do Conselho de Ministros do Conselho da Europa em 28/09/1984), Princípio 2.