Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
121/14.2YREVR
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: LIQUIDAÇÃO DA PENA
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 10/28/2014
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIDA A COMPETÊNCIA
Sumário:
I - O legislador parece ter sido claro no sentido de que a liquidação da pena de prisão subsequente ao trânsito em julgado da condenação e respetiva homologação compete ao tribunal da condenação.
Decisão Texto Integral:
A Meritíssima Juíza do Tribunal de Execução de Penas de Évora, no processo de liberdade condicional que corre termos, naquele Tribunal, sob o n.º 2463/11.0TXLSB-A, denunciou o presente conflito negativo de competência, face à divergência surgida entre a decisão proferida pela mesma neste processo, em 17-06-2014 (v,fls.2 e3) e a decisão proferida em 10-04-2014 pela Meritíssima Juíza do ora extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja, no âmbito do processo n.º751/02.5PBBJA, quanto à competência para operar a liquidação da pena aplicada ao arguido A., no âmbito deste último processo, na sequência da colocação do arguido à sua ordem, para cumprir a pena de prisão, aí aplicada.

No então 1.º Juízo do TJ de Beja foi entendido que em virtude de se estar perante uma situação de cumprimento sucessivo de várias penas, a competência para a liquidação é do Ministério Público junto do TEP, nos termos da al. i) do art. 141.º do CEPMPL.

Por sua vez a Magistrada do TEP sustenta que a liquidação a que alude o preceito atrás mencionado reporta-se a uma realidade distinta da liquidação aqui em causa, sendo a liquidação, ab initio, de uma pena de prisão sempre da competência do tribunal da condenação, de harmonia com o disposto no art. 477.º do CPP.

A divergência em causa resume-se à questão de saber qual o tribunal materialmente competente, para aquele efeito (liquidação da pena de prisão e subsequente homologação), que cada um dos tribunais imputou ao outro, declinando a própria.

Foi cumprido o disposto no art.º 36.º do Código de Processo Penal.

O Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto, nesta sede, emitiu o respectivo Parecer, no sentido de que assiste razão à Meritíssima Juíza do TEP.

Não se torna necessário recolher outras informações e provas.

Cumpre decidir.

Com o presente incidente pretende-se, em síntese, obter decisão que resolva definitivamente a quem deferir a competência material para operar a liquidação da pena de prisão que foi aplicada ao arguido no processo n.º751/02.5PBBJA do 1.º Juízo do extinto TJ de Beja, bem como a subsequente homologação.

Tal impasse deve ser resolvido sem demora, sob pena de se manter uma situação eventualmente prejudicial para o arguido, sendo competente, para o efeito, o Presidente da Secção Criminal, como resulta da al. a) do n.º5 do art.12.º do CPP.

Não existem divergências entre as Exm.ªs Juízas conflituantes quanto ao quadro de facto essencial traçado para a solução do conflito, nomeadamente, quanto à existência de uma situação jurídica que importa a necessidade de liquidação da pena de prisão que o supra referido arguido tem a cumprir à ordem do processo n.º 751/02.5PBBJA, e quanto ao trânsito em julgado das respetivas decisões.

Já, por várias vezes, este Tribunal foi chamado a decidir conflitos da mesma natureza, nomeadamente nos processos n.ºs 144/13.9YREVR e 41/14.0YREVR desta Relação (decisões de 28-01-2014 e 13-05-2014, acessíveis in www.dgsi.pt), que se reportavam à competência para a liquidação inicial da pena de prisão, em que se julgou competente o tribunal da condenação, pelo que a exposição que se seguirá não será muito diferente da vertida nas referidas decisões, a não ser o aditamento de alguns elementos resultantes de ulteriores reflexões sobre esta matéria.

Para dilucidar a questão aportada a este tribunal há que chamar à colação as normas do Código de Processo Penal que regulam o tema sob apreciação, bem como as que decorrem do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

Determina o n.º1 do art. 470.º do CPP, que:

“A execução corre nos próprios autos perante o presidente do tribunal de 1.ª instância em que o processo tiver corrido, sem prejuízo do disposto no artigo 138.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.”

Por sua vez, o art. 477.º, também do CPP, que trata da execução da pena de prisão, dispõe:

1 - O Ministério Público envia ao Tribunal de Execução das Penas e aos serviços prisionais e de reinserção social, no prazo de cinco dias após o trânsito em julgado, cópia da sentença que aplicar pena privativa da liberdade.

2 - O Ministério Público indica as datas calculadas para o termo da pena e, nos casos de admissibilidade de liberdade condicional, para os efeitos previstos nos artigos 61.º e 62.º e no n.º 1 do artigo 90.º do Código Penal.

3 - Tratando-se de pena relativamente indeterminada, o Ministério Público indica ainda a data calculada para o efeito previsto no n.º 3 do artigo 90.º do Código Penal.

4 - O cômputo previsto nos n.ºs 2 e 3 é homologado pelo juiz e comunicado ao condenado e ao seu advogado.

5 - Em caso de recurso da decisão que aplicar pena privativa da liberdade e de o arguido se encontrar privado da liberdade, o Ministério Público envia aos serviços prisionais cópia da decisão, com a indicação de que dela foi interposto recurso.”

Os tribunais de execução das penas são, no âmbito da nova LOSJ, tribunais de competência territorial alargada e especializada, pelo que, de harmonia com o preceituado no art. 83.º, n.º2 do mesmo diploma, conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável.

Dispõe o art. 18.º do CPP que a competência do tribunal de execução das penas é regulada por lei especial. Esta lei especial é agora o Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, em vigor desde o dia 10 de Abril de 2010, que, no art. 138.º estabelece a competência material do TEP, nos termos que seguem:

“1 - Compete ao tribunal de execução das penas garantir os direitos dos reclusos, pronunciando-se sobre a legalidade das decisões dos serviços prisionais nos casos e termos previstos na lei.

2 - Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respetiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal (sublinhado e negrito nosso).

3 - Compete ainda ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a execução da prisão e do internamento preventivos, devendo as respetivas decisões ser comunicadas ao tribunal à ordem do qual o arguido cumpre a medida de coação.

4 - Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria:

a) Homologar os planos individuais de readaptação, bem como os planos terapêuticos e de reabilitação de inimputável e de imputável portador de anomalia psíquica internado em estabelecimento destinado a inimputáveis, e as respetivas alterações;

b) Conceder e revogar licenças de saída jurisdicionais;

c) Conceder e revogar a liberdade condicional, a adaptação à liberdade condicional e a liberdade para prova;

d) Homologar a decisão do diretor-geral dos Serviços Prisionais de colocação do recluso em regime aberto no exterior, antes da respetiva execução;

e) Determinar a execução da pena acessória de expulsão, declarando extinta a pena de prisão, e determinar a execução antecipada da pena acessória de expulsão;

f) Convocar o conselho técnico sempre que o entenda necessário ou quando a lei o preveja;

g) Decidir processos de impugnação de decisões dos serviços prisionais;

h) Definir o destino a dar à correspondência retida;

i) Declarar perdidos e dar destino aos objetos ou valores apreendidos aos reclusos;

j) Decidir sobre a modificação da execução da pena de prisão relativamente a reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada, bem como da substituição ou da revogação das respetivas modalidades;

l) Ordenar o cumprimento da prisão em regime contínuo em caso de faltas de entrada no estabelecimento prisional não consideradas justificadas por parte do condenado em prisão por dias livres ou em regime de semidetenção;

m) Rever e prorrogar a medida de segurança de internamento de inimputáveis;

n) Decidir sobre a prestação de trabalho a favor da comunidade e sobre a sua revogação, nos casos de execução sucessiva de medida de segurança e de pena privativas da liberdade;

o) Determinar o internamento ou a suspensão da execução da pena de prisão em virtude de anomalia psíquica sobrevinda ao agente durante a execução da pena de prisão e proceder à sua revisão;

p) Determinar o cumprimento do resto da pena ou a continuação do internamento pelo mesmo tempo, no caso de revogação da prestação de trabalho a favor da comunidade ou da liberdade condicional de indivíduo sujeito a execução sucessiva de medida de segurança e de pena privativas da liberdade;

q) Declarar a caducidade das alterações ao regime normal de execução da pena, em caso de simulação de anomalia psíquica;

r) Declarar cumprida a pena de prisão efetiva que concretamente caberia ao crime cometido por condenado em pena relativamente indeterminada, tendo sido recusada ou revogada a liberdade condicional;

s) Declarar extinta a pena de prisão efetiva, a pena relativamente indeterminada e a medida de segurança de internamento;

t) Emitir mandados de detenção, de captura e de libertação;

u) Informar o ofendido da libertação ou da evasão do recluso, nos casos previstos nos artigos 23.º e 97.º;

v) Instruir o processo de concessão e revogação do indulto e proceder à respetiva aplicação;

x) Proferir a declaração de contumácia e decretar o arresto de bens, quanto a condenado que dolosamente se tiver eximido, total ou parcialmente, à execução de pena de prisão ou de medida de internamento;

z) Decidir sobre o cancelamento provisório de factos ou decisões inscritos no registo criminal;

aa) Julgar o recurso sobre a legalidade da transcrição nos certificados do registo criminal.”

No mesmo sentido dispunha o art. 91.º da Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro (Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, alterada pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, bem como a Nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto aplicável em algumas circunscrições judiciais, no seu artigo 124.º, n.º2, al. g), entretanto revogadas.[[1]]

Não desconhecemos a existência de decisões de tribunais superiores que, fundando-se no preâmbulo da proposta de Lei que esteve na génese do CEPMPL, sustentam que, em casos de cumprimento de penas privativas de liberdade, é o TEP o tribunal materialmente competente para tomar toda e qualquer decisão no processo após o trânsito em julgado da decisão condenatória, cessando aí a competência do Tribunal da condenação, como é salientado na decisão de resolução de conflito do TRP proferida em 04-06-2014 no âmbito do processo n.º 406/12.2PFVNG-A.P1, acessível in www.dgsi.pt.

Não cremos, salvaguardado o devido respeito, que seja essa a melhor interpretação, a aplicar em todas as situações, pois a própria lei processual penal salvaguarda situações que, mesmo após o trânsito em julgado da decisão condenatória, são da competência do tribunal da condenação, nomeadamente, a reabertura da audiência para aplicação da lei penal mais favorável (art. 371-A do CPP) e o conhecimento superveniente do concurso de crimes (cf. art.471.º do CPP).

Por outro lado, o legislador parece ter sido claro no sentido de que a liquidação da pena de prisão subsequente à condenação e respetiva homologação compete ao tribunal da condenação.

Se dúvidas houvesse, elas resultam esclarecidas face ao teor da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, que, reportando-se à comunicação da sentença e da aplicação de medidas de coação, preceitua no seu art. 35.º, o seguinte:

“1 - As comunicações previstas no artigo 477.º do Código de Processo Penal são realizadas pela secretaria judicial, a requerimento do Ministério Público, por transmissão eletrónica de dados, nos termos dos números seguintes.

2 - São transmitidos os seguintes dados:
a) Número do processo;
b) Identificação do condenado;
c) Crime ou crimes pelos quais houve condenação, identificados pelas designações dos tipos legais e pelas disposições legais onde estão previstos;
d) Pena ou penas aplicadas na sentença;
e) Datas calculadas e homologadas nos termos dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 477.º do Código de Processo Penal.

3 - Quando for aplicada ao arguido prisão preventiva ou internamento preventivo são transmitidos ao tribunal de execução das penas e aos serviços prisionais os seguintes dados:
a) Número do processo;
b) Identificação do arguido;
c) Crime ou crimes imputados, identificados pelas designações dos tipos legais e pelas disposições legais onde estão previstos;
d) Medida de coação aplicada.

4 - Sempre que necessário, os dados referidos nos n.ºs 2 e 3 são preenchidos previamente pelo oficial de justiça.

5 - À comunicação são anexados os ficheiros contendo a sentença e o cômputo da pena homologado ou o despacho de aplicação da medida de coação, respetivamente.

6 - Quando não seja possível o envio dos documentos referidos no número anterior por via eletrónica ou quando estes estejam sujeitos a segredo de justiça, o envio é feito em suporte físico, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 a 4.”

No caso em apreço, a melhor interpretação do art. 477.º do CPP, cujos n.ºs 2 e 4 foram alterados pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro (que aprovou o referido Código de Execução de Penas), em conjugação com o art. 35.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, que revogou a Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro, esta com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 195-A/2010, de 8 de Abril, levam-nos a concluir que mesmo em casos de cumprimento sucessivo de penas de prisão (o que ocorre quando não há lugar à realização de cúmulo jurídico, por as penas aplicadas ao arguido em diferentes processos não estarem entre si em situação de concurso), compete ao MP junto do tribunal da condenação efetuar o cômputo da pena aí aplicada que se visa executar e ao juiz do processo a homologação dessa contagem.

Esta livre escolha do legislador tem razão de ser, na medida em que o arguido está adstrito a um processo devendo ser o juiz titular a decidir sobre o cômputo da pena de prisão, aí aplicada, para efeitos da sua execução.

Na verdade, a competência atribuída ao representante do Ministério Público junto do TEP pela al. i) do art. 141.º do CEPMPL de “Em caso de execução sucessiva de penas, proceder ao respetivo cômputo, para efeitos de concessão de liberdade condicional”, reporta-se tão só ao computo do somatório das penas de execução sucessiva para efeitos de concessão de liberdade condicional (cf. art. 63.º do CP) e não exclui a competência do Tribunal da condenação, nomeadamente do representante do Ministério Público e do juiz do processo para os efeitos prevenidos no art. 477.º do CPP, ou seja, o computo inicial da pena aplicada ao condenado nesse processo e o cumprimento das demais obrigações decorrentes de tal preceito.

Perante uma situação idêntica, o Supremo Tribunal de Justiça, por decisão proferida em 9 de Agosto de 2013 no processo n.º 77/13.9YFLSB, entendeu que somente em caso de cumprimento sucessivo de penas e, para efeitos de concessão de liberdade condicional, é que o MP no Tribunal de Execução de Penas, e o juiz do TEP, são competentes para respetivamente proceder e homologar a liquidação da pena.

De facto, apesar do sistema legal instituído parecer algo confuso, não poderá deixar de prevalecer esta interpretação, que foi a que o legislador quis consagrar ao alterar o art. 477.º do CPP, mantendo as competências do Ministério Público junto do tribunal da condenação para a “contagem” da pena, que deverá ter a chancela da homologação pelo juiz do mesmo processo, o da condenação.

Concluímos, pois, sem necessidade de mais considerandos, que assiste razão ao Tribunal de Execução de Penas de Évora.

A competência para proceder à contagem da pena (liquidação) para os efeitos prevenidos no art. 477.º do CPP, compete no caso subjudice ao tribunal da condenação.

Face à reorganização judiciária, entretanto ocorrida, o processo da condenação terá sido remetido para a secção criminal da instância local de Beja, pelo que a liquidação da pena de prisão há-de ser efetuada pelo Ministério Público junto da secção criminal e homologada pelo atual juiz titular do processo em que teve lugar a condenação.

DECISÃO:

Em face do exposto, decido o presente conflito atribuindo ao Ministério Público junto do Tribunal da condenação, ou daquele a quem o processo foi redistribuído, face à nova reorganização judiciária, a competência material para a liquidação da pena aplicada ao arguido supra identificado, no âmbito do processo n.º751/02.6PBBJA, e ao juiz do mesmo tribunal, a subsequente homologação.

Comunique aos tribunais em conflito e notifique nos termos do art.º 36.º, n.º 3, do CPP.

Sem tributação.

(Texto processado informaticamente e integralmente revisto pelo relator)

Évora, 2014-10-28

Fernando Ribeiro Cardoso
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[1] - Também a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), já em vigor desde o dia 1 de Setembro do ano em curso, reproduz nos artigos 114.º e 115.º, em matéria de competência do TEP, com ligeiras alterações de redação, o preceituado no art. 138.º do CEPMPL. Na verdade, na ali. j) do n.º3 do art. 114.º, que para o caso não releva, dá-se uma versão mais escorreita do que a vertida na al. j) do n.º4 do citado art.138.º, ao estabelecer que compete ao tribunal de execução das penas, em razão da matéria: “j) Decidir sobre a modificação da execução da pena de prisão, bem como da substituição ou da revogação das respetivas modalidades, relativamente a reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada;