Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | GILBERTO DA CUNHA | ||
Descritores: | DESOBEDIÊNCIA REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 04/08/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do n.º3 do artigo 311.º do CPP, quando for evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, de forma irrefutável e incontornável não preenchem qualquer tipo legal de crime. 2. Tal pressuposto não se verifica nos casos em que o juiz, no despacho de saneamento do processo fazendo um juízo sobre a relevância criminal dos factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, como é aqui o caso, outra, ou outras, seriam possíveis. Ou seja: a previsão da al. d) do n.º3 do artigo 311.º não vale para os casos em que para além do entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, se perfile outro diverso daquele, sustentando a não qualificação dos factos como penalmente relevantes. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: RELATÓRIO. Decisão recorrida. O Ministério Público no âmbito do proc….do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, encerrou o inquérito deduzindo acusação e requerendo o julgamento em processo comum, por tribunal singular, do arguido A. imputando-lhe a prática em autoria material de um crime de desobediência, pp. pelo art.348º, nº1, al.b) do Código Penal. Remetidos os autos para julgamento, sem ter havido instrução, o Exmº Juiz a quem o processo foi distribuído, por seu despacho de 14.09.2009, sob invocação do art.311º, nº2, al.a), e nº3, al.d) do CPP decidiu rejeitar a acusação, por a considerar manifestamente infundada, pois entende que a factualidade descrita na acusação é insusceptível de consubstanciar a prática daquele crime. Recurso. Inconformado com esta decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso pugnando pela sua revogação e substituição por outra que receba a acusação e designe data para realização do julgamento do arguido pela prática em autoria material do crime de desobediência, que lhe é imputado na acusação, concluindo a motivação com a formulação das seguintes conclusões: I - Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A. imputando-lhe a prática de factos susceptíveis de integrar o cometimento de um crime de desobediência, pp. pelo art° 348°, n° 1, al. b) do Cód. Penal. II - Distribuídos ao 2° Juízo deste Tribunal, foram os autos conclusos à M" ]uíza que após conhecer das questões a que se refere o art. 311° n°1, do Código de Processo Penal, decidiu, nos termos do art. 311º n°s 2, al. a) e 3, al. d), do Código de Processo Penal, rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada. III - Fundamenta a Mmª ]uíza "a quo" a sua decisão na circunstância de o legislador ter previsto que a não entrega voluntária da carta de condução, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, tem como consequência a sua apreensão (art.500°, n°s 2 e 3 do Cód. Proc. Penal), pelo que, a cominação da prática de um crime de desobediência em caso de omissão de entrega de tal documento exorbita a intenção do legislador, i.e., se o legislador quis sancionar a omissão de entrega da carta no prazo legal com a sua apreensão, é ir além do sentido da norma querer sancionar tal comportamento desobediente com a cominação de desobediência, dado que tal conduta desobediente mereceu a devida previsão e reacção legal. IV - Porém, tem sido entendido maioritariamente pela jurisprudência que a acusação só pode ser rejeitada por manifestamente infundada, desde que, por forma clara, flagrante e para além de qualquer dúvida razoável, seja desprovida de fundamento, ou por ausência de factos que a sustentem ou porque os factos nela descritos não integram qualquer norma jurídico-legal, constituindo a realização de julgamento evidente violência desnecessária para o arguido. V- "Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho ...não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente…Assim, por exemplo, o ]uiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na alínea d) do n° 3 ("Se os factos não constituírem crime") se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime..." - Dr. Vinício A. P. Ribeiro, CPP anotado, Coimbra Editora, 2008, pag. 644. VI - Havendo dúvidas se os factos descritos na acusação constituem crime, dado que tal subsunção à norma jurídica violada é objecto de debate e de discórdia jurisprudencial, tal dúvida deverá aproveitar à continuação da acção penal, já que a putativa inexistência de crime não é algo pacífico e manifesto, como exige o corpo do art.311°, nº2, al. a) ao integrar a expressão "manifestamente infundada". VII - Para mais, discorda-se da douta argumentação empregue pela Mmª Juíza "a quo", sendo mais consentânea com as regras de direito a tese que a não entrega voluntária da carta de condução, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, tem como consequência, não só a sua apreensão, mas também o cometimento do crime de desobediência, caso tenha sido feita a competente cominação em sede de sentença. VIII - O facto do art.500°, n°s2 e 3 do Cod. Proc. Penal sancionar o comportamento desobediente com a apreensão da carta, tendo, assim, optado por não criminalizar tal omissão com norma expressa, não oblitera a possibilidade do julgador efectuar a cominação de desobediência caso o arguido não proceda à entrega voluntária do documento. IX - É esse o sentido e o alcance da norma incriminadora da alínea b) do n°1 do art.348° do Cód. Penal, a qual só opera caso não exista uma disposição legal que preveja a punição da desobediência, hipótese que vem vertida na alínea a), situação em que o funcionário ou a autoridade fazem, eles mesmos, a competente cominação, acautelada que esteja a legitimidade da ordem dada, como evidentemente se passou no caso em apreço. X - Acresce que a cominação de desobediência que foi efectuada pelo julgador no caso em análise (e que é efectuada pela maioria dos Srs. Juízes, segundo nos é dado a ver pela experiência) tem um alcance muito útil, que reforça e enfatiza a obrigação legal dos títulos de condução ficarem apreendidos no processo, em caso de aplicação de uma pena de proibição de conduzir veículos a motor, nos termos do art. 69° do Cód. Penal, por condenação, nomeadamente, pelo crime de condução em estado de embriaguez. XI - Ao ser criminalizado o incumprimento da obrigação de legal de entrega da carta de condução, é criado um obstáculo efectivo a que o condenado empena de proibição de conduzir continue a tripular veículos, decorridos 10 dias sobre o trânsito em julgado da sentença, sem que possa ser punido pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições (art.353° do Cód. Penal), caso se entenda, como fazem muitos, que o prazo de proibição de conduzir só começa a contar da data em que se realiza a entrega ou a apreensão da carta. XII - Para quem entenda que a dita proibição começa a contar logo que sejam decorridos 10 dias sobre o trânsito em julgado da sentença, haja ou não entrega ou apreensão da carta, a cominação de desobediência, como aquela que foi efectuada neste caso, visa diminuir as possibilidades do condenado que não entregar a carta, poder tripular impunemente veículos a motor, sem que as autoridades fiscalizadoras saibam que aquele está a cometer um crime de violação de proibições, conhecida que é a demora no averbamento efectivo das condenações ao registo individual do condutor e ao registo criminal. XIII -.Os factos vertidos na acusação constituem inexoravelmente crime, sendo certo que dessa peça processual constam todos os demais requisitos previstos no n°3 do art. 311°, do Código de Processo Penal. Com efeito, do despacho de acusação constam, para além da imputação de factos constitutivos de um delito penal, a identificação do arguido - al. a) - a narração dos factos - al. b) - a disposição legal aplicável e as provas que a fundamentam — al. c). XIV -Mesmo que a subsunção de tais factos ao cometimento do crime de desobediência do art.348°, nº 1, al. b) possa ser objecto de controvérsia jurisprudencial, a mera defesa da tese que nega tal subsunção, não pode conduzir à automática rejeição da acusação, nos termos do art.311°, n°s2, al. a) e 3, al. d) do Cod. Proc. Penal. XV - Ao não receber a acusação, a Mmª ]uíza "a quo” violou o disposto no art.348°, n°1, al.b) do Cod. Penal e o disposto no art.311 °, n°s2, al. a) e 3, al. d) do Cod. Proc. Penal. XVI - Deve, pois, o douto despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido e que designe data para julgamento do mesmo pela autoria material do crime de desobediência, pp. pelo art.348°, nº1, al. b) do Cód. Penal. Contra-motivou o arguido pugnando pela improcedência do recurso com a consequente manutenção do despacho impugnado. Nesta Relação a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta sufraga a fundamentação e posição adoptados pelo recorrente, sendo também de parecer que deve ser concedido provimento ao recurso. Observado o disposto no nº2 do art.417º do CPP o arguido respondeu reeditando no essencial a argumentação expendida na contra-motivação que oportunamente apresentou. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência. Cumpre decidir. FUNDAMENTAÇÃO. Objecto do recurso. Questões a examinar. Com é sobejamente sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação (art.412º nº1 do CPP). Assim, as questões que importam examinar e que reclamam solução, alinhadas por ordem preclusiva consistem em saber: 1º. Se sendo juridicamente controversa a questão de saber se os factos narrados na acusação integram ou não o crime que nela é imputado ao arguido, não tendo havido instrução, o Juiz aquando do saneamento do processo a que alude o art.311º do CPP pode, desde logo, optar por uma das posições em confronto e se o fizer optando por aquela que preconiza não ser crime tal factualidade, a acusação pode ser considerada manifestamente infundada e fulminada com a rejeição; Sendo negativa a resposta à questão precedente 2º. Se a factualidade descrita na acusação integra o crime de desobediência, pp. pelo art.384º, nº1, al.b) do Código Penal. Examinemos pela ordem indicada as questões enunciadas. Para melhor elucidação destas questões importa, desde logo, que se tenha presente o texto da acusação e do despacho sob recurso no segmento que releva para apreciação das referidas questões. A acusação relativamente à narração dos factos e enquadramento jurídico-penal é do seguinte teor: «Por sentença proferida em 4 de Julho de 2005, no âmbito do processo sumário n°---/05. 8GTABF do 2° Juízo desta Comarca, transitada em julgado em 20 de Setembro de 2005, o arguido foi condenado a entregar a sua carta de condução neste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência. O arguido tomou conhecimento do conteúdo desta decisão, já que esteve presente na leitura de sentença, e ficou ciente que estava obrigado a entregar a sua carta de condução no local e no prazo acima referidos. Não obstante tal ordem ser substancial e formalmente legítima e dada por quem era competente, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo referido e pelo menos até ao dia 13/11/2008. O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta não lhe era permitida e que estava obrigado a acatar aquela decisão. Cometeu, assim, o arguido, em autoria material e na forma consumada, um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348°, n°l, al. b), do Código Penal». O despacho impugnado no segmento que aqui releva é do seguinte teor: «A fls. 48 a 50 foi deduzida acusação contra o arguido A. a quem foi imputada a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. Os factos praticados pelo arguido, tal como se encontram descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, consistiram em o mesmo ter omitido a entrega da sua carta de condução, após ter sido condenado na entrega da mesma, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença proferida nos autos de processo sumário n.º--/05.8GTABF, deste Juízo, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência. Ora, sendo este o comportamento imputado ao arguido, afigura-se, salvo melhor entendimento, que o mesmo não é susceptível de consubstanciar a conduta típica do crime de desobediência que lhe foi imputado. De facto, nos termos do disposto no artigo 348º, n.º 1, do Código Penal, “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”. Assim, constitui, em primeiro lugar, elemento do tipo de ilícito do crime em apreço, a emissão de uma ordem ou mandado. Acresce que essa ordem ou mandado, para além da legalidade substancial e formal que deve revestir, terá que ter sido emitida pela autoridade ou funcionário competentes para esse efeito. Por outro lado, exige ainda o preenchimento do tipo objectivo de ilícito que, após a regular transmissão da ordem ou mandado ao respectivo destinatário, este não cumpra o comando que lhe está subjacente (cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2º Volume, Parte Especial, 3ªEdição, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 1503). Em todo o caso, a dignidade penal da conduta praticada pelo agente depende ainda da existência de uma disposição legal que comine a punição da desobediência ou, na ausência de disposição legal, da realização dessa cominação pela autoridade ou funcionário competentes. Por último, e no que respeita ao tipo subjectivo de ilícito do crime a que se tem vindo a aludir, exige-se ainda que o agente tenha actuado com dolo, em qualquer uma das modalidades mencionadas no artigo 14º do Código Penal (cfr. artigo 13º do Código Penal). Em todo o caso, tendo em conta que a entrega da carta de condução foi determinada no âmbito de um processo sumário para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, importa atender ao preceituado no artigo 500º, n.º2, do CPP. Com efeito, nos termos da disposição legal citada, “no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo”. Por seu turno, acrescenta o n.º 3 do mesmo preceito legal que “se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”. Quer isto dizer, por um lado, que a omissão da entrega da licença de condução por parte do condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor não se encontra legalmente cominada com a punição da desobediência. Por outro lado, decorre também das disposições legais citadas que a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução foi expressamente prevista pelo legislador, tendo o mesmo optado por impor, como consequência dessa omissão, a apreensão da licença de condução pela entidade policial competente. Mas, a ser assim, se não se encontra preenchida a alínea a), do n.º 1, do artigo 348º, do Código Penal, também não se mostra verificada a respectiva alínea b), por não se tratar de uma situação em que inexista disposição legal que preveja a falta que está na origem da cominação efectuada. Na verdade, como salienta Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 354,“a al. b) existe tão só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal”. Não sendo esse o caso, como já foi referido, não poderá o agente incorrer na prática do crime de desobediência, por não se encontrar preenchida a previsão de nenhuma das alíneas do n.º 1, do artigo 348º, do Código Penal. A este propósito, sustenta o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão proferido a 22 de Outubro de 2008 no proc.n.º43/08.6TAALB.C1, in www.dgsi.pt, “se o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução, tem como consequência a sua apreensão, parece-nos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega, contraria manifestamente o sentido da norma. Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais. Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.”. No mesmo sentido se tem pronunciado a Jurisprudência mais recente dos Tribunais superiores, como o demonstram os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Abril de 2009, proc.n.º329/07.7GTAVR.C1, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/12/2008, proc.n.º1932/2008-9, ambos in www.dgsi.pt. Em face do exposto, impõe-se concluir que os factos imputados ao arguido não se mostram susceptíveis de integrar a prática do crime de desobediência pelo qual foi acusado. Conforme determina o artigo 311º, n.º 2, do CPP, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”. Por seu turno, esclarece o n.º 3 do mesmo preceito do CPP que, “para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: (...) d) se os factos não constituírem crime”. Assim, por considerar que os factos imputados ao arguido nestes autos não consubstanciam a prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, que lhe foi imputado, nem de qualquer outro ilícito de natureza criminal, decido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 48 a 50. Em face do exposto e atentos os motivos indicados, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido A. e, em consequência, declaro extinto o procedimento criminal contra o mesmo instaurado». Visto que a procedência da 1ª questão enunciada prejudica o conhecimento da outra, teremos inevitável e logicamente que começar pela análise daquela. Nos termos do disposto no art.311º, nº2 do CPP, com a redacção introduzida pela Lei nº59/98, de 25 de Agosto, nos casos em que o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, como é o caso, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284°, n°1, e 285º n°3, respectivamente. Actualmente a acusação só pode ser taxada de manifestamente infundada nas situações taxativamente enumeradas nas quatro alíneas do nº3, a saber: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime. A causa de rejeição da acusação em que o despacho sob censura está ancorado radica efectivamente na al. a) do nº2 e na al. d) do nº3 do art.311º do CPP. Como é sabido a questão sobre se o não acatamento da ordem judicial de entrega do título habilitante para a condução por parte de arguido condenado em pena de proibição de conduzir, para cumprimento dessa pena, constitui ou não crime desobediência, pp. pelo art.348º, nº1, al. b) do C. Penal, apresenta-se controversa, estando a jurisprudência dividida. Para além da jurisprudência que o despacho recorrido cita em apoio da tese nele sufragada, em sentido oposto – de constituir a prática do mencionado crime de desobediência - pode ver-se entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra de 14-10-2009, proc 103/07.0TACDN.C1 e da Relação do Porto de 18-11-2009, proc 1952/08.8TAVNG.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt Como é sublinhado com acerto pelo recorrente, nas situações em que se suscitam dúvidas sobre a qualificação jurídica dos factos relatados na acusação e, portanto, sobre se os factos descritos na acusação constituem crime, como é aqui o caso, e por maioria de razão nos casos em que diversos tribunais superiores já se pronunciaram sobre a questão, encontrando-se dividida a jurisprudência, perante essa dúvida impõe-se que o processo prossiga para julgamento, pois que não é manifesto nem evidente que a acusação seja infundada. Corroboramos o entendimento expendido a este respeito por Vinicio A. P. Ribeiro, in Código Processo Penal Anotado, Coimbra Editora, 2008, a pgs.644, também citado pelo Recorrente, no sentido de que “se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho … não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente … Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na alínea d) do nº3 do art.311º - se os factos não constituírem crime - se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime…”. Com efeito, a acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do nº3 do artº 311º do CPP, quando for evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, de forma irrefutável e incontornável não preenchem qualquer tipo legal de crime. Naturalmente que tal pressuposto não se verifica nos casos em que o juiz, no despacho saneador, fazendo um juízo sobre a relevância criminal dos factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, como é aqui o caso, outra, ou outras, seriam possíveis. Ou seja: a previsão da al. d) do nº3 do artº 311º não vale para os casos em que para além do entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, se perfile outro diverso daquele, sustentando a não qualificação dos factos como penalmente relevantes. Deste modo, o juiz não pode, no momento processual regulado no art.311º do CPP, aderir a uma corrente jurisprudencial em detrimento de outra, e taxar a acusação de manifestamente infundada, fulminando-a com a rejeição liminar, nos termos do art.311º, nº2, al. a) e nº3, al. d), do CPP. Não obstante a acusação a final poder vir eventualmente a ser julgada improcedente, na fase processual em que o processo se encontra, pelas razões já expostas, aquela não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a respectiva rejeição. Assiste, pois, razão ao recorrente, sendo que a procedência desta questão, prejudica consequentemente o conhecimento da outra questão também objecto do recurso. Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, impõe-se conceder provimento ao recurso e consequentemente revogar o despacho recorrido para ser substituído por outro que receba acusação e designe data para julgamento. DECISÃO. Nestes termos e com tais fundamentos concede-se provimento ao recurso e em consequência revoga-se o douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público e designe data para o respectivo julgamento. Sem custas. Évora, 8 de Abril de 2010 (Elaborado e integralmente revisto pelo relator). Gilberto Cunha (relator) Martinho Cardoso (adjunto) |