Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
717/24.4T8BJA-A.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
INCIDENTE DA INSTÂNCIA
REPÚDIO DA HERANÇA
QUESTÃO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: SUMÁRIO (art.º 663º, n.º 7, do CPC):

I. O incidente de habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa (art.º 351º e ss. do CPC) tem carácter obrigatório e o seu objectivo é assegurar, de um modo simples e célere, a continuidade da representação processual do património da parte falecida, pondo fim à suspensão da instância que se produz a partir da demonstração do óbito nos autos.


II. Não estando neste incidente em causa o ingresso dos bens do finado na esfera patrimonial dos sucessores, a sua procedência depende apenas da alegação da qualidade sucessível das requeridas / habilitandas, sem necessidade de invocação e prova de que estes aceitaram a herança.


III. Pois se assim não fosse entendido, o desfecho do incidente ficaria dependente do exercício da aceitação da herança que só caduca 10 anos após o conhecimento pelo sucessível de a ela haver sido chamado (n.º 1 do art.º 2.059º do CC).


IV. E se recaísse sobre o requerente / habilitante o ónus de alegação de que as requeridas / habilitandas aceitaram a herança e, por consequência, estas tivessem o ónus de provar que a não aceitaram, juntando o documento de repúdio, a herança não poderia, a partir da habilitação, permanecer jacente por ainda não ter sido aceite.


V. Demonstrada a qualidade sucessível das requeridas, o incidente de habilitação procede, se até ao momento da decisão não tiver sido repudiada a herança.


VI. Caso venha a ocorrer ulterior repúdio da herança pelas habilitadas e se mostre necessária a habilitação processual de outro sucessor, a decisão proferida no primeiro incidente de habilitação terá cumprido, até à verificação desse acontecimento futuro e incerto, a função de permitir o prosseguimento dos autos principais com quem durante tal lapso temporal reuniu as condições para representar o interesse patrimonial da parte falecida.

Decisão Texto Integral: *

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo


Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1º Adjunto: Sónia Kietzmann Lopes;


2º Adjunto: Filipe Aveiro Marques.


*


***


I. RELATÓRIO


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A.


Por apenso aos autos de execução ordinária principais que move a AA, BB e CC para cobrança da quantia exequenda de 135.041,97 €, veio a Exequente “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, requerer a habilitação dos herdeiros de BB, Executado falecido a ........2023.


B.


Contestou DD, viúva do Executado BB, informando que não aceitou, nem tem intenção de aceitar a herança, pretendendo exercer o seu direito de repúdio nos termos e para os efeitos do artigo 2062.º e seguintes do CC, estando em prazo para o fazer de acordo com o previsto no artigo 2059.º do CC. Iniciou os procedimentos legais para o repúdio, quer em seu nome, quer em representação das suas filhas menores EE e FF, sendo que relativamente a estas está dependente de autorização judicial já pedida.


Com o requerimento datado de 18.03.2025, juntou certidão da escritura pública outorgada a 14.03.2025, de repúdio, por DD, da herança deixada por óbito de BB.


C.


Foi proferida sentença datada de 10.04.2025 que julgou EE e FF habilitadas como sucessoras do falecido Executado BB para prosseguirem como parte passiva nos autos principais de execução.


D.


Inconformada, DD recorreu, na qualidade de representante legal das suas filhas menores EE e FF.


Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem sublinhado e negrito da origem):


“(…)


I) O Tribunal a quo julgou as menores EE e FF habilitadas como sucessoras do falecido BB para prosseguirem como parte passiva na execução, ignorando a pendência do pedido de autorização para repúdio da herança junto do Ministério Público, circunstância expressamente reconhecida na sentença recorrida.


II) Ficou provado que a Recorrente, mãe das menores, já repudiou formalmente a sua própria herança e, considerando o caráter presumivelmente deficitário da mesma, pretende que as filhas também a repudiem, tendo formulado o respetivo pedido de autorização junto do Ministério Público.


III) O artigo 1889.º, n.º 1, al. l) do Código Civil proíbe os pais de repudiarem heranças dos filhos menores sem autorização judicial, enquanto o artigo 2126.º sujeita a aceitação da herança por incapazes às regras específicas aplicáveis à administração do seu património.


IV) Antes da decisão sobre aceitação ou repúdio, os menores possuem apenas vocação sucessória potencial, não qualidade definitiva de herdeiros, conforme resulta da conjugação dos artigos 2050.º e 2126.º do Código Civil, não podendo ser considerados herdeiros para efeitos de habilitação enquanto não existir decisão sobre a aceitação ou repúdio.


V) O repúdio validamente autorizado tem efeito retroativo (artigo 2066.º, n.º 1 do CC), considerando-se que as menores nunca foram chamadas à herança, o que tornará a habilitação já determinada juridicamente inócua e gerará atos processuais desnecessários.


VI) A pendência do pedido de autorização para repúdio constitui questão prejudicial que impunha a suspensão do incidente de habilitação, nos termos do artigo 272.º, n.º 1 do CPC, uma vez que a decisão dessa questão pode influenciar decisivamente o julgamento sobre a habilitação.


VII) A integração das menores como parte passiva no processo executivo acarreta encargos processuais imediatos, nomeadamente citações, necessidade de constituição de mandatário judicial, imposição de prazos peremptórios e potencial sujeição a atos executivos sobre bens que venham a integrar seu património.


VIII) A limitação de responsabilidade "às forças da herança" invocada pelo Tribunal a quo não neutraliza os encargos processuais impostos às menores pela habilitação precipitada, uma vez que tal limitação diz respeito apenas à responsabilidade patrimonial, não impedindo a sujeição a consequências processuais.


IX) A existência de pedido de autorização para repúdio evidencia que existe avaliação prévia no sentido de que a herança é provavelmente deficitária, tornando a habilitação das menores prejudicial aos seus interesses patrimoniais por impor-lhes posição processual negativa e encargos imediatos.


X) A decisão recorrida viola o princípio do superior interesse da criança (artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança e artigo 1878.º do CC) ao sujeitar as menores a encargos de uma herança que se antevê desvantajosa, quando o procedimento adequado seria aguardar a decisão sobre o pedido de repúdio.


XI) O Tribunal a quo incorreu em contradição ao afirmar que na habilitação "está apenas em causa a regularidade da instância" mas, simultaneamente, decidir sobre a qualidade sucessória das menores, qualidade esta que está pendente de definição através do procedimento de autorização para repúdio.


XII) A situação jurídica das menores é provisória quanto à sua qualidade de sucessoras até decisão sobre o pedido de repúdio, não podendo fundamentar uma habilitação definitiva como a determinada pelo Tribunal a quo.


XIII) A habilitação prematura coloca as menores numa posição jurídico-processual que poderá revelar-se inexistente caso o repúdio venha a ser autorizado, gerando insegurança jurídica para todos os intervenientes, incluindo para o próprio Exequente.


XIV) Os princípios da economia processual e da proteção dos menores exigiam a suspensão do incidente de habilitação até decisão do Ministério Público sobre o pedido de repúdio, evitando a prática de atos processuais potencialmente inúteis.


XV) A decisão recorrida ignora que, no caso de menores, a qualidade de herdeiro não se consolida automaticamente com a abertura da sucessão, dependendo da decisão sobre aceitação ou repúdio, aplicando incorretamente o regime jurídico da habilitação.


XVI) O pedido de autorização para repúdio não é mero ato formal, mas procedimento substantivo que visa definir a própria existência da qualidade de herdeiro, pelo que ignorar sua pendência equivale a antecipar indevidamente uma qualidade jurídica que está sendo questionada.


XVII) A habilitação decidida desconsidera o regime especial de proteção patrimonial dos menores e a natureza provisória da vocação sucessória antes da aceitação expressa.


XVIII) A decisão recorrida viola os artigos 1889.º, n.º 1, al. l), 2050.º, 2066.º e 2126.º do Código Civil e 272.º, n.º 1 do CPC, ao determinar a habilitação numa situação de vocação sucessória não consolidada e pendente de definição.


XIX) Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada, com a consequente suspensão da habilitação até decisão definitiva sobre o pedido de autorização para repúdio ou, subsidiariamente, julgando-se improcedente a habilitação das menores EE e FF como sucessoras do falecido Executado. (…)”


E.


Não foram apresentadas contra-alegações.


F.


Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.


G.


Questões a decidir


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).


Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.


No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelo recurso:


1. Se, em virtude do pedido de autorização apresentado nos serviços do M.º P.º com vista à autorização do repúdio, pelas menores EE e FF, da herança deixada por óbito do Executado BB, deveria a instância do presente incidente de habilitação de herdeiros ter sido suspensa até à decisão final daquele pedido; e


2. Caso assim se não entenda, se deveria, pelos mesmos motivos, ter sido julgada improcedente a habilitação.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


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A. De facto


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Reprodução integral dos factos provados como constam da sentença sob recurso (sem negrito e itálico da origem):


“(…)


1. O Executado BB faleceu no dia .../.../2023.


2. DD é viúva do Executado.


3. DD repudiou a herança do Executado.


4. EE é filha do Executado e de DD.


5. FF é filha do Executado e de DD.


6. DD, na qualidade de progenitora de EE e de FF, requereu ao Ministério Público autorização para repúdio da herança do Executado. (…)”.


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B. De direito


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Da suspensão do incidente de habilitação em razão do pedido de autorização para repúdio da herança


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Pretende a Recorrente, em primeira linha, com o presente recurso que se revogue a decisão recorrida, proferindo-se nova decisão que suspenda a habilitação das menores EE e FF até decisão definitiva do Ministério Público sobre o pedido de autorização para repúdio da herança.


Para tanto, sustenta que a pendência de pedido de autorização para repúdio de herança constitui questão prejudicial face à habilitação, pois o seu resultado pode determinar a inutilidade deste incidente.


Esta alegação encerra dois conceitos distintos:


i.


O de “causa prejudicial” que, com MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (in “Estudos Sobre o Processo Civil”, pág. 575, se verifica “…quando a apreciação de um objeto (que é prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objeto (que é o dependente).”


ii.


O de “impossibilidade / inutilidade superveniente da lide” que respeita às situações em que deixa de ser possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo – seja por extinção do sujeito titular da relação sem sucessão nessa titularidade (impossibilidade subjectiva), por extinção do objecto do litígio (impossibilidade objectiva) ou por extinção dos interesses em litígio (impossibilidade causal), ou ainda quando o efeito pretendido pela acção já foi alcançado por outro meio.


*


Vejamos, por isso, em primeiro lugar, se e em que medida está a decisão do incidente de habilitação de herdeiros dependente da aceitação da herança pelo sucessível.


De acordo com o nosso Código Civil, a sucessão abre-se com a morte do “de cujus”, momento em que são chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis (cfr. art.ºs 2024º, 2031º e 2032º, nº 1, do CC).


As pessoas sucessíveis são as que se inscrevem nas categorias de herdeiros e/ou legatários. Os primeiros, sucedem na totalidade ou numa quota do património do falecido. Os segundos, sucedem em bens ou valores determinados (cfr. art.º 2030º, n.ºs 1 e 2, do CC).


São herdeiros legítimos o cônjuge, os parentes e o Estado, integrando o cônjuge e os descendentes a primeira classe de sucessíveis (cfr. artigo 2.132º e 2.133º, n.º 1, al.ª a), ambos do CC). O cônjuge, os ascendentes e os descendentes são também herdeiros legitimários (cfr. artigo 2.157º do CC).


Deste modo, as menores EE e FF são sucessíveis que integram a categoria de herdeiras.


Aberta a sucessão, a herança permanece jacente até que ocorra a sua aceitação ou a declaração de que ficou vaga a favor do Estado e, se ainda a não tiver aceitado nem repudiado, o sucessível chamado à herança não está inibido de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos (cfr. art.ºs 2046º, n.º 1 e 2047º, n.º 1, ambos do CC).


Daqui decorre que os sucessíveis previstos nos artigos 2.132º e ss. e 2.157º do CC, não adquirem a qualidade de herdeiros por serem chamados à sucessão (cfr. art.º 2024º do CC), mas sim por via da aceitação da herança que retroage os respectivos efeitos à data da abertura / óbito do “de cujus”.


Por isso, se a condição de “sucessível” decorre directamente do vínculo matrimonial, familiar ou da vontade expressa pelo “de cujus” através do legado, a sucessão está dependente do acto de aceitação da herança que pode ser expresso ou tácito (cfr. art.º 2.056º do CC).


O repúdio, por seu turno, é o acto jurídico, necessariamente expresso e formal, pelo qual o sucessível manifesta a vontade de renunciar à herança, abdicando irrevogavelmente da condição de sucessor, declaração que tem efeitos retroactivos à data da abertura da sucessão (cfr. art.ºs 2.063º e 2.066º do CC).


Se do regime jurídico vindo de apresentar resulta assente que a sucessão impõe a aceitação da herança para proporcionar a partilha dos respectivos bens pelos sucessores, já no que respeita ao incidente processual de habilitação de herdeiros previsto pelos artigos 351º e ss. do CPC, parece-nos que a questão deve merecer uma análise distinta.


Isto porque, contrariamente à partilha dos bens da herança que as elencadas normas substantivas regulam, na esmagadora maioria dos casos em que o incidente de habilitação processual civil por óbito da parte é suscitado, não está em causa o ingresso desses mesmos bens na esfera patrimonial do sucessível mas tão somente garantir a continuidade da representação processual do património da parte falecida para permitir a prossecução da lide. Só nos casos do incidente de habilitação em processo de inventário judicial poderá estar em causa a efectiva partilha de bens do interessado falecido no decurso da demanda.


Estas, entre outras razões, têm determinado a jurisprudência dos nossos tribunais superiores a enveredar pelo entendimento de que para a dedução do incidente de habilitação basta a alegação da qualidade sucessível e não já a aceitação da herança e, bem assim, de que a decisão do incidente não produz qualquer efeito como declaração tácita de aceitação da herança.


Neste sentido, consta dos fundamentos do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.05.2010, relatado pelo Juiz Desembargador Manuel Capelo no processo n.º 2431/07.6TBVIS-B.C1 1 que:


“…sendo a habilitação obrigatória (…) a necessidade de garantir o prosseguimento da acção suspensa torna distinta esta questão da habilitação para substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio, da de saber se existe ou não aceitação da herança. (…) Impor ao requerente a exigência de alegação e prova da aceitação da herança para fazer proceder a habilitação como facto constitutivo do seu direito de habilitar significaria permitir ao requerido o poder manter suspensa a acção em que o falecido tivesse sido parte, bastando para isso que não contestasse.”


Mais adiante, “…no incidente de habilitação não se cuida de apurar quem é herdeiro mas sim quem será o substituto processual da parte falecida.”


E ainda “[e]ntende-se que quem tiver uma acepção restrita da expressão “sucessor” inserida no art. 371 nº 1 do CPC, no sentido de por esta se entender, apenas, aquele sucessível que já aceitou a herança, o incidente da habilitação comporta um limite temporal até ao qual, inclusive, os habilitandos terão de definir (se ainda o não tiverem feito) a sua posição em face da herança, aceitando-a ou repudiando-a. Deste modo, fazendo recair sobre o requerente / habilitante um ónus de alegação de que o requerido / habilitando aceitou a herança e sobre este o ónus de provar que a não aceitou, juntando o documento de repúdio, verificamos que a partir da habilitação não poderia nunca a herança continuar a ser jacente (por ainda não ter sido aceite).”


Na mesma linha de entendimento se inscrevem os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.02.2010, relatado pelo Juiz Desembargador Artur Dias no processo n.º 1330/06.3TBTNV-A.C1 2 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.05.2023, relatado pelo Juiz Desembargador Carlos Oliveira no processo n.º 2537/19.9T8ALM.L1-7 3, sendo todos precedidos, embora com algumas diferenças, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.06.2005, relatado pelo Juiz Desembargador Bernardo Domingos no processo n.º 1371/05-2. 4


Aos argumentos expendidos nos mencionados arestos acrescentamos nós outro, também decorrente da suspensão obrigatória do processo judicial com o conhecimento do óbito da parte (cfr. al.ª a) do n.º 1 dos art.ºs 269º e 276º e n.º 1 do art.º 270º, todos do CPC) que gera a necessidade de prosseguir a marcha dos autos a tempo de proferir sentença que produza justiça efectiva e útil: como a caducidade do direito do sucessível aceitar a herança só ocorre volvidos 10 anos contados desde que este tem conhecimento de haver sido a ela chamado (cfr. n.º 1 do art.º 2.059º do CC), fazer recair sobre o Requerente do incidente processual de habilitação de herdeiros o ónus da prova da aceitação da herança por parte do sucessível, colocaria o desfecho do incidente dependente de uma condição que pode tardar dez ou mais anos a produzir-se, o que constitui uma solução aberrante se quisermos uma justiça produzida em tempo útil, propiciadora da paz social.


Para além do mais, nenhuma justificação ou interesse relevante haveria nesse sentido, já que se trata, não só de uma representação processual da herança que deixa intocado o património próprio do sucessível, como ainda dispõe este da faculdade de lhe pôr um fim imediato através da declaração de repúdio da herança que, como vimos, produz efeitos retroactivos.


Donde, forçoso se mostra concluir que a aceitação da herança não é um facto constitutivo do incidente de habilitação de herdeiros previsto pelos artigos 351º e ss. do CPC, pese embora a demonstração do seu repúdio pelo sucessível determine a improcedência da respectiva pretensão.


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Tendo estas considerações presentes, podemos agora concluir que não assiste razão à Recorrente quando sustenta, na primeira parte da supracitada alegação, que a pendência de pedido de autorização para repúdio de herança constitui questão prejudicial face à habilitação de herdeiras das filhas do falecido Executado.


Não estando ainda aceite o pedido de autorização e sendo o desfecho deste desconhecido, não se encontrava preenchida a excepção constituída pelo repúdio da herança por parte daquelas sucessíveis, filhas da parte principal falecida. E, contrariamente ao que parece entender a Recorrente, vimos já que a aceitação da herança não constitui um pressuposto da habilitação herdeiros.


Assim sendo, o mérito do incidente de habilitação de herdeiros do falecido Executado não estava, no momento em que foi proferida a decisão recorrida, dependente da apreciação da autorização para o repúdio da herança, na medida em que se bastava com a demonstração da condição sucessória de herdeiras legitimas e legitimárias das Requeridas EE e FF, decorrente do vínculo familiar de filiação comprovado pelas certidões de nascimento juntas aos autos.


Esta conclusão não resulta invalidada pelo argumento apresentado no sentido de que o eventual deferimento da autorização e subsequente repúdio da herança pelas menores EE e FF, teria como consequência a inutilidade / impossibilidade superveniente da lide incidental.


Desde logo porque a causa da inutilidade superveniente da lide não constitui necessariamente uma questão prejudicial. Convocando os fundamentos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.01.1991, relatado pelo Juiz Desembargador Almeida Valadas no processo n.º 0023826, “…se for de prever que a decisão de uma das acções em determinado sentido origina inutilidade superveniente da lide na outra, nem por isso se pode concluir pela existência de prejudicialidade: é que, ao decretar-se inutilidade superveniente da lide, não se faz qualquer julgamento de mérito, não havendo assim dependência duma decisão de mérito relativamente a outra decisão de mérito, e só neste sentido se pode falar em nexo de prejudicialidade.” 5 No mesmo sentido, veja-se também o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 05.05.2009, relatado pelo Juiz Desembargador Rui Vouga no processo n.º 986/07.4TVLSB.L1-1. 6


Depois porque, no caso vertente, ainda que venha a correr o repúdio da herança em momento ulterior e os seus efeitos retroactivos ditem a perda da qualidade de herdeiros para efeitos sucessórios, a decisão proferida no incidente terá cumprido, até à verificação desse acontecimento futuro e incerto, a sua função de permitir o prosseguimento dos autos principais com quem durante tal lapso temporal reuniu as condições para representar o interesse patrimonial da parte falecida.


Só no momento do repúdio surgirá por via deste novo acontecimento, a necessidade de encontrar um novo habilitado processual que represente a herança, o que se fará entre os sucessores remanescentes que incluem, em última linha, o Estado Português.


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Assim, é insubsistente a argumentação em apreço, apresentada pela Recorrente.


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Quanto à alegação de que há “…uma contradição insanável na fundamentação…” porque a “…limitação da responsabilidade pelas dívidas da herança não é argumento válido para permitir a habilitação antes de decidido o pedido de repúdio, pois mesmo uma herança deficitária que apenas responda pelas suas forças implica consequências processuais onerosas para os herdeiros habilitados (…) como a sujeição a citações, notificações e prazos processuais, bem como a necessidade de se fazerem representar nos autos, o que, tratando-se de menores, implica encargos desnecessários quando já está em curso um pedido de repúdio da herança…”, importa, em primeiro lugar, ter presente que a Recorrente não invocou a nulidade da decisão recorrida ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.


Trata-se, assim, de mera manifestação de discordância relativamente à passagem da fundamentação do despacho recorrido em que se sustenta “…os habilitados apenas respondem, frise-se, na medida das forças da herança; se nada receberem [por virem a repudiá-la ou simplesmente por inexistirem bens da herança] em nada responderão; se receberem, pois então responderão pela dívida exequenda na medida do recebido.”


A afirmação constante de decisão recorrida é acertada pois diz respeito à impossibilidade das Habilitadas virem a ser executadas no seu património pessoal em resultado da habilitação processual como herdeiras do Executado, o que decorre da sua condição de meras representantes processuais do património do falecido pai.


Tal não significa, porém, que não seja também verdade que serão sujeitas, através da pessoa da sua representante legal e mãe, a citações, notificações e prazos processuais, bem como à necessidade de se fazerem representar nos autos.


Simplesmente, os incómodos ou despesas inerentes a essa situação não constituem um critério material da decisão de procedência ou improcedência do incidente de habilitação de herdeiros.


E aqui entramos já no último argumento aventado pela Recorrente, traduzido na violação, pela decisão recorrida, “…do princípio do superior interesse da criança (artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança e artigo 1878.º do CC) ao sujeitar as menores a encargos de uma herança que se antevê desvantajosa, quando o procedimento adequado seria aguardar a decisão sobre o pedido de repúdio.”


Com o devido respeito, a invocação do superior interesse da criança surge aqui manifestamente deslocada, dado tratar-se de um princípio regente no domínio da jurisdição de família e menores, em questões relacionadas com o exercício do poder paternal ou tutelares educativas, cujo processo de jurisdição voluntária deixa ao juiz uma margem relativamente ampla de conformação da sua actividade.


Na ordem jurídica portuguesa o interesse superior da criança é um conceito variável em função do grau de desenvolvimento sócio-psicológico do menor e funciona como limite e critério de actuação no seio da célula familiar actual com importantes reflexos no exercício dos poderes parentais. 7


Todavia, afirmar que em matéria do incidente de habilitação de herdeiros do Executado nos autos de execução ordinária principais, está em causa o superior interesse das Habilitadas só porque são menores de idade e vão ser sujeitas aos normais incómodos da posição processual que passam a ocupar nos autos, constitui uma apropriação claramente abusiva do princípio, quer por se mostrar carente de suporte legal na situação processual em causa, quer porque o conceito serve de critério orientador de situações efectivamente relevantes para a vida dos menores, o que se não vislumbra nos argumentados aventados pela Recorrente.


Tanto basta para revelar a inoportunidade e a irrelevância da alegação produzida.


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Em face da precedente exposição, resulta necessariamente negativa a resposta às questões suscitadas pelo presente recurso, pois o pedido de autorização apresentado pelas menores EE e FF nos serviços do M.º P.º com vista ao repúdio da herança de seu pai, não constitui:


- questão prejudicial da sua habilitação processual nos presentes autos, nenhuma justificação havendo para suspender a instância até à decisão final daquele pedido; nem


- excepção peremptória – já que só o repúdio da herança concretizado é acto jurídico impeditivo da procedência do incidente –, inexistindo por isso fundamento para a improcedência do incidente de habilitação.


Deve, nestes termos, manter-se a decisão recorrida.


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Custas


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Não havendo norma que preveja isenção (art. 4º, n.º 2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).


No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.


No caso, a Recorrente não obteve vencimento no recurso, pelo que deverá suportar as respectivas custas.


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III. DECISÃO


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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:


1.


Julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.


2.


Condenar a Recorrente nas custas do presente recurso.


Notifique.


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Évora, d.c.s.


Ricardo Miranda Peixoto


Sónia Kietzmann Lopes


Filipe Aveiro Marques





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1. Cujo sumário reza:

“I – No tipo de habilitação incidental, por sucessão, esta tem carácter obrigatório porque, nos termos da al. a) do nº 1 do artº 276º e do artº 284º, nº 1, al. a), do CPC, a causa se suspende desde o falecimento, situação que só termina com a habilitação do sucessor da parte falecida. (…)

III – Esta característica de obrigatoriedade reporta a necessidade de, depois de se verificar a existência do óbito, se suspender de imediato a instância, facultando-se um processo célere de fazer prosseguir a acção, habilitando aqueles que são tidos como sucessores para prosseguirem os termos da demanda, o que é do interesse daquele que seja demandante.

IV – No incidente da habilitação apenas se averigua se o habilitando tem as condições legalmente exigidas para substituir uma pessoa no processo e, para com ele, a causa poder prosseguir.

V – Nessa habilitação não se exige a aceitação da herança do habilitando e o facto deste ser habilitado não determina o reconhecimento da aceitação tácita da herança, permitindo que mesmo depois da habilitação o habilitado que a não contestou possa vir a repudiar a herança.”

Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/cc63e5c6bab86cea8025773f004bf186↩︎

2. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/8bc1e451f56a88ff802576d200588953?OpenDocument↩︎

3. Cujo sumário reza:

“1. O propósito do incidente de habilitação de herdeiros não é forçar a declaração de aceitação ou repúdio da herança, mas sim estabelecer uma solução processual que permita o prosseguimento da instância contra as pessoas legítimas em função das regras gerais sucessórias.

2. Nada obsta a que, depois de ser proferida sentença a habilitar os herdeiros da falecida Ré, os mesmos venham a repudiar a herança através de escritura pública que juntam aos autos, já depois de proferido despacho saneador, mas antes de ser proferida sentença final condenatória. (…)”

Disponível na ligação:

https://jurisprudencia.pt/acordao/215588/↩︎

4. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/B6D550492D3535C780257DE100574893↩︎

5. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/906f070781f77103802568030003cbe8?OpenDocument↩︎

6. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/705c05c524aa9424802575f9005ebfa3?OpenDocument↩︎

7. Acompanhando a orientação dimanada das instâncias internacionais na preocupação com um desenvolvimento equilibrado da criança e do adolescente nos planos físico, intelectual, moral e social, reconhecendo-lhe, no decurso do seu processo formativo, autonomia, aspirações e personalidade próprias, merecedoras de um direito a uma protecção especial. Assim, a família nuclear rege-se hoje por uma concepção equilibrada de direitos e deveres entre os cônjuges a quem se reconhece o direito de dirigir a educação dos filhos tendo em conta os interesses destes e respeitando tanto quanto possível a sua crescente autonomia.↩︎