Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3137/22.1T8STB.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: DANO BIOLÓGICO
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
EQUIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário1:
I. A limitação funcional em que se consubstancia o denominado dano biológico tem como fundamento a efetiva redução das capacidades físicas e psicológicas do sinistrado, constituindo grave lesão do direito fundamental do lesado à sua integridade física, da qual pode derivar, ou não, conforme os casos, a correspondente perda da capacidade de ganho;

II. No âmbito da perda de ganho valoriza-se não o reflexo do défice funcional atribuído e penosidade inerente, na vida pessoal e profissional da A., mas o reflexo do acidente, nos seus proventos profissionais.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

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I. RELATÓRIO


AA, intentou a presente ação contra a FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS S.A., pedindo que a R. seja condenada a:


a) Pagar-lhe a quantia global de 1.761.474,49 €. (Um Milhão Setecentos e Sessenta e Um Mil Quatrocentos e Setenta e Quatro Euros e Quarenta e Nove Cêntimos), acrescida de juros contados desde 16-11-2020 até efetivo e integral pagamento, sendo € 314.746,00 , a título de dano biológico na vertente patrimonial; € 385.418,88, para pagamento vitalício de ajuda de terceiro; € 571.718,40, a título de ajudas permanente vitalícias; € 5.693,08 de perda de vencimento não liquidado pela R.; € 300.000,00 a título de dano biológico na vertente não patrimonial; € 100.000,00 para compensar a dor e sofrimento em que incorreu; € 11.100,00, pelo internamento; € 30.000,00 pela repercussão do acidente nas suas atividades físicas e de lazer; € 40.000,00 a título de prejuízo sexual e € 30.000,00 de dano estético;


b) Pagar-lhe quantia a remeter para liquidação a título de despesas futuras com medicação tratamentos, adaptação ao domicílio, cirurgias futuras, períodos de incapacidade e respetiva perdas salarias;


c) Pagar-lhe juros em dobro, calculados entre a quantia de € 330.000,00, montante proposto pela seguradora e a que vier a ser arbitrada pelo Tribunal, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 38º do DL 291/2007, de 21 de agosto.


Alegou para tanto e em síntese, que no dia 2.08.2015 ocorreu um acidente de viação, por culpa do condutor do veículo seguro na R., de que lhe sobrevieram danos patrimoniais e não patrimoniais, de que pretende ser ressarcida nos termos supra referidos.


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Procedeu-se à citação da Ré e do centro Distrital da Segurança Social.


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A Seguradora apresentou contestação onde aceitou que o acidente foi da responsabilidade do condutor do veículo em relação ao qual vigorava apólice de seguro.


Impugnou os montantes peticionados, que considera excessivos e alegou que a Autora foi seguida nos seus serviços clínicos, onde se fixou a data de 04.02.2020, como aquela em que as lesões estavam consolidadas; assim, não só a Ré acompanhou a recuperação da Autora, como a indemnização proposta é equilibrada.


Concluiu pela condenação de acordo com a prova produzida.

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Realizou-se audiência prévia no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, enunciado do objeto do litígio e seleção dos temas de prova, que não foram objeto de reclamação.


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Foi efetuada Perícia médico-legal na pessoa da Autora.


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Designou-se data para audiência de julgamento, nessa sede, após audição da Autora, determinou-se a realização de perícia suplementar, tendo o julgamento sido interrompido, nessa conformidade.


Realizada a perícia complementar, concluiu-se o julgamento e após foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


“Em face do exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios expostos o Tribunal julga: parcialmente procedente por provado o pedido formulado pela Autora e em consequência condena a R. Fidelidade – Companhia de Seguros, SA:

A. A pagar à A. a quantia global de € 737.727,26, por referência aos danos acima elencados;

B. Depois de abatidos os montantes já pagos pela R. (€ 67.500,00) a quantia a pagar pela R. cifra-se em € 670.227,26, acrescida de juros de mora nos termos supra referidos e por referência aos danos acima elencados;

C. Nos termos do disposto no nº2 do artº 609º do C. P. Civil, condena-se a Ré a pagar à Autora as quantias que se vierem a liquidar, relativas a despesas que esta suporte com a realização de tratamentos de fisioterapia e consultas de acompanhamento e medicação, conforme prescrição médica nas especialidades de ortopedia e cirurgia da dor.

D. Nos termos do disposto no nº2 do artº 609º do C. P. Civil, condena-se a Ré a pagar à Autora as quantias que se vierem a liquidar, relativas aos custos das cirurgias e intervenções referidas em 6.

Absolvendo-se a Ré do demais peticionado.

As custas ficarão a cargo da Autora e Ré, na proporção do respetivo decaimento.


Registe e notifique.”

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Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação, apresentando, após alegações, as seguintes


CONCLUSÕES:


“A. No dia 2 de Agosto de 2015, pelas 14:00 horas, na Estrada Nacional 10-4 em Setúbal, ao quilómetro 5,800, ocorreu um acidente de viação, no qual foramintervenientes os veículos com matrícula ..-BO-.. (BO) e ..-LA-.. (LA). O BO, um automóvel ligeiro de passageiros, era conduzido por BB e o LA, um motociclo, era conduzido pela Autora;


B. Quando a Autora descrevia normalmente a curva à direita na sua via, é surpreendida pelo BO, que na curva à esquerda, atento o seu sentido de marcha, transpôs a linha longitudinal contínua e foi invadir a via de trânsito da Autora, tendo ocorrido a colisão entre a frente do LA e a frente esquerda do BO;


C. A Ré assumiu a responsabilidade do sinistro, tendo pago algumas despesas até à data em que fez proposta de indemnização, no final de Novembro de 2020, no montante de Euros 330.000,00;


D. A Autora intentou uma providência cautelar que correu termos sob o processo nº 1894/21.1... no Juízo Local Cível J1 do Tribunal de Comarca de Setúbal, que findou com uma transação em que a Ré adiantou à Autora por conta da indemnização final a quantia de Euros 30.000,00. Posteriormente, foi instaurada outra providência cautelar, apenso B, que findou com uma transação em que a Ré adiantou à Autora por conta da indemnização final a quantia de Euros 27.500,00, tendo ainda pago à Autora, por conta da indemnização final, a quantia de Euros 10.000,00, em 10/01/2024, e Euros 10.000,00, em 31/10/2024;


E. Na data do acidente a Autora era trabalhadora dependente da Egor Outsourcing-Prestação de Serviços Org. Adm Pessoal Ldª., com a categoria profissional de assistente a cliente na sede da Caixa Geral de Depósitos desde 03 de Junho de 2015, onde auferia uma retribuição mensal base de 397,67€ acrescida de subsídio de alimentação no valor de Euros 0,58/hora;


F. Foi realizada perícia médico-legal à Autora – no Instituto Nacional de Medicina Legal, onde se concluiu:


“Na situação em apreço é de perspetivar a existência de Dano Futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico), o que pode obrigar a uma futura revisão do caso. Neste caso, perspetiva-se uma futura avaliação da fratura do acetábulo e colo do fémur esquerdos e respetiva prótese total. (…)A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 04/02/2020. O Período de Défice Funcional Temporário Total entre 02/08/2015 e 25/10/2016, entre 06/07/2017 e 07/07/2017, entre 19/03/2018 e 20/03/2018, entre 05/08/2019 e 08/08/2019.Período de Défice Funcional Temporário Parcial entre 26/10/2016 e 05/07/2017, entre 08/07/2017 e 18/03/2018, entre 21/03/2018 e 04/08/2019, entre 09/08/2019 e 04/02/2020. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total entre 02/08/2015 e 08/08/2019.Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial entre 09/08/2019 e 04/02/2020. Quantum Doloris fixável no grau 5/7. Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 38 pontos, sendo de admitir a existência de Dano Futuro. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7. Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7. Repercussão permanente na Atividade Sexual fixável no grau 3/7. Ajudas técnicas permanentes: ajuda para tratamentos e consultas médicas, medicação e nas tarefas domésticas que envolvam ortostatismo prolongado”; G. Nos termos da alínea D) destas conclusões, deverá ser rectificado o lapso de cálculo, determinar o abatimento de Euros 77.500,00 (Euros 30.000,00 + Euros 27.500,00 + Euros 10.000,00 + Euros 10.000,00) ao valor indemnizatório total arbitrado no âmbito dos presentes autos, por força das providências cautelares interpostas e, bem assim, pelos adiantamentos feitos por conta da indemnização final;


H. Para cálculo do montante indemnizatório a título de dano biológico, de Euros 280.000,00, deverá ser tido presente a avaliação médico-legal, realizada à Autora no Instituto Nacional de Medicina Legal, a qual considera a título de Quantum Doloris, fixável no grau 5/7, Dano Estético, fixável no grau 4/7, fixados períodos de Défice Funcional Temporário Total, Défice Funcional Temporária Parcial, Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total e Repercussão Temporária na Actividade Profissional Parcial, sendo fixada a data da consolidação das lesões sofridas em 4 de Fevereiro de 2020, com Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7, Repercussão Permanente na Actividade Sexual fixável no grau 3/7, e Défice Funcional Permanente de 38 pontos;


I. Resulta da avaliação médico legal realizada nos presentes autos que as sequelas sofridas pela Autora são compatíveis com o exercício da sua actividade habitual, podendo implicar esforços suplementares;


J. Ponderando decisões jurisprudenciais para casos semelhantes, nomeadamente, decisões espelhadas nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo nº. 1991/15.2T8PTM.E1.S1, de 21 de Junho de 2022 e, bem assim, em decisão proferida em 22 de Outubro de 2024, deverá a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser alterada, e nessa sequência ser arbitrada à Autora uma indemnização a título de dano biológico em montante nunca superior a 70.000,00;


K. No que à reparação pelo dano patrimonial futuro/perda de rendimento sofrido pela Autora, sempre terá de se ter presente considerando que aquela se encontra apta para o exercício do trabalho habitual, embora com esforços suplementares, e a remuneração anual auferida por aquela à data do acidente, a idade à data da consolidação das lesões (39 anos), pelo que o montante indemnizatório nunca poderia ser superior a Euros 76.161,75 (Euros 397,67 x 14 meses x 38% x 36 anos), sendo certo que, atenta a entrega antecipada de capital, deverá ser abatida a percentagem de 10% por antecipação do capital, o que determina que, a título de danos patrimoniais futuros/perda de rendimento deverá ser arbitrada uma indemnização à Autora em montante não superior a Euros 68.545,59;


L. Veio a fixar o montante indemnizatório global de Euros 177.408,00, a título de compensação por ajuda de terceira pessoa, tendo por base o depoimento da Autora veio o Tribunal a quo a considerar a necessidade de ajuda de terceira pessoa por período de 12 horas semanais, para tanto tendo considerado necessário esta ajuda com a periodicidade de 3 vezes por semana e com a duração de 4 horas em cada dia;


M. Não demonstrou por qualquer forma a Autora que, desde a data da consolidação médico-legal das lesões de que padeceu em resultado do evento dos autos, tenha despendido a este título qualquer montante, sendo que, por referência ao exame médico legal, realizado no INML, foi admitida a necessidade permanente de ajuda de terceira pessoa à Autora para as lides domésticas que envolvam ortostatismo prolongado, como aspirar e lavar o chão;


N. Considerando as regras do senso comum e a avaliação realizada pelos serviços clínicos da Ré, ora Recorrente, deverá ser fixado, a este título, o período de 4 horas por semana, pelo que o valor de ajuda de terceira pessoa não deverá ser arbitrado em montante superior a Euros 49.674,24 (Euros 6,16 x 4 horas semanais x 4 semanas/mês x 14 meses x 36 anos [até aos 75 anos]);


O. A sentença recorrida, assente nos factos considerados provados, veio a fixar o montante indemnizatório global de Euros 130.000,00, a título de danos não patrimoniais, no entanto, considera a Ré, ora Recorrente, que esse montante é excessivo, em face das lesões e sequelas dadas como provadas, e bem assim, à luz dos critérios legal e jurisprudencial vigentes;


P. o montante da compensação do dano, não devendo determinar enriquecimentos injustificados, também não deve corresponder a um montante miserável, razão pela qual no seu cálculo o Tribunal, nos termos do disposto no artigo 496º., nº.3, do Código Civil, deve fixar uma indemnização segundo critérios de equidade, tendo em atenção os critérios do artigo 494º., do Código Civil, tomando o julgador em conta todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida – vidé Acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1998, in C.J., STJ, Tomo I, pág.67;


Q. Atentas decisões proferidas pelo Supremo tribunal de Justiça, nos Acórdãos proferidos em 21 de Junho de 2022 e 22 de Outubro de 2024, a Ré, ora Recorrente, entende que, na fixação do montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais à Autora, não foram observados e, por conseguinte, foram violados os normativos legais estabelecidos nos artigos 496º., nº.3 e 494º., ambos do Código Civil, devendo a sentença recorrida ser revogada nesta parte, devendo, a título de danos não patrimoniais, ser fixado um montante não superior a Euros 80.000,00.


Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, ser proferido Acórdão que conclua pela fixação de montantes indemnizatórios, a título de dano biológico, dano patrimonial futuro/perda de rendimentos, compensação por ajuda de terceira pessoa e danos não patrimoniais, em conformidade com os parâmetros atrás definidos, com o que se fará sã, serena e objectiva JUSTIÇA.”

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Também a Autora interpôs recurso, concluindo da seguinte forma:


I. Com efeito, em face da prova constante dos autos e produzida em sede de audiência de julgamento não pode a Recorrente conformar-se com a douta sentença, nomeadamente no que respeita aos valores respeitantes ao dano biológico, à ajuda de terceira pessoa, à perda de rendimento, e aos danos não patrimoniais, e, assim mesmo, à análise e valoração da prova produzida e ao enquadramento jurídico da mesma.


II. A douta Sentença recorrida violou, assim, no entendimento da Autora, as normas dos artigos 483º Código Civil, assim como o artigo 607.º n.ºs 4 e 5, do C.P.C, desde logo pela forma em que (não) aplicou ou aplicou erradamente no caso dos autos.


III. Tanto mais que existem pontos da matéria de facto – desde o artigo 46 da lista de factos provados – que, no entender da Recorrente, foram incorrecta e/ou deficientemente julgados, verificando-se, da mesma forma, uma omissão quanto a outro facto que, também na perspectiva da Recorrente, face à prova produzida, deve ser acrescentado à lista de factos provados.


IV. O Tribunal a quo incorreu, assim, em erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento da matéria de facto na medida em que não valorou, ou valorou erradamente, diversos elementos probatórios constantes no processo que, na perspectiva da Recorrente, deveriam ter assumido relevância probatória.


V. A Autora demonstrou, através de diversos elementos probatórios, a necessidade contínua de consultas de psiquiatria. Esta necessidade é corroborada pelo depoimento do Dr. CC, médico legista, que destacou a relação entre as sequelas físicas e as perturbações do humor, como a depressão e a ansiedade, que a Autora enfrenta.


VI. O Dr. CC, no seu depoimento, Registo sonoro - Sessão de 18-03-2024 , 11:00 a 11:53 h, afirmou que é comum que pessoas com incapacidades físicas significativas desenvolvam perturbações do humor, destacando que a Autora, devido às suas limitações, apresenta sintomas de depressão e ansiedade, necessitando de acompanhamento psiquiátrico contínuo.


VII. Os serviços médicos da Ré também reconheceram a necessidade de consultas de psiquiatria para a Autora. No relatório médico da Ré (GADAC), foi concluído que a Autora sofre de alterações persistentes do humor, necessitando de acompanhamento em psiquiatria e medicação.


VIII. O relatório pericial do INNL também reconheceu que a Autora apresenta perturbações psicopatológicas e a necessidade de seguimento clínico e medicação. No entanto, não concluiu explicitamente pela necessidade de consultas de psiquiatria, acrescendo que os demais elementos probatórios indicam essa necessidade.


IX. O Tribunal a quo tinha à sua disposição todos os elementos necessários para condenar na necessidade de consultas e medicação de psiquiatria. A perícia médica, embora não vinculativa, serve para auxiliar o julgador a decidir, e deve considerar todos os elementos probatórios disponíveis.


X. A própria Ré reconheceu a necessidade para o futuro de consultas de psiquiatria na avaliação que fez em 04.02.2020 à Autora, o que reforça a argumentação de que essa necessidade deveria ter sido considerada pelo Tribunal.


XI. O exame por junta médica visa fornecer ao Juiz uma apreciação técnica sobre factos que ele não domina. No entanto, as conclusões do laudo pericial não são vinculativas e estão sujeitas à livre apreciação do julgador, que deve fundamentar qualquer divergência com base em outros elementos probatórios e nas regras da experiência comum.


XII. Deve por isso, ser alterada a redação do ponto 46 da matéria de facto provada e o aditamento de um ponto 46-A, para refletir a necessidade contínua de acompanhamento psiquiátrico e medicação para a Autora, passando a constar na factualidade provada ao seguinte: 46. Iniciou também acompanhamento psiquiátrico a título particular com o Dr. DD no SMET, cuja necessidade ainda mantém. 46-A. A Autora mantém a necessidade de ser seguida em consultas de psiquiatria para o futuro, bem como a necessidade de medicação neste foro.


XIII. Assim a parte decisória deve contemplar a condenação da Ré no pagamento das quantias relativas às despesas com tratamentos de fisioterapia, consultas de acompanhamento e medicação nas especialidades de ortopedia, cirurgia da dor e psiquiatria, conforme prescrição médica.


XIV. A Autora necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização das lides domésticas mais exigentes, como limpeza profunda da casa e tratamento da roupa, por um período de 12 horas semanais, conforme decorre dos pontos 60 e 95 da factualidade provada.


XV. O valor indicativo de 6,16 €/hora fixado pelo Tribunal a quo é insuficiente face aos valores praticados atualmente para o trabalho de serviço doméstico, que tem tendência a evoluir no futuro. Esse valor teve respaldo na Portaria n.º 377/2008 de 26 de Maio, com as alterações introduzidas, mas não vincula ou limita o Tribunal na fixação dos danos. Esta Portaria refere-se ao ano de 2008 e não sofreu qualquer atualização até aos dias de hoje, sendo desajustada para os cálculos atuais.


XVI. Deve, por isso, a indemnização referente à Ajuda de Terceira Pessoa ser alterada para o montante de 340.277,10 €, ao invés do montante de 177.408,00€ decidido pelo Tribunal a quo, porquanto o mesmo contempla o valor médio praticado em 2015 (8,00 €), e também a atualização da inflação e a taxa de juro para aplicações financeiras, a esperança média de vida para as mulheres (83 anos), traduzindo-se por isso num valor mais equitativo à realidade da Autora desde o acidente e para o futuro.


XVII. Devido às lesões sofridas no acidente, o contrato de trabalho da autora não foi renovado, resultando na sua situação de desemprego e limitações na procura de emprego. A autora estava a trabalhar em part-time à data do acidente, e o contrato de trabalho não foi renovado devido às lesões sofridas, e por isso enfrenta uma redução significativa nas hipóteses de empregabilidade devido à sua mobilidade reduzida e à necessidade de tratamentos contínuos.


XVIII. As limitações físicas e psicológicas da autora comprometem irremediavelmente a sua capacidade para trabalhar, quer seja pelo absentismo laboral devido ao período temporal das cirurgias e respetiva recuperação, quer pelas próprias limitações físicas e psicológicas que ficou a padecer.


XIX. O Tribunal a quo ponderou os pontos 62, 63, 67 e 80 dos factos provados para extrapolar o cálculo de 150.319,26 €, atendendo a que já passaram dez anos desde o acidente e a autora ainda não conseguiu arranjar trabalho.


XX. Antes do acidente a Autora estava a trabalhar em part-time e auferiu no ano anterior ao acidente o montante de 397,67€, valor a que o Tribunal atendeu no cálculo e por isso fixou a indemnização por perda de rendimento em 150.319,26€, considerando um percurso laboral até aos 70 anos e abatendo uma percentagem de 10% pela entrega antecipada do capital.


XXI. A Autora não pode concordar com o valor atribuído, uma vez que o cálculo é mais prejudicial face a uma pessoa desempregada, pois nestes casos o valor de referência é o salário mínimo nacional.


XXII. Até porque existem decisões judiciais que consideram o salário médio e não o mínimo, como por exemplo: Proc.º nº 2564/21.6T8VFR.P1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-07-2024, estando a Autora claramente a considerar o valor mínimo considerado condigno para a sobrevivência humana em Portugal.


XXIII. Uma pessoa desempregada fica numa posição mais vantajosa do que um trabalhador, o que contraria o sentimento de justiça do cidadão.


XXIV. Assim, deve a indemnização por perda de rendimento deve ser calculada com base no salário mínimo nacional, devendo corresponder ao montante de 307.009,60 €, ao invés do montante de 177.408,00 €, fixado pela 1ª Instância.


XXV. A Autora discorda do montante fixado a título de danos não patrimoniais, na medida em que sofreu mais de 10 cirurgias e muitas mais ainda terá de enfrentar no futuro. Ficou deformada e está limitada em todas as vertentes sua vida, nomeadamente cuidar da sua filha menor. Tem desgosto e sente vergonha do seu corpo, o que a constrange quando vai à praia. Tem alterações do humor que dificultam a convivência em sociedade, tendo respaldo imediato nas pessoas que convivem diretamente consigo. Não consegue trabalhar. As cirurgias que enfrentou e aina vai ter de enfrentar causam perigo para a sua vida, tendo em conta o risco das intervenções cirúrgicas.


XXVI. O dano moral advém da dor e a dor não tem preço, mas carece ser compensada condignamente. E nessa medida, entende a Autora que deve ser fixada uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 200.000,00 €, ao invés dos 130.000,00 € fixados pelo Tribunal a quo.


XXVII. A Autora discorda com o entendimento do Tribunal a quo de que seguradoras não estão obrigadas a apresentar propostas por valor superior aos aí previstos. Incumbe ao lesado provar que a proposta não corresponde aos critérios da Portaria como facto constitutivo do seu direito ao pagamento de juros em dobro, uma vez que logrou demonstrar.


XXVIII. A Ré não apresentou uma proposta razoável aos 39 pontos por si avaliados, que contemplasse o dano patrimonial futuro em todas as suas vertentes (perda de rendimento, ajuda de terceira pessoa, atenta a gravidade das sequelas que a Autora ficou a padecer e que já eram por si conhecidas em consequência da avaliação do dano que fez à Autora em 04.02.2020.


XXIX. Em Novembro de 2020, a Ré apresentou uma proposta no montante de 330.000,00 € (ponto 15 dos factos provados), a qual é manifestamente desproporcional à sentença recorrida que condenou no montante global de 737.727,26 €, consubstanciando uma diferença de 407.727,26 €, o que é manifestamente desproporcional.


XXX. A proposta apresentada não satisfez, assim, os requisitos mínimos para ser qualificada como razoável, não sendo justificação para tal irrazoabilidade a circunstância, conhecida da ré, da gravidade dos danos sofridos pela Autora, nomeadamente a necessidade de ajuda de terceira pessoa, bem como oda no futuro, em todas as suas vertentes.


XXXI. De acordo com a factualidade vinda de aludir, deve a recorrida ser condenada nos juros moratórios computados no dobro da taxa legal para obrigações civis (i.e., à taxa de 8% ao ano), desde a data da apresentação da proposta razoável da seguradora em 04.02.2020, até integral pagamento, a título de compensação pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais da perda biológica que sofreu, incluindo dores sofridas.


Nestes termos e nos melhores de Direito que os Venerandos Desembargadores mui sabiamente suprirão deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência deve a sentença proferida ser revogada, fazendo assim a tão costumada e melhor JUSTIÇA!” *


A Ré respondeu ao recurso interposto pela Autora, concluindo que:


A) Vem a Autora/Recorrente colocar em crise a decisão proferida pelo Tribunal a quo, quanto à conclusão a retirar dos Pontos 46., 75. e 76. dos Factos Provados, no que a ajudas técnicas permanentes diz respeito, decorrentes da alegada necessidade de acompanhamento e medicação de psiquiatria;


B) Decorre do Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, datado de 5 de Julho de 2023 e elaborado pelo Instituto Nacional de medicina Legal que, no que a dependências permanentes de ajuda, é admitido que a Autora possa necessitar de consultas médicas de ortopedia e psicologia da dor e de medicação decorrente desse acompanhamento, não se encontrando prevista qualquer necessidade de acompanhamento em consulta ou de medicação na especialidade de psicologia/psiquiatria;


C) No esclarecimento prestado pela Sra. Perita Médica do INML no relatório preliminar elaborado em 22 de Abril de 2024, foi especificamente sido solicitado à Sra. Perita Médica que viesse esclarecer “se a autora, AA, tem necessidade de novas cirurgias, (…) e, bem assim, para indicar quais os tratamentos que a autora precisará de realizar no futuro, respectivo número, assim como o número de consultas médicas cuja necessidade prevê, devendo também especificar as especialidades a que respeitarão tais consultas.”, veio a Sra. Perita Médica transmitir que “Admite-se a necessidade de consultas médicas (Ortopedia e Psicologia da Dor) e medicação decorrente deste acompanhamento.”, facto que acabou por ser confirmado no aditamento a esclarecimento, datado de 31 de Julho de 2014;


D) No obstante as avaliações médicas realizadas à Autora/Recorrente, por médico contratado por esta e pelos serviços clínicos da Ré, considerarem a necessidade de acompanhamento em consulta de psicologia, nestas situações de discrepância entre a avaliação realizada pelas partes e uma avaliação pericial, deverá ser tido em consideração o resultado da avaliação pericial, realizada no INML, por ser instituto autónomo, independente e imparcial, mostra-se que não assiste qualquer razão à Autora/Recorrente, devendo a decisão proferida pelo Tribunal a quo, no que à alegada necessidade de ajudas permanentes, na especialidade de psicologia diz respeito – com consultas e medicação -, manter-se inalterada, mantendo na íntegra a redação dada aos artigos 46., 75. e 76. dos Factos Provados e às alíneas G) e G-1) dos Factos Não Provados;


E) No que à necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa à Autora/Recorrente diz respeito, vem esta impugnar o montante indemnizatório fixado, a qual deverá sempre improceder;


F) Foi fixado na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo que, a título de necessidade permanente de terceira pessoa, a mesma se verifica, tendo sido determinada a fixação de ajuda de 3 vezes por semana, com duração de 4 horas em cada dia, resultando do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, de 5 de Julho de 2023, que a Sra. Perita Médica considera a necessidade permanente de ajuda de terceira pessoa para as lides domésticas, como aspirar e lavar o chão;


G) Vem a Autora/Recorrente, proceder à junção aos autos de documento 11 com a petição inicial – que terá suportado a fundamentação da Sra. Juíz quanto a este período temporal diário – o qual se desconhece quem emitiu, quando emitiu, se foram iniciados aqueles trabalhos de serviço doméstico, quando foram iniciados, de que forma foram pagos aqueles trabalhos de serviço doméstico a que naquele documento faz referência, por quem foram realizados – porquanto no documento junto aos autos nenhuma referência é feita que possa responder a estas questões;


H) Aquele documento 11 trata-se de uma folha de papel, sem data nem assinatura, não se encontrando igualmente junto aos autos qualquer factura/recibo decorrente de qualquer pagamento realizado por força dos alegados trabalhos de serviço doméstico, não tendo sido apresentada qualquer testemunha ou produzida qualquer prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento que pudesse corroborar os (poucos) elementos que constam daquele documento junto;


I) Decorre ainda do documento 11 junto com a petição inicial pela Autora, que os alegados serviços a prestar no âmbito do trabalho de serviço doméstico, que alegadamente ocorreriam durante 4 horas e três dias por semana, incluíam “(…) A limpeza de cada divisória da casa (quartos, sala, cozinha, casas de banho, corredores, espaços exteriores), essa limpeza inclui, limpeza do pó, aspirar, varrer, lavar o chão, mudança de roupa de camas, limpeza de cozinha incluindo os seus eletrodomésticos principais. (…)”;


J) Considera, pois, a Ré/Recorrida que a periodicidade fixada pelo douto Tribunal a quo é excessiva, porquanto para aqueles serviços de “limpeza do pó, aspirar, varrer, lavar o chão, mudança de roupa de camas, limpeza de cozinha incluindo os seus eletrodomésticos principais” alegadamente ocorriam durante 4 horas, durante 3 dias em cada semana;


K) Deverá a redação dada ao Ponto 60 dos Factos Provados deverá ser alterada, passando a mesma a ser:


“60. A A. necessita de uma 3ª. pessoa – empregada doméstica ou equivalente – para a realização das lides domésticas de aspirar e lavar o chão, por um período de 4 horas semanais.”;


L) No mais, a Ré/Recorrida dá por integralmente reproduzido tudo quanto resulta das Alegações de Recurso por si interposto em 31 de Março de 2025 (referência 51867909);


M) Vem a Autora/Recorrente defender que, para cálculo da indemnização arbitrada a este título, deverá ser considerado o valor fixado a título de salário mínimo nacional ou de salário médio nacional, no entanto, tal alegação deverá improceder in totum;


N) À data do evento dos autos, a Autora trabalhava em part-time, auferindo o salário mensal de Euros 397,67, pelo que a perda de rendimento que a Autora/Recorrente sofreu é do montante que efectivamente auferia àquela data!;


O) Se assim não se considerasse, estaria a Autora/Recorrente a cair numa verdadeira situação de enriquecimento sem causa porquanto, em resultado do evento dos autos estaria a ser beneficiar deste assente de uma perda de rendimento que não auferia e do qual não poderia dispôr, pelo que, deverá a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo ser mantida, quanto ao quantum indemnizatório de referência pelos danos decorrentes da perda de rendimento, dando ainda por reproduzido tudo quanto já decorre das alegações de recurso apresentadas em 31 de Março de 2025 (referência 51867909);


P) Quanto à indemnização fixada a título de danos não patrimoniais, a Ré/Recorrida dá reproduzido tudo quanto já decorre das alegações de recurso apresentadas em 31 de Março de 2025 (referência 51867909);


Q) Quanto à fixação de indemnização dos juros em dobro, a Ré/Recorrida dá reproduzido tudo quanto já decorre das alegações de recurso apresentadas em 31 de Março de 2025 (referência 51867909), devendo desta forma ser alterada a redação dada ao Ponto 15 dos Factos Provados, passando a mesma a ser:


“15. A R. apresentou proposta de indemnização no final de novembro de 2020, no montante de Euros 330.000,00, em cumprimento e nos termos da Portaria 377/2008.”;


R) Desta forma, deverá improcedendo o Recurso interposto pela Autora/Recorrente, com as legais consequências.


TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO E COM OSEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V.EXAS., DEVE O RECURSO INTERPOSTO PELA AUTORA/RECORRENTE SER CONSIDERADO IMPROCEDENTE, COM O QUE SE FARÁ BOA JUSTIÇA.”


*


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito dos recursos interpostos.

*

II. QUESTÕES A DECIDIR.


Tendo presente que o recurso é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.


Assim, as questões decidendas são as seguintes:


- da impugnação da matéria de facto;


- se cumpre alterar, em conformidade com as conclusões das alegações, o quantum indemnizatório fixado.

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III. FUNDAMENTAÇÃO.


III.1. São os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão (transcrição):


1. No dia 2 de agosto de 2015, pelas 14 horas, na Estrada Nacional 10-4 em Setúbal, ao quilómetro 5,800, ocorreu um acidente de viação.


2. Foram intervenientes os veículos com matrícula ..-BO-.. (BO) e ..-LA-.. (LA).


3. O BO, um automóvel ligeiro de passageiros, era conduzido por BB.


4. O LA, um motociclo, era conduzido pela A.


5. A faixa de rodagem no local é constituída por 2 vias, 1 para cada sentido sem separador central.


6. Com linha longitudinal contínua a separar os sentidos de trânsito.


7. O LA circulava em direção a Setúbal e o BO no sentido inverso.


8. O local do acidente configura uma curva, à direita para a A. atento o seu sentido de marcha e à esquerda para o veículo BO.


9. A A. descrevia normalmente a curva à direita na sua via quando de forma repentina é surpreendida pelo BO, que na curva à esquerda, atento o seu sentido de marcha, transpôs a linha longitudinal contínua e foi invadir a via de trânsito da A.


10. Daquela manobra deu-se a colisão entre a frente do LA e a frente esquerda do BO.


11. Em ato contínuo a A. foi projetada ao solo.


12. A A. foi socorrida no local e transportada de emergência para o Hospital de São Bernardo em Setúbal.


13. A R. assumiu a responsabilidade do sinistro.


14. A R. assumiu algumas despesas até à data em que fez proposta de indemnização.


15. A R. apresentou proposta de indemnização no final de novembro de 2020, no montante de € 330.000,00.


16. A A. intentou uma providência cautelar que correu termos sob o processo nº 1894/21.1... no Juízo Local Cível J1 do Tribunal de Comarca de Setúbal, que findou com uma transação em que a R. adiantou à A. por conta da indemnização final a quantia de 30.000,00€. Posteriormente foi instaurada outra providência cautelar, apenso B, que findou com uma transação em que a R. adiantou à A. por conta da indemnização final a quantia de 27.500,00€.


17. A responsabilidade civil inerente à circulação do BO estava transferida para a R. através da apólice nº ....


18. A A. deu entrada nas urgências do Hospital de Setúbal por fratura luxação de Monteggia à esquerda, fratura luxação centro-acetabular com componente intrapélvico, fratura basicervical à esquerda, fratura supra e intercondiliana do fémur esquerdo, fratura marginal do côndilo femoral esquerdo, fratura do terço distal dos ossos da perna esquerda, fratura do maléolo externa, ferida corto contusão do joelho esquerdo.


19. Fez limpeza cirúrgica e sutura das feridas que apresentava bem como colocação de cateter por pneumotórax iatrogénico.


20. Foi aplicada tala gessada cruro-podálica no membro inferior esquerdo e tala gessada braquiapalmar no membro superior esquerdo.


21.Ficou com o pé pendente à esquerda.


22. No dia 03-08-2015 foi transferida para o Hospital de residência, Amadora-Sintra onde ficou internada e à entrada apresentava: - Pneumotórax à direita, sob drenagem torácica; - Hematoma intra-abdominal/pélvico; - Fratura do ilíaco/acetábulo esquerdo e colo do fémur; - Fratura diáfise distal da tíbia e perónio exposta; - Fratura monteggia fechada à esquerda.


23. Ali fez desbridamento excisal de ferida, realizou tratamento cirúrgico da fratura do acetábulo e colo do fémur e luxação da anca, diáfise da tíbia e perónio exposta, maléolo interno, maléolo externo e fratura luxação de monteggia.


24. Em 22-08-2015 foi sujeita a intervenção em cirurgia plástica para tratamento da lesão cutânea do dorso do pé e coxa, com desbridamento e enxerto.


25. Em 6-11-2015 fez dinamização da cavilha tibial e extração de cavilha do rush do perónio.


26. A 13-11-2015 tem alta clínica com indicação para internamento na unidade de cuidados do Centro de Alcoitão.


27. Em 19-11-2015 foi internada no Centro de Alcoitão onde realizou tratamentos de recuperação com fisioterapia, hidroterapia e hidrocinesiterapia;


28. Teve alta em 15-03-2016 tendo sido elaborado relatório médico donde se conclui que faz marcha com auxílio de canadianas e carga parcial do membro inferior esquerdo.


29. A partir dessa data manteve os tratamentos em regime de ambulatório.


29-a). Em 27-04-2016 é novamente internada no Hospital Dr. Fernando Fonseca por necrose asséptica da cabeça e colo do fémur sendo submetida a remoção de 2 parafusos do acetábulo e planeamento de artroplastia total da anca.


30. Foi realizada plastia cutânea, remoção da coloide.


31. Depois ficou em descarga e sem fisioterapia até julho de 2016.


32. Eliminado.


33. Em julho de 2016 é novamente operada no Hospital Dr. Fernando Fonseca.


34. Teve alta no final de agosto de 2016, altura em que voltou a ser internada no Centro de Alcoitão.


35. Ali voltou a realizar tratamentos de recuperação.


36. Teve alta do Centro de Alcoitão em novembro de 2016, ficando em regime de ambulatório.


37. Em julho de 2017 é novamente internada no HFF para intervenção cirúrgica por pseudoartrose da fratura do antebraço direito (enxerto do ilíaco).


38. Manteve seguimento no HFF e no Centro de Alcoitão em ambulatório ate Novembro de 2017.


39. Sentiu sempre dor na anca operada.


40. A 24-07-2018 é novamente operada pelo Dr. Esteves por descolamento séptico e pseudoartrose da coluna posterior (1ª revisão).


41. Após a cirurgia luxou 2 vezes a prótese no espaço de 1 semana.


42. Foi novamente operada a 28-08-2018 (2ª revisão).


43. Depois da 1ª revisão ficou com dor intensa no pé e voltou a ficar com o pé ainda mais pendente.


44. Passou a fazer tratamentos de fisioterapia na FisioGaspar e no Hospital da Luz.


45. Começou a ser acompanhada na consulta da dor revelando dificuldade no ajuste da medicação e na tolerância à mesma.


46. Iniciou também acompanhamento psiquiátrico a título particular com o Dr. DD no SMET.


47. Passou a ser seguida em consulta da dor no Hospital de Santa Maria.


48. Em 05-08-2019 é novamente operada por artrodese da tibiotársica astroscópica e alongamento do aquiles.


49. Foi avaliada em consulta do joelho direito por queixas álgicas.


50. Nesta data caminhava com auxílio de 2 canadianas e com grande fraqueza muscular.


51. Manteve tratamentos de fisioterapia e hidroterapia, assim como consultas da dor e psicoterapia.


52. Em 28-02-2020 foi avaliada clinicamente pelos serviços médicos da R. com o Dr. EE, médico de medicina física de reabilitação, tendo ainda realizado posteriores tratamentos de fisioterapia pela R., que terminaram a 12-03-2020.


53. Em 27-05-2020 é avaliada pelos médicos da R. em consulta de dano corporal final, tendo estes atribuído alta de consolidação médico legal em 04-02-2020, com um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 39 pontos (0-100), com esforços acrescidos, com incapacidade total profissional de 1025 dias, com quantum doloris de grau 6 em 7, dano estético de grau 4 em 7, prejuízo de afirmação pessoal de grau 4 em 5, com necessidade permanente de assistência médica e medicamentosa, com necessidade de adaptação de casa, adaptação de veículo e dependência de ajuda de 3ª pessoa 2 horas por dia.


54. Como consequência do acidente a A. apresenta:


“Ráquis: lombar: sem alterações aparentes no eixo da coluna vertebral; assimetria gluteal por atrofia do terço externo da nádega esquerda


Membro superior esquerdo: mobilidades todas mantidas e simétricas; cicatriz linear com caracter cirúrgico na coluna cubital do braço esquerdo, com ll,5cm de comprimento, vestígios de sutura.


Membro inferior direito: mobilidades: flexão da anca: 130º; flexão máxima do joelho 150º; tornozelo: flexão plantar 40º; flexão dorsal 10º.


Perímetro da coxa medido 12cm acima da interlinha: 40cm; e da perna (10cm abaixo da interlinha): 32cm. Sem outras alterações tróficas observáveis.


Membro inferior esquerdo: conjunto de três cicatrizes lineares hipocrómicas de caráter cirúrgico localizadas na face externa da anca, com vestígios de sutura: a mais interior com 17 cm, a medial com 23cm e a mais posterior com l5cm, todas com orientação vertical; cicatriz linear vertical no face lateral do terço médio da coxa, com 11 cm de comprimento, caracter cirúrgico; área cicatricial no terço inferior da coxa, face lateral, com depressão dos tecidos moles /cerca de 1cm), com 14cm por 10cm de maior eixo vertical; área cicatricial na face anteromedial da coxa, terço médio, quadrangular, com 13cm por 13cm (de enxerto); três cicatrizes, infracentimétricas, hipocrómicas, localizadas na face anterior do joelho; cicatriz linear horizontal, hipocrómica com 19cm de comprimento, localizada inferiormente à rótula; cicatriz linear hipocrómica com 13cm, vertical, na face externa do tornozelo; cicatriz lnfracentimétrica, hipocrómica, irregular, na face lateral do terço médio da perna; conjunto cicatricial hipocrómica, na face anterior do terço inferior da perna, com 6cm de diâmetro; duas cicatrizes linear vertical, com 2.scm cada, na face interna do tornozelo; cicatriz de enxerto cirúrgico na face dorso-lateral do pé, oval, com 8cm por 5cm de maior eixo vertical.


- Mobilidades: anquilose do tornozelo; flexão máxima do joelho de 120º; flexão da anca: 115º.


- Perímetro coxa 12cm acima da interlinha: 39cm; e da perna (10cm abaixo da interlinha): 31cm .


- Apresenta dismetria aparente: 95cm de comprimento desde a região umbilical ao maléolo lateral esquerdo (à direita 97cm). Em posição de repouso apresenta curvatura acentuada do pé.


Claudicação à marcha”.


55. A A. foi Avaliada pelo Dr. CC, perito em avaliação do dano corporal em direito civil, este fixou-lhe um défice funcional permanente de integridade físico- psíquica de 43 pontos (0-100).


56. Com um Défice Funcional Temporário Total: entre 02.08.2015 e 15.03.2016, correspondente aos períodos de internamentos hospitalares e a data da alta do Centro de Alcoitão.


57. Com um Défice Funcional Temporário Parcial: entre 16.03.2016 e 12.03.2020.


58. Com Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total: entre a data do acidente (02.08.2015) e a data da consolidação (12.03.2020).


59. Com esforços acrescidos para a profissão.


60. A A. necessita de uma 3ª pessoa – empregada doméstica ou equivalente – para realização das lides domésticas mais exigentes, tais como limpeza profunda da casa e tratamento da roupa, por um período de 12 horas semanais.


61. A A. nasceu em ........1981.


62. Na data do acidente a A. era trabalhadora dependente da Egor Outsourcing-Prestação de Serviços Org. Adm Pessoal Ldª., com a categoria profissional de assistente a cliente na sede da Caixa Geral de Depósitos desde 03-06-2015.


63. Auferia uma retribuição mensal base de 397,67€ acrescida de subsídio de alimentação no valor de 0,58€/hora.


64. Antes do acidente vivia com o ex-cônjuge e depois do acidente e dos vários meses de internamento e tratamentos a relação degradou-se e foi viver com a mãe.


65 e 66. Eliminados.


67. Devido às lesões sofridas no acidente o contrato de trabalho não foi renovado e está sem emprego e com limitações na procura no mercado de trabalho.


68. A R. adiantou aquilo que foi deixando de receber.


68 e 69. Eliminados.


71. A A. tinha dores essencialmente na anca esquerda, joelho esquerdo e tornozelo esquerdo, mas com reflexos ao nível da postura e sobrecargas nos membros e coluna.


72. Nas semanas seguintes ao acidente as dores eram tão fortes que perturbaram o sono, tendo de recorrer a medicação.


73. A A. foi sujeita a pelo menos a 10 intervenções cirúrgicas e foi-lhe colocada prótese na anca.


74. Fez e terá que continuar a fazer para sempre fisioterapia, hidroterapia e seguimento em Ortopedia e Consulta da Dor e respetiva medicação.


75. Teve e tem temperamentos de mau humor como consequência da condição física.


76. Ficou e está perturbada com afetação de humor e com receio pelo futuro, que se mantém.


77. Mantém dores ocasionais.


78. Está limitada.


79. Sente-se frustrada na carreira profissional que considera ter sido destruída.


80. Confronta-se com uma redução do número de hipóteses de empregabilidade devido à sua mobilidade reduzida (uso de canadiana, pé com artrodese degenerativa e ocasionais dores neuropáticas), à necessidade de fisioterapia e consultas, exames, cirurgias e hospitalizações decorrentes.


81. Um recomeço profissional passados 6 anos não é a mesma coisa que um começo profissional 6 anos antes, sendo que em 2015 tinha 34 anos e em 2022 tem 41 anos.


82. A A. não podia passear a filha ao colo, nem levá-la ao jardim.


83. Se não fosse o acidente teria sido mãe mais cedo.


84. Não teria tido dúvidas para ser mãe.


85. Eliminado.


86. As limitações na mobilidade por precisar de uma canadiana para se deslocar, tornam complicadas e em certas situações impossíveis tarefas, como pegar na criança e colocá-la no carrinho, na cozinha, no wc.


87. Eliminado.


88. A A. foi mãe em 2021 e está impedida de ter certas brincadeiras com a filha em virtude das sequelas.


89. Não consegue correr ou saltar.


90. Tem dificuldade em pegar a filha ao colo, o que lhe dava prazer e bem-estar.


91. Antes do acidente corria, fazia ginástica.


92. Teve alterações de peso, tendo pesado 48kg.


93. As cicatrizes que apresenta causam-lhe vergonha e embaraço.


94. Quando experimentou ir à praia teve muita dificuldade em mover-se com a canadiana, o corpo fica mais exposto e a vergonha é ainda maior, tendo deixado de ir à praia como fazia, o que a deixa triste.


95. Foi realizada perícia médico-legal á A., onde se concluiu:


“Na situação em apreço é de perspetivar a existência de Dano Futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico), o que pode obrigar a uma futura revisão do caso. Neste caso, perspetiva-se uma futura avaliação da fratura do acetábulo e colo do fémur esquerdos e respetiva prótese total. (…)


A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 04/02/2020.


O Período de Défice Funcional Temporário Total entre 02/08/2015 e 25/10/2016, entre 06/07/2017 e 07/07/2017, entre 19/03/2018 e 20/03/2018, entre 05/08/2019 e 08/08/2019 Período de Défice Funcional Temporário Parcial entre 26/10/2016 e 05/07/2017, entre 08/07/2017 e 18/03/2018, entre 21/03/2018 e 04/08/2019, entre 09/08/2019 e 04/02/2020.


Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total entre 02/08/2015 e 08/08/2019.


Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial entre 09-08-2019 e 04-02 - 2020


Quantum Doloris fixável no grau 5/7


Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 38 pontos, sendo de admitir a existência de Dano Futuro


As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.


Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7


Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7


Repercussão permanente na Atividade Sexual fixável no grau 3/7


Ajudas técnicas permanentes: ajuda para tratamentos e consultas médicas, medicação e nas tarefas domésticas que envolvam ortostatismo prolongado”.


96. Em 31.07.2024 foi realizada nova perícia medico legal à A., onde se concluiu:


“1. Admite-se necessidade de tratamentos futuros conforme prescrição médica nas especialidades de ortopedia e cirurgia da dor, bem como os respetivos tratamentos e medicação prescrita. Esta prescrição depende dos médicos assistentes que acompanham a examinanda.


2. Admite-se a "necessidade uma futura avaliação da fratura do acetábulo e colo do fémur esquerdos e respetiva prótese total" - admitindo-se então, necessidade de seguimento futuro em consultas de ortopedia e necessidade de cirurgia de correção de artrose do acetábulo (colo do fémur).


3. No que respeita à cirurgia realizada em março de 2024, (e em junho de 2024 para remoção de parafuso protuso) admite-se relação com o evento para correção de hálux valgo, e nexo de causalidade com o evento pela deformidade do pé observada no exame físico inicial e impacto na marcha. Admite-se necessidade de possíveis cirurgias de correção futuras na mesma localização”.


97. A R. pagou ainda à A., por conta da indemnização final, a quantia de € 10.000,00 em 10.01.2024 e outros € 10.000,00, em 31.10.2024.

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III.2. FACTOS NÃO PROVADOS


O Tribunal Recorrido considerou que não se provaram com relevância para a causa os seguintes factos:

A. Na sequência do referido em 14, a R. não liquidou a quantia de 5.693,08€ a título de perdas salariais e 2.798,13€ a título de despesas.

B. A A. tem uma licenciatura em Serviço Social, pela Universidade Católica de Lisboa, que terminou em 2011.

C. É mestre em Desenvolvimento, Diversidades Locais e Desafios Mundiais, pelo ISCTE, desde 2013; Pós Graduação em Gestão de projetos em maio de 2015.

D. A A. tinha planeado uma evolução e progressão de carreira como assistente social.

E. Planos que foram frustrados devido às sequelas do acidente.

F. A A. foi sujeita a cirurgias em número superior ao indicado em 73.

G. A R. terá de continuar a ser, para sempre, seguida em Psicologia.


G-1) A A. necessita ainda de Acompanhamento médico regular de Psiquiatria; e que seja de dois o número anual de consultas médicas da dor e de Ortopedia e/ou Medicina Física e Reabilitação que carece e que seja em numero semanal de 3 as sessões semanais de fisioterapia, incluindo hidroterapia, que carece.

H. Se não fosse o acidente a A. não sentiria dificuldade ou mesmo impossibilidade de ser mãe.

I. Ficou internada num total de 222 dias.

J. A A. ficará para sempre afetada com dores.

K. Que teria sido de 5 anos a antecedência em que a A. teria sido mãe se não fosse o acidente.

L. Se não fosse o acidente estaria a trabalhar.

M. Quando está em qualquer local público há sempre pessoas que ficam a olhar para as cicatrizes, o que a perturba e deixa desconfortável.

N. O custo de uma empregada de limpeza ronda os € 14,00/hora.

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III.3. Da impugnação da decisão de facto.


Da leitura das alegações de recurso da Autora e da resposta da Ré àquelas retira-se que ambas as partes pretendem impugnar a decisão sobre a matéria de facto.


É sabido que o objeto do conhecimento do Tribunal da Relação em matéria de facto é conformado pelas alegações e conclusões do recorrente – este tem, não só a faculdade, mas também o ónus de no requerimento de interposição de recurso e respetivas conclusões, delimitar o objeto inicial da apelação – cf. artigos 635º, 639º e 640º do Código de Processo Civil.


Assim, sendo a decisão do tribunal «a quo» o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640º – indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, e os meios de prova constantes do processo que determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos - a Relação, como tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, a fim de reparar qualquer erro na respetiva apreciação.


No caso vertente, tendo a Autora/Recorrente cumprido formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil.


Tarefa que cumpre realizar tendo presente que por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for(em) insuscetível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (artigos. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do Código de Processo Civil).


E que nos termos do artigo 607º, nº 5 do Código de Processo Civil o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no Código Civil, designadamente nos seus artigos 389º (para a prova pericial), e 396º (para a prova testemunhal), sendo que a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil).


Procedeu-se à audição integral da prova produzida em audiência de julgamento, e à conjugação da mesma com o teor da prova documental junta aos autos e igualmente analisada em audiência.


E da concatenação de toda a prova assim produzida, não podemos deixar de concordar com a Autora quando entende que deve ser alterada a redação do ponto 46 da matéria de facto provada e aditado um ponto 46-A, para refletir a necessidade contínua de acompanhamento psiquiátrico e medicação para a Autora, passando a constar na factualidade provada ao seguinte:


46. Iniciou também acompanhamento psiquiátrico a título particular com o Dr. DD no SMET, cuja necessidade ainda mantém.


46-A. A Autora mantém a necessidade de ser seguida em consultas de psiquiatria para o futuro, bem como a necessidade de medicação neste foro.


Na realidade, tal necessidade foi corroborada pelo depoimento do Dr. CC, médico desde 2007, com especialidade de medicina legal, que faz acompanhamento de sinistrados, e no âmbito dessa atividade acompanhou a Autora, tendo elaborado o parecer junto com documento n.º 3 à petição inicial, referindo que se trata de um caso muito grave, esclarecendo as sequelas que a Autora apresenta em face das lesões que sofreu, revelando conhecimento direto de todas elas e dos tratamentos e procedimentos cirúrgicos a que foi e terá de ser submetida, das dores que sofreu, referindo que tal resultou num problema psiquiátrico, uma depressão grave pelas sequelas que sempre manterá, que se traduz em falta de vontade de viver, ansiedade, tristeza, isolamento, referindo que não conhece ninguém com estas lesões que não tenha tais problemas e que a perspetiva de futuro é de aumento da dor e da limitação, esclarecendo que menos que duas consultas por ano não pode ser, porque a medicação tem de ser revista, sendo que as receitas têm apenas a validade de seis meses.


A testemunha destacou, pois, a relação entre as sequelas físicas e as perturbações do humor, como a depressão e a ansiedade, que a Autora enfrenta e afirmou que é comum que pessoas com incapacidades físicas significativas desenvolvam perturbações do humor, destacando que a Autora, devido às suas limitações, apresenta sintomas de depressão e ansiedade, necessitando de acompanhamento psiquiátrico contínuo.


Os próprios serviços médicos da Ré também reconheceram a necessidade de consultas de psiquiatria para a Autora. No relatório médico da Ré (GADAC), pode ler-se que:





E conclui-se que a Autora sofre de alterações persistentes do humor, necessitando de acompanhamento em psiquiatria e medicação.


O relatório pericial do INML não contraria tal necessidade, antes refere que a Autora apresentaperíodos de ansiedade marcada diários após a alta pela companhia seguradora pela impossibilidade de recuperação completa - medicada com pregabalina (dor), fluoxetina 20mg id + lorazepam 2,5mg id + quetiapina 20mg”, queixas psicopatológicas e a necessidade de seguimento clínico e medicação, designadamente de psicologia da dor”, pelo que é compatível com a necessidade de seguimento em consultas de psiquiatria. Refira-se que a medicação referida inclui antidepressivo indicado para o tratamento da depressão, ansiedade e benzodiazepínico.


Tal versão dos factos foi absolutamente confirmada pelas declarações prestadas pela testemunha FF, mãe da Autora, que a acompanhou sempre durante todo o período subsequente ao acidente, designadamente no pós operatório das treze cirurgias a que foi sujeita, e prestou declarações de forma clara, tranquila e isenta, dando nota do grave sofrimento da filha, e não foi contrariada por qualquer meio de prova.


Procede, pois, a apelação da Autora neste ponto, determinando-se a alteração do ponto 46 dos factos provados e o aditamento do ponto 46A em conformidade com o por ela propugnado.


Consequentemente, elimina-se da alínea G1 dos factos não provados a referência a necessidade de consultas de psiquiatria.


*


Relativamente à impugnação da Ré a mesma foi apresentada na resposta ao recurso da Autora e não na sede própria que seria o recurso da Ré, pelo que se entende que a mesma não é admissível.


Sempre se dirá que a alteração que pretende do artigo 60º da petição inicial foi claramente afastada pelo depoimento da testemunha referida, que referiu a necessidade de um apoio para realização de tarefas domésticas de 12 horas semanais e não de apenas 4, testemunha que por ser conhecedora da situação pessoal da Autora, tendo prestado declarações de forma isenta e clara, merece credibilidade.


Do mesmo modo sempre improcederia a alteração proposta ao ponto 15 dos factos provados na justa medida em que envolve um juízo de direito que não tem cabimento na indicação dos factos provados.


*


III.4. Apreciação jurídica do recurso.


Não vem controvertido que em virtude de, à data do acidente a responsabilidade extracontratual emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-BO-.. se encontrar transferida para Ré, através da apólice n.º ..., a responsabilidade pela satisfação da indemnização dos danos emergentes do acidente cabe à Ré, já que se encontram preenchidos os pressupostos do dever de indemnizar com base em responsabilidade civil extracontratual nos termos dos artigos 483º e 487º, nº2, do Código Civil - o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre facto e dano, sendo a imputação do ato ao agente em termos de culpa, apreciada, como regra, em abstrato, segundo a diligência de um “bom pai de família” - como bem se analisa na sentença recorrida.


Também ali se enunciaram os critérios legais que presidem à determinação da obrigação de indemnizar, previstos nos artigos 562º e seguintes do Código Civil, particularmente, e no que interessa para a apreciação do recurso, à circunstância de caso o princípio da reconstituição natural seja impossível, não repare integralmente os danos ou, seja excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização dever ser fixada em dinheiro (cf. 566.º n.º 1 do Código Civil), de acordo com a chamada teoria da diferença, consagrada no n.º 2 do citado artigo. Deste modo, a sua medida traduzirá a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se inexistissem danos.


Para os casos em que os danos não podem ser valorados no seu exato quantum, o n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil rege que o tribunal fará uso da sua apreciação equitativa.


O Tribunal Recorrido fixou o valor a ressarcir:


- a título de dano biológico em €280.000,00;


- a título de danos patrimoniais futuros/perda de rendimento, em €150.319,26


- a título de compensação por ajuda de terceira pessoa, a quantia de €177.408,00;


- como compensação por danos não patrimoniais, o valor de €130.000,00;


- no que concerne a ajudas permanentes vitalícias, e de despesas futuras com medicação, tratamentos, adaptação ao domicílio, cirurgias futuras, períodos de incapacidade e respetivas perdas salariais, as quantias que se vieram a liquidar, nos termos do disposto no artigo 609º, n.º 2 do Código de Processo Civil.


Ainda, julgando improcedente o pedido formulado pela Autora de condenação da Ré a pagar-lhe juros em dobro, calculados sobre a diferença da quantia de € 330.000,00, montante proposto pela seguradora e a que vier a ser arbitrada pelo Tribunal, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 38º do DL 291/2007, de 21 de Agosto, condenou a Ré no pagamento “juros, à taxa legal supletiva que vigore para as obrigações civis, a contar da data da presente decisão, no que respeita aos danos morais e danos patrimoniais fixados com recurso à equidade (que foi o que aconteceu em relação a todos os danos desta natureza, cujo pagamento foi determinado).


*


A Ré insurge-se contra o valor fixado a título de ressarcimento do dano biológico por entender que deve ser fixado em montante nunca superior a 70.000,00€.


Autora?


Invoca em defesa da sua pretensão recursiva, os casos que considera análogos ao presente, em que foram fixados valores mais baixos, argumento que é pertinente, por ter apoio no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil, ao estabelecer que “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, e no princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei (n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa).


Importa, no entanto, observar que as decisões judiciais não têm a força de precedente obrigatório. Como escreve Filipe Albuquerque Matos (Reparação dos danos não patrimoniais: inconstitucionalidade da relevância da situação económica do lesado, artigos 496, n.º 3, e 494º, do Código Civil, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 142, n.º 3984, página 217), os valores fixados por decisões judiciais anteriores têm natureza meramente indicativa, e o que é decisivo é o caso concreto.


Tendo presentes tais considerações, recordemos, por de interesse para a decisão, claríssimo no que à questão a decidir concerne, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.2025, proferido no âmbito do processo n.º 6002/21.6T8GMR.G1.S1:

“(…)A figura do dano biológico tem sido alvo de inúmeras e vastíssimas abordagens na jurisprudência nacional, encontrando-se actualmente perfeitamente consolidados o seu o conceito, natureza e âmbito de abrangência.

Escreveu-se, a este propósito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2016 (relator Lopes do Rego), proferido no processo nº 175/05.2TBPSR.E2.S1, publicado in www.dgsi.pt:

“A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a relevante e substancial restrição às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar: na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais; e sendo naturalmente tais restrições e limitações particularmente relevantes em lesada com 18 anos de idade, ficando as perspectivas de evolução no campo profissional plausivelmente afectadas pelas irremediáveis sequelas, físicas das gravosas lesões corporais sofridas.

E, nesta perspectiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer a recorrente, bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional – considerando-se, em termos de equidade, que representará compensação adequada desse dano biológico o valor de € 15.000, que acrescerá assim ao montante de €85.000 arbitrado pelo acórdão recorrido”.

Ou seja, a limitação funcional em que se consubstancia o denominado dano biológico tem como fundamento a efectiva redução das capacidades físicas e psicológicas do sinistrado, constituindo grave lesão do direito fundamental do lesado à sua integridade física, da qual pode derivar, ou não, conforme os casos, a correspondente perda da capacidade de ganho.

(Sobre esta matéria, vide, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2017 (relator Oliveira Vasconcelos), proferido no processo nº 1862/13.7TBGDM.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2019 (relatora Rosário Morgado), proferido no processo nº 2706/17.6T8BRG.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 2021 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 730/17.8T8PVZ.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 2545/18.7T8VNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2018 (relator Hélder Almeida), proferido no processo nº 3643/13.9TBSTB.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 2013 (relator Salazar Casanova), proferido no processo nº 565/10.9TBPVL.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2011 (relator Gregório de Jesus), proferido no processo nº 7449/05.0TBVFR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 298/06.0TBSJM.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2011 (relator Vieira Cunha), proferido no processo nº 26422/18.2T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2023 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 5986/18.6T8LRS.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de 2022 (relator Aguiar Pereira), proferido no processo nº 2517/16.6T8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2022 (relator António Magalhães), proferido no processo nº 9957/19.7T8VNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Maio de 2019 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 1046/15.0T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2022 (relatora Maria da Graça Trigo), proferido no processo nº 1082/19.7T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).

Importa, ainda, a este propósito aludir ao teor do recente acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17 de Janeiro de 2023, em que foi relator o Juiz Conselheiro António Barateiro Martins e adjunto o ora relator do presente acórdão.

Todas as considerações aí expendidas sobre esta matéria valem agora, de pleno, para a apreciação e decisão da situação sub judice.

Escreveu-se nesse aresto:

“(…) tendo a lesada ficado afetada “apenas” com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, sendo as lesões sofridas e as sequelas que apresenta compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, não há lugar à atribuição de indemnização a título de danos patrimoniais futuro mas tão só à atribuição de indemnização a título de dano biológico.

Trata-se de posição/entendimento que, num contexto recursivo semelhante, já expusemos no Acórdão deste STJ de 30/11/2021 (proferido no processo 1544/16.8T8ALM.L1.S1, em que, inter alia, referimos o seguinte:

“(…)

E o primeiro tema a dilucidar tem a ver com a circunstância da A. pretender ao longo de todo o processo – quer na PI, quer na apelação, quer agora na revista – que lhe seja concedido um montante indemnizatório a título de perda futura de capacidade de ganho e um outro montante indemnizatório a título de dano biológico, quando o Acórdão recorrido apenas lhe concedeu um montante indemnizatório a título de indemnização por dano biológico.

Hoje – antes mesmo do preambulo da Portaria 377/2008, de 26-05, vir falar em “dano biológico”– fala-se em “dano biológico” para aludir à lesão causada ao corpo e à saúde do lesado, à lesão causada à integridade física e psíquica que a todos assiste; e reconhece-se que o dano causado por tal lesão merece ser reparado independentemente de repercussões sobre a sua capacidade de ganho.

Acrescentando-se, em abono de tal tese, que o homem, na sua integridade psico-somática, desenvolve a sua existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional – relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos – pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.

Porém, também se refere e avisa, que há que evitar “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado), importando não esquecer “que há zonas de tangência e até de intersecção entre vetores diferenciados e autonomizados duma mesma realidade”.

Tradicionalmente, a análise dualista – patrimonial / não patrimonial – sempre abarcou todo o campo da discussão que os danos corporais comportavam, situando-se toda a discussão em volta da parametrização ressarcitória de tal tipo de danos e da autonomização de um ou outro parâmetro de avaliação, sempre inserido num dos termos da referida dualidade; e, agora, ainda que se erija em categoria autónoma de dano o que (dano biológico), antes, não passava dum parâmetro de avaliação doutro dano, importa que avaliação global não dê lugar a duplicações.

Daí que, após um momento inicial – em que alguns chegaram a admitir que o “dano biológico” seria um “tertium genus”, com um lugar próprio que não caberia no clássico dualismo patrimonial/não patrimonial – se tenha passado a entender que o mesmo (autónomo ou não) cabe em tal dualismo, sem prejuízo de poder ter uma vertente patrimonial e uma vertente não patrimonial, sendo que, quando está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), se está perante a vertente patrimonial do “dano biológico (…)”.

Em síntese, a lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo, fonte de obrigação de indemnização, a suportar pelo autor do facto ilícito e em benefício de quem viu a sua integridade corporal beliscada, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou atuais repercussões patrimoniais de qualquer natureza, mas a sua avaliação tem que ser acompanhada duma correta delimitação de realidades e conceitos, para que não haja sobreposições. (…)”

E é justamente por isto – estando “apenas” provado (pontos 62 e 64) que a A. “está afetada de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos” e que “tais lesões e as sequelas que a A. apresenta são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares”, e não estando provada qualquer concreta perda da capacidade de ganho – que aquilo que a A./recorrente pretende ver indemnizado a título de perda futura de capacidade de ganho (agora, com a quantia de € 71.723,45€) só possa ser indemnizado, como foi, como dano biológico, na sua vertente patrimonial (como acertadamente foi considerado e decidido no acórdão recorrido.

Daí que tenhamos começado por dizer que a questão da indemnização pelo chamado dano patrimonial futuro (colocada pela A.) e a questão do montante da indemnização pelo chamado dano biológico (colocada pela R,) são dois aspetos e faces da mesma questão jurídica, uma vez que do que se trata é da correta e devida configuração jurídica dos danos sofridos pela A.: de indemnizar todos os danos que sejam de indemnizar, mas evitando “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado).

Assim, como foi feito pelo entendimento que fez vencimento no Acórdão recorrido, do que se trata é de calcular/fixar o montante indemnizatório que há de reparar a IPG (também chamado de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica) de 14,8 pontos de que a A. ficou a padecer.

E temos, como único critério legal para a sua fixação – nunca é demais enfatizá-lo, para que não paire a menor dúvida – tão só a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil).

O que não significa que em situações como a presente – isto é, sempre que se visa encontrar um capital que se vai diluir ao longo de vários anos – se rejeite a ajuda da lógica matemática; que não se usem, como auxiliar, como instrumento de trabalho, fórmulas matemáticas, que podem ter o mérito de impedir involuntárias discricionariedades e subjetivismos, na medida em que obrigando o julgador à externalização, passo a passo, do seu juízo decisório e a uma maior “densificação” da fundamentação da decisão, contribuem para impedir raciocínios mais ligeiros e/ou maquinais na fixação de indemnização”.

O que significa, desde logo, que haverá que destrinçar escrupulosamente se verificou ou não – e em que termos – perda da capacidade de ganho por parte do sinistrado afectado que, não obstante o evento lesivo sofrido, logrou prosseguir o desempenho da sua prestação laboral em actividade da mesma natureza daquela que antes desenvolvia.

Na situação sub judice, o julgamento da causa revelou o seguinte quadro factual:

O Autor nasceu em ... de ... de 1992, tendo 27 anos de idade à data do acidente.

Era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico, alegre, trabalhador, social e sociável.

As lesões que sofreu no acidente dos autos e as sequelas que delas decorreram alteraram a sua vida pessoal e social.

Deixou de jogar futebol com o seu habitual grupo de amigos.

O que provocou um maior desfasamento social, não obstante os convites que ia recebendo para participar.

Deixou igualmente de praticar “jogging”, uma forma de corrida, que exercia regularmente.

Situação esta que lhe causa desgosto e amargura.

As referidas actividades lúdicas e de lazer representavam para o Autor um espaço de realização e gratificação pessoal.

Após o acidente, o Autor já não empreende as aludidas actividades, por temer que com elas possa agravar as lesões advenientes do sinistro, atrasando o seu processo de recuperação.

Bem como receia que esses potencias retrocessos se repercutam no trabalho que agora exerce, afetando o normal desempenho da sua atividade profissional.

Durante 283 dias o Autor sofreu limitações na sua autonomia individual e nas tarefas a desempenhar no seu domicílio, por múltipla limitação funcional dos membros superiores e inferior esquerdo, com deslocação em cadeira de rodas e, mais tarde, uma canadiana.

Revertendo as considerações assinaladas supra para a situação sub judice, verifica-se que tendo ficado o A. afetado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (de 7 em 100), as lesões sofridas e as sequelas que apresenta são, todavia, compatíveis actualmente com o exercício da actividade profissional habitual, implicando, contudo, esforços suplementares.

Note-se que não se trata assim do apuramento de qualquer tipo de incapacidade parcial permanente, com a avocação das regras do direito laboral, inexistindo cabimento para as formulações matemáticas.

Do que se trata é da aplicação unicamente de juízos de equidade, nos termos gerais do artigo 566º, nº 3, do Código Civil, que permitiram calibrar um montante indemnizatório que abranja a menor potencialidade do acidentado no desempenho das funções laborais que, não obstante as lesões sofridas e respectivas sequelas, consegue desenvolver.

O sinistrado é deste modo compensado, no âmbito próprio do dano biológico, pelo esforço acrescido ou suplementar que implica agora o desempenho da sua actividade laboral, bem como pela perda da potencialidade futura para se alcandorar a um patamar superior de rentabilidade da sua actual prestação, com reflexo necessário na diminuição de nível remuneratório a que poderia, noutras circunstâncias e com razoável probabilidade, ascender.

Escreveu-se sobre a natureza do dano biológico no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2022 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 96/98.9T8PVZ.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt:

“Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais. É um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. Poderá exigir do lesado, esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho. Ou, por outras palavras, é um dano que se traduz na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.

Ora, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais. Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.

Como quer que seja visto ou classificado este dano, o certo é que o mesmo é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos.

(…) Com efeito, uma incapacidade permanente parcial não se esgota na incapacidade para o trabalho, constituindo em princípio um dano funcional, mas sempre, pelo menos, um dano em si mesmo que perturba a vida da relação e o bem-estar do lesado ao longo da vida. Pelo que é de considerar autonomamente esse dano, distinto do referido dano patrimonial, não se diluindo no dano não patrimonial, na vertente do tradicional pretium doloris ou do dano estético.

O lesado não pode ser objecto de uma visão redutora e economicista do homo faber. A incapacidade permanente (geral) de que está afectada a vítima constitui, nesta perspectiva, um dano em si mesmo, cingindo-se à sua dimensão anátomo-funcional.

A incapacidade permanente geral (IPG) corresponde a um estado deficitário de natureza anatómica-funcional ou psicosensorial, com carácter definitivo e com impacto nos gestos e movimentos próprios da vida corrente comuns a todas as pessoas. Pode ser valorada em diversos graus de percentagem, tendo como padrão máximo o índice 100. Esse défice funcional pode ter ou não reflexo directo na capacidade profissional originando uma concreta perda de capacidade de ganho”.

Perante a factualidade dada como demonstrada, consideramos que o valor total de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a título de indemnização por dano biológico que importará ressarcir, está perfeitamente em linha com a quantificação de indemnizações a este título realizadas noutros acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça relativamente a situações similares ou equiparáveis, correspondendo, portanto, ao padrão estabelecido no órgão jurisdicional de cúpula do nosso ordenamento jurídico.

Tal quantificação representa efectivamente, em termos equilibrados e razoáveis, a compensação devida ao A. pelo défice funcional permanente que o obriga a desempenhar as suas funções com esforços suplementares e acrescidos, bem como pela perda de rentabilidade que não lhe permite, objectivamente, recuperar a capacidade para obter um nível remuneratório que estaria razoavelmente ao seu alcance, não fora as consequências negativas infligidas na pessoa do A. por força do sinistro que o vitimou.

Vide neste tocante:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2017 (relatora Maria da Graça Trigo), proferido no processo nº 2028/12.9TBVCT.G1.S1, que quantificou o dano biológico em € 170.000,00 numa situação de afectação de défice funcional permanente muito mais grave que a sofrida pelo A. (29 pontos versus 15, sendo a idade do lesado relativamente aproximada (41 versus 45 anos), onde foi decidido que:

“Resultando da factualidade provada que o autor: (i) tinha 41 anos à data do acidente; (ii) ficou a padecer de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico Psíquica fixado em 29 pontos; (iii) exercia profissão (trolha na construção civil) que exige elevados níveis de força e destreza físicas, tendo as lesões sofridas determinado que: “O Autor ficou ainda com dificuldade de marcha, não consegue “acelerar” o passo, correr, agachar-se ou mesmo colocar-se de joelhos.”; “Ficou com dor no joelho direito, tal como na região lombar, tipo “moedeira”, permanente, agudizada com esforços de carga e marcha, que o obrigam a tomar diariamente analgésicos; ficou com a sensação de “perna pesada”.”; “Em consequência do acidente de viação, das lesões e respectivas sequelas, o A. ficou a padecer ao nível do membro inferior direito de limitação da flexão do joelho a 110º.”; “Todas as sequelas que o A. sofreu com o relatado acidente não só o acompanham até à data da sua reforma laboral, como o acompanharão até ao termo da sua vida activa.”, afigura-se justo e adequado fixar, a partir da data da consolidação médico-legal das lesões, em € 170.000 a indemnização por perda geral de ganho/dano biológico”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2018 (relator Hélder Almeida), proferido no processo nº 3643/13.9TBSTB.E1.S1, em que a lesada contava 29 anos de idade, tendo sofrido um défice funcional permanente, sem impossibilidade para o trabalho (embora sem lograr obter os rendimentos que, de outra forma, teria possibilidade de auferir), de 21.689 + 5 de danos futuros, onde se fixou a indemnização por dano biológico em € 90.000,00.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 644/12.8TBCTX.L1.S1, onde o lesado, que contava na altura do acidente 32 anos, apresentando um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 40 pontos, foi fixada indemnização, a título de dano biológico em € 500.00,00, sendo certo que se tratava de uma situação de afectação do lesado incomparavelmente mais grave que a tratada nos presentes autos.

(Desse mesmo aresto consta um importante apanhado jurisprudencial sobre a quantificação do dano biológico em diversas situações apreciadas no Supremo Tribunal de Justiça).

Mais recentemente, vide a apreciação jurisprudencial pelo Supremo Tribunal de Justiça nas seguintes situações:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2025 (relator Fernando Baptista), proferido no processo nº 3062/22.6T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi,pt, onde se concluiu:

Tendo o autor, à data do acidente, 19 anos de idade e tendo ficado afetado por um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 3 pontos, compatível com a atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, exercendo a atividade de carpinteiro de cofragem e ficando com sequelas consistente numa cicatriz com alterações de sensibilidade e perturbação de dores temporomandibulares pós-traumáticas, passando a sentir comichão quando usa capacete de obra, atendendo aos valores que vêm sendo atribuídos pela jurisprudência para casos similares, entende-se justa e adequada a indemnização de €25.000,00 arbitrada pelo défice funcional permanente, na sua dimensão patrimonial”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 2025 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo nº 14.893/19.4T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde nas instâncias inferiores se fixou, sem impugnação quanto a esse montante, a verba de € 55.000,00 a título de dano biológico.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2025 (relator Ricardo Costa e subscrito pelo ora relator, na qualidade de adjunto), proferido no processo nº 15.721/19.6T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi,pt, onde se ficou a título de dano biológico a quantia de € 25.000,00, aresto que contém abundante referência ao padrão jurisprudencial em matéria de quantificação da indemnização a título de dano biológico, sendo a factualidade essencial a seguinte:

A data de consolidação médico legal das lesões sofridas pelo A. na sequência do acidente é fixável em 29-07-2019 tendo esta sofrido de: Um período de défice Temporário Parcial fixável em 117 dias (entre 04-04-2019 e 29-07-2019); De sofrimento físico e psíquico, de grau quatro, em sete de gravidade crescente, considerando as lesões do mesmo resultantes e os tratamentos que demandaram. O A. ficou a padecer, em consequência do acidente e lesões sofridas com o mesmo de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 11 pontos de 100, adveniente de rigidez do punho na flexão e na extensão, e consequentes limitações de mobilidade do punho e dor associada; e de rigidez dos dedos. A situação sequelar pode evoluir para artrose precoce, não sendo possível indicar quando nem em que medida se dará esse agravamento. De dano estético permanente de grau 2, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as cicatrizes. E de uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau dois, em sete de gravidade crescente. O A. à data do sinistro tinha 62 anos, vivia com a mulher, estava desempregado desde há 3 anos, e fazia biscates com o que auferia cerca de 50,00€ por mês”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2025 (relator Jorge Leal), proferido no processo nº 2073/20.0T8VFR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Contém-se dentro dos referidos quadros de razoabilidade e igualdade a fixação, respetivamente, por dano biológico stricto sensu e pelo dano patrimonial futuro decorrente da perda aquisitiva (aqui configurado como o dano patrimonial futuro adstrito à perda da capacidade de ganho atinente à profissão habitual) nos montantes de € 100 000,00 e de € 200 000,00 no caso de motorista de pesados, com o 4.º ano de escolaridade e com 36 anos de idade à data do sinistro, que em virtude do acidente sofreu amputação do membro inferior esquerdo, tendo-lhe sido atribuída, no âmbito infortunístico-laboral, uma incapacidade permanente parcial de 97,20%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de motorista de pesados, e ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 41 pontos”

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2025 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 3343/21.6T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Tendo o lesado 28 anos à data do acidente e tendo ficado com uma IPG de 14 pontos, sem rebate profissional, mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional, é equitativo fixar (por reporte à data da petição) a indemnização por tal dano biológico em € 45.000,00”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2025 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 1642/22.9T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Mostra-se equilibrada e conforme com os critérios da jurisprudência mais recente do STJ, a indemnização de €40.000,00 fixada na Relação a um lesado, operador de máquinas, com 45 anos à data do acidente, que ficou com uma IPG de 8 pontos, que o impossibilita de executar algumas das tarefas da sua profissão, e a desempenhar as demais com esforço acrescido”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2022 (relator António Magalhães), proferido no processo nº 9957/19.7T8VNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Tendo a lesada, economista e formadora, com 44 anos de idade à data do acidente, ocorrido em Novembro de 2018, auferido nos três últimos anos (2016, 2017 e 2018), uma média de € 9 090,40 por ano e tendo ficado, em consequência do acidente, com um défice funcional permanente de 8 pontos, justifica-se a fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros (dano biológico) em € 21 500,00”.

Conforme se assinalou supra, o A. conseguiu felizmente retomar, com relativa normalidade, a sua actividade laboral habitual, embora com esforços acrescidos ou suplementares no desempenho da respectiva prestação.

Não se trata, nesta sede, do apuramento de uma incapacidade temporal permanente corrente no domínio da jurisdição laboral que poderia transportar os valores indemnizatórios para outra dimensão completamente distinta.(…)”

A leitura atenta da decisão que se reproduziu permite desde logo concluir que falece razão à Ré quando entende que no caso dos autos a indemnização pelo dano biológico deve ser fixada em montante não superior a €70.000,00.


A situação dos autos é substancialmente mais grave que a tratado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2017, proferido no processo nº 2028/12.9TBVCT.G1.S1, que quantificou o dano biológico em € 170.000,00, sendo que valores na ordem dos fixados nos autos foram referidos no Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2025 já mencionado2.


Não encontramos, assim, razões evidentes para censurar o valor parcelar fixado pela primeira instância.


As lesões corporais sofridas pela Autora são de uma enorme gravidade, afetando de forma muito significativa, de forma irreversível e numa fase precoce da sua vida, a sua capacidade de ganho. Embora não tenha ficado impossibilitada de exercer a profissão de rececionista, as sequelas de que padece e que a acompanharão para o resto da sua vida implicam uma limitação na possibilidade de encontrar novo vínculo laboral, novas fontes de recursos, face, desde logo, às dificuldades de locomoção, em permanecer longos períodos na mesma posição, que tendem a agravar-se com os anos, sendo previsível a realização de outras para além das 13 intervenções cirúrgicas já realizadas, bem como as situações de internamento inerentes, bem como as consequências psicológicas que decorrem da situação.


Acresce que as atividades domésticas, de lazer, desportivas e sexual também sofreram grave limitação, o que assume particular relevância atenta a idade da Autora, a circunstância de ser mãe de uma criança nascida em 2021 e que as atividades recreativas, essenciais para o seu bem estar se encontram muito reduzidas


As sequelas de que a Autora ficou portadora demandam esforços acrescidos para o exercício da sua actividade profissional habitual, dano estético muito relevante, e implicam o recurso a medicamentos do foro psiquiátrico e de dor para ultrapassar as dificuldades funcionais da vida diária, bem como o recurso a acompanhamento de terceiros para as mais básicas atividades domésticas, bem como para cuidar e brincar com a sua filha.


Não se vislumbra, pois, qualquer excesso no montante encontrado pelo Tribunal Recorrido para ressarcimento do dano biológico, que se afigura adequado às graves circunstâncias do caso.


*


No que à reparação pelo dano patrimonial futuro/perda de rendimento sofrido pela Autora, entende a Ré que terá de se ter presente que aquela se encontra apta para o exercício do trabalho habitual, embora com esforços suplementares, e bem assim, a remuneração anual auferida por aquela à data do acidente, a idade à data da consolidação das lesões (39 anos), pelo que o montante indemnizatório nunca poderia ser superior a Euros 76.161,75 (Euros 397,67 x 14 meses x 38% x 36 anos), sendo certo que, atenta a entrega antecipada de capital, deverá ser abatida a percentagem de 10% por antecipação do capital, o que determina que, a título de danos patrimoniais futuros/perda de rendimento deverá ser arbitrada uma indemnização à Autora em montante não superior a Euros 68.545,59.


Por seu turno a Autora discorda do valor atribuído na medida em que apesar da Autora estar a trabalhar em part-time à data do acidente, tal cálculo é mais prejudicial face a uma pessoa desempregada, pois nestes casos o valor de referência é o salário mínimo nacional, valor que se reputa minimamente condigno para sobreviver.


Refira-se desde logo que não se trata nesta sede, como alega a Ré, de valorizar duplamente o reflexo do défice funcional na vida profissional da Autora, já valorado em sede de dano biológico.


Como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2022, proferido no processo n.º 1082/19.7T8SNT.L1.S1:

“(…) o “dano biológico” releva na medida em que, «afectando a capacidade funcional do lesado, exigirá, no futuro, esforços acrescidos para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras e é susceptível de reparação como dano patrimonial autónomo», são as seguintes:

- O aumento da penosidade e esforço para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras é, efectivamente, atendível no domínio das consequências patrimoniais da lesão corporal, e não apenas no domínio das consequências não patrimoniais, na medida em que se entenda provado que «tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.» (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2017, proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt);

- Na expressão «dano patrimonial autónomo», a autonomia define-se por contraposição ao dano patrimonial resultante da afectação da capacidade para o exercício da profissão habitual do lesado. Quer isto dizer que ambas as formas de incapacidade – incapacidade geral ou funcional e incapacidade para a profissão habitual – se podem traduzir em perdas de rendimento certas ou com elevada probabilidade de ocorrência.

Como se afirma no supra citado artigo da relatora do presente acórdão (ob. cit., em curso de publicação):

«É possível formular a seguinte conclusão: se, ao longo da segunda metade do século XX, bem como dos primeiros anos do século XXI, a jurisprudência nacional foi aperfeiçoando os critérios a ponderar na fixação equitativa da indemnização por danos patrimoniais futuros (traduzidos em perda de rendimentos) causados pela incapacidade laboral específica, isto é, causada pela afectação da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional à data da ocorrência da lesão física, os procedimentos utilizados não tinham em conta – ao menos de forma sistemática – a circunstância de que a afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral genérica das vítimas é, também ela, susceptível de determinar perdas de rendimentos e, portanto, danos patrimoniais futuros. Esta omissão mostrava-se especialmente evidente nas seguintes situações:

a) Situação de lesado menor de idade que, em razão da idade, não exerce qualquer profissão no momento do evento danoso;

b) Situação de lesado que, não sendo afectado na sua capacidade laboral específica, é, porém, afectado na sua capacidade laboral genérica;

c) Situação de lesado que, em razão de circunstâncias várias de idade, saúde, dedicação à família, etc., não exerce profissão à data de ocorrência da lesão, sendo, contudo, afectado na sua capacidade laboral genérica.

Na peculiar evolução que a utilização do conceito de dano biológico tem tido na jurisprudência nacional, pode, com segurança, afirmar-se que, com tal utilização, se pretendeu precisamente dar resposta a este tipo de situações.». [negritos nossos]”

Assim, em sede de dano biológico apreciou-se, no que respeita à afetação laboral, a capacidade laboral genérica que passou a afetar a Autora, enquanto aqui cabe apreciar a afetação da capacidade laboral específica da Autora.


E como se esclareceu na decisão recorrida a este propósito:


“Com relevo nesta sede resultou provado que devido às lesões sofridas no acidente o contrato de trabalho da A. não foi renovado, estando sem emprego e com limitações na procura no mercado de trabalho, além de que existe uma redução do número de hipóteses de empregabilidade devido à sua mobilidade reduzida, à necessidade de fisioterapia e realização de consultas, exames, cirurgias e hospitalizações decorrentes.


Ou seja, neste âmbito valoriza-se não o reflexo do défice funcional atribuído e penosidade inerente, na vida pessoal e profissional da A., mas o reflexo do acidente, nos seus proventos profissionais.


Para calcular a perda de ganho há que apurar a diferença entre a situação patrimonial da A. na data mais recente que puder ser atendida e a que teria nesta data se não existissem danos (artigo 566º /2 CC).


A situação patrimonial da A. à data do acidente era o recebimento da quantia mensal de € 397,67, ou seja, o montante anual de € 5.567,38 (€ 397,67 x 14).


Outrossim, resultou provado que a A. adiantou à Ré aquilo que ela foi deixando de receber, não sendo referido nem pela A., nem pela R., até quando foram realizados os pagamentos.


Ainda assim, tendo em vista que em Abril de 2021 (quando a A. tinha 40 anos de idade) a A. intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse, ter-se-á essa data como o momento a partir do qual a Ré deixou de abonar a A. das perdas do seu vencimento.


Desta feita, tendo por referência um percurso laboral até aos 70 anos, encontramos um lapso temporal de 30 anos (70 – 40).


Se multiplicarmos € 5.567,38 por 30, encontramos o montante de €167,021,40.


É certo que em todo esse lapso temporal a A. poderá encontrar trabalho; mas previsivelmente também será remunerada em importância superior, pelo que se entende justo e equitativo que as duas hipóteses se neutralizem, em termos de não se fazer qualquer acréscimo ou decréscimo como seu resultado.


Paralelamente, a entrega antecipada do capital, possibilita a sua rentabilização, pelo que à quantia antedita será abatida a percentagem de 10%, em face do que se encontra a quantia de € 150.319,26, que se condena a R. a pagar à A.”


Subscreve-se totalmente nesta parte, a fundamentação da decisão recorrida, que revela que o Tribunal recorrido, por ter tratado aqui apenas do dano laboral específico, atendeu ao valor concreto que a Autora auferia à data já longínqua em que ocorreu o acidente, não atualizando tal valor, ponderando que a conseguir novo trabalho, o valor do rendimento será superior, mas não contabilizando tal acréscimo, por forma a “neutralizar” a possibilidade de encontrar trabalho, e a probabilidade de a ser encontrado, auferir um valor superior, o que afasta as críticas que ambas as partes movem ao valor encontrado.


Acrescente-se que não assiste razão à Autora quando entende que não se teve em conta o valor da remuneração com base em valores atuais, pois como se referiu, aqui apenas se cuidava de determinar o dano laboral específico, pois o decorrente da perda de capacidade laboral genérica havia já sido considerado no ponto antecedente, quando se avaliou a perda da capacidade funcional da Autora.


Improcedem, pois, nesta parte, as apelações.


*


Quanto ao montante indemnizatório fixado a título de compensação por ajuda de terceira pessoa, dúvidas não restam, em face dos factos provados, que ficou demonstrada a necessidade de ajuda de terceira pessoa por período de 12 horas semanais, para tanto tendo considerado necessária esta ajuda com a periodicidade de 3 vezes por semana e com a duração de 4 horas em cada dia, pelo que carece de fundamento a pretensão recursiva da Ré de que se contabilizem a esse propósito apenas quatro horas semanais.


Em nada releva o facto de a ora Autora não ter demonstrado ter despendido qualquer valor a esse título, o que poderá relacionar-se com a circunstância de ainda se encontrar sem receber o valor que peticiona nestes qutos a esse título.

Como se decidiu no Ac. do STJ de 09/09/2014:

“O facto de serem familiares do lesado quem, conjunturalmente, presta a este a assistência tornada imprescindível apenas em consequência do acidente não justifica que aquele não deva ser indemnizado do correspondente dano, certo como é que, além do mais, aquela pode cessar a qualquer momento, quer por causas naturais (morte ou impossibilidade de quem a presta), quer por esmorecimento ou apagamento do inerente afecto e solidariedade familiar, repugnando, por outro lado, ao sentimento dominante da colectividade que, em tal situação, o lesado fique privado dos meios materiais que lhe permitam retribuir, minimamente, os serviços de que beneficia.”

O dano existe, pois, com suficiente densidade, mesmo que não tenha ainda um valor económico negativo efectivo no património da Autora, na justa medida em que estamos perante uma despesa futura e certa decorrente causal e diretamente do evento danoso, cuja reparação cabe à seguradora por força do contrato de seguro.


Nestes termos o artigo 566º nº 2 do Código Civil impõe que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem os danos, tendo como referência o período previsível da vida da Autora, que não apenas da sua vida ativa.


Por seu turno a Autora discorda do cálculo efetuado por entender que:


- o valor de 6,16 € é insuficiente face aos valores que se praticam hoje em dia, por referência ao trabalho de serviço doméstico, e com tendência a evoluir no futuro;


- que o lapso temporal tenha considerado até aos 74 anos, e não os 83, referente à esperança média de vida das mulheres.


Mais pretende que se atenda à taxa média de inflação e à taxa de juro líquida das aplicações financeiras de 1%,


Quanto ao valor por hora a que se lançou mão na sentença recorrida, atendeu-se a duas circunstâncias: por um lado o valor indicativo constante do anexo V da portaria 679/2009, na versão atualizada pela portaria 679/2009, de 25.6 (6,16 euros por hora) e por outro a falta de prova do valor superior alegado pela Autora de 14.00€.


Sendo certo que Acontece que a Portaria n.º 679/2009 de 25 de Junho, no seu anexo V, respeitante a ajuda doméstica temporária, faz referência a uma ‘tabela indicativa para proposta razoável em caso de despesas incorridas e rendimentos perdidos por incapacidade’, que, efetivamente, não vincula o tribunal, antes representando uma mera indicação para efeito de proposta, entendida como razoável, para um eventual acordo, nada impede que se lance mão de tal valor na falta de demonstração de um valor mais elevado.


Por outro lado, ponderou-se na sentença recorrida que sendo notório o aumento do valor por hora até ao presente e previsível que continue a aumentar no futuro, não se procederia a qualquer redução do valor encontrado em consequência do recebimento antecipado, o que nos parece justo e equitativo, como refere o Tribunal recorrido.


Não colhem pois, os argumentos expendidos a este propósito pelas Recorrentes a este propósito.


Já quanto à esperança média de vida a ter em consideração, entende-se assistir razão à Autora quando refere que a idade a ter em conta serão os 83 anos, pelo que o valor a atribuir a título de ajuda de terceira pessoa fixar-se-á nos 217.324,8€ (€ 316,80 x 14 = € 4.435,20/ano x 49 anos).


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Pretende a Ré ver reduzido o valor arbitrado para indemnização por danos não patrimoniais para €80.000,00, por considerar excessivo o valor fixado de 130.000€.


Por seu turno a Autora pretende que tal valor seja fixado em €200.000,00€


Mas não lhes assiste razão.


Regem a este respeito os artigos 496º, nº3 e 494º do Código Civil.


A indemnização a atribuir por danos não patrimoniais é a que resulta do desgosto, da dor, do desespero em que uma pessoa se vê por estar diminuída fisicamente, suportando dores e incómodos com lesões que permanecem e que a usura do tempo tende a agravar. (acórdão do STJ de 21.03.2013, P.565/19, www.dgsi.pt).


São gravíssimos os danos não patrimoniais sofridos pela Autora, como decorre não só da seriedade das lesões, como da necessidade de realização de intervenções cirúrgicas em numero não inferior a dez e dos longos períodos subsequentes às mesmas em que se encontrou internada quer no Hospital, quer no Centro de Alcoitão, para ser tratada e recuperar mobilidade.


As lesões que a Autora sofreu (Pneumotórax à direita, sob drenagem torácica; - Hematoma intra-abdominal/pélvico; - Fratura do ilíaco/acetábulo esquerdo e colo do fémur; - Fratura diáfise distal da tíbia e perónio exposta; - Fratura monteggia fechada à esquerda); o facto de ter sido sujeita, pelo menos, a 10 intervenções cirúrgicas, de ter sido medicada e ter feito tratamentos de fisioterapia, a sua idade à data do acidente (34 anos), o longo período de tempo que tais lesões demandaram para “curar” (cerca de 5 anos – veja-se a data da consolidação das lesões), a circunstância de ser previsível dano futuro, com novas cirurgias, a natureza das lesões, o sofrimento que, segundo as regras da experiência, tudo isso implica (sendo que lhe foi atribuído um Quantum Doloris de grau 5/7), o dano estético de grau 4/7, a repercussão permanente nas atividades desportivas e de Lazer, de grau 2/7, a repercussão permanente na atividade sexual, de grau 3/7, as sequelas sobrevindas foram e são impeditivas de um normal convívio com a filha e bem assim o exercício de atividades desportivas e de lazer que antes realizava, tornam o valor fixado justo e adequado.


Veja-se a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2024, proferido no âmbito do processo n.º 347/21.2T8PNF.P1.S1, em que o valor dos danos da indemnização por danos não patrimoniais foi fixado em €200.000,00, pelo que atenta a gravidade inferior dos danos e, sobretudo das sequelas em causa nestes autos, se considera proporcionado o valor atribuído.


Improcedem, pois, as apelações nesta parte.


*


A Autora entende que a alínea c) da parte decisória deveria contemplar as consultas de medicação de psiquiatria.


Ora, atento o que se referiu em sede de impugnação de matéria de facto, importa referir que a necessidade de consultas de psiquiatria constitui também uma decorrência dos danos sofridos pela Autora pelo que, sem necessidade de maiores considerações, em conformidade com as já citadas disposições legais e ao abrigo do disposto no artigo 609º, n.º 2 do Código de Processo Civil, se relegará para liquidação as quantias que se vierem a liquidar, relativas a despesas que a Autora suporte também na especialidade de psiquiatria.


*


Insurge-se a Autora contra a sentença recorrida na parte em que fixou os juros moratórios, por entender que a Ré deve ser condenada nos juros moratórios computados no dobro da taxa legal para obrigações civis (i.e., à taxa de 8% ao ano), desde a data da apresentação da proposta razoável da seguradora em 04.02.2020, até integral pagamento, a título de compensação pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais da perda biológica que sofreu, incluindo dores sofridas.


Alega que A Ré não apresentou uma proposta razoável aos 39 pontos por si avaliados, que contemplasse o dano patrimonial futuro em todas as suas vertentes (perda de rendimento, ajuda de terceira pessoa, atenta a gravidade das sequelas que a Autora ficou a padecer e que já eram por si conhecidas em consequência da avaliação do dano que fez à Autora em 04.02.2020.


A Ré pugna pela manutenção do decidido.


Como é sabido, o Dec.-Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto, diploma que aprovou o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, entretanto alterado pela Rectificação nº 96/2007 de 19/10 e Dec.-Lei nº 153/2008 de 06 de Agosto, introduziu, nos art. 35º a 40º, regras novas relativamente às participações dos sinistros e à resposta da seguradora impondo a estas uma postura ativa e colaborante, sob pena de lhe serem aplicadas sanções cíveis.


No que concerne à resposta da seguradora, esta deve contactar o tomador do seguro ou com o terceiro lesado no prazo de 2 dias úteis a contar da participação do sinistro marcando as peritagens que devam ter lugar (art. 36º nº 1 a)) e comunicar a assunção ou a não assunção de responsabilidade no prazo de 30 dias úteis a contar do termo do prazo para contacto do tomador ou do terceiro lesado (e)).


No caso de assunção de responsabilidade, e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte, a sua posição consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização que é “aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado” - art. 38º nº 1 e 4.


Preceitua o nº 2 deste artigo que a seguradora, caso incumpra os deveres previstos no nº 1, deve pagar juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal ou, em alternativa, sobre o montante da indemnização proposto para além do prazo pela empresa de seguros, que seja aceite pelo lesado, e a partir do fim desse prazo.


E, nos termos do nº 4 do mesmo preceito, se o montante proposto for manifestamente insuficiente são devidos juros no dobro da taxa legal sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na sentença contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos no nº 1 desse artigo até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida nesta.


No caso de sinistros que envolvam danos corporais há que atender às normas especiais correspondentes aos art. 37º e 39º referentes, a primeira à diligência e prontidão da seguradora na regularização de sinistros, e a segunda à proposta razoável.


O nº 1 do artigo 39º remete para o art. 37º nº 1 c) que dispõe que a seguradora tem o prazo de 45 dias a contar da data do pedido de indemnização para comunicar a assunção ou não da responsabilidade no caso de entretanto haver sido emitido o relatório de alta clínica e o dano ser totalmente quantificável informando, por escrito ou por documento electrónico, daquele facto o tomador ou o segurado e o terceiro lesado. Remete igualmente para o art. 37º nº 2 b), nos termos do qual, sempre que neste prazo de 45 dias, não tenha sido emitido o relatório de alta clínica ou o dano não seja totalmente quantificável, deve formular proposta provisória e, no caso desta ser aceite, deve assumir a responsabilidade consolidada no prazo de 15 dias a contar do conhecimento pela seguradora do relatório de alta clínica ou da data a partir da qual o dano deva considerar-se como totalmente quantificável se posterior.


Assim, no caso de assunção de responsabilidade e o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte, esta posição consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização (art. 39º nº 1 e 6).


O agravamento dos juros previsto no art. 39º nº 2 pressupõe que a responsabilidade não seja objecto de controvérsia, que o dano seja quantificável, no todo ou em parte e que a quantia constante da proposta apresentada seja razoável e não manifestamente insuficiente. São estes os pressupostos desta “sanção civil”.


Porém, os juros são devidos à taxa legal sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na sentença quando a proposta tenha sido efectuada “nos termos substanciais e procedimentais previstos no sistema de avaliação e valorização dos danos corporais por utilização da Tabela Indicativa para Avaliação de Incapacidades Permanente em Direito Civil” (i.e., nos termos da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio cfr. nº 5), sendo que quanto aos danos não patrimoniais os juros são apenas devidos a partir da data da decisão judicial que torne líquidos os montantes devidos (nº 3 do art. 39). No que concerne aos danos futuros a proposta razoável pode ser limitada ao prejuízo provável para os três meses seguintes, exceto se já for conhecido o quadro médico e clínico do lesado (nº 4 do art. 39º).


A lei não precisa ou concretiza o que deve ter-se por proposta manifestamente insuficiente.


Atente-se, porém, que o artigo 39º, nº 3 do Decreto-Lei n.º 291/2007 estabelece que:” Todavia, quando a proposta da empresa de seguros tiver sido efetuada nos termos substanciais e procedimentais previstos no sistema de avaliação e valorização dos danos corporais por utilização da Tabela Indicativa para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, os juros nos termos do número anterior são devidos apenas à taxa legal prevista na lei aplicável ao caso e sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, e, relativamente aos danos não patrimoniais, a partir da data da decisão judicial que torne líquidos os montantes devidos.”


Foi emitida a Portaria n.º 377/2008 de 26 de Maio para densificar a “proposta razoável de indemnização” a apresentar aos lesados no âmbito dos acidentes de viação.


Esta Portaria veio fixar critérios e valores orientadores estabelecendo em anexo tabelas relativas às indemnizações a arbitrar em caso de morte e por danos corporais.


No preâmbulo diz-se que o objetivo da portaria não é a fixação definitiva de valores indemnizatórios mas, nos termos do n.º 3 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda que a autoridade de supervisão possa avaliar, com grande objetividade, a razoabilidade das propostas apresentadas.


Alguma jurisprudência tem vindo a entender que a profunda divergência entre o montante da proposta efetuada pela seguradora e o valor da indemnização que vem a ser fixado pelo tribunal é quanto basta para que, em termos objetivos, não se possa qualificar aquela como "razoável", nada mais precisando o lesado de provar para poder beneficiar do estabelecido no artigo 38, nº2 ex vi artigo 39.º n.º 2 do Decreto-Lei 291/2007.


Entendemos que, como se decidiu no Acórdão do STJ de 07 de Abril de 2016:

“(…)Tendo a R. apresentado proposta de indemnização por danos corporais e consequências deles resultantes, competia à Recorrente alegar e provar que o conteúdo dessa proposta não correspondia aos “termos substanciais e procedimentais previstos no sistema de avaliação e valorização dos danos corporais por utilização da Tabela Indicativa para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil”. Não o fez pelo que os juros “são devidos apenas à taxa legal prevista na lei aplicável ao caso”.

Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2024 proferido no processo n.º 3899/17.8T8GMR.G1.S1 se decidiu:


“A lei não estabelece, assim, um caso de responsabilidade objetiva e automática da seguradora para com o terceiro lesado num acidente automóvel, caso não apresente uma proposta (razoável ou provisória) de indemnização. A conclusão de que a seguradora incumpriu os seus deveres nos prazos legalmente previstos pressupõe a demonstração de que a seguradora tinha acesso à informação necessária para quantificar os danos e, consequentemente, formular uma proposta de indemnização.


Não estando em causa uma hipótese de responsabilidade objetiva (porque nos termos do art.483º, n.2 do CC ela teria de estar especificada na lei), o incumprimento dos deveres previstos no art.37º só levará à penalização do pagamento do dobro da taxa de juro, nos termos da remissão que o artigo 39º, n.2 faz para o artigo 38º, n.2, caso se encontrassem demonstrados os requisitos de responsabilização previstos no artigo 37º, nomeadamente nas alíneas c) do n.1 e a) do n.2.


Segundo a regra geral de repartição do ónus da prova, prevista no art.342º, n.1 do CC, cabia ao autor lesado demonstrar que a seguradora teve acesso à informação necessária para formular uma proposta de indemnização dos danos corporais, nos termos do artigo 37º do DL n.291/2007. Tal não significa que o único meio de prova seja, necessariamente, a apresentação de um requerimento do terceiro lesado dirigido à seguradora. Essa informação poderá constar de um relatório médico que contenha os elementos necessários para a quantificação dos danos e ao qual a seguradora tenha legalmente acesso. Mas tal tem de ser demonstrado pelo terceiro lesado que pretende penalizar a seguradora pelo incumprimento da regularização extrajudicial do sinistro.


A sanção do pagamento do dobro da taxa de juro visa, claramente, penalizar a inércia da seguradora que não pretende solucionar atempadamente o litígio por via extrajudicial e a sua indiferença a que o terceiro lesado tenha de recorrer a tribunal para ver ressarcidos os danos que sofreu.”


Ora, no caso concreto não existem elementos para se concluir pela aplicação do dobro da taxa do juro legal.


Em conformidade, nenhuma censura merece, neste ponto a sentença recorrida.


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Por fim importa retificar o erro material apontado pela Ré no que respeita ao desconto dos montantes já pagos pela Ré à Autora.

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IV. DECISÃO


Pelos fundamentos expostos, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:


- alteram a quantia a que se refere a al. A) do dispositivo da sentença recorrida, condenando a Ré a pagar à Autora o montante total de 777.644,06€ por referência aos danos supra elencados;


- depois de abatidos os montantes já pagos pela Ré, a quantia a pagar cifra-se em 700.144,06 €, dessa forma alterando a al. B) do dispositivo da sentença recorrida;


- alteram a alínea C) do dispositivo da sentença, por forma a que da mesma passe a constar que, nos termos do disposto no nº2 do artº 609º do C. P. Civil, se condena a Ré a pagar à Autora, para além das quantias já ali referidas - as quantias que se vierem a liquidar, relativas a despesas que esta suporte com a realização de tratamentos de fisioterapia e consultas de acompanhamento e medicação, conforme prescrição médica nas especialidades de ortopedia e cirurgia da dor – as quantias que se vierem a liquidar despesas de consultas de acompanhamento e medicação conforme prescrição médica da especialidade de psiquiatria;


- Confirmam, no mais, a decisão recorrida.

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Custas pela Apelantes/Apeladas na proporção do decaimento – artigo 527º, nº1 e 2, do CPC.


Registe e notifique.


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Évora,


Ana Pessoa


José António Moita

Maria Adelaide Domingos

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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎

2. Cf. ainda as decisões a este propósito citadas na decisão recorrida.↩︎