Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
563/22.0GFSTB.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: INJÚRIA
ELEMENTO VOLITIVO DO DOLO
ABSOLVIÇÃO CRIME
CONDENAÇÃO NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A acusação tem que, explicitamente, descrever os factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja: o elemento intelectual (conhecimento/representação pelo agente de todos os elementos descritivos e normativos que integram o facto ilícito) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto ilícito).
II - O elemento volitivo do dolo não pode ser inferido ou presumido, porquanto uma coisa é a ação (propriamente dita), outra coisa, adicional, é a vontade de ação.
III - Não sendo esta última alegada na acusação (e não podendo ser, como não foi, essa falta integrada em julgamento), há que concluir não estar preenchido o tipo subjetivo do crime de injúria, em todos os seus elementos constitutivos e, concretamente, no referente ao elemento volitivo do dolo, tendo o arguido de ser absolvido da prática do crime de injúria.
IV - Essa decisão absolutória não se repercute sobre a indemnização que foi arbitrada, pelo tribunal recorrido, à assistente/demandante, na medida em que os factos ilícitos praticados pelo arguido/demandando, dirigindo à assistente/demandante as expressões que resultaram apuradas, ofensivas da honra e consideração desta, e situando-nos no âmbito da responsabilidade civil, não podem deixar de ser considerados como factos voluntários.
V - No âmbito do direito civil e, concretamente, da responsabilidade civil por factos ilícitos, a circunstância de não constar da matéria fatual provada o elemento volitivo do dolo não tem as consequências que essa omissão acarreta no direito penal, bastando que esteja demonstrada a culpa (que se prove, como se provou, ter o demandado atuado ciente de que as expressões que dirigiu à demandante a ofendiam na sua honra e consideração).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 563/22.0GFSTB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 1, foi submetido a julgamento o arguido D, melhor identificado nos autos, acusado da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. a), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal.
A ofendida A constituiu-se assistente e deduziu acusação contra o arguido, aderindo à acusação pública, ao abrigo do disposto no artigo 284º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPP.
Deduziu, ainda, a ofendida, pedido cível contra o arguido/demandado, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de €10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização por danos morais sofridos.
Na audiência de julgamento, finda a produção da prova e produzidas as alegações orais, na data designada para a leitura da sentença, 30/10/2013, o tribunal efetuou a comunicação ao arguido de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação e também da alteração da respetiva qualificação jurídica, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do CPP.
O arguido manifestou a sua oposição, por entender que a aludida comunicação é inviável, após as alegações finais, tendo, nessa sequência, o Tribunal proferido despacho, decidindo não assistir razão ao arguido.
Seguidamente, o Tribunal procedeu à leitura da sentença, com o seguinte dispositivo:
«(...), o Tribunal julga a acusação pública, cujos termos foram reiterados na acusação deduzida pela assistente, parcialmente procedente, porque parcialmente provada, e em consequência:
A. Absolve o arguido D pela prática de um crime de violência doméstica agravado do artigo 152.º n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal;
B. Condena o arguido D pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria do artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, por referência a 25.10.2022, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 9 (nove euros);
C. Condena o arguido D pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria do artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, por referência a 23.12.2022, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 9 (nove euros);
D. Condena o arguido D pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria do artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, por referência a 3.2.2023, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 9 (nove euros);
E. Cumula juridicamente as penas parcelares identificadas em B., C. e D., condenando o arguido D na pena única de 170 (cento e setenta) dias de multa à taxa diária de € 9 (nove euros), perfazendo o montante global de € 1.530 (mil quinhentos e trinta euros);
F. Condena o arguido D na satisfação das custas criminais, fixando a taxa de justiça no montante correspondente a 2 (duas) unidades de conta.
Mais decide o Tribunal julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível formulado pela assistente/demandante A e consequentemente:
G. Condena o arguido/demandado D a pagar-lhe a quantia de € 1.000 (mil euros), acrescida dos juros que se vencerem à taxa a que se reporta o artigo 559.º do Código Civil desde a prolação da vertente sentença e até efectivo pagamento, absolvendo-o do demais peticionado;
H. Condena a assistente/demandante A e o arguido/demandado D na satisfação das custas da lide cível enxertada, na proporção do respectivo decaimento, o qual se fixa em 90% para a primeira e em 10% para o segundo, sem embargo da isenção de custas que aquela beneficia.
(...).»

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as conclusões que seguidamente se transcrevem:
«1. Vem o presente recurso interposto, em primeira linha, da errada condenação do arguido pela prática de cada um dos crimes de que vem acusado, pois que dos factos dados por provados na Douta Sentença não consta, quanto ao elemento subjectivo do crime, qualquer facto atinente ao imprescindível elemento volitivo do dolo; esse elemento, não constando da acusação pública, também não pode ser suprido em fase de julgamento, conforme jurisprudência uniformizada do STJ.
2. Por outro lado, não poderia o tribunal ter operado uma alteração da qualificação jurídica, passando o arguido a ser acusado não de um crime de violência doméstica (de natureza pública), mas de três crimes de injúrias (de natureza particular).
3. A comunicação de tal alteração foi levada a cabo em momento processualmente inadmissível, a saber, já depois de finda a produção de prova, e só após ter escutado as alegações orais, no que se afigura uma deslealdade processual, violadora das garantias de defesa do arguido.
4. Tal alteração, nos termos do artigo 358.º do CPP deve ter lugar (seja oficiosamente seja a requerimento), no decurso, mas nunca depois, da produção de prova, e, portanto, sempre antes das alegações orais (360.º do CPP).
5. De resto, a condenação por três crimes de injúria constitui, ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, uma alteração substancial dos factos, na acepção do artigo 1.º, n.º 1, alínea f) do CPP (na acepção de crime diverso - bem jurídico diverso), sendo a sentença nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP.
6. Tratando-se de crimes de natureza particular, não cabe ao Ministério Público, mas antes à assistente, deduzir acusação a respeito, carecendo de legitimidade para o prosseguimento do processo, sob pena de violação do princípio do acusatório.
7. Deveria pois, atentas estas impossibilidades, o arguido ter sido simplesmente absolvido, sem mais, do crime de violência doméstica por que vinha acusado.
8. De contrário, gera-se enorme confusão nos autos, até porque a assistente, ao constituir-se como tal e deduzindo PIC com direito a isenção de custas, foi-se prevalecendo das vantagens de um estatuto (o de vítima de violência doméstica), que, afinal de contas, nunca deveria ter tido, e sempre em prejuízo do arguido.
9. Subsidiariamente, dir-se-á ainda que as expressões proferidas em 23-12-2022, que determinaram a condenação por um crime de injúrias na pena de 80 dias de multa, não têm dignidade penal, movendo-se, ainda que tratando-se de expressões menos agradáveis, ainda na aceitável liberdade de expressão, para mais tendo em conta a dinâmica do casal e as circunstâncias em que foram proferidas, devendo o arguido ser absolvido dele, com acerto da indemnização em que foi erradamente condenado; caso assim não se entenda, deverá tal pena ser reduzida para uma pena bem mais próxima do mínimo legal.
10. De facto, tendo o tribunal sopesado (correctamente) a pena no que se reporta à condenação pelas expressões proferidas a 25-10-2022 em 60 dias de multa, e considerando que estas são as mais graves dos 3 crimes elencados, as penas aplicadas a este crime (de 23-12-2022) e ao crime de 03-02-2023 deveriam ser inferiores.
11. Sucede porém que o Tribunal, contra esta lógica, analisou-os não à luz do desvalor da lesão a cada um, mas em conjunto, agravando sucessivamente a pena em função da pressuposição do cometimento do crime anterior. E isso caberia apenas para um segundo momento: o do cúmulo jurídico das penas parcelares, nos termos do artigo 77.º do CP.
12. Também as expressões proferidas em 03-02-2023, que determinaram uma condenação por um crime de injúria na pena de 100 dias de multa, foram na realidade bem menos ofensivas que as proferidas a 25-10-2022, pelo que a medida da sua culpa demandaria, coerentemente, uma pena bem inferior aquela, nunca superior a 40 dias de multa.
13. Deverá pois, sempre em consequência e em caso de procedência da argumentação precedente, que ser refeito tal cúmulo, a fixar numa pena única (no caso de se manterem os 3 crimes) bem inferior aos 170 dias em que foi e, por ora vem, excessivamente condenado.
14. Foram violados com a decisão em apreço os artigos 14. º, 71.º, 181.º, n.º 1 do CP, 50.º, 358.º, 360.º do CPP, e o artigo 483.º do CC.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser recebido e julgando procedente, revogando-se a decisão proferida e substituindo-a por outra nos termos acima elencados, mormente uma que absolva o arguido.
Pois só assim, pelo cumprimento da Lei, se atingirá efectivamente Justiça.»

O recurso foi regularmente admitido.
O Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1 - Nos presentes autos, o arguido/recorrente vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica agravado do artigo 152.º n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal. A assistente A deduziu acusação particular nos presentes autos ao abrigo do preceituado no artigo 284.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, dando por reproduzida a matéria constante da acusação pública, tendo a mesma sido recebida por despacho de 14/08/2023 como adesão a esta acusação.
2 - O arguido/recorrente foi absolvido pela prática de um crime de violência doméstica agravado do artigo 152.º n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a), n.º 4 e 5 do Código Penal, e foi condenado pela prática de 3 crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1 do Código Penal, na pena única de 170 (cento e setenta) dias de multa à taxa diária de € 9 (nove euros), perfazendo o montante global de € 1.530 (mil quinhentos e trinta euros). Inconformado com esta decisão, dela veio o arguido interpor recurso.
3 - Alega o arguido/recorrente, no que diz respeito ao elemento subjectivo do crime, que não consta dos factos dados por provados na Sentença em crise qualquer facto atinente ao imprescindível elemento volitivo do dolo.
4 - Ora, o elemento volitivo traduz a vontade do agente dirigida à realização do tipo legal de crime. E, ao contrário do que entende o arguido/recorrente, consideramos que se retira da matéria de facto dada como provada, nos pontos 14 e 15 da sentença a descrição fáctica do elemento volitivo do dolo.
5 - Pode ler-se na sentença em crise, aquando da subsunção dos factos ao tipo incriminador, fundamentação com a qual se concorda:
Ora, volvendo ao elenco fáctico consolidado, afere-se que o mesmo – na parte em que se sedimentou a factualidade alusiva ao elemento subjectivo, agora em menor proporção do que a que surgia assinalada na acusação por via da não demonstração de parte das condutas que aí surgiam imputadas ao arguido – contempla o elemento intelectual e o elemento volitivo do dolo. Mais concretamente, constatando-se que ali se mostra consignado que o arguido sabia que “dirigia expressões humilhantes à sua ex-cônjuge, A, ofendendo-a na sua honra e consideração”, o que corresponde à afirmação fáctica do elemento cognitivo do dolo, sendo que também ali se afere por inscrita a consciência da ilicitude na medida em que resulta provado que “o arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas”, e, finalmente, sendo o arguido conhecedor dos elementos do tipo e da ilicitude da correspondente conduta que desenvolveu, menciona-se que, não obstante esse conhecimento, “agiu da forma descrita”, aqui se encontrando o elemento volitivo do dolo. Mais sinteticamente, o arguido pese embora tenha representado a sua conduta e sabendo do carácter proibido da mesma, agiu e, assim, quis realizá-la.”
6 - No que diz respeito à alteração da qualificação jurídica, desde logo, quanto ao momento processual, nada impede que o Tribunal a quo tenha realizado tal comunicação no momento processual em que o fez (depois de produzida a prova e antes da leitura da sentença).
7 - Neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação do Porto, datado de 22/06/2022, relatado pela Exma. Sr.ª Desembargadora Eduarda Lobo, processo 134/17.2GAPFR.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
8 - Acresce que as garantias de defesa do arguido não foram colocadas em crise, porquanto após a comunicação realizada pelo Tribunal, nos termos do artigo 358º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal, sempre poderia o recorrente pedir prazo para preparação da defesa, o que não fez.
9 - E ao contrário do que entende o arguido/recorrente, ao ter sido absolvido da prática de um crime de violência doméstica e ao ser condenado por três crimes de injúria, tal não constitui uma alteração substancial dos factos, pois o Tribunal a quo não comunicou factos novos em relação ao que já constava da acusação do Ministério Público, concretizou apenas a matéria descrita no artigo 7.º da acusação, isto no que tange à alteração não substancial dos factos, e a alteração da qualificação jurídica foi realizada por reporte a factualidade também já descrita na acusação pública.
10 - Importa também salientar que o crime de injúria constitui um minus relativamente ao imputado crime de violência doméstica, pois o que resulta é que há factos (já constantes da acusação e, agora, da matéria de facto provada) susceptíveis de integrar o crime de injúria, existindo até jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de entender ser desnecessária essa comunicação quando está em causa a degradação desse crime de violência doméstica em crimes de ameaça, ofensa à integridade física ou de injúria, conforme também foi assinalado pelo Tribunal a quo, por despacho constante da Ata de 30/10/2023, mas ainda assim, o Tribunal a quo procedeu a tal comunicação “no sentido de ter uma posição mais garantística para o arguido, caso pretendesse exercer esses direitos de defesa.”
11 - Quanto aos pressupostos de procedibilidade, se é certo que o crime de injúria constitui um crime particular (artigo 188º, n.º 1 do Código Penal), refira-se que, quanto aos 3 episódios datados de 25/10/2022, 23/12/2022 e 03/02/2023, a ofendida, ora assistente, denunciou-os nos autos, daí se extraindo a sua vontade de procedimento criminal a seu respeito, conforme melhor se constata dos aditamentos ao auto de notícia de fls. 61-62 (episódio de 25/10/2022), de fls. 83 (situação de 23/12/2022) e de fls. 96-97 (episódio de 03/02/2023).
12 - Acresce que a acusação pública contemplava os mencionados episódios, sendo que a acusação deduzida pela assistente também (por via de remissão para aquela peça processual), pelo que, face à subsunção jurídica dos factos operada pelo titular do inquérito, nada mais lhe era processualmente exigível.
13 - Sobre estas temáticas veja-se os Sumários dos Acórdãos da Relação do Porto, datado de 13/01/2021, processo 799/18.8GBPNF.P1, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Pedro Vaz Pato, e do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 21/03/2022, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Paulo Serafim, processo 704/20.1GAVNF.G1, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
14 - Assim, acompanhando de perto a jurisprudência acima mencionada, consideramos que inexiste qualquer ilegalidade na convolação do crime de violência doméstica imputado na acusação para os três crimes de injúria e subsequente condenação do arguido por estes crimes.
15 - No que diz respeito ao preenchimento dos elementos típicos do crime de injúria, os mesmos encontram-se verificados, incluindo as expressões relativas ao dia 23/12/2022.
16 - Se atentarmos à factualidade constante da matéria de facto dada como provada, é de concluir que as expressões e palavras dirigidas pelo Arguido à Assistente, encerram uma reprovação ético-social, sendo ofensivas da honra e consideração da Assistente, com desrespeito pela própria, adequadas a diminuir o seu bom nome.
17 - Quanto à determinação da medida da pena, atendendo às circunstâncias apontadas na sentença recorrida para determinação da medida de cada uma das penas parcelares, considera-se que as penas parcelares aplicadas estão longe de ultrapassar a medida da sua culpa e que foram respeitados os critérios definidos pelo artigo 71º do Código Penal, bem como os critérios de aplicação da pena única, tendo em conta os factos e a personalidade do agente considerados no seu conjunto (cfr. artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal).
18 - Deste modo, deverá o recurso interposto pelo arguido ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Termos em que, Vossas Excelências farão a habitual JUSTIÇA.»

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso não dever merecer provimento, acompanhando a resposta do Ministério Público, na 1.ª instância.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, sem resposta do recorrente.
Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir:


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cf. artigo 428º do CPP.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410º do CPP, mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cf. Ac. do STJ n.º 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
Tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e passando a apreciar o recurso interposto pelo arguido.
Considerando os fundamentos do recurso são as seguintes as questões suscitadas:
- Falta de descrição, na acusação, do elemento volitivo do dolo, referente ao crime de injúria;
- Inadmissibilidade legal da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada pelo Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 358º, n.º 3, do CPP, após a produção da prova;
- Nulidade da sentença decorrente da condenação do arguido por crimes que constituem uma alteração substancial dos factos descritos na acusação (artigo 379º, n.º 1, al. b), do CPP);
- Falta de legitimidade do Ministério Público para o prosseguimento do processo pelo crime de natureza particular - crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do CP -, por que o arguido foi condenado;
- Erro de subsunção jurídica dos factos provados, reportados ao episódio de 23/12/2022;
- Medida das penas parcelares e da pena única.


2.2. A sentença recorrida, nos segmentos pertinentes para a apreciação das questões suscitadas, é do seguinte teor:
«(…)
II. Fundamentação de Facto
2.1. Factos provados
Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação pública
1. O arguido D e A, em Agosto de 2017 iniciaram uma relação amorosa e no início de 2018, passaram a manter relacionamento análogo ao dos cônjuges, com comunhão de leito e mesa, fixando a casa de morada de família na Rua (…..), Setúbal.
2. O arguido e a ofendida casaram no dia 30.03.2019 e divorciaram-se em 23.08.2022.
3. Deste relacionamento, resultou o nascimento de R, em 26.06.2019 e de M, em 19.02.2023.
4. Numa ocasião, situada no final do ano 2019, em que A se encontrava com um vestido o arguido enquanto se encontrava ao telefone, referindo-se à assistente, disse: “a A saiu de casa vestida que nem uma puta”.
5. A ofendida terminou definitivamente o relacionamento amoroso que tinha com o arguido em 19.07.2022, tendo comunicado a decisão no interior da residência.
6. Na referida ocasião o arguido disse à ofendida: “não te esqueças que sou pai do R e vou levá-lo comigo para onde eu quiser” e “Portugal é um País de otários, ainda tu não percebeste já estou no Brasil”, tendo a ofendida respondido que iria reportar tais afirmações à polícia.
7. No dia 20.8.2022 o arguido regressou do Brasil e dirigiu-se à casa da ofendida com o propósito de ir recolher os seus bens/objectos pessoais.
8. No dia 25.10.2022 o arguido compareceu na casa da ofendida para ir buscar o filho de ambos, contudo o menor não quis estar com o progenitor, começou a chorar e pontapeou a barriga da ofendida/mãe, a qual perante tal circunstancialismo disse ao arguido que não ia obrigar o menor a ir com o arguido naquele estado de desespero e aflição, tendo fechado a porta da habitação.
9. O arguido, inconformado, tocou várias vezes à campainha, efectuou várias chamadas e enviou várias mensagens, tendo permanecido junto à residência da vítima durante quatro horas.
10. Na referida ocasião, o arguido enviou várias mensagens à ofendida, utilizando as seguintes expressões: “pessoas ordinárias e sem caráter agem igual a você”; “minha ex que é boa mesmo”; “eu e ela não tem nada de juiz, é tudo de boa e honesta e tem caráter, mulher de verdade”; “você ordinária, aproveitadora, chantagista”; “se calha uma puta tem mais palavra que você”, “mais valia ter engravidado uma puta” e “preferia meu filho ser de uma puta que ser sua”.
11. Mesmo após a separação, o arguido enviou várias mensagens à ofendida utilizando a aplicação “whatsapp” para o efeito e o seu contacto (…..), sendo que no dia 23.12.2022 remeteu-lhe mensagens tais como: “quero é que você se foda”; “pior mulher que tive na minha vida que acabou com a minha vida e destruiu minha paz e sossego”; “mais valia ter casado com uma mulher da noite que era mais preferido do que ter-te conhecido”; “você conversa pelo cu, não pela boca”; “minha ex sempre teve razão sobre você, que não prestava era você, e ela sempre teve razão”.
12. Em 03.02.2023 o arguido enviou novas mensagens para a ofendida com as seguintes expressões: “não vais ter paz, disso podes ter a certeza”; “cobarde”; “desonesta”; “não prestas”; “deves ter algum problema psiquiátrico”.
13. As condutas referidas em 4., 6. e 7. ocorreram no interior da residência da ofendida.
14. O arguido agiu da forma descrita supra, bem sabendo que dirigia expressões humilhantes à sua ex-cônjuge, A, ofendendo-a na sua honra e consideração.
15. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.
Do pedido de indemnização cível
16. À data dos factos mencionados de 5. a 12. a assistente estava grávida.
17. A assistente, enfermeira de profissão tem sido acompanhada no Hospital Lusíadas.
18. A assistente ficou sobressaltada,
19. Devido à conduta do arguido, a assistente ficou triste, desolada, sem sair de casa, tendo pesadelos e não dormindo.
Mais se apurou com relevância que:
20. O arguido não tem condenações inscritas no certificado de registo criminal que se lhe refere.
21. O arguido habita em casa partilhada com outras três pessoas, satisfazendo o montante de € 150 a € 200 mensais por conta da mesma.
22. Exerce actividade laboral que lhe permite auferir o montante mensal de €2.500 a € 2.800.
23. Satisfaz mensalmente a quantia de € 162 por conta da prestação de alimentos referente ao filho R, bem como o montante mensal de € 175 por conta do estabelecimento de ensino frequentado por este menor, suportando ainda metade do valor das correspondentes despesas médico-medicamentosas.
24. Satisfaz ainda uma prestação de alimentos no montante mensal de € 100 por conta de uma outra filha residente no Brasil.
25. Suporta o montante mensal de € 278,30 por conta do empréstimo contraído com vista à aquisição de viatura própria.
26. Tem o 12.º ano de escolaridade.

*

2.2. Factos não provados/Matéria insusceptível de demonstração
Com relevância para a decisão a proferir não ficou provada a seguinte matéria:
A. O arguido não gostou que a ofendida tivesse engravidado, menosprezando-a e comparando-a com uma antiga namorada, desvalorizando-a como mãe e como mulher, conduta que colocou em causa a estabilidade psicológica da ofendida.
B. Ao longo da relação amorosa, e no decurso da gravidez, o arguido rebaixou e humilhou várias vezes a ofendida, dirigindo reiteradamente expressões tais como “a minha ex-mulher é melhor que tu”; “não prestas”; “vou arranjar outra mulher”; “é melhor estar e comer uma puta da rua do que estar contigo”; “não vales nada”; “não tens carácter”; “estar contigo ou sozinho é indiferente”; “se eu te largar não vais arranjar mais ninguém, vais morrer sozinha e podre”; “achas que és uma grande merda por seres uma enfermeira da função pública e teres casa”; “as brasileiras é que são boas, as portuguesas não valem nada”; “preferia que os meus filhos fossem de uma puta do que teus”.
C. Durante o relacionamento, o arguido comparava a ofendida com outras mulheres que com eles se cruzassem na rua, fazendo afirmações tais como: “estás a ver muito mais gostosa e bem vestida, tu só sais feia e com roupas de velha”.
D. O arguido fazia comentários depreciativos sobre a roupa da ofendida.
E. A propósito do mencionado em 4., o arguido disse à assistente “olha para isto saíste de casa como uma puta”.
F. A respeito do descrito em 6., o arguido afirmou “podes ir que eu não tenho medo da polícia nem do juiz, já estive preso 8 vezes e a cadeia foi feita para homens, quem mata um, mata dois ou três”.
G. A propósito do mencionado em 8., o arguido efectuou uma chamada e disse a um terceiro: “tenho aqui uma 70 guardada” – o que provocou receio à ofendida e aos progenitores da mesma que se encontravam com aquela no local dos factos, julgando que o arguido se estava a referir a uma arma.
H. O arguido continua a importunar reiteradamente a ofendida através do envio de várias mensagens com expressões humilhantes.
I. A ofendida encontra-se muito debilitada psicologicamente em resultado das condutas supra descritas praticadas pelo arguido.
J. Para além do mencionado em 13., quaisquer outras condutas do arguido ocorreram no interior da habitação.
K. As condutas do arguido ocorreram na presença do filho comum do casal.
L. O arguido agiu sabendo que atingia a saúde, que lhe dirigia expressões atemorizadoras, levando-a a recear pela sua vida e integridade física, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando-a no seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua dignidade humana, colocando em causa a sua paz e sossego.

Do pedido de indemnização cível
M. À data do ocorrido em 4., a assistente estava grávida.
N. A assistente vive permanentemente em pânico, com medo e apavorada.
O. A assistente ainda vivencia o referido em 19. e 20..
P. A assistente receia a todo o momento que o arguido lhe entre pela porta e cumpra as ameaças feitas a si e aos seus dois filhos.
Q. A assistente sente angústia permanente.

*
2.3. Motivação de facto
(…)
*
III. Fundamentação de Direito
3.1. Enquadramento jurídico-penal do tipo de crime cuja prática é imputada ao arguido
Com a incriminação em questão visa o legislador, antes de mais, tutelar a integridade física e psíquica, bem como a liberdade e autodeterminação sexual no âmbito de um contexto restrito, o que se retira da própria epígrafe do tipo criminal do artigo 152.º do Código Penal. Por outro lado, dir-se-á que é visada a tutela da dignidade humana no âmbito das relações familiares e para-familiares, mesmo após a respectiva cessação, atendendo aos qualificados deveres de respeito resultantes de tais relações e, bem assim, atento o por vezes verificado ascendente do agente em referência a uma das pessoas referidas no tipo criminal em apreço, em especial no que concerne aos cônjuges, podendo tal ascendente traduzir-se, exemplificadamente, numa situação de superioridade física do agressor face à vítima ou de dependência económica da vítima face ao agressor.
Segundo Taipa de Carvalho, a ratio do artigo 152.º do Código Penal não está «na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana», indo muito mais além «dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas», acrescentando que «o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental» (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, p. 132).
Trata-se, pois, de uma incriminação que visa a protecção de um bem jurídico complexo, reconduzível a vários outros tipos criminais (v.g., ofensa à integridade física, ameaça, coacção, entre outros) no âmbito de um quadro e de uma realidade social delimitada.
Com efeito, delimita o legislador o objecto da acção típica a pessoas que revestem determinada qualidade, denotando esta uma relação de proximidade da vítima com o actor criminis, tratando-se, pois, de um crime específico impróprio, pois que unicamente o agente que tenha uma das relações descritas no tipo é susceptível de cometê-lo.
Por outro lado, conforme supra se referiu, a tipificação do crime de violência doméstica assenta na protecção de um bem jurídico complexo, o qual integra uma multiplicidade de bens jurídicos cindíveis entre si.
Ora, no que concerne às relações de concurso entre o tipo aqui em apreço e os demais tipos susceptíveis de integração por via de condutas simultaneamente reconduzíveis àquele, cujo exemplo mais flagrante se refere à ofensa à integridade física, existe uma relação de especialidade, já que o primeiro exige uma conduta particularmente atentatória da dignidade individual da vítima por via de um ascendente do agressor perante a mesma de que supra se deu conta.
Conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.5.2010 (processo n.º JTRP00043966, disponível em www.dgsi.pt), relatado pelo Dr. Joaquim Gomes, «no crime de violência doméstica, a acção típica tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima» (negrito nosso), sendo certo que é este tipo de tratamento que permite destrinçar entre a prática de um crime do artigo 152.º do Código Penal ou de um crime que tutele parceladamente um dos bens jurídicos protegidos pela incriminação da violência doméstica a que supra fizemos referência.
Refira-se que o preenchimento do tipo não carece de uma conduta reiterada por parte do agente, isto porque uma só conduta, mormente atendendo à sua intensidade, pode ser o suficiente para considerar-se praticado o tipo de crime em questão, tudo dependendo da forma como a mesma é susceptível ou não de consubstanciar uma afectação da dignidade ínsita à condição humana da vítima.
O tipo subjectivo de ilícito reclama uma conduta dolosa por parte do agente, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, tal como resulta do artigo 13.º do mesmo diploma legal.
3.2. Subsunção dos factos ao tipo incriminador
Volvendo à situação a que se reportam os autos, cumpre salientar que o arguido actuou a respeito da sua então mulher, a ora assistente Andreia Casimiro, e, assim, por referência a pessoa que se mostra indicada no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, mais concretamente na corresponde alínea a).
Ademais, é de ter em mente que não se consolidou que o arguido tenha perpetrado qualquer conduta de índole física em relação à assistente, o que, de resto, nem vinha sequer alegado na acusação, daí que no caso dos presentes autos não esteja em causa a atribuição de maus tratos de natureza física.
Com efeito, ante o que surgia narrado na peça acusatória, está essencialmente em causa a atribuição de maus tratos de natureza psíquica por banda do arguido à assistente, todavia, é de ter em mente que para que se possa considerar verificada a prática de um crime de violência doméstica é necessário que os referidos maus tratos assumam carácter reiterado ou que se lhes refira uma actuação isolada, porém inequivocamente intensa, no sentido de ser viável afirmar que a pessoa visada pela actuação do agente viu a sua dignidade enquanto ser humano diminuída ou, nas palavras da jurisprudência supracitada, que lhe seja atribuído um tratamento degradante da sua condição humana.
No caso sub juditio afigura-se-nos que não subsiste uma situação de maus tratos, mormente de índole psíquica, que caracterize a atribuição de um tratamento cruel para a pessoa visada pela conduta do arguido. Na verdade, afere-se que se consolidaram essencialmente cinco situações distintas, afigurando-se que as mesmas, individualmente ou conjuntamente consideradas, não circunstanciam uma relação de domínio ou de vontade de imposição desse domínio, com a contraposta subjugação da vítima, do arguido em relação à assistente.
Mais concretamente, regressando, aliás, ao conjunto da factualidade sedimentada, subsiste uma primeira situação em que o arguido, no final de 2019 e referindo-se à assistente, referiu “a A saiu de casa vestida que nem uma puta”, porém surgindo esta actuação isolada de qualquer outra conduta adicional, sendo que a forma de o arguido apodar A, ainda que penalmente relevante, não se nos afere por suficientemente intensa no sentido de ser viável afirmar a existência da mencionada relação de predomínio do arguido em relação à visada, não se concluindo por uma diminuição de tal molde intensa da sua dignidade enquanto pessoa que se possa reconduzir à previsão legal do artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal.
Note-se, de resto, que essa actuação ocorrida no final de 2019 se afere por isolada na medida em que a seguinte conduta do arguido que surgiu sedimentada já se atém a Julho de 2022, tendo decorrido até então um muito significativo interregno superior a dois anos, e, assim, insiste-se, sem que aquela primeira conduta possa caracterizar de per se o cometimento por parte do referido sujeito processual de um crime de violência doméstica.
Visando agora a conduta espelhada no elenco dos factos provados como tendo ocorrido em 19 de Julho de 2022, afigura-se-nos a mesma penalmente neutra e, por isso, insusceptível de em si mesma, ou conjugada com qualquer outra, suportar a conclusão de que o arguido praticou o ilícito que lhe surge imputado na peça acusatória. Com efeito, a menção “não te esqueças que sou pai do R e vou levá-lo comigo para onde eu quiser” e “Portugal é um País de otários, ainda tu não percebeste já estou no Brasil”, pese embora não cortês ou agradável, ainda assim não pode ser desligada da eventual pretensão de o arguido querer exercer as responsabilidades parentais no que tange ao seu filho menor em alusão, aqui se incluindo a de levá-lo consigo para o seu país de origem, e, por outro lado, a segunda asserção transcrita não se dirige especificamente a A, não se antevendo, assim, que tais verbalizações emitidas por parte de D acarretem um tratamento degradante para a assistente.
Tal como se nos afigura que a circunstância de o arguido ter ficado junto da residência da assistente durante quatro horas, tocando à respectiva campainha, referindo-nos à situação de 25.10.2022, outrossim não produziu o sobredito resultado, ou seja, a diminuição efectiva da dignidade de A enquanto ser humano, não revelando a atribuição de um tratamento degradante e/ou cruel, até porque se afere que o referido comportamento não se dirigiu à pretensão de o arguido retomar uma relação com a assistente ou de forçar a sua presença no sentido de a intimidar, antes se aferindo por conexa com a circunstância de, pretendendo conviver com o filho menor de ambos, tal não lhe ter sido possibilitado, independentemente da razão dessa recusa, mesmo que justificada.
Diferente, todavia, é a circunstância de, por referência a essa mesma situação ocorrida em 25.10.2022, o arguido ter remetido à assistente mensagens referindo-lhe “pessoas ordinárias e sem caráter agem igual a você”; “você ordinária, aproveitadora, chantagista”; “se calha uma puta tem mais palavra que você”, “mais valia ter engravidado uma puta” e “preferia meu filho ser de uma puta que ser sua”, pois que apodar e comparar A desta forma não se atém a uma conduta penalmente neutra, conforme infra se explicitará, mas, ainda assim, afigurando-se-nos que a emissão de tais expressões não consubstancia o cometimento do crime a que se reporta o artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, na medida em que sendo emitidas essas expressões num contexto muito específico, sem continuidade diária ou quase diária, sendo-o por meios de comunicação não presencial, não traduz uma situação de prevalência por parte do arguido em relação à assistente, não se descortinando a submissão da mesma que vinque a atribuição de um tratamento desumano ou cruel reconduzível ao elemento objectivo da incriminação consagrada na referenciada norma legal.
O que se acaba de mencionar a respeito do episódio de 25.10.2022 é aplicável, segundo cremos, às situações que se produziram em 23.12.2022 e em 3.2.2023. Com efeito, também a propósito destes episódios se afere que a conduta do arguido não se afere por penalmente atípica, mormente ao apodar a assistente de “pior mulher que tive na minha vida que acabou com a minha vida (…)”, assinalando-lhe que “conversa pelo cu” e referindo-lhe que não presta e que é pior que uma mulher da noite e, por outro lado, apodando-a de “cobarde”, “desonesta”, dizendo-lhe “não prestas” e “deves ter algum problema psiquiátrico”, todavia novamente não se descortinado a atribuição do já referido tratamento cruel e desumano que caracteriza a prática de um crime de violência doméstica, conclusão que decorre da avaliação dos episódios individualmente considerados, mas também da sua ponderação conjugadamente, novamente sendo de referir que a conduta do arguido não é contínua, havendo um interregno de várias semanas entre estes episódios e, assim, sem que ocorra uma situação especialmente intensa ou uma pressão constante por banda do arguido em relação à assistente, tratando-se antes de episódios descontínuos, já nem sequer atinentes à vivência em comum de ambos, também não sendo referentes a uma qualquer pretensão de o primeiro forçar a segunda a retomar uma relação, talqualmente não se detectando que subjaza às condutas de D qualquer intento de assediar a assistente.
Em suma, de forma mais resumida, afigura-se-nos que os episódios que agora constam do elenco dos factos provados, apreciados isoladamente ou conjugadamente, não preenchem o elemento objectivo do crime de violência doméstica.
Seria ainda possível, mas meramente em abstracto, conjecturar que as condutas do arguido, conjugadas entre si, pudessem realizar a acção típica a que se reporta o crime de perseguição do artigo 154.º-A, n.º 1, do Código Penal, porém sem que se encontre uma continuidade de condutas de tal ordem que se possa aludir a um comportamento reiterado e, por outro lado, com maior relevo sem que se possa considerar que as expressões dirigidas por parte do arguido à assistente sejam em si mesmas susceptíveis de lhe acarretar o medo ou inquietação que o tipo de crime exige ou prejudicá-la na correspondente liberdade de determinação. Note-se que as expressões utilizadas por banda do arguido são essencialmente no sentido de caracterizar e apodar – de forma imprópria – a assistente, sendo que a única que se nos afigura que se poderia aproximar da previsão legal do tipo de crime agora em menção é “não vais ter paz, disso podes ter a certeza”, porém sem que se afira de qualquer reiteração neste tocante.
Todavia, conforme logo se foi avançando, as condutas do arguido que agora se apreciam não se aferem por penalmente neutras, não se descurando que apodar a assistente de “puta” (situação ocorrida em finais de 2019), caracterizá-la enquanto pessoa “ordinária”, “sem carácter”, “aproveitadora” e “chantagista”, dizendo-lhe que “se calhar uma puta tem mais palavra que você”, “mais valia ter engravidado uma puta” e “preferia meu filho ser de uma puta que ser sua” (episódio de 25.10.2022), dizendo-lhe ainda que não presta, que foi a pior mulher que teve na vida, que devia ter casado com uma mulher da noite ao invés da assistente (situação de 23.12.2022), e apodá-la ainda de “cobarde”, “desonesta”, referindo-lhe novamente que não presta e dizendo-lhe que tem problemas psiquiátricos (episódio de 3.2.2023), corresponde inequivocamente à prática da acção típica a que se reporta o artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, pois que as mencionadas condutas respeitam à emissão por parte do arguido de palavras dirigidas à assistente que são ofensivos da honra e da consideração da assistente, sendo certo que seriam entendidos enquanto tal por qualquer cidadão de capacidades médias.
Ademais, como se dizia, os episódios em menção têm subjacentes, face ao interregno que subsiste entre todos eles, diferentes resoluções criminosas, sendo certo que o tipo de crime em menção acautela bens jurídicos de ordem pessoal e, assim, aferindo-se de uma situação de concurso real, tal como definido no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal.
Num outro passo, é de salientar que talqualmente se afere por verificada a factualidade referente ao elemento subjectivo, relembrando-se que o dolo é estratificado nos seus segmentos volitivo e cognitivo, e, sem embargo do referenciado na contestação a este respeito, é de ter em mente que inexiste uma fórmula única para descrever factualmente o dolo.
Ora, volvendo ao elenco fáctico consolidado, afere-se que o mesmo – na parte em que se sedimentou a factualidade alusiva ao elemento subjectivo, agora em menor proporção do que a que surgia assinalada na acusação por via da não demonstração de parte das condutas que aí surgiam imputadas ao arguido – contempla o elemento intelectual e o elemento volitivo do dolo. Mais concretamente, constatando-se que ali se mostra consignado que o arguido sabia que “dirigia expressões humilhantes à sua ex-cônjuge, A, ofendendo-a na sua honra e consideração”, o que corresponde à afirmação fáctica do elemento cognitivo do dolo, sendo que também ali se afere por inscrita a consciência da ilicitude na medida em que resulta provado que “o arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas”, e, finalmente, sendo o arguido conhecedor dos elementos do tipo e da ilicitude da correspondente conduta que desenvolveu, menciona-se que, não obstante esse conhecimento, “agiu da forma descrita”, aqui se encontrando o elemento volitivo do dolo. Mais sinteticamente, o arguido pese embora tenha representado a sua conduta e sabendo do carácter proibido da mesma, agiu e, assim, quis realizá-la.
Avançando, importa, todavia, diferenciar a situação ocorrida em finais do ano de 2019 dos demais episódios, referindo-nos, neste tocante, à verificação das condições de procedibilidade, relembrando-se que o procedimento criminal atinente ao crime de injúria, tal como se colhe do artigo 188.º do Código Penal, depende da apresentação tempestiva de queixa e da dedução de acusação por banda do assistente.
Ora, no que se atém à referida situação do final do ano de 2019, afere-se que a assistente não apresentou queixa a seu respeito, relembrando-se inclusivamente que o procedimento criminal a que se reportam os presentes autos se iniciou em 20 de Julho de 2022, e, assim, claramente para além do prazo de seis meses a que se reporta o artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, não estando, por conseguinte, verificadas as condições de procedibilidade neste tocante e, por isso, não podendo o Tribunal extrair qualquer consequência penal para o arguido a respeito da referenciada situação.
No que tange às outras três situações, ou seja, as que se produziram em 25.10.2022, 23.12.2022 e 3.2.2023, cumpre salientar, primeiro, que as mesmas ocorreram já após ter sido instaurado o vertente procedimento criminal, o qual se iniciou por referência à alegada prática de um crime de violência doméstica, aqui relembrando-se a jurisprudência dos tribunais superiores segundo a qual “a degradação do crime de violência doméstica em crime de injúria, operada no momento da prolação da sentença, não implica a ilegitimidade do Ministério Público para a promoção do processo, não se exigindo, deste modo, supervenientemente, a apresentação de queixa, nem a dedução de acusação particular, pelo ofendido/assistente”, explicando-se que “de outro modo, seria apresentada, na referida fase processual, à assistente uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade com a qual não poderia anteriormente contar, porque então inexistente” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.2.2021, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador João Novais, processo n.º 231/16.1GABBR.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Sem embargo, no que concerne aos três episódios agora em alusão, constata-se que a ofendida, ora assistente, denunciou-os nos autos, daí se extraindo a sua vontade de procedimento criminal a seu respeito, conforme melhor se constata dos aditamento ao auto de notícia de fls. 61-62 (episódio de 25.10.2022), de fls. 83 (situação de 23.12.2022) e de fls. 96-97 (episódio de 3.2.2023), acrescentando-se que a acusação pública contemplava os mencionados episódios, sendo que a acusação deduzida pela assistente também (por via de remissão para aqueloutra peça processual).
Em suma, o arguido deve ser absolvido da prática de um crime de violência doméstica, mas condenado por referência ao cometimento de três crimes de injúria.
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3.3. Escolha e medida concreta da pena
Verificada a prática por parte do arguido de três crime de injúria do artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, cabe agora extrair as respectivas consequências, ou seja, cabe aplicar a estatuição sequente ao preenchimento do tipo incriminador em questão – uma pena.
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Havendo assim lugar à aplicação de uma pena, deve-se ter em mente na operação de determinação da sua medida concreta três passos lógicos e sequenciais: em primeiro lugar determina-se a pena abstracta e respectiva moldura; em segundo lugar, albergando o tipo incriminador uma pena compósita alternativa, deve ser escolhida a natureza da pena a aplicar e, por fim, num último e derradeiro passo, o julgador determina a medida concreta da pena, isto é, o seu quantum.

3.3.1. Determinação da moldura penal aplicável
O crime de injúria do artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até cento e vinte dias.
Será esta, pois, a moldura penal abstracta dentro da qual o Tribunal há-de mover-se na fixação da medida concreta da pena.

3.3.2. Escolha da espécie de pena
Considerando que o crime em apreço é punível com uma pena compósita alternativa, ou seja, com uma pena de prisão, ou, em alternativa, com uma pena de multa, cabe escolher qual a natureza da pena a aplicar ao arguido.
A este ponto não é de olvidar o disposto no artigo 70.º do Código Penal, aí positivando o legislador uma clara e expressa preferência pela aplicação de penas não privativas da liberdade, o que é compreensível atendendo à natureza ínsita às penas carcerárias, manifestamente estigmatizantes, constituindo o instrumento punitivo de aplicação última ao dispor do Estado, aqui no âmbito da função jurisdicional.
Por outro lado, há que atender aos fins das penas referidos no artigo 40.º do Código Penal, ou seja, há que considerar a suficiência, adequação e proporcionalidade da pena para o efeito da reintegração do agente e, simultaneamente, para o efeito de restabelecimento da confiança da comunidade na protecção de bens jurídicos, implicando, pois, considerar as necessidades de prevenção especial, mas também as necessidades de prevenção geral.
Os crimes contra a honra são de verificação frequente, conforme demonstra a prática judiciária, havendo mesmo alguma reiteração na sua prática, o que torna as necessidades de prevenção geral como superiores a medianas, não se olvidando, pois, neste tocante, o propósito de reparação e reposição do bem jurídico tutelado.
Já no que concerne às necessidades de prevenção especial, importa salientar que o arguido não tem condenações registadas no certificado de registo criminal que lhe respeita, razão pela qual se justifica a aplicação de penas não detentivas.

3.3.3. Determinação da medida concreta da pena
Escolhida a natureza das penas a aplicar ao arguido, cabe agora avançar na operação de determinação da pena, fixando, para tanto, o respectivo quantum, atendendo para tal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as previstas nas diversas alíneas do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, sendo que há-de o julgador considerar como limite inultrapassável, na determinação da medida concreta da pena, a culpa do agente manifestada no cometimento dos factos típicos (cfr. artigos 40.º, n.º 2, e 70.º, n.º 1,do Código Penal).
Assim, in casu, devem ser atendidas as seguintes circunstâncias no que se refere à determinação da medida concreta da pena:
- o dolo, sendo o mesmo directo, considerando, para tanto, que o arguido através da sua conduta visou directamente ofender a honra e consideração da assistente;
- a ilicitude, a qual se assume como elevada, desde logo tendo presente que o arguido actuava a respeito da mãe dos seus filhos, sendo certo que não está em causa uma única expressão, mas sim, nas três ocasiões, uma multiplicidade relevante de expressões, todas elas apodando a assistente de forma especialmente desprimorosa, tendo-se ainda presente que a insistência do arguido no cometimento de factos de idêntica génese vai acarretando uma progressão na intensidade da ilicitude.
- a inserção social, profissional e económica, nada de negativo havendo que salientar neste tocante, até porque se beneficia de inserção laboral, exercendo uma profissão e, de resto, até ao ano transacto, beneficiou de inserção familiar no agregado da própria assistente;
- a conduta anterior e posterior aos factos, cabendo ter em atenção que o arguido não regista quaisquer condenações no certificado de registo criminal que se lhe refere;
- as necessidades de prevenção, nos termos já aduzidos supra a respeito da escolha da natureza da pena a aplicar.
Ponderadas todas as circunstâncias acabadas de referir, o Tribunal decide aplicar ao arguido, pela prática como autor material e na forma consumada, de três crimes de injúria penas de, respectivamente, 60 (sessenta) (episódio de 25.10.2022), 80 (oitenta) (episódio de 23.12.2022) e 100 (cem) (situação de 32.2023) dias de multa, as quais entende como justas, adequadas e proporcionadas às exigências de prevenção e à gravidade dos factos, e, por outro lado, circunscritas à culpa manifestada por aquele no cometimento dos mesmos, justificando-se a diferenciação em relação a cada uma das penas parcelares na medida em que o grau de ilicitude vai-se acentuando da primeira para a última situação que fundamenta a aplicação de tais sanções.
Resulta ainda do artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, que «cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5 e 500 euros, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais». Tendo em mente que o arguido aufere um salário relevante, superior ao médio e considerando os encargos que tem, nomeadamente com os filhos, afigura-se ajustado fixar o quantitativo da pena de multa no montante equivalente a € 9 (nove euros).

3.4. Concurso de crimes – Aplicação de pena única
Uma vez que o arguido praticou três crimes previamente à emissão de uma decisão judicial que apreciasse da correspondente responsabilidade penal, existe, portanto, entre si, uma relação de concurso real (cfr. artigo 30.º do Código Penal), havendo que aplicar-lhe uma pena única, tendo em conta os factos e a personalidade do agente considerados no seu conjunto (cfr. artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal).
A pena aplicável terá como limite mínimo 100 dias de multa e como limite máximo 240 dias de multa, ou seja, o limite mínimo respeita à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo refere-se à soma das penas concretamente aplicadas (cfr. artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal).
No que concerne à aplicação da pena única, «tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma ‘carreira’) criminosa, ou tão-só uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, Coimbra Editora, p. 291).
No caso vertente afere-se que o arguido praticou os factos em três ocasiões distintas entre si, mas fê-lo a respeito da mesma pessoa, ou seja, a assistente e num enquadramento similar, o que também é evidenciado pelo teor das expressões que em todas esses episódios lhe dirigiu, daí que, ponderando o grau de ilicitude subjacente a cada situação, mas também a circunstância de aquele não ter condenações averbadas no certificado de registo criminal que lhe respeita, se aferir ajustado fixar a pena única de multa em 170 (cento e setenta) dias, sendo que por referência a esta fixa-se o correspondente quantitativo diário em € 9, reiterando-se aqui o já aduzido supra a respeito das penas parcelares de multa.

3.5. Pedido de indemnização cível
Conforme decorre do artigo 129.º do Código Penal, «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».
Cumpre, assim, ter em mente o artigo 483.º do Código Civil, o qual respeita, precisamente, à responsabilidade por factos ilícitos enquanto fonte de obrigação de indemnizar. A fim de existir a agora referida obrigação de indemnizar, conforme resulta da leitura da norma agora invocada, de forma mais ou menos explicita, têm de se verificar, em simultâneo, os seguintes pressupostos: facto voluntário do agente, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.
Concretizando, em primeiro lugar, resulta claro, caberá aferir da existência de um facto voluntário do lesante, na medida em que «(…) tratando-se de uma situação de responsabilidade civil subjectiva, esta nunca poderia ser estabelecida sem existir um comportamento dominável pela vontade, que possa ser imputado a um ser humano e visto como expressão da conduta de um sujeito responsável», importando, no entanto, considerar que é bastante «uma conduta que lhe possa ser imputada em virtude de estar sob o controle da sua vontade» (cfr. Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I Introdução. Da constituição das obrigações, 9.ª Edição, Almedina, 2010, pp. 295 e 296).
De notar que o facto voluntário pode assumir uma dupla vertente, isto é, pode revestir a forma de acção, conforme decorre desde logo da leitura do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, mas também a forma de omissão, conforme se colhe do artigo 486.º do mesmo diploma legal, daí decorrendo que «as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido».
Por outro lado, e enquanto segundo pressuposto, a verificação de uma situação de responsabilidade civil aquiliana não prescinde do ajuizamento da ilicitude atinente ao facto voluntário. Conceptualizando a ilicitude, caberá considerar que a mesma «(…) pode consistir na violação de direitos subjectivos, alheios, ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, surgindo ainda noutros locais previsões específicas de comportamentos alheios (arts. 33.º, 335.º, 484.º e 485.º). Em qualquer dessas previsões a ilicitude aparece sempre configurada como um juízo de desvalor atribuído pela ordem jurídica» (Luís Menezes Leitão, ob. cit., p. 299).
Num terceiro passo do percurso atinente a aferir da verificação da responsabilidade civil extracontratual, caberá ter em mente a culpa. Se é certo que antes de mais se supõe a existência de um comportamento voluntário por parte do agente, o qual deverá ser contrário à ordem jurídica (e, por isso, ilícito), terá igualmente que considerar-se se tal comportamento do sujeito lesante é-lhe ou não censurável, sendo, pois, a culpa definida enquanto «(…) juízo de censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente», devendo, assim, «ser entendida em sentido normativo, como a omissão de diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe» (Luís Menezes Leitão, ob. cit., p. 323), daqui decorrendo que cabe aferir da existência de um comportamento desvalioso do agente e, por isso, reprovável. «Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 474).
Note-se que em conformidade com o preceituado no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, que «a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso concreto», apelando, pois, esta norma a um critério de um homem normalmente diligente perante uma situação idêntica, ou seja, o juízo a formular, em suma, consiste em situar-nos na posição do agente e aferir se, em igualdade de circunstâncias, uma pessoa com um nível de diligência regular actuaria de forma semelhante ou não.
Ainda por referência à culpa, caberá ter em mente que a mesma desdobra-se em duas formas distintas – o dolo e a negligência (a mera culpa a que alude o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil). Em termos sintéticos mas precisos, dir-se-á que «o dolo, para efeitos de responsabilidade corresponde à intenção de praticar o facto(…)», não se verificando tal intenção na negligência, uma vez que nesta «o comportamento do agente não deixa de ser censurável em virtude de ter omitido a diligência a que estava legalmente obrigado» (Luís Menezes Leitão, ob. cit., p. 325). É de notar que a distinção entre actuação dolosa ou negligente não é desprovida de efeito útil mesmo em direito civil, referindo-nos, particularmente, ao artigo 494.º do Código Civil.
Noutro passo, haverá ainda que ter em mente que a invocação de responsabilidade civil deve ser fundada na existência de dano. Com efeito, tal decorre não apenas do já enunciado artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, mas também do artigo 562.º do mesmo diploma legal, daí decorrendo a instrumentalização do sistema de responsabilidade civil no tocante à reparação dos danos, mormente através de reconstituição natural.
Caberá, porém, definir o que é um dano. Ora, dano pode ser definido «como a frustração de uma utilidade que era objecto de tutelar jurídica» (Luís Menezes Leitão, ob. cit., p. 343), podendo ainda ser configurado enquanto a criação de uma situação de diminuição da esfera jurídica do lesado na sua acepção patrimonial.
Por fim, enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade civil (extracontratual), caberá ainda invocar o nexo de causalidade entre o facto voluntário e o dano, isto é, o dano deve ser consequência da actuação (ou omissão) que consubstancia o facto voluntário. A este propósito é de afastar a chamada teoria da equivalência das condições (conditio sine quo non) mercê de alarga em demasia o espectro do nexo entre causa e dano, mormente porquanto não diferencia entre as causas próximas de produção do dano e as causas remotas (e mediatas) da sua produção, havendo antes que considerar que «para o estabelecimento do nexo de causalidade é apenas necessário averiguar se os danos que resultaram do facto correspondem à frustração das utilidades que a norma visava conferir ao sujeito através do direito subjectivo ou da norma de protecção» (Luís Menezes Leitão, ob. cit., p. 363).
Acresce, ainda, que através da responsabilidade civil pretende-se, claro, a reparação de danos, ou seja, «reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», sendo que «o dever de indemnizar compreende não o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão» (cfr. artigo 562.º do Código Civil), ou seja, abrange tanto os danos emergentes como os lucros cessantes.
Impõe-se também referir que quando seja formulado pedido que assente na produção de danos não patrimoniais, o tribunal deve fixar o montante da indemnização equitativamente considerando, para tanto, as circunstâncias previstas no artigo 494.º do Código Civil (cfr. artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil). «A gravidade do dano -de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso, e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)», sendo que «o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau da culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, (…) proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida» (Pires de Lima, Antunes Varela, ob. cit., pp. 499 a 501).
Regressando ao caso concreto, cumpre salientar que se consolidou que o arguido, também demandado, referiu-se à assistente, demandante - por referência às três situações que integram a prática dos três crimes de injúria supra identificados e relembrando-se aqui a conexão entre a lide cível enxertada e a causa penal que lhe é referente -, apodando-a de ordinária, aproveitadora e chantagista, comparando-a negativamente a uma mulher de má índole sexual (“puta”), aduzindo-lhe que foi a pior mulher da sua vida, apelidando-a ainda de “cobarde” e “desonesta”, assinalando-lhe que não presta e que tem problemas de natureza psiquiátrica, o que significa, portanto, que o arguido nestas três ocasiões praticou factos voluntários, os quais são objectivamente ofensivos da honra da demandante e, assim, violadores de direitos de personalidade, sendo, assim, ilícitos, não se descurando ainda que o arguido os efectivou a título culposo – mais concretamente, a título doloso, aqui na correspondente acepção cível), os quais determinaram (nexo de causalidade) tristeza, desolação, isolamento social e problemas de sono, ou seja, danos de natureza não patrimonial, estando, por conseguinte, verificados os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana.
A quantificação da indemnização a atribuir a respeito dos danos de natureza não patrimonial, conforme igualmente se enquadrou supra, há de ser encontrada mediante o recurso à equidade, ou seja, mediante a análise ponderada das circunstâncias do caso concreto. Efectuando essa análise, é de considerar a inexistência de sequelas graves para a demandante, não se apurando que as mesmas ainda se mantenham, cabendo ainda não descurar os montantes fixados pela generalidade da jurisprudência em casos similares, tendo-se presente que a conduta do demandado, na parte relevante, se produziu em três episódios distintos e cabendo ainda ter em mente a sua capacidade económica, a qual é superior a média, pelo que se afigura ajustado fixar o quantum indemnizatório em € 1.000.
No que concerne aos juros de mora por referência à indemnização agora fixada por conta dos danos de natureza não patrimonial, os mesmos serão devidos após prolação da presente sentença – e não a partir da notificação do pedido de indemnização cível -, uma vez que «a indemnização por danos não patrimoniais é sempre uma decisão actualizadora: o quantum respectivo, não estando previamente balizado, é achado com referência ao momento concreto da decisão» Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9.3.2010, relatado pelo Juiz Desembargador Freitas Neto, Processo n.º 1704/04.4TBPBL.C1, disponível em www.dgsi.pt, em referência à jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador n.º 4/2002, do Supremo Tribunal de Justiça.
(...).»


2.3. Apreciação do mérito do recurso
2.3.1. Da falta de descrição, na acusação, do elemento volitivo do dolo referente ao crime de injúria
Alega o arguido/recorrente que os factos descritos na acusação são insuficientes para o preenchimento do tipo subjetivo dos crimes de injúria por que veio a ser condenado na sentença recorrida (tal como o eram para o crime de violência doméstica cuja prática lhe foi imputada na acusação), faltando o elemento volitivo do dolo.
Neste enfoque, aduz o recorrente que o elemento volitivo do dolo – consubstanciado em ter o agente agido/atuado de forma voluntária ou deliberada, ou seja, quis levar a cabo a sua conduta ilícita –, tem de ser alegado na acusação, o que, no presente caso, não aconteceu. Por outro lado, na sentença recorrida também não foi dado como provado o referido elemento volitivo – dela não constando que o arguido tenha agido de forma voluntária, deliberada ou propositada –, além de que sempre estaria vedado ao Tribunal colmatar essa falta, na audiência de julgamento, conforme jurisprudência uniformizada, no Acórdão n.º 1/2015, do STJ.
Na decorrência do alegado, pugna o recorrente pela sua absolvição da prática dos três crimes de injúria por que foi condenado, na 1.ª instância e bem assim, como do pedido de indemnização civil.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, aderindo à fundamentação expendida na sentença recorrida, em sede de subsunção dos factos ao direito, considerando que o segmento “agiu da forma descrita”, narrado na acusação, em articulação com a demais factualidade descrita nos pontos 14. – “O arguido agiu da forma descrita, supra, bem sabendo que dirigia expressões humilhantes à sua ex-cônjuge, A, ofendendo-a na sua honra e consideração” – e 15 – “O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas” –, contém o elemento volitivo do dolo.
Que dizer?
Antes de mais, importará referir que a falta de descrição, na acusação, de algum dos elementos constitutivos do tipo legal de crime cuja prática é imputada ao arguido, designadamente, de algum dos elementos que caraterizam o dolo integrante do tipo subjetivo, não tendo a acusação sido rejeitada, por manifestamente infundada, no despacho a que alude o artigo 311º do CPP, tendo sido recebida e prosseguindo o processo para julgamento, só nessa sede, após a produção da prova e das alegações orais, a questão pode ser apreciada, sendo proferida decisão de mérito, em conformidade.
Assim e acompanhando de perto o que se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra, de 23/08/2018[1], caso a acusação enferme, por via de uma narração insuficiente, da deficiência congénita acima assinalada, uma vez ultrapassado o crivo do artigo 311º do CPP, e considerando a jurisprudência uniformizada, no Acórdão n.º 1/2015[2], do STJ, não sendo possível, através dos mecanismos previstos nos artigos 358º ou 359º, ambos do CPP, suprir, em julgamento, o elemento em falta, a decisão não pode deixar de ser a absolvição do arguido.
Ante o exposto, se bem que pudéssemos passar, desde já e nessa vertente, a apreciar a questão em apreço, na medida em que a sua procedência, prejudicaria o conhecimento das demais, ainda assim, seguindo a ordem lógica, decidimos conhecer das questões que a antecedem.

2.3.2. Relativamente suscitada questão da inadmissibilidade legal da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada pelo Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 358º, n.º 3, do CPP, após a produção da prova:
Neste ponto e ressalvado o devido respeito, não assiste razão ao recorrente.
Como refere o Cons. Oliveira Mendes[3] «O instituto da alteração dos factos descritos na acusação e na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.
Ao alargar o âmbito da aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos, o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido – n.º 1 do artigo 32º –, consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado (as disposições legais é que definem e estabelecem a natureza jurídica do facto, o tipo de culpa exigido para o seu preenchimento e demais elementos constitutivos, as sanções aplicáveis e outros elementos essenciais para a correcta e adequada defesa do arguido, devendo-se ter em vista que a própria tramitação processual depende da qualificação jurídica dos factos, sendo o que acontece com a forma do processo, a competência do tribunal e o modo de exercício e a extensão do direito ao recurso).»
Sobre o momento em que pode/deve ter lugar a comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos, o STJ, no Acórdão n.º 11/2013[4], uniformizou jurisprudência no sentido de «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal».
Perfilhamos o entendimento jurisprudencial defendido pela corrente maioritária, no sentido de que a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, em audiência de julgamento, tendo de ser efetuada após produção de prova, conforme jurisprudência fixada no referenciado AUJ n.º 11/2013, poderá ter lugar depois de produzidas as alegações orais e até à leitura da sentença[5].
Como bem se refere no Acórdão da RP de 17/01/2024[6]:
«A audiência não termina com o encerramento da discussão da causa, que é coisa diversa do encerramento da audiência, mas apenas com a leitura da decisão, podendo mesmo prolongar-se para além desta, caso sejam suscitadas questões incidentais subsequentes.
A expressão "decurso da audiência" utilizada no artigo 358º, n.º 1, do CPP abrange todo o período que vai da respetiva abertura até à leitura da sentença, e só com tal leitura fica precludida a possibilidade de o tribunal proceder à alteração dos factos nos termos dos artigos 358º e 359º, do CPP.»
Ademais, o Tribunal Constitucional, tendo sido chamado a pronunciar-se, neste âmbito, decidiu, no Acórdão n.º 90/2013, «Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 358.º, 360.º e 361.º, do Código de Processo Penal, interpretados com o sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia até ao encerramento da audiência de julgamento, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência.»
Reconhecendo-se o esforço argumentativo do recorrente ao sustentar que esta solução afeta as garantias de defesa do arguido, assim não entendemos.
Tendo sido efetuada, pelo Tribunal a quo, a comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, no momento em que foi realizada, legalmente admissível, como supra concluímos, poderia o arguido, se assim o entendesse, requerer prazo para preparação da defesa, ao abrigo do disposto no n.º 1 ex vi do n.º 3 do artigo 358º do CPP, o que não fez.
Além do mais, a jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais Superiores converge no entendimento de que estando o arguido acusado de violência doméstica, contendo a acusação ou a pronúncia a descrição de factos, suscetíveis de integrar o crime de injúria, no caso de haver degradação ou convolação daquele crime para este último, não é necessário efetuar a comunicação da alteração da qualificação jurídica, nesses termos, na medida em que o crime de injúria representa um “minus” relativamente ao crime de violência doméstica[7].
Nesta conformidade, sem necessidade de maiores considerações, soçobra este fundamento do recurso.

2.3.3. Da nulidade da sentença decorrente da condenação do arguido por crimes que constituem uma alteração substancial dos factos descritos na acusação (artigo 379º, n.º 1, al. b), do CPP).
Sustenta o arguido/recorrente que estando acusado da prática de um crime de violência doméstica, a sua condenação por três crimes de injúria, constitui, uma alteração substancial dos factos, na aceção do artigo 1º, al. f), do CPP (crime diverso – bem jurídico distinto), acarretando a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. b), do CPP.
O Ministério Público manifesta não ter o recorrente razão, pelos motivos supra enunciados, no ponto 2.3.2.
Apreciando:
Sobre a nulidade da sentença e, no que ao presente caso importa, dispõe o artigo 379º, n.º 1, al. b), do CPP: «É nula a sentença: Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º
Com a cominação da nulidade da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 379º, visa-se a salvaguarda da estrutura acusatória do processo penal, com consagração no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Por força da referida estrutura acusatória do processo, o juiz de julgamento encontra-se tematicamente vinculado, em relação ao objeto do processo (thema decidendem), aos poderes de cognição (thema probandum) e aos limites da decisão, pela acusação ou pela pronúncia[8], o que constitui, para o arguido, uma garantia de defesa, na qual se inclui claramente o princípio do contraditório.
Tal implica, nomeadamente, a proibição de condenação por crime diverso do da acusação ou pronúncia, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos[9].
É à luz da preservação das garantias de defesa, constitucionalmente reconhecidas ao arguido (cf. artigo 32º, n.º 1, da CRP), que se justificam os cuidados postos pelo legislador nas situações de alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quer a nível substancial (artigo 359º da CPP), quer não substancial (artigo 358º do CPP), equiparando a esta última a alteração da qualificação jurídica dos factos (n.º 3 do artigo 358º do CPP).
Revertendo ao caso dos autos:
Desde logo, importa fazer notar que a comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação não constitui alteração substancial, nem não substancial de factos.
A alteração substancial ou não substancial de factos, reporta-se sempre a factos e nunca à sua qualificação jurídica.
Isso mesmo decorre da definição da «alteração substancial dos factos», plasmada no artigo 1º, al. f), do CPP, como sendo «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis
Além do mais, conforme acima se referiu, o crime de injúria, mesmo estando em causa uma pluralidade de crimes, como é aqui o caso, constitui um minus relativamente ao crime de violência doméstica, por cuja prática o arguido vinha acusado. E nessa situação, nem sequer era necessário efetuar a comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos (artigo 358º, n.º 3, do CPP).
Ademais, a defesa do arguido pôde ser preparada abrangendo os factos em causa, que foram narrados na acusação deduzida pelo Ministério Público, suscetíveis de poder integrar aqueles crimes, os quais, por efeito de relação de consunção e nos termos daquela acusação, foram juridicamente enquadrados no crime de violência doméstica.
Ainda assim o tribunal procedeu à comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nos termos sobreditos.
Ante o exposto forçoso é concluir não enfermar a sentença recorrida da invocada nulidade, prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 379º do CPP, pelo que também este fundamento do recurso terá de improceder.

2.3.4. Da falta de legitimidade do Ministério Público para o prosseguimento do processo pelo crime de natureza particular - crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do CP -, por que o arguido foi condenado:
Sustenta o recorrente que estando acusado do cometimento de um crime de violência doméstica, o qual reveste a natureza de crime público, tendo sido absolvido da prática desse crime não podia ser condenado por três crimes de injúria, revestindo estes natureza particular, não obstante, no presente caso, a ofendida se ter constituído assistente e deduzido acusação, por adesão à acusação pública.
Considera o recorrente que, nesta situação, o Ministério Público carece de legitimidade para a prossecução do procedimento criminal, pelo que, o Tribunal a quo devia ter-se quedado pela absolvição do arguido da prática do crime de violência doméstica.
O Ministério Público considera não assistir razão ao recorrente, porquanto, no caso concreto, a ofendida apresentou denúncia pelos factos em questão, daí se extraindo a sua vontade de procedimento criminal contra o arguido, a acusação pública contemplava esses factos, bem assim, como a acusação deduzida pela assistente (por via da remissão para aqueloutra acusação), pelo que, nada mais lhe era exigível. Neste contexto, defende o Ministério Público, com apoio na jurisprudência que enuncia, inexistir qualquer ilegalidade na convolação do crime de violência doméstica, para três crimes de injúria e na subsequente condenação do arguido por estes crimes.
Vejamos:
Está em causa a questão de saber, se pode, ou não, haver lugar à prossecução da ação penal, pelo crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do CP, tratando-se este de um crime particular, cujo procedimento criminal depende de queixa e de acusação particular (cf. artigo 188º, n.º 1, do CP), quando o arguido vinha acusado pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do CP, sendo este um crime público.
Como é sabido, esta questão não tem merecido, por parte da jurisprudência, resposta unânime.
Assim:
Enquanto uns defendem, que nessa situação, havendo a “degradação” do crime de violência doméstica, em outro(s) crime(s), sendo que, no que ao presente caso importa, para crime de natureza particular, concretamente, crime de injúria, operada no momento da prolação da sentença, não existindo queixa do ofendido(a), não se tendo este(a) constituído assistente ou tendo-o feito, não havendo deduzido acusação particular, tal não determina a ilegitimidade do Ministério Público para a prossecução do processo, não podendo exigir-se ao(à) ofendido(a) a satisfação de condições de procedibilidade com as quais não poderia anteriormente contar, porque então inexistentes, o que frustraria as legítimas expetativas do(a) ofendido(a). E, só assim não será, quando o(a) ofendido(a) emita declaração no sentido de não pretender o prosseguimento do procedimento criminal[11].
Em sentido contrário, entendem outros, que, em tal situação, não existindo queixa do(a) ofendido(a) ou, no caso de existir, não tendo aquele(a) se constituído assistente, nem deduzido acusação, sequer por adesão à acusação pública, o Ministério Público carece ou, melhor dizendo, perde legitimidade para a prossecução do procedimento criminal, pelo que, não pode o arguido ser condenado por crime de natureza particular que os factos provados por si praticados, seria suscetível de integrar[12].
Já na situação em que haja manifestação por parte do(a) ofendido(a) da vontade de procedimento criminal contra o arguido(a), revelada por qualquer forma, tendo aquele(a) se constituído assistente nos autos e deduzido acusação, ainda que por mera adesão à acusação do MP, nos termos do disposto no artigo 284º do CPP, não existe qualquer impedimento legal à convolação do crime de violência doméstica imputado na acusação para o crime de injúria e subsequente condenação do arguido por este último crime.
Acompanhamos esta última orientação, a qual foi acolhida no Acórdão da RG de 21/03/2022[13], merecendo-nos concordância o que aí se refere, transcrevendo-se, por isso, os segmentos do respetivo sumário, com pertinência para o caso que nos ocupa:
«I - Encontrando-se o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, a absolvição pela prática desse ilícito criminal não impede a sua condenação pelo cometimento de crime de injúria desde que se verifiquem determinados pressupostos processuais e, obviamente, sobejem provados da factualidade imputada os factos que permitem, entre o mais, o preenchimento da respetiva tipicidade objetiva e subjetiva.
II - Tendo a acusação sido introduzida em juízo por quem dispunha de legitimidade para o efeito, ou seja, o Ministério Público, atenta a natureza pública do crime de violência doméstica, é de considerar que a ofendida que adira a essa acusação manifesta, pelo meio processual próprio, a sua vontade de perseguição criminal e punição do autor dos factos descritos no libelo acusatório, logo, por todos os factos, incluindo, dessarte, face ao caráter unificador de vários tipos de comportamentos intrínseco à tipicidade objetiva do crime de violência doméstica, factualidade suscetível de integrar autonomamente o crime de injúria.
III - A pessoa ofendida não tinha de apresentar queixa face à subsunção jurídica dos factos denunciados operada pelo titular do inquérito e, logicamente, não podia deduzir acusação particular pelo que nada mais lhe seria exigível processualmente. Nesses casos, inexiste qualquer ilegalidade na convolação do crime de violência doméstica imputado na acusação para o crime de injúria e subsequente condenação do arguido por este crime, ainda que não deduzida nos autos acusação particular.
(…).»
Revertendo ao caso em apreço, a ofendida A denunciou, perante a GNR, os factos reportados aos episódios datados de 25/10/2022, 23/12/2022 e 03/02/2023 – que foram descritos na acusação pública como integrando o crime de violência doméstica e que, na sentença agora posta em crise, sendo decretada a absolvição do arguido da prática daquele crime, foram jurídico-penalmente enquadrados, como integrando três crimes de injúria – (cf. fls. 61-62, 83 e 96-97), daí se extraindo a sua vontade de procedimento criminal contra o arguido, veio a constituir-se como assistente (cf. fls. 313) e deduziu acusação contra o arguido, por adesão à acusação pública, nos termos previstos no artigo 284º, n.º 2, al. a), do CPP (cf. fls. 302 a 308), nada mais sendo processualmente exigível à ofendida que fizesse.
Neste contexto e atento o entendimento jurisprudencial perfilhado, forçoso será concluir não existir qualquer impedimento legal ou falta de verificação de quaisquer pressupostos obstativos da prossecução do procedimento criminal, designadamente, por falta de legitimidade do Ministério Público, em virtude da convolação do crime de violência doméstica por que o arguido foi acusado para três crimes de injúria e à subsequente condenação do arguido por estes crimes, desde que, obviamente, se mostrem preenchidos os respetivos elementos objetivos e subjetivos, o que infra será objeto de apreciação.
Improcede, assim, também este fundamento do recurso.

2.3.5. Do erro de subsunção jurídica dos factos provados, reportados ao episódio de 23/12/2022
Alega o arguido/recorrente que as expressões proferidas em 23/12/2022, não têm dignidade penal, não preenchendo a tipicidade objetiva do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do CP, por cujo cometimento foi condenado em 1.ª instância, tratando-se de expressões menos agradáveis, mas que se movem, ainda, na aceitável liberdade de expressão, para mais tendo em conta a dinâmica do casal e as circunstâncias em que foram proferidas. Pugna, por isso, o recorrente pela sua absolvição da prática desse crime.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de se mostrarem preenchidos os elementos típicos do aludido crime de injúria, pugnado pela manutenção da condenação do arguido, nos termos decididos na sentença recorrida.
Apreciando:
Por forma a evitar repetições e merecendo-nos concordância as considerações jurídicas tecidas na sentença recorrida, acerca do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do CP, dão-se as mesmas aqui por reproduzidas.
Reiteram-se, todavia, os seguintes aspetos:
Tal como decorre do disposto no artigo 181º, n.º 1, do Código Penal, para o preenchimento do tipo objetivo do crime de injúria exige-se a imputação a outrem, mesmo sob a forma de suspeita, de factos que sejam ofensivos da honra ou consideração do visado ou que o agente dirija ao visado, palavras cujo significado tenha essa carga ofensiva.
Sendo múltiplas as conceções e distinções que vem sendo traçadas pela doutrina, a propósito da honra e da consideração, ainda, assim, de uma forma, mais ou menos, consensual, vem sendo considerado que a honra constitui o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, como sejam o carácter, a lealdade, a probidade, a retidão, isto é a dignidade subjetiva, o património pessoal e interno de cada um; e a consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, que constituem a dignidade objetiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma, a opinião pública[14].
Constitui entendimento consolidado na jurisprudência o de que para aquilatar se certa expressão, imputação de factos ou juízo de valor, tem dignidade penal, em termos de integrar o crime de injúria, há que tomar em consideração o contexto em que o agente atuou, as razões que o levaram a agir e a maior ou menor adequação social do seu comportamento[15].
Dito de outro modo, para se aferir do preenchimento da tipicidade objetiva do crime de injúria não nos poderemos «limitar à valoração isolada e objetiva das expressões proferidas, exigindo-se que as mesmas sejam apreciadas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas, tendo ainda em conta as realidades relacionadas com o contexto sociocultural e a maior ou menor adequação social do comportamento[16].».
Como referem Simas Santos e Leal-Henriques[17] «No crime em análise não se protege, pois, a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas.
Uma das características da injúria é a sua relatividade, o que quer dizer que o caráter injurioso de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.
Daí que só em cada caso concreto se possa afirmar se há ou não comportamento delituoso».
Do acabado de expor, decorre que determinada expressão, à luz dos padrões médios de valoração social, poderá ou não ser idónea a atingir a honra ou a consideração da pessoa a quem foi dirigida, dependendo do contexto e circunstancialismo em que foi proferida pelo agente.
Neste quadro, no caso vertente, salvo o devido respeito por entendimento contrário, defendido pelo recorrente, merece-nos concordância a posição adotada pelo Tribunal a quo, ao considerar serem as expressões constantes das mensagens que o arguido enviou à ofendida/assistente, através do “whatsapp”, no dia 23/12/2022, descritas no ponto 11, dos factos provados, referindo-lhe que “conversa pelo cu” e “não prestava”, nas concretas circunstâncias e contexto em que o foram, revelam-se, de forma objetiva, idóneas a lesar a honra e consideração da assistente, nos termos sobreditos.
Efetivamente, conforme se refere na sentença recorrida, ao proferir as expressões em apreço, o arguido exprimiu um juízo negativo sobre a assistente, querendo significar que a mesma não prestava para nada, que “falava pelo cu”. Estas expressões contêm um nítido teor e carga pejorativa, encerrando um significado que vai muito além da mera grosseria, simples indelicadeza ou falta de educação.
Em suma, as enunciadas expressões, endereçadas pelo arguido à assistente, sua ex-mulher e mãe de um filho seu, no contexto em que o foram, consubstanciam uma forma adequada e apta a insultar e ofender na sua honra e consideração a assistente, integrando a tipicidade objetiva do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal.

2.3.6. Aqui chegados e retomando a apreciação da questão abordada no item 2.3.1., importa aquilatar se a matéria factual provada é bastante para que se possa concluir pelo preenchimento do tipo subjetivo dos três crimes de injúria p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do CP., por que o arguido foi condenado na sentença recorrida, mais concretamente, do elemento volitivo do dolo, que o recorrente alega estar em falta, o que já se verificava na acusação deduzida pelo Ministério Pública e à qual a assistente aderiu.
Vejamos, então:
Atualmente é pacífico que, para o preenchimento do tipo subjetivo do crime de injúria, não é exigido o chamado dolo específico ou «elemento especial do tipo que se traduzisse no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração»[18] (animus injuriandi). Bastará o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades, previstas no artigo 14º do CP (dolo direto, necessário e eventual).
Constitui entendimento consolidado, na jurisprudência e na doutrina, que o dolo é constituído por um elemento intelectual ou cognitivo (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto que preenche um tipo objetivo de ilícito) e por um elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico). A divergência que existe é sobre se os elementos reveladores da consciência ética e da atitude de indiferença do agente pelos valores tutelados pela lei criminal, fazem parte do dolo ou se antes integram um elemento autónomo, reportado à consciência da ilicitude, enquanto elemento da culpa, não cabendo aqui tomar posição em tal querela, posto que, a questão, nesta vertente, não é suscitada.
Sustenta o recorrente ser a acusação do Ministério Público, à qual a assistente aderiu, omissa na descrição do elemento volitivo do dolo, omissão essa também verificada na sentença recorrida e não podendo esta ser suprida, na fase de julgamento, em conformidade com a jurisprudência uniformizada, no AUJ n.º 1/2015, tal conduziria a que o arguido não pudesse ser condenado pela prática de qualquer dos crimes de injúria, por não estar preenchido o respetivo tipo subjetivo.
O Ministério Público, secundado as considerações expendidas na sentença recorrida, para afirmar que a factualidade descrita na acusação e dada como provada na sentença sob recurso, é suficiente para preencher o elemento volitivo do dolo, pugna pela manutenção da condenação do arguido/recorrente, decidida na 1.ª instância.
Salvo o devido respeito por entendimento contrário, consideramos que neste ponto a razão está do lado do recorrente.
Explicitando:
Na acusação pública – a que a assistente aderiu – é alegado:
- No artigo 21º: «O arguido agiu da forma descrita supra, bem sabendo que atingia a saúde da ofendida, sua ex-cônjuge, A, dirigindo-lhe expressões humilhantes e atemorizadoras, debilitando-a psicologicamente, levando-a a recear pela sua vida e integridade física, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando-a no seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua dignidade humana, honra e consideração e colocando em causa a sua paz e sossego.»
- No artigo 22º: «O Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.»
Na sentença recorrida e no respeitante aos elementos subjetivos do tipo, foram dados como provados os seguintes factos:
- No ponto 14: «O arguido agiu da forma descrita supra, bem sabendo que dirigia expressões humilhantes a sua ex-cônjuge, ofendendo-a na sua honra e consideração.
- No ponto 15: «O Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.»
Considerou o Tribunal a quo estar preenchido o tipo subjetivo do crime de injúria, nomeadamente o elemento volitivo do dolo, asserção que fundamentou do seguinte modo:
«(…) volvendo ao elenco fáctico consolidado, afere-se que o mesmo – na parte em que se sedimentou a factualidade alusiva ao elemento subjectivo, agora em menor proporção do que a que surgia assinalada na acusação por via da não demonstração de parte das condutas que aí surgiam imputadas ao arguido – contempla o elemento intelectual e o elemento volitivo do dolo. Mais concretamente, constatando-se que ali se mostra consignado que o arguido sabia que “dirigia expressões humilhantes à sua ex-cônjuge, A, ofendendo-a na sua honra e consideração”, o que corresponde à afirmação fáctica do elemento cognitivo do dolo, sendo que também ali se afere por inscrita a consciência da ilicitude na medida em que resulta provado que “o arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas”, e, finalmente, sendo o arguido conhecedor dos elementos do tipo e da ilicitude da correspondente conduta que desenvolveu, menciona-se que, não obstante esse conhecimento, “agiu da forma descrita”, aqui se encontrando o elemento volitivo do dolo. Mais sinteticamente, o arguido pese embora tenha representado a sua conduta e sabendo do carácter proibido da mesma, agiu e, assim, quis realizá-la.» (sublinhado nosso).
Ressalvado o devido respeito, não podemos acolher o entendimento propugnado pelo Tribunal a quo.
Não existindo “fórmulas sacramentais” para descrever o dolo, nos elementos que o integram, é incontroverso que esses elementos carecem de ser factualmente alegados na acusação, não sendo admissível presumir-se a sua verificação, a partir da conduta objetiva desenvolvida pelo arguido.
A acusação tem, pois, que, explicitamente, descrever os factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja: o elemento intelectual (conhecimento/representação pelo agente de todos os elementos descritivos e normativos que integram o facto ilícito) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto ilícito), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade (intenção direta de praticar o facto – dolo direto –; previsão do facto como consequência necessária da conduta – dolo necessário –; previsão da realização do facto como consequência possível da conduta e aceitação da sua ocorrência – dolo eventual -).
A falta de qualquer destes elementos não pode ser colmatada em julgamento, em conformidade com a jurisprudência uniformizada no referenciado AUJ n.º 1/2015, do STJ, no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do CPP.»
Na fundamentação do mencionado AUJ enfatiza-se que: «… a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa (…), englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de caráter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação do evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito» (sublinhado nosso).
No caso vertente a acusação pública – a que a assistente aderiu –, contendo a descrição factual do elemento cognitivo do dolo e da consciência da ilicitude (também designada por certos autores, de dolo de culpa ou dolo do tipo de culpa), é omissa na narração factual integrante do elemento volitivo do dolo (usualmente descrito mediante a fórmula “agiu/atuou de forma voluntária/ deliberada”), com o significado de que o arguido quis a realização do facto.
Concluiu o Tribunal a quo que a descrição do elemento volitivo do dolo está contida no segmento «agiu da forma descrita», posto que, «sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.»
Ora, como acima referimos, os elementos do dolo, designadamente, o elemento volitivo, não pode ser inferido ou presumido, não se estando aqui perante uma questão de prova[19] e tendo-se presente, como faz notar o recorrente, que «uma coisa é a ação, propriamente dita; outra coisa, adicional, será a vontade de ação», não sendo esta última alegada na acusação e, não podendo ser, como não foi, essa falta ser integrada em julgamento, verificando-se, por isso também, na sentença recorrida, há que concluir não estar preenchido o tipo subjetivo do crime de injúria, em todos os seus elementos constitutivos e, concretamente, no referente ao elemento volitivo dolo.
Por conseguinte, deve ser revogada a sentença recorrida, na parte em que decidiu condenar o arguido pela prática de três crimes de injúria.
O recurso merece, pois, provimento, na parte penal, com a consequente absolvição do arguido, da prática dos três crimes de injúria, por que foi condenado na 1.ª instância.

2.3.7. Da repercussão da decisão absolutória proferida no pedido cível

Em face da decisão ora tomada, de absolvição do arguido dos três crimes de injúria, por que vinha condenado em 1.ª instância e atento o disposto no artigo 403º, n.º 3, do CPP, importa apreciar se e em que termos essa decisão absolutória se repercute sobre a indemnização que foi arbitrada, pelo tribunal recorrido, à assistente/demandante.
Vejamos:
De harmonia com o disposto no artigo 377º, n.º 1, do CPP, a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado.
A obrigação de indemnizar, neste âmbito, pressupõe que estejam verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, previstos no artigo 483º do Código Civil, ex vi do disposto no artigo 129º do Código Penal, quais sejam:
a) o facto/ato voluntário do agente;
b) a ilicitude;
c) a culpa;
d) o dano; e
e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Atentemos nos três primeiros elementos:
O facto voluntário, terá de traduzir-se numa ação ou omissão, dominada ou dominável pela vontade do agente.
Conforme refere Luís Manuel Teles Menezes Leitão[20] «Não se exige, porém, que o comportamento do agente seja intencional (…), bastando que exista uma conduta que lhe possa ser imputada em virtude de estar sob o controle da sua vontade.»
A ilicitude do facto, emerge da violação de um direito de outrem (direitos subjetivos) ou a violação de um preceito de lei tendente à proteção de interesses alheios.
No artigo 70º do Código Civil está consagrada a tutela jurídica da personalidade física e moral, contendo o seu n.º 2 a expressa previsão da sua proteção pela responsabilidade civil.
E no artigo 484º do Código Civil estabelece-se a proteção específica de aspetos particulares da personalidade moral, preceituando-se que «quem afirmar ou difundir facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa singular ou colectiva, responde pelos danos causados».
A culpa consiste na imputação do facto ao agente, em termos de sobre este recair um juízo de censura pela sua prática. A culpa exprime, assim, um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente.
Nas palavras de Luís Menezes Leitão[21] «Tradicionalmente, a culpa era definida em sentido psicológico como o nexo de imputação do acto ao agente, que se considera existir sempre que o acto resultasse da sua vontade, ou seja, lhe fosse psicologicamente atribuível. Essa concepção tem vindo a ser substituída por uma definição de culpa em sentido normativo como um juízo de censura ao comportamento do agente.
A culpa pode ser assim definida como o juízo de censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente. Deve, por isso, ser entendida em sentido normativo, como a omissão da diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe. Nestes termos. O juízo de culpa representa um desvalor atribuído pela ordem jurídica ao facto voluntário do agente, que é visto como axiologicamente reprovável.»
A culpa pode revestir a forma de dolo ou de negligência, tal como decorre do artigo 483º do C. Civil ao fazer referência ao “dolo e mera culpa”.
Neste quadro e volvendo ao caso dos autos, afigura-se-nos que os factos ilícitos praticados pelo arguido/demandando, dirigindo à assistente/demandante as expressões que resultaram apuradas, ofensivas da honra e consideração desta e situando-nos no âmbito da responsabilidade civil, não podem deixar de ser considerados como factos voluntários, tendo em conta a definição supra enunciada.
No referente ao requisito da culpa, atentando-se na definição supra exposta e confrontando os factos que resultaram provados, concluímos pela sua verificação.
No âmbito do direito civil e, concretamente, da responsabilidade civil por factos ilícitos, a circunstância de não constar da matéria fatual provada o elemento volitivo do dolo, não têm as consequências que essa omissão acarreta no direito penal, nos termos sobreditos, bastando para que esteja demonstrada a culpa que se prove, como se provou, ter o demandado atuado ciente de que a expressões que dirigiu à demandante a ofendiam na sua honra e consideração.
Assim, além da conduta do demandado ser censurável, resulta demonstrado que o demandado conhecia o desvalor do seu comportamento e que o mesmo lhe é imputável.
Encontra-se, assim, preenchido o requisito respeitante à culpa, na modalidade de dolo, necessário para que o demandado possa/deva ser condenado a indemnizar a demandante.
Por conseguinte e estando reunidos os demais pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, nos termos explicitados na sentença recorrida, concluímos que o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante se releva fundado e, nessa conformidade, nos termos do disposto no artigo 377º, n.º 1, do CPP, mantém-se a condenação do arguido/demandado, no pagamento à assistente/demandante da indemnização fixada na sentença recorrida, acrescida de juros, nos exatos termos aí decididos.

*
O recurso é, assim, parcialmente procedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido/demandado D e, em consequência:
a) Revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido pelo cometimento, de três crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal, absolvendo-o da prática desses crimes;
b) No mais, confirmar a sentença recorrida.
Sem tributação, dado que foi dado parcial provimento ao recurso (cf. artigo 513º, n.º 1, do CPP, a contrario sensu).
Notifique.

Évora, 21 de maio de 2024
Fátima Bernardes
Beatriz Marques Borges
Filipa Costa Lourenço
__________________________________________________
[1] Proferido no proc. n.º 373/15.0JACBR.C1, in www.dgsi.pt.
[2] Publicado no Diário da República, I Série A, de 27/01/2015.
[3] In Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª Edição, Almedina, páginas 1083 e 1084.
[4] Publicado in Diário da República n.º 38/2013, Série I, de 10/07/2013.
[5] Neste sentido vide, entre outros, Ac. da RP de 22/6/2022, proc. n.º 134/17.2GAPFR.P1, in www.dgsi.pt.
[6] Proferido no proc. n.º 183/20.3GBVNG.P1, in www.dgsi.pt.
[7] Cf., por todos, Ac. do STJ de 16/11/2022, proc. n.º 218/21.2GBAMT.P1.S1; Ac. desta RE de 09/05/2023, proc. n.º 307/21.3PAENT.E1, Ac. da RG de 15/09/2017, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[8] Cf. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 65.
[9] Cf. Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, págs. 523.
[10] Nosso sublinhado.
[11] Neste sentido, vide, entre outros, Acórdãos da RE de 15/12/2016, proc. n.º 33/14.0GBADV.E1 e de 21/09/2021, proc. n.º 329/20.1T9ODM.E1, Ac. da RG de 25/09/2017, proc. n.º 573/16.6PBVCT.G1, Acórdãos da RC de 05/02/2021, proc. n.º 71/16.8GGCBR.C1 e de 13/12/2023, proc. n.º 271/21.9GDCBR.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido, vide, entre outros, Acórdãos da RE de 15/12/2016, proc. n.º 33/14.0GBADV.E1 e de 21/09/2021, proc. n.º 329/20.1T9ODM.E1, Ac. da RG de 25/09/2017, proc. n.º 573/16.6PBVCT.G1, Ac. da RC de 05/02/2021, proc. n.º 71/16.8GGCBR.C1 e Acórdãos da RP de 04/03/2020, proc. n.º 351/18.8PBBRG.P1, de 13/01/2021, proc. n.º 799/18.8GBPNF.P1, de 10/11/2021, proc. n.º 263/20.5GBOVR.P1 e de 28/09/2022, proc. n.º 1019/20.0T9ESP.P1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[13] Proferido no proc. n.º 704/20.1GAVNF.G1, in www.dgsi.pt.
[14] Cf., por todos, na doutrina, Simas Santos e Leal-Henrique, in Código Penal Anotado, vol. III, Rei dos Livros, 4ª edição, págs. 604 e 605; José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 602 a 607, e, na jurisprudência, Ac. da RE de 10/05/2016, proc. 163/13.5GBELV.E1, in www.dgsi.pt e Ac. da RL de 19/01/2016, in CJ, 2016, II, págs. 114 a 116.
[15] Neste sentido, vide, entre muitos outros, Acórdãos da RE de 10/05/2016, proc. 163/13.5GBELV.E1 e de 14/03/2023, proc. 18/22.2GCCUB.E1, da RC de 10/07/2014, proc. 1205/13.0GBAGD.C1 e da RG de 09/11/2020, proc. 349/17.3GCVNF.G1 , in www.dgsi.pt.
[16] Cf. Ac. da RG de 30/06/2014, processo 377/13.8GCBRG.G1, in www.dgsi.pt.
[17] In ob. cit., pág. 623.
[18] Cf. Ac. da RE de 24/02/2015, proc. 1548/13.2TAFAR.E1, in www.dgsi.pt.
[19] Nesse âmbito e, na ausência de confissão, estando em causa factos que pertencem ao foro íntimo do indivíduo, não diretamente percecionáveis por terceiros, a sua demonstração terá de fazer-se a partir dos factos objetivos provados e com recurso a presunções naturais ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum.
[20] In Direito das Obrigações, Vol. I, 16º Edição, 2023, Almedina, pág. 281.
[21] In ob. cit., pág. 307.