Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1263/16.5GBABF.E2
Relator: ANA BACELAR
Descritores: CULTIVO DE CANÁBIS
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TOXICODEPENDENTE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – O Arguido cultivou e detinha em seu poder 9 455,994 gramas de folhas/sumidades de canábis, suscetíveis de serem divididos em 5011 (cinco mil e onze) doses. Neste contexto, é absolutamente irrazoável idear que o Arguido produziu para seu consumo exclusivo a quantidade de droga acabada de mencionar. Desde logo, porque o tempo que o Arguido demoraria a consumir tal quantidade de canábis retirar-lhe-ia qualquer propriedade estupefaciente.
II – Não se vislumbra contradição quando se considera como não provado que o Arguido seja consumidor e não provado, também, que destinasse a droga que cultivou e detinha em seu poder a venda a terceiros. Porque não se apurou qual o destino que o Arguido pretendia dar à substância estupefaciente que cultivou e detinha em seu poder. Que poderia ser consumo próprio, venda ou cedência a terceiros. Ou qualquer outro – a destruição, o lixo, a mera contemplação…
III – Não estamos, pois, perante uma situação ocasional, um comportamento impensado, mas sim perante uma atividade projetada e com envergadura, que, desde logo, arreda a considerável diminuição da ilicitude da conduta. E por assim ser, a conduta do Arguido integra a previsão do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
IV – Concordamos que o Arguido revela alguma falta de autocensura. Ainda assim, tendo presente as circunstâncias em que o crime ocorreu, o carácter primário da delinquência, e a inserção social e familiar de que dispõe, não podemos afirmar que estamos perante alguém com propensão para o desrespeito das regras vigentes. A que acresce o “transtorno” que este processo necessariamente causou na vida do Arguido. Que acreditamos não será esquecido a breve trecho. O que nos leva a concluir que o Arguido dispõe de envolvência que permite “apostar” que se vai afastar da prática de outros crimes.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 1263/16.5GBABF do Juízo Local Criminal de Albufeira [Juiz 2] da Comarca de Faro, o Ministério Público, fazendo uso do disposto no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal, acusou:
CAR, divorciado, (…)
pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à sua Tabela I-C do mesmo diploma legal.

O Arguido apresentou contestação escrita, invocando em sua defesa o que resultar do julgamento.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada a 10 de janeiro de 2019, foi decidido:
«i) Condenar o arguido CAR pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico na pena de quatro anos e três meses de prisão.
ii) Declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos à ordem destes autos nos precisos termos vertidos supra na fundamentação de direito da presente sentença, sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa-fé a que alude o artigo 36º-A do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
iii) Mais se condena o arguido no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta

Na sequência de recurso interposto pelo Arguido, este Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 18 de junho de 2019, assinalando erro notório na apreciação da prova, ordenou o reenvio do processo para novo julgamento, relativo à sua totalidade.

Devolvido o processo à 1.ª Instância, em 6 de janeiro de 2022 foi proferida e depositada nova sentença, onde se decidiu:
«a) Condenar o arguido CAR pela prática de um crime de tráfico, p. e p. pelos art.ºs 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, em conjugação com o disposto na Tabela I-C anexa ao referido diploma, na pena de CINCO ANOS DE PRISÃO EFETIVA;
b) Declarar perdida a favor do Estado a substância estupefaciente apreendida à ordem dos presentes autos e sua posterior destruição (art.ºs 35.º, n.º 2 e 39.º, n.º 3 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro);
c) Determinar a devolução ao arguido da quantia monetária e dos telemóveis apreendidos nos autos;
d) Declarar perdidos a favor de Estado os demais objetos apreendidos nos autos;
e) Condenar o arguido CAR no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s – art.º 513.º do CPP e art. 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais (RCP).»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1º- O recorrente não se compadece com os factos dados como provados pelo Mmo. Juiz a quo na sentença recorrida. Antes, considera provados, mediante o decurso da prova realizada em sede de audiência e julgamento, das declarações do arguido, da confissão do arguido, da inquirição das testemunhas e da prova junta aos autos.
2º- Para tanto, o Recorrente, identifica os factos que, em seu entendimento, deveriam ter sido dados como provados, sendo eles:
a) Que o arguido era consumidor de canábis e que iniciou o seu consumo aos 40 anos como forma de aliviar as dores provocadas por uma brucelose, que quase o matou e ditou vários internamentos, por indicação de um médico.
b) Que foi a sua experiência, de mais de duas décadas, na agricultura, em terreno de seus pais, que veio a adquirir aos restantes irmãos e onde, entre a produção de vinho e azeite, desenvolveu uma estufa de germinação de forragem hidropónica. Conhecimento que lhe proporcionou o know-how para montar a estufa, a que se reportam os autos.
c) Que o facto de não se relacionar com vendedores, nem pessoas do meio, espoletou a montagem de estufa, como forma de produzir para seu consumo.
d)A matéria constante do Relatório Social, pedido oficiosamente e da matéria aí reportada, para cujo teor integral se remete.
e) Que o arguido padece de um carcinoma da garganta, ao qual foi operado no Hospital de Santa Maria e para o qual iniciou tratamentos oncológicos em 2019, doença oncológica crónica de que sofre e cuja documentação médica comprovativa, foi agregada aos autos.
f) Que nas diversas vigilâncias realizadas ao arguido, posteriormente, aos dias dos factos, em nenhuma, foi detetada qualquer movimentação suspeita.
g) Que o arguido não era pessoa referenciada, como ligada à venda de produto estupefaciente, tal como referido por todos os militares que depuseram em julgamento e como resulta da prova gravada.
3º- O Recorrente assinala a contradição flagrante que ressalta à vista, na medida em que é consubstanciado como facto provado, que no interior da sua habitação e não do anexo onde se situava a estufa, foram encontrados, para o que ora interessa, entre outros:
o uma caixa em madeira com humidificador contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid,);
o Uma caixa redonda em metal contendo no seu interior um moinho com resíduos de produto suspeito de ser Canábis e um saco contendo cabeças de produto suspeito de um saco em plástico contendo no seu interior diversos saquinhos utilizados para acondicionar substâncias estupefacientes;
o o Num móvel junto à entrada para a casa de banho: uma caixa em madeira com os dizeres “Marzadro” contendo no seu interior diversas cabeças de produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
4º-Por um lado, a sentença reconhece, por via da busca realizada, que o Recorrente detinha, no interior da residência (não do anexo onde funcionava a estufa) cabeças acondicionadas e moinho com vestígios de canábis e nem isso serve à conclusão do julgador, como prova que era consumidor.
5º- Discorda que, pelo facto de não terem sido encontradas “mortalhitas”, nem ”míseros cigarritos de canábis”, não houve entendimento por parte do Mmo. Juiz a quo, apesar até da confissão do Recorrente, que o mesmo fosse consumidor.
6º- Nem a circunstância dos seus filhos estarem em casa do Recorrente, a título de primeiro fim-de-semana, após divórcio, serviu de referência, ao Mmo. Juiz que o Recorrente tivesse de acautelar pela ausência de vestígios evidentes.
7º- Nem o facto de nada, rigorosamente, nada de incriminatório ter sido retirado da perícia feita aos telemóveis, aliado ao facto dos militares da GNR terem deposto, em uníssono, que o arguido não era pessoa referenciada como ligado ao tráfico, serviu para concluir que o arguido era, na verdade, consumidor.
8º-Não pode o Recorrente concordar, que se faça uma perícia oficiosa aos telemóveis e que, depois de uma inquestionável ausência de indícios incriminatórios de chamadas efetuadas e recebidas, mensagens enviadas e recebidas, ou registos de chamadas, se coloque nos factos dados como não provados, a título de ausência de provas.
9º- Considerando o Recorrente que deverão transitar para os dados como provados, constando que nada de incriminatório detinham todos os telemóveis peritados.
10º-O que reconduz a uma contradição plasmada na sentença. O Recorrente não era consumidor, como decreta a sentença, mas também não se provou que destinava o produto à venda, tanto assim que foi ordenada a restituição do dinheiro apreendido, cerca de 600,00€.
11º- O Recorrente não se conforma com a omissão de todos estes factos, nos factos provados.
“Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
i. O arguido tencionava vender o produto estupefaciente que detinha a eventuais pessoas interessadas que o procurassem para tal fim.
ii. o dinheiro apreendido ao arguido era proveniente da atividade de tráfico de estupefacientes.
iii. Os telemóveis apreendidos ao arguido eram utilizados na atividade de tráfico de estupefacientes.”
12º-No que respeita à sua condição de consumidor, ditam as regras da experiência, que nas concretas situações, como a dos autos, que são as cabeças que se consomem (porque o arguido não tinha laboratório, nem quaisquer equipamentos para extrair THC das folhas e produzir haxixe), além de um moinho com o tamanho de um punho, e que as ditas cabeças estavam no interior da residência e que o próprio moinho continha vestígios de canábis.
13º- Pugnando, por estas e demais considerações extraídas dos autos, de basilar e superior justiça, a remessa de tais factualidades, para o acervo de factos dados como provados.
14º-A verdade dos factos, a verdade dos autos, dos factos provados, resulta que o Arguido detinha plantas de canábis, por si plantadas, nada mais resultando provado, o que, expressamente, consta da douta fundamentação da Sentença ora em recurso.
15º - A factualidade provada integra a prática do crime de consumo do artigo 40.º-2 do Dec-Lei 15/93, punível com Multa.
16º - Qualquer probabilidade, qualquer possibilidade improvada, não sendo facto, não pode ser considerada para configurar a prática de crime, improvado, por ausência de factos, sem o que a Sentença estará ferida de nulidade.
17º - Não havendo Testemunhas, e prova, de cedências, em resultado da produção da prova, resta a detenção, para o provado consumo exclusivo.
18º - A quantidade e qualidade de estupefaciente em causa, só releva para a opção da Contraordenação, ou do crime do artigo 40.º-2 do Dec-Lei 15/93, e se assim não for, do artº 25.º, não podendo o douto Tribunal ir mais além, sem que ultrapasse os limites da livre apreciação da prova.
19º- A circunstância de, em causa, estar uma designada “droga leve”, por si só, justifica a atenuação especial da pena, no caso, da Multa, mais justificada, ainda, quando o teor de “THC” é diminuto, e quase irrelevante.
20º - Na escolha da medida concreta da pena, deverá o douto tribunal considerar as condições pessoais do Arguido, que, no caso presente, tudo justifica a atenuação especial, ou a substancial aproximação da pena concreta do limite mínimo abstrato.
21º - A prova resultante do Julgamento, e os factos considerados não provados, impedem que o Recorrente fosse condenado pelo crime, improvado, e por que deveria ter sido absolvido.
22º - Face à prova, levada à douta Sentença ora em Recurso, a aplicação de pena de prisão efetiva, violando o artigo 50.º do C.P., e demais regras de apreciação da prova e de aplicação de penas, não visa a reintegração do agente na sociedade, assim se mostrando violado o artigo 40.º do Código Penal.
23º - A consideração de possibilidades, ou probabilidades, que, com factos, se não confundem, para a punição, integra a violação dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, e dos artigos 127.º e 410.º do Código de Processo Penal.
24º - A aplicação em pena, efetiva, de um Arguido, inserido e sem antecedentes criminais, que, julgado, detinha “droga leve” de reduzido “THC” para seu exclusivo consumo, nada mais resultando provado, para além de violar as demais normas aplicáveis, e o Constitucional Princípio “in dubio pro reo”, viola o artigo 50.º do Código Penal, não valendo argumentos que não resultem da prova realizada em Julgamento.
Foi desatendido o tempo decorrido entre a prática dos factos e o presente, num decurso de tempo de praticamente seis anos, de uma conduta absolutamente conforme ao Direito e à inserção na sociedade e os efeitos que o medo, a angústia, a vergonha em si causaram.
Foi desatendida a doença oncológica crónica, que padece e que não pode ser obnubilada.
Fatores que deveriam ter militado, a esta distância e pelas razões invocadas, numa pena suspensa na sua execução.
25º- Devia, pois, o douto Tribunal “a quo”, ter julgado improcedente, por não provada, a douta Acusação, absolvendo o ora Recorrente, condenando-o, como autor do ilícito do artigo 40.º-2, em Multa, ou em pena suspensa na sua execução, por verificados os legais pressupostos, e, não o tendo feito, e condenando o ora Recorrente na pena de cinco anos de prisão, efetiva, perante a factualidade resultante da produção de prova, violou o Princípio Constitucional “in dubio pro reo, e o disposto nos artigos 21.º, 25.º e 40.º-2.º do Dec-Lei 15/93, 40.º-1, 71.º-2, 50.º-1 do Código Penal, e 127.º e 410.º-do Código de Processo Penal, pelo que, a não se determinar o reenvio do Processo, nos termos do disposto nos artigos 410.º e 426.º do Código de Processo Penal, se deverá revogar a douta Sentença de Fls, a substituir por outra que, julgando a douta Acusação parcialmente procedente, condene o ora Recorrente em pena de Multa ou, no limite, de prisão, pelo mínimo legal abstrato, se assim não for do entendimento, por prática do ilícito do artigo 25º. Não prescindindo, se não for esse o entendimento, que a pena concretamente aplicada seja suspensa na sua execução, assim merecendo integral provimento o presente Recurso.

Nestes termos,
e nos demais de direito que Vossas Excelências, doutamente suprirão, a não haver reenvio do Processo, para repetição do Julgamento, deverá a douta Sentença ora recorrida ser revogada e substituída por outra que, considerando a factualidade, e a prova produzida em Julgamento, condene o ora Recorrente em pena próxima do mínimo legal do crime do artigo 40º-2, ou, no limite, do artigo 25º do Dec-Lei 15/93, e nunca superior a 1 (um) ano de prisão, mas sempre suspensa na sua execução. Se assim não do douto entendimento, que a pena concretamente aplicada seja suspensa na sua execução.
Vªs Exªs decidirão como for de
JUSTIÇA !»

O recurso foi admitido.

Não houve resposta.
û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer [transcrição]:
«O arguido vem apresentar (de novo) recurso da proferida nos autos que condenou o arguido como autor do crime de tráfico de estupefacientes e na pena de cinco anos de prisão efetiva.
A sentença deu como provado o cultivo e detenção de elevado número de doses de “cannabis” com fundamento da análise pericial, busca efetuada e fatos admitidos pelo arguido.
Não obstante, a enumeração dos vícios da sentença elencados pelo recurso (com a sua improcedência ou não) e análise integral da sentença (matéria provada e não provada e fundamentação) e atendendo ainda ao fato de já ter existido uma pronúncia anterior deste tribunal da relação e considerando alguns dos princípios de direito que também não podem ser ignorados como os
- da economia processual e dos meios reais disponíveis para a justiça,
- do direito a um julgamento atempado (que aqui já se repetiu…) e ao princípio da mínima intervenção penal sobre a vida e a liberdade das pessoas isto sem ignorar também demais princípios essenciais e regras do direito penal ou processual penal, considero, após ponderação, pronunciar-me nos termos seguintes:
Não subsistem dúvidas do cultivo e posse do produto estupefaciente.
Não foi dado como provado na sentença nem tal resulta dos meios de prova que o arguido tivesse vendido qualquer produto a terceiros.
A questão que se coloca tem a ver antes com o destino do produto, ou seja se este era destinado à venda ou ao autoconsumo.
(Pois uma terceira hipótese se poderia ainda colocar teoricamente: seria destinada *a venda e ao autoconsumo? Mas esta hipótese nem sequer é colocada no processo, nem pela sentença nem pelo recurso).

Quanto a esta questão a sentença não dá resposta na matéria provada!
E é com base na matéria provada que se terá que subsumir os fatos ao direito.
E é quanto à matéria provada que a defesa discorda da sentença por entender que deveria constar como provado que o arguido é consumidor, às escondidas de todos e por motivos de saúde…
Ora, aqui vigora o princípio da livre apreciação das provas pelo julgador que não deu tal fato como provado e resulta da leitura da fundamentação que não acredita na versão do arguido e que nem as suas testemunhas lhe conhecem tal vício…
Questão diferente que se poderia levantar era se esse fato não deveria constar na sentença também da matéria não provada, pois que apenas se analisa na fundamentação…
Analisando o julgador, de novo de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, que não podia considerar como provado que o arguido era consumidor destinando produto ao seu consumo e daí, não o sancionar penalmente noutros termos.
Salvo o devido respeito, a sentença não será em termos formais uma peça processual meritória, sendo também escassa quanto ao percurso de vida e condições familiares, de saúde, conceito social do arguido para quem lê o relatório social.
Mas é percetível em termos de raciocínio e em termos jurídicos.
Assim e por tudo o que já dissemos, e atendendo e dando relevo à idade do arguido e ao fato do arguido ser primário, não terem sido identificadas vendas e atenta a natureza do produto consideramos que está preenchido o ilícito criminal tal como foi definido na sentença mas que a pena de prisão efetiva é excessiva.
Eis uma situação em que a prevenção geral é exigente, mas em que a lei penal antes de uma privação da liberdade deverá optar em nosso entender por uma pena cuja execução deverá ser suspensa sujeita a um regime de prova, por ser de efetuar um juízo de prognose positivo sobre o comportamento do arguido, e cujo regime de prova deverá passar por uma avaliação técnica de eventual adição e sujeição a tratamento em caso de existir.»

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]]

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões:
- da incorreta valoração da prova produzida em julgamento;
- da incorreta subsunção dos factos ao direito;
- da desadequação, por excesso, da pena imposta e do seu modo de cumprimento.
û
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. No dia 3 de julho de 2016, pelas 23h15, o arguido CAR detinha no interior da sua residência, sita no edifício (…) em (...) o seguinte:
- Na sala/Kitchenette:
o Em cima do frigorífico: uma caixa em madeira com humidificador contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
o Uma caixa redonda em metal contendo no seu interior um moinho com resíduos de produto suspeito de ser Canábis e um saco contendo cabeças de produto suspeito de ser Canábis (fls./sumid);
o Um telemóvel da marca e modelo “Samsung SM-G531F”
o No interior de um móvel branco: uma balança de precisão de marca e modelo “Diamond 500” e um saco em plástico contendo no seu interior diversos saquinhos utilizados para acondicionar substâncias estupefacientes;
o Em cima de um colchão que se encontrava no chão: um telemóvel da marca e modelo “Samsung SM-G355H/DS”;
o Num móvel junto à entrada para a casa de banho: uma caixa em madeira com os dizeres “Marzadro” contendo no seu interior diversas cabeças de produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
o A quantia monetária de €610,00, que, por ordens e instruções do arguido Pedro Carvalhal foi retirada do interior do imóvel acima identificado, por parte do filho menor de idade daquele, ART, nascido a 2 de julho de 2001, o qual foi intercetado por militares da G.N.R. na posse da aludida quantia monetária.
2. O arguido CAR, no dia 4 de julho de 2017, pelas 00h15, tinha ainda na sua posse, no interior de um anexo (de tipo «águas furtadas) unicamente por si utilizado, localizado no edifício (…) em (,,,) o seguinte:
a) Na sala: Em cima de uma mesa:
- Um tablet da marca e modelo “Denver TAD 10021”;
- Uma pendrive da marca “TakeMS”;
- Um telemóvel da marca e modelo “Samsung B5702”;
- Um telemóvel da marca e modelo “Samsung E1120”;
- Um telemóvel da marca “Blush”;
- Quatro cartões de estudante em nome de PED do “Colégio da Boavista”, sito em (…);
- Um par de luvas sem marca.
b) no hall:
- Uma balança de precisão sem marca;
- Uma tesoura com cabo vermelho;
- Quatro vasos pequenos de cor preta contendo terra e o caule de um pé de produto suspeito de ser Canábis;
- Quatro vasos grandes de cor preta contendo terra e o caule de um pé de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos com a indicação “Allianz Healthcare” contendo no seu interior terra e o caule de um pé de produto suspeito de ser Canábis;
- Dois contentores de transporte de medicamentos com a indicação “Dilofar”, contendo o primeiro no seu interior terra e o segundo terra e o caule de um pé de produto suspeito de ser Canábis;
- Sete frascos vazios de adubo para plantas;
- Dois sacos de asas de cor verde contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
- Um saco de plástico transparente com a indicação “Edgar António” contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
- Um saco de plástico com os dizeres “Sustrato del Sureste” contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
- Um saco de asas de cor verde contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
c) na casa de Banho:
- Um desumidificador da marca “Airforce” de cor branca;
- Cinco vasos pequenos contendo no seu interior terra e o caule de um pé de produto suspeito de ser Canábis;
- Dois vasos pequenos contendo no seu interior terra e o caule de um pé de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos com a indicação “Allianz Healthcare” contendo no seu interior terra e o caule de dois pés de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos com a indicação “Dilofar” contendo no seu interior terra e dezanove sacos contendo no seu interior sementes de produto suspeito de ser Canábis;
- Dois contentores de transporte de medicamentos com a indicação “UAR” contendo no seu interior terra;
- Um vaso de cor preta contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis;
- Uma rede metálica;
- Uma mangueira extensível de cor verde e cinzenta;
- Um temporizador da marca e modelo “GS TS-ED1”;
d) no quarto:
- Um ar condicionado portátil da marca e modelo “Electrónia TC-N9KRH”;
- Um pulverizador da marca “Florabest”;
- Um frasco de cor castanha da marca “Progrow” utilizado para fertilizar plantas;
- Uma colher de jardinagem de cor preta;
- Um borrifador;
- Um filtro/extrator de ar da marca ”Roalair filter”;
- Um ventilador da marca “Dospel”;
- Sete vasos pequenos de cor preta contendo terra e o caule de pé de produto suspeito de ser Canábis;
- Dois vasos pequenos de cor preta contendo terra;
- Um contentor de transporte de medicamentos com a indicação “OCP Portugal” contendo no seu interior terra, o caule de dois pés de produto suspeito de ser Canábis e seis sacos com sementes de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor amarelo, com a indicação “Dilofar”, com o número (…), contendo no seu interior terra e o caule de dois pés de produto suspeito de ser Canábis;
- Três contentores de transporte de medicamentos, de cor amarelo, com a indicação “UAR”, com o número (…), contendo no seu interior terra e o caule de dois pés de produto suspeito de ser Canábis, outro com o número (…) contendo no seu interior terra e o caule de dois pés de produto suspeito de ser Canábis e outro com o número (…), contendo no seu interior terra;
- Um saco do supermercado “Continente” contendo no seu interior várias cabeças de produto suspeito de ser Canábis;
- Um recipiente em plástico contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis;
- Um balde de plástico de cor vermelha contendo no seu interior cinco sacos transparentes que contendo no seu interior cabeças de produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.) e outro balde mais pequeno de cor transparente contendo no seu interior várias cabeças de produto suspeito de ser Canábis (fls./sumid);
e) no quarto (local onde se encontrava a estufa):
- Trinta e um vasos de cor preta contendo terra e em cada um deles, um pé de uma planta de produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.), com a medida entre 0,90 e 1,40 m;
- Três vasos de cor preta contendo terra e o caule de pés de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor amarelo, com a indicação “UAR”, com o número (…), contendo, no seu interior, terra e uma planta de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor amarelo, com a indicação “UAR”, com o número (…), contendo no seu interior terra e duas plantas de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor amarelo, com a indicação “UAR”, com o número (…), contendo no seu interior terra e duas plantas de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor amarelo, com a indicação “UAR”, com o número (…), contendo no seu interior terra e duas plantas de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor amarelo, com a indicação “(…)”, com o número (…), contendo no seu interior terra e duas plantas de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor verde, com a indicação “(…)”, com o número (…), contendo no seu interior terra e duas plantas de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor verde, com a indicação “)…)”, com o número (…), contendo no seu interior terra e duas plantas de produto suspeito de ser Canábis;
- Um contentor de transporte de medicamentos, de cor verde, com a indicação “…”, com o número …., contendo no seu interior terra e uma planta de produto suspeito de ser Canábis;
- Um saco em plástico, com os dizeres “sustratos del sureste” contendo no seu interior produto suspeito de ser Canábis (fls/sumid.);
- Um medidor de temperatura e humidade, de marca “HTC – 1”, de cor branca;
- Um ar condicionado portátil de marca “Ufesa”, modelo “Polar System”, número de série FD 8105 000358, cor branca e cinzenta e respetivo tubo em alumínio flexível;
- Um ventilador de marca “S&P”, com a referência BB 07369, com o respetivo tubo em alumínio flexível;
- Um balastro magnético de cor preta, modelo “DPM – 600 L/B”;
- Dois balastros magnéticos de cor branca, 600W;
- Um balastro magnético de cor branca, “marca ETI”, referência 3271C43053;
- Um balastro magnético de cor branca, referência 21 0303 15;
- Um temporizador de marca “ANTE” de cor branca;
- Uma mangueira de cor verde, com motor elétrico de cor preta;
- Um alicate de corte de marca “Prefix”, com cabo de cor verde e preta;
- Uma tesoura com o cabo de cor amarelo;
- Um serrote de jardinagem “HelpMate”, com o cabo de cor verde e preta;
- Seis lâmpadas fluorescentes, com bases em alumínio;
- Uma lâmpada fluorescente da marca “Agrolite”, com casquilho;
- Uma lâmpada fluorescente, da marca “Phitolite”, com base em lata;
- Duas lâmpadas fluorescentes.
3. Após análise científica ao produto suspeito de ser estupefaciente referido supra (com realce a negrito), conclui-se que o arguido tinha na sua posse as seguintes quantidades de produto estupefaciente:
- Folhas/sumidades de Canábis, com o peso líquido de 495,500 gramas, com um grau de pureza de 8,6% THC, suscetível de ser dividido em 852 doses;
- Folhas/sumidades de Canábis, com o peso líquido de 3633,600 gramas, com um grau de pureza de 1,8% THC, suscetível de ser dividido em 1308 doses;
- Folhas/sumidades de Canábis, com o peso líquido de 1,494 gramas, com um grau de pureza de 3,2%THC, inferior a uma dose;
- Folhas/sumidades de Canábis, com o peso líquido de 3734,900 gramas, com um grau de pureza de 2,2%THC, suscetível de ser dividido em 1643 doses;
- Folhas/sumidades de Canábis, com o peso líquido de 1590,500gramas, com um grau de pureza de 3,8%THC, suscetível de ser dividido em 1208 doses,
No total de 9455,994 gramas de folhas/sumidades de Canábis, suscetível de ser dividido em 5011 (cinco mil e onze doses).
4. No já referido dia 4 de julho de 2016, pelas 03h45, o arguido CAR tinha na sua posse, mais concretamente no interior da sua viatura automóvel da marca e modelo “(…)” de matrícula (…), o seguinte:
- Um telemóvel da marca e modelo “Microsoft RM-1031”;
- Uma caixa em cartão contendo no seu interior um telemóvel da marca e modelo “Nokia 6220”;
- Um telemóvel da marca e modelo “Nokia 6220”;
- Um carregador de telemóvel da marca “Nokia”; e,
- Um cabo de ligação USB.
5. O arguido CAR conhecia a natureza estupefaciente das substâncias que detinha e cultivava e, não obstante decidiu deter e cultivar tais substâncias.
6. O arguido agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a detenção e cultivo das aludidas substâncias estupefacientes é proibida e punida por lei.
7. Atualmente, o arguido trabalha como agricultor em propriedade agrícola, residindo sozinho em habitação, existente nessa propriedade, cedida pela entidade patronal;
8. Para além da cedência de habitação, com despesas incluídas, a entidade patronal do arguido entrega mensalmente ao arguido a quantia de € 400,00, a título de retribuição.
9. O arguido presta, ainda, colaboração a um médico veterinário, auferindo como retribuição, em média, a quantia de € 200,00 mensais.
10. O arguido tem um filho menor de idade que vive com a progenitora.
11. Em 2010, o arguido trabalhava no ramo da restauração.
12. Entre 2013 e, pelo menos, o dia 03 de julho de 2016, o arguido trabalhava numa agência imobiliária.
13. O arguido é considerado no seu meio social como pessoa trabalhadora e séria.
14. O arguido não tem antecedentes criminais.»

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
i. O arguido tencionava vender o produto estupefaciente que detinha a eventuais pessoas interessadas que o procurassem para tal fim.
ii. O dinheiro apreendido ao arguido era proveniente da atividade de tráfico de estupefacientes.
iii. Os telemóveis apreendidos ao arguido eram utilizados na atividade de tráfico de estupefacientes.

Não se provou qualquer outro facto que esteja em contradição lógica com a factualidade provada.»

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base na análise crítica e conjugada, ponderada com juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos meios de prova constantes dos autos e daqueles produzidos em julgamento.
Assim, e no que concerne aos objetos e produto suscetível de ser estupefaciente encontrados na posse do arguido (factos 1 e 2), este admitiu em julgamento que, aquando das buscas realizadas, estava na posse de todo aquele material, não colocando assim em causa, o que resulta dos autos de busca e apreensão de fls. 13, 38, 39, 41 a 49, 51 a 73.
Já no que respeita ao resultado da prova pericial realizada ao produto suscetível de ser produto estupefaciente, o Tribunal teve em consideração o relatório pericial de fls. 311 e 312; os esclarecimentos da Sra. Perita, prestados por escrito (fls. 713 e 714) e, oralmente, em sede de audiência de julgamento.
Assim, da análise da referida prova pericial, resulta o seguinte:
- O Laboratório de Polícia Científica (LPC) recebeu para análise os artigos referidos nos itens 1) a 8), descrito na primeira parte do relatório pericial (fls. 311) – (“Material Recebido para Exame”);
- Desses artigos, após ser descontada a pesagem referente às correspondentes embalagens, foi apurado o peso líquido de cada um;
- Depois, e realizados os competentes exames científicos, por referência a cada um dos itens identificados na primeira parte do relatório (1) a 8)), obteve-se:
i. a identificação do produto estupefaciente (“substância ativa presente”, conforme Tabela I-C, anexa ao DL nº 15/93, de 22.01);
ii. o grau de pureza (THC – princípio ativo); e
iii. as correspondentes doses médias individuais diárias com base no peso (aqui já só o peso líquido) e na variação do conteúdo médio de THC existente no produto estupefacientes, no caso Canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), tendo por referência que a concentração média de THC, no que a este tipo de estupefaciente diz respeito, é de 2%, conforme mapa anexo à Portaria 94/96, de 26.03.
Ou seja, e exemplificando, se um item de Canábis, na vertente de folhas e sumidades, com o peso de 2,5 gramas (peso referente a uma dose média individual, também conforme o dito mapa), apresentar uma concentração média de THC de 4%, tal equivalerá, não a uma dose, apesar do peso ser 2,5 gramas, mas a duas doses, uma vez que o THC é o dobro. Se a concentração média de THC for de 1%, o mesmo item, com o peso de 2,5 gramas, equivalerá, não a uma dose, mas a meia dose.
De referir que, na análise científica ao produto remetido ao LPC, para aferição das quantidades de produto, efetivamente, estupefaciente, não foi tido em conta:
- os caules das plantas;
- as raízes das plantas; e
- embalagens (conforme supra referido).
Assim, do item 2) do “Material Recebido Para Exame” – produto vegetal, concretizado em caules de plantas de Canábis, com o peso líquido de 825,700 gramas – não resultou, na parte “Conclusão”, qualquer quantificação de produto estupefaciente.
Da mesma forma, do item 5) do “Material Recebido Para Exame” – um Moinho, com possíveis resíduos de produto estupefaciente – também não resultou qualquer quantificação de produto estupefaciente.

Assim sendo, do produto apreendido ao arguido resultaram as quantidades de produto estupefaciente referidas no ponto 3 da factualidade provada – aproximadamente 9,5 KG de Canábis, mais precisamente 9 455,994 gramas de folhas/sumidades de Canábis, suscetível de ser dividido em cinco mil e onze doses, atendendo ao grau de pureza, por efeito da concentração média de THC, nos termos supra explicados.

De referir, ainda, que, destes cerca de 9,5 KG de Canábis, na vertente de Folhas, sumidades floridas ou frutificadas (a canábis também pode assumir a figuração de resina, vulgo haxixe, ou óleo), parte encontrava-se em plantas (vivas) plantadas em vazos – cerca de quarenta vazos, cada vazo com planta com cerca de um metro de altura – cfr. fotografias nºs 62 a 68, de fls. 61 e 62, e depoimento das testemunhas policiais que procederam à apreensão, infra indicadas -, e parte em sumidades, nas quais se incluem as vulgo “cabeças” e “folhas secas” (fotografias 32 a 34, de fls. 56, fotografia 51, de fls. 59, fotografias 55 a 57, de fls. 60, fotografia 19 de fls. 67, fotografias 21 a 23 de fls. 68).
Quanto à análise da prova pericial, cumpre, ainda, evidenciar que não é de afastar a concreta quantificação de doses médias individuais, fornecida através da Portaria 94/96, de 26.03, na medida em que, conforme infra explanado, resulta à saciedade que os cerca de 9 KG de produto estupefaciente apreendido ao arguido não se destinavam ao consumo do próprio.
Perante isto, a versão apresentada pelo arguido em julgamento foi a que segue.
Conforme já supra referido, o arguido assumiu, em julgamento, deter todo o material que lhe foi apreendido. Porém, no entender do arguido, o mesmo não é responsável pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Apresentou, para o efeito, vários argumentos. Analisemo-los.
Começou por referir o arguido que não cometeu o crime de que vem acusado uma vez que não tinha intenção de vender ou ceder a terceiros o produto estupefaciente que lhe foi apreendido.
Este argumento não oferece qualquer sustentabilidade, na medida em que, a fazer vencimento tal tese, qualquer pessoa que fosse intercetada com “quilos de droga” e com milhares de doses, como é o caso dos presentes autos, passaria incólume perante a justiça criminal, caso não fossem demonstrado atos, ainda que preparatórios, de venda ou cedência a terceiros. Aliás, conforme infra análise ao tipo legal de crime em causa, a cedência ou a venda a terceiros consistem em condutas típicas, como outras, como sejam a detenção ou cultivo.
Depois, referiu o arguido que iniciou o cultivo de canábis por duas ordens de razões. Segundo o arguido, em 2010 iniciou o consumo de canábis, fumando cigarros de canábis (vulgo erva), pelo que teve a ideia de produzir tal produto, para consumo próprio, aproveitando o seu know how adquirido enquanto agricultor.
Referiu ainda o arguido que, a sua decisão em iniciar o cultivo de canábis tinha também o desiderato de vir a produzir óleo de canábis, a fim de o aplicar pelo seu corpo, por forma a curar maleita – brucelose. Porém, disse o arguido que a concretização de tal desiderato – o fabrico de óleo de canábis - ainda estava em fase de estudo, aquando da intervenção policial, que culminou na apreensão de todo o material na posse do arguido.
Ora, desde logo, para além das declarações do arguido, não resultou da prova produzida e analisada em julgamento qualquer indício de que o arguido fosse consumidor de cigarros de canábis. Nesta parte, cumpre realçar que as próprias testemunhas arroladas pelo arguido – seus amigos e familiares (infra indicados) – desconheciam qualquer hábito de consumo por parte do arguido. Depois, na busca domiciliária realizada à habitação e anexos do arguido, assim como à sua viatura, não foram encontrados quaisquer indícios de consumo de cigarros de canábis – nem uma mortalha; nem uma ponta de cigarro de canábis (!). A referida inexistência de indícios de consumo nos locais das apreensões resultou também dos depoimentos das testemunhas (11, 22, 33, 44 e 55), todos militares da GNR que procederam à realização das buscas e consequente apreensão.
Não é, pois, razoável que um consumidor de cigarros de canábis, que até se daria ao trabalho, digamos, “hercúleo”, de realizar tamanha plantação de plantas de canábis, na sua residência, que até arrendou um anexo à sua habitação para o efeito (como, aliás referiu a testemunha policial …), não tivesse nesse espaço, a sua habitação, um mísero cigarrito de canábis, uma mortalhita que fosse.
Mas, apelando à mais elementar honestidade intelectual, ainda que o arguido fosse consumidor de cigarros de canábis, o que não se demonstrou, acreditar que a “fábrica”, o “laboratório”, erguidos pelo arguido, fossem destinados a suprir uma necessidade de consumo próprio, é “fugir” a qualquer razoabilidade ou de normal acontecer. Não fora a gravidade dos factos, assim como as suas consequências, em apreço, tal seria, até, risível. Mutatis mutandis para a alegada justificação apresentada pelo arguido de que a plantação de canábis teria como objetivo paralelo a produção de óleo de canábis para fins medicinais (empreendimento interrompido pela ação policial).
Contribuindo para a desrazoabilidade global do discurso apresentado pelo arguido em julgamento, tomou nota, também, o Tribunal, do momento em que o arguido disse que acondicionava as cabeças de canábis em diversos “saquinhos”, por uma questão de brio pessoal, aquando das suas deslocações ao exterior da sua residência. O mesmo brio pessoal também justifica, nas palavras do arguido, a posse de balança de precisão.
Mas, e continuando a análise das declarações do arguido, segundo este, portanto, apenas o produto estupefaciente que se encontrava em plantas vivas, e as ditas cabeças de canábis teria um fim definido (cigarros para consumo próprio e óleo medicinal).
Já quanto ao restante produto estupefaciente apreendido, concretizado em folhas secas de canábis, que, conforme é do conhecimento comum, é utilizado na produção de resina de canábis, vulgo haxixe (outra forma de apresentação da canábis para ser incorporado em cigarros de haxixe), o arguido apresentou como justificação para a sua posse um argumento, no mínimo insólito. Vejamos.
Ora, segundo o arguido, as folhas e sumidades de canábis (secas/não plantadas), que não as “cabeças”, tinham como destino “o lixo”. E, por isso, ainda segundo o arguido, aquando da intervenção da GNR, existia vário produto, que apesar de ser canábis, estava acondicionado em vários sacos, para “irem para o lixo”. Ou seja, esse circuito de folhas de canábis (planta viva – secagem – acondicionamento em sacos – contentor público de resíduos), foi, segundo o arguido, abruptamente interrompido pela intervenção da GNR, que, por acaso, iniciou o cumprimento dos mandados de busca em momento em que o arguido não estava em casa (facto evidenciado pelas testemunhas policiais supra indicadas). Temos, pois, segundo este argumento apresentado, que o arguido saiu de casa sem despejar o lixo.
O argumento não colhe. O que resulta da prova, sempre analisada em consonância com regras de experiência comum e de lógica, é que o arguido detinha consigo e cultivava o produto estupefaciente apreendido, sabendo as suas características, e sabendo que a respetiva detenção e cultivo eram proibidas por lei penal. Ou seja, os factos elencados nos pontos 5 e 6, da factualidade provada, resultaram demonstrados através da conclusão lógica retirada da atuação objetivamente desenvolvida pelo arguido e dos atos concretos descritos, nomeadamente, atendendo ao número de doses de produto estupefaciente apreendido e ao material utilizado no cultivo de canábis.
Nesta parte, não se olvida que a habitação do arguido, e anexo, era quase exclusivamente afeta ao cultivo de canábis. Nas várias divisões da casa eram desenvolvidas as diversas fases de crescimento das plantas - desde a sementeira até à planta em crescimento pleno, aos sacos com cabeças de canábis e folhas secas de canábis. Existia sistema de rega, de ventilação, tubagens de extração do ar. O arguido tinha na sua habitação, e anexo, cerca de quarenta vasos, cada qual com planta de canábis, com cerca de metro, metro e meio de altura.
No mais, o Tribunal considerou os seguintes elementos de prova, ainda não referidos supra:
- Auto de notícia de fls. 3 a 5 e aditamento de fls. 6 a 11;
- Fotografias, e respetivas legendas, ainda não referidas supra, constantes do relatório fotográfico de fls. 51 a 73, das quais resulta ostensivo que a atividade desenvolvida pelo arguido assumia envergadura digna de uma atividade agroindustrial;
- Relatório Social de fls. 826 a 827;
- CRC de fls. 795;
- Depoimentos das testemunhas Francisco Palma e João Palma, amigos do arguido, e de João Carvalhal, irmão do arguido, quanto à inserção social e percurso de vida daquele.
A factualidade não provada resultou de insuficiência de prova.»
û
Conhecendo.
Para o que importa fazer anteceder as considerações de facto sobre as de direito e, no domínio destas últimas, dar prioridade aos aspetos da previsão jurídica sobre aqueles outros que decorrem da sua verificação.

(i) Da incorreta valoração da prova produzida em julgamento
Entende o Recorrente que a matéria de facto provada deve ser aditada com factos que resultaram da prova produzida em julgamento, relacionados com o seu consumo de canábis, com as razões que o levaram a produzir esta substância estupefaciente, com a ausência de qualquer ligação à venda de drogas e com a doença oncológica de que padece.
E entende, ainda, que a sentença enferma de contradições, quando, não o afirmando como consumidor de canábis, dá como provado que foi apreendida droga no interior da sua residência e quando não dá como provado que a substância estupefaciente que lhe foi apreendida se destinasse a venda.

Vejamos se lhe assiste razão.
Com o propósito de bem expressar o nosso entendimento, impõe-se se precisem conceitos.
Em causa está o modo como pode sindicar-se a valoração da prova feita em 1.ª Instância, determinante para a fixação dos factos que aí se consideraram como provados e não provados – sindicância que pode fazer-se num primeiro momento fora e, depois, no âmbito dos vícios que devem ser aferidos perante o texto da decisão em causa [dito de outra forma, e respetivamente, no domínio da impugnação ampla da matéria de facto e no domínio da impugnação restrita da matéria de facto].

A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto [ou aquela que se encontra fora do âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal], depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, ou seja:
«(...)
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(...)»
E ocorrendo impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme se dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa
Encontramo-nos no domínio dos vícios do julgamento. No domínio do erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador perceciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou.
Erro do Julgador, no momento em que perceciona a prova, em que toma contacto com ela, e não no momento em que a avalia. Erro que pode viciar a avaliação da prova, mas que a antecede e dela se distingue.
Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, página 1131, em anotação ao artigo 412.º do Código de Processo Penal, afirma que «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (...)»; «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...) mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento».
«(...) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado (...).».[[3]]
De onde é lícito concluir que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».[[4]]
Ou seja, a gravação das provas funciona como “válvula de segurança” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto.

A sindicância da matéria de facto pode, ainda, obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão [e não do julgamento] – impugnação restrita da matéria de facto –, de conhecimento oficioso, que podem constituir fundamento de recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito [n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal].
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)»
Tais vícios, que se encontram taxativamente enumerados no preceito legal acabado de mencionar, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.
Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[[5]]
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.» [[6]]
O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.» [[7]]

Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Mas tal valoração é, também, sindicável.
O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Neste preceito legal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante[[8]], pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84.º (caso julgado), 163.º (valor da prova pericial), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal] e o do “in dubio pro reo” [artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa].[[9]]
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão [[10]]
E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.

Posto isto, e de regresso ao processo, não resultando das conclusões da motivação do recurso que se assinalem divergências entre aquilo que foi dito no decurso da audiência de julgamento e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião, nem tendo sido observado o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, o desconforto do Recorrente relativamente à factualidade considerada como provada deve ser ponderado ao nível da violação do disposto no artigo 127.º desse Código e, num segundo momento, através da verificação de algum dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo compêndio legal.

Está em causa ser, ou não, o Recorrente consumidor de canábis.

A sentença recorrida, na parte dela dedicada à motivação da decisão de facto, revela-se absolutamente competente quanto à explicitação das razões subjacentes à seleção factual – factos provados e não provados.
A versão dos acontecimentos apresentada pelo Arguido quanto ao seu consumo de canábis não convenceu o Senhor Juiz que realizou o julgamento, pelas razões que expôs, de forma clara e exaustiva.
E que se resumem a não haver qualquer outra prova desse consumo, para além das declarações do próprio Arguido – as testemunhas arroladas pelo Arguido [seus familiares e amigos] desconheciam que o mesmo consumisse qualquer droga; na busca domiciliária realizada à habitação e anexos ocupados pelo Arguido não foi encontrado qualquer indício de consumo de canábis [uma mortalha, uma ponta de cigarro…].

A vontade em ver reconhecida ao Arguido a qualidade de consumidor de canábis prende-se com o convencimento de que, por essa via, se justifica o cultivo e detenção dessa substância estupefaciente.
E assim poderia ser, não fora a quantidade de canábis que o Arguido cultivou e detinha em seu poder – 9 455,994 gramas de folhas/sumidades, suscetível de ser dividido em 5011 (cinco mil e onze) doses.
Neste contexto, é absolutamente irrazoável idear que o Arguido produziu para seu consumo exclusivo a quantidade de droga acabada de mencionar. Desde logo, porque o tempo que o Arguido demoraria a consumir tal quantidade de canábis retirar-lhe-ia qualquer propriedade estupefaciente.
E a possibilidade de o Arguido pretender produzir óleo de canábis disso não passa. Nem altera a circunstância de o Arguido ter cultivado e deter em seu poder 9 455,994 gramas de folhas/sumidades de canábis, suscetível de ser dividido em 5011 (cinco mil e onze) doses.

Por definição, contradição é a incoerência entre ditos, a afirmação do contrário do que se disse. Ao cabo e ao resto, contradição é a afirmação, em simultâneo, de uma coisa e do seu contrário.
E não vislumbramos qualquer contradição entre a circunstância de ter sido encontrada canábis na residência do Arguido, inclusivamente num moinho aí existente, e não ter sido considerado como provado que tal droga se destinava a seu consumo.
Sem vislumbre de contradição continuamos quando se considera como não provado que o Arguido seja consumidor e não provado, também, que destinasse a droga que cultivou e detinha em seu poder a venda a terceiros.
Porque não se apurou qual o destino que o Arguido pretendia dar à substância estupefaciente que cultivou e detinha em seu poder. Que poderia ser consumo próprio, venda ou cedência a terceiros. Ou qualquer outro – a destruição, o lixo, a mera contemplação…
Mas que não se apurou!

Pretende, ainda, o Recorrente que seja incluído entre os factos provados que «padece de um carcinoma da garganta, ao qual foi operado no Hospital de Santa Maria e para o qual iniciou tratamentos oncológicos em 2019, doença oncológica crónica de que sofre e cuja documentação médica comprovativa, foi agregada aos autos.»
Dos autos – a fls. 554 – consta Relatório Anátomo-Patológico datado de 18 de setembro de 2018, com diagnóstico de carcinoma na laringe.
A fls. 555 dos autos consta relatório de tomografia computorizada ao pescoço do Arguido, cujo conteúdo não temos capacidade de interpretar.
Sendo apenas estes os elementos que os autos fornecem e não tendo sido produzida qualquer outra prova idónea a respeito da situação de saúde do Arguido, apenas se pode considerar como provado que «No dia 18 de dezembro de 2018, foi diagnosticado ao Arguido carcinoma na laringe.»
E este facto será aditado aos que constam da sentença como provados.

Pretende, também, o Recorrente se inclua entre os factos provados «A matéria constante do Relatório Social, pedido oficiosamente e da matéria aí reportada, para cujo teor integral se remete.»
Em conformidade com o disposto na alínea g) do artigo 1.º do Código de Processo Penal, o relatório social constitui informação sobre a inserção familiar e sócio profissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei.
O relatório social não é uma prova, mas tão só meio de prova habilitante do conhecimento da personalidade do arguido. E não tendo o valor de prova pericial, está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova.
Por assim ser, os relatórios sociais – ao invés do que entende a Senhora Advogada que subscreve o recurso – não se transcrevem.
Do relatório social que se encontra junto do processo e da inquirição do Arguido, em julgamento, o Senhor Juiz que elaborou a sentença retirou os elementos que julgou essenciais à caracterização da personalidade do Arguido e das suas condições de vida – que levou aos factos provados nos pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.
Não diz o Recorrente que tais factos sejam incorretos ou que faltem outros aspetos caracterizadores da sua vida.
Assim sendo, não enxergamos razão para alterar a factualidade provada.

Por fim, pretende o Arguido se adite a matéria de facto:
«Nas diversas vigilâncias realizadas ao arguido, posteriormente, aos dias dos factos, em nenhuma, foi detetada qualquer movimentação suspeita.», e
«O arguido não era pessoa referenciada, como ligada à venda de produto estupefaciente, tal como o referido por todos os militares que depuseram em julgamento e como resulta da prova gravada.»
Semelhante pretensão evidencia que a Senhora Advogada que assume a defesa do Arguido confunde prova e meio de a obter com facto.
E que não alcançou que o Tribunal recorrido não deu como provado – ou melhor, deu como não provado – que o Arguido destinasse a venda a terceiros a substância estupefaciente que detinha em seu poder, por insuficiência de prova que isso demonstrasse – porque nas diversas vigilâncias que o visaram não foi detetada qualquer movimentação suspeita e, também, porque o Arguido não era pessoa conhecida por vender produto estupefaciente.

As razões do recurso, no segmento que agora nos ocupa, evidenciam que o Recorrente pretende sobrepor a avaliação própria que faz da prova àquela que foi feita pelo Tribunal recorrido.
Ou seja, o Recorrente não afirma, nem demonstra, que a avaliação da prova feita pelo Tribunal recorrido não é possível.
Limita-se a pretender fazer prevalecer a sua própria leitura da prova à que foi feita pelo Tribunal recorrido – concretamente, a dar às suas declarações um valor que não têm e que não lhe foi reconhecido na decisão com que não se conforma.

Acresce que a leitura da prova feita pelo Tribunal recorrido se revela perfeitamente plausível, porque consonante com declarações e depoimentos prestados, com o conteúdo de documentos juntos ao processo e com as regras da experiência comum [a normalidade dos acontecimentos].
E contra semelhante “leitura” não concorrem provas inequívocas e em sentido diverso, que não a consintam.
O que basta para não permitir a intervenção desta Relação ao nível da modificação factual.

Resta referir que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, com o aditamento supra referido, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1.ª Instância sobre a matéria de facto.

E o recurso, neste segmento, não procede.

(ii) Da incorreta subsunção dos factos ao direito
Na perspetiva do Arguido, a factualidade provada não integra a previsão do crime de tráfico previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
Mas uma situação de consumo e, no limite, uma situação de tráfico de menor gravidade.

Dispõe-se no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, a propósito do tráfico e outras atividades ilícitas, que
«1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
2 - Quem, agindo em contrário de autorização concedida nos termos do capítulo II, ilicitamente ceder, introduzir ou diligenciar por que outrem introduza no comércio plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
3 - Na pena prevista no número anterior incorre aquele que cultivar plantas, produzir ou fabricar substâncias ou preparações diversas das que constam do título de autorização.
4 - Se se tratar de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV, a pena é a de prisão de um a cinco anos.»

O artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, reporta-se ao tráfico de menor gravidade, nos seguintes termos:
«Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV

Impõe-se, ainda, referir o artigo 40.º do já referido Decreto-Lei n.º 15/93. Que trata do consumo. Aí se preceitua
«1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3 - No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.»

E resta-nos lembrar o que, sob a epígrafe traficante consumidor, se dispõe no artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro
«1 - Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.
2 - A tentativa é punível.
3 - Não é aplicável o disposto no n.º 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias

Não tendo havido alteração da matéria de facto, adequada a afirmar que o Arguido era consumidor de canábis e que destinava a consumo a substância estupefaciente que cultivou e detinha em seu poder, ou parte dela, está arredada a possibilidade de aplicação do disposto nos artigos 40.º e 26.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Tráfico significa ato ou efeito de traficar, trato mercantil, comércio, negócio.
Numa primeira abordagem reportando-se os artigos 21.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, ao tráfico de substâncias estupefacientes, poderia parecer que o cultivo e detenção de canábis não cabem na sua previsão.
Mas não é assim.
Neste domínio, a opção legislativa é muito clara.

O «crime de tráfico de estupefacientes (…) integra como conduta típica uma série muito diferenciada de ações — cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver produtos estupefacientes.
Dada a amplitude das condutas abrangidas, percebemos que, por exemplo, antes do ato de vender o estupefaciente há que cultivar, ou fabricar, ou simplesmente transportar da origem para o local de venda. Isto é, atos que em outras situações poderiam integrar apenas a simples tentativa, são agora punidos autonomamente como crime, estabelecendo-se como que uma equiparação entre os atos de consumação e os atos de tentativa, o que permite que se classifique o crime, quanto aos tipos de tipicidade, como um crime de empreendimento.
Nestes crimes de empreendimento pressupõe-se a verificação de um resultado que transcende a factualidade típica e consumando-se com a simples tentativa, entende-se que há uma equiparação entre a tentativa e a consumação, o que tem como consequência que para estes crimes não se aplica a atenuação decorrente da prática de um ilícito tentado, dado que a forma tentada é punida do mesmo modo que a forma consumada (admitindo-se, porém, que ainda no âmbito destes crimes seja punível a tentativa impossível. (…)»
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de novembro de 2014, proferido no processo 249/11.0PECBR.C1.S1, e acessível em www.dgsi.pt


«No crime de tráfico de estupefacientes, crime de perigo abstrato, não se exige para preenchimento do tipo o desenvolvimento da globalidade da ação projetada pelo agente. Porém, a consumação exige que se dê por provada, pelo menos uma das ocorrências ali referidas: “Cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qual quer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver”, produto estupefaciente (…).»
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de março de 2010, proferido no processo n.º 1058/08.0TACBR.C1 e acessível em www.dgsi.pt

Da factualidade provada resulta que o Arguido CAR cultivou e detinha em seu poder 9 455,994 gramas de folhas/sumidades de canábis, suscetível de ser dividido em 5011 (cinco mil e onze) doses.

O crime de tráfico de menor gravidade contempla, como a própria denominação indica, situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base [artigo 21.º], se processa de forma a ter como consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a “quantidade” do ilícito.
A título exemplificativo, indicam-se no artigo 25.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, como índices, critérios, exemplos padrão ou fatores relevantes, de graduação da ilicitude, circunstâncias específicas, mas objetivas e factuais, verificadas na ação concreta, nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade de plantas, substâncias ou preparações objeto do tráfico «os quais devem ser analisados numa relação de interdependência, já que há que ter uma visão ou perspetiva global, uma mais ampla e correta perceção das ações desenvolvidas (atividade disseminadora de produtos estupefacientes) pelo agente, de modo a conclui-se se a conduta provada fica ou não aquém da gravidade do ilícito justificativa da integração no tipo essencial, na descrição fundamental do art.º 21º, nº 1[[11]]
Nesta perspetiva e de acordo com significativa jurisprudência, a consagração do tráfico de menor gravidade [artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro] constitui uma “válvula de segurança do sistema”, destinando-se a assinalar diferenças entre os casos de tráfico menor aos de tráfico importante e significativo e, assim, evitar a imposição de penas desproporcionadas ou que obriguem à utilização indevida da atenuação especial da pena.[[12]]

Da factualidade provada resulta que o Arguido cultivou uma grande quantidade de canábis.
Não estamos, pois, perante uma situação ocasional, um comportamento impensado, mas sim perante uma atividade projetada e com envergadura, que, desde logo, arreda a considerável diminuição da ilicitude da conduta.
E por assim ser, a conduta do Arguido, apurada nestes autos, integra a previsão do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

(iii) Da desadequação, por excesso, da pena imposta
Diz o Recorrente, sem explicação capaz, que se justifica a atenuação especial da pena ou a sua aproximação ao mínimo da moldura penal abstrata.

À atenuação especial da pena dedica-se o artigo 72.º do Código Penal, nos seguintes termos:
«1 — O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 — Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 — Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.»

A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excecionais, em que a imagem global do facto resultante da atuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.

Entende o Recorrente que as suas condições pessoais justificam a atenuação especial da pena.
Não vemos como, face à previsão legal da atenuação especial da pena.
Acresce que entre a prática dos factos e a primeira sentença proferida nos autos – 3 de julho de 2016 e 19 de janeiro de 2019, respetivamente – não decorreu lapso temporal significativo.
Quanto a este último aspeto, recordamos que
«I - A circunstância de ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta, que releva para efeito da atenuação especial da pena (cfr. art.º 72º, n.º 2, al. d), do C. Penal), é a que se verifica até ao momento do seu sancionamento, em sede de sentença, sendo irrelevante, para esse efeito, em sede de recurso, o período de tempo decorrido desde a data da prolação da sentença.
II - Com efeito, o Tribunal da Relação não procede a um novo julgamento à luz de factos supervenientes, havendo apenas que verificar, nesta sede, se, face ao factualismo vigente à data da condenação, a decisão se mostra equilibrada e juridicamente correta.»
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de outubro de 2012, proferido no processo n.º 227/08.7GTLRA.C1 e acessível em www.dgsi.pt

Isto posto, porque não ocorre qualquer das circunstâncias que, nos termos do artigo 72.º do Código Penal, permite a atenuação especial da pena, a moldura penal abstrata que corresponde ao crime cometido pelo Recorrente situa-se entre 4 (quatro) e 12 (doze) anos de prisão.

Na determinação da medida da pena, face ao disposto no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, está o Tribunal vinculado a critérios definidos em função da culpa do agente e de exigências de prevenção.
Na determinação concreta da pena, deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que possam ser consideradas a favor ou contra o agente, entre as quais se encontram as referidas, de forma não taxativa, nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.
Como elementos de referência, na determinação da medida da pena, contam-se o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e as respetivas consequências.
Cumpre, ainda, referir que nos termos do n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (n.º 2).

A sentença recorrida tratou, com o necessário detalhe, a determinação da medida concreta da pena.
Ponderou, concretamente, (i) que as necessidades de prevenção geral são elevadas, dada a acentuada censura social da comunidade perante o perigo imanente para a saúde pública verificado pela disseminação de produto estupefaciente, (ii) a evidente intensidade do dolo, uma vez que o Arguido quis praticar os factos – dolo direto, (iii)a circunstância de a canábis ser considerada uma “droga leve”, (iv) o número de doses de produto estupefaciente que o Arguido tinha em seu poder, (v) a falta de autocensura demonstrada pelo Arguido em julgamento, (vi) a ausência de antecedentes criminais do Arguido, e (vii) e a sua inserção social e profissional.
Acolhemos este entendimento.
E uma pena de 5 (cinco) anos de prisão revela-se perfeitamente ajustada.

Ao que acresce que a vontade inexplicada de aproximar a pena do limite mínimo da moldura penal abstrata não tem aptidão para reduzir a pena imposta.
Admitimos que esta pretensão se justificasse com a alteração do enquadramento jurídico dos factos.
Mas essa alteração não ocorreu.

(iv) Do modo de cumprimento da pena imposta
Resta agora determinar se a execução desta pena de prisão – de 5 (cinco) anos – deve ou não ficar suspensa.
A suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição.
Como resulta do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão tem dois pressupostos: um formal – ser a sanção aplicada de medida não superior a cinco anos – e um material – ser de concluir, face à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
As finalidades da punição são, como se extrai do artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a integração do agente na sociedade.

«I - A suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido condenado.
II - Na base de uma decisão de suspender a execução de uma pena está sempre uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial.
III - Porém, o juízo de prognose que o tribunal faz não tem carácter discricionário e, muito menos, arbitrário. O tribunal ao decretar a medida terá de refletir sobre a personalidade do agente, sobre as condições da sua vida, sobre a sua conduta ante et post crimen e sobre o circunstancialismo envolvente da infração.»[[13]]

O pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal, «atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativo ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (…) – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade” (…). Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
A lei torna deste modo claro que, na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui o objeto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração – na medida do possível (…) – em sede de medida de pena (…).
A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer “correção”, “melhora” ou – ainda menos “metanoia” das conceções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, (…) uma questão de “legalidade” e não de “moralidade” que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência”

Aqui chegados, e a propósito do papel que deve ter a prevenção geral no domínio da imposição da suspensão da execução da pena de prisão, importa ter presente que «Ela deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…), como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafática das expectativas comunitárias.» [[14]]

De regresso ao processo, concordamos que o Arguido revela alguma falta de autocensura. Mas não podemos esquecer que o Arguido conta mais de 50 (cinquenta) anos de idade e que a regulamentação das substâncias estupefacientes tem sido alvo de profundas alterações e de interpretações nem sempre coincidentes e esclarecedoras.
Ainda assim, tendo presente as circunstâncias em que o crime ocorreu, o carácter primário da delinquência, e a inserção social e familiar de que dispõe, não podemos afirmar que estamos perante alguém com propensão para o desrespeito das regras vigentes.
A que acresce o “transtorno” que este processo necessariamente causou na vida do Arguido. Que acreditamos não será esquecido a breve trecho.
O que nos leva a concluir que o Arguido dispõe de envolvência que permite “apostar” que se vai afastar da prática de outros crimes.
Acresce que não tendo a droga cultivada pelo Arguido chegado à rua, as exigências de prevenção geral ainda se satisfazem com a vigilância e acompanhamento do Arguido em liberdade.

A execução da pena imposta fica, pois, suspensa pelo período de 5 (cinco) anos, acompanhada de regime de prova a delinear a pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.

E neste segmento, o recurso procede.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se
1. aditar aos factos provados com o ponto 13-A, com a seguinte redação: «No dia 18 de dezembro de 2018, foi diagnosticado ao Arguido carcinoma na laringe.»
2. suspender a execução da pena imposta ao Arguido CAR pelo período de 5 (cinco) anos, acompanhada de regime de prova a delinear pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
3. Manter, em tudo o mais, o decidido.
Sem tributação.

û
Évora, 2022 junho 7

Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso
Gilberto da Cunha – Presidente da Secção

_______________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] No mesmo sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17.ª Edição, páginas 965 e 966.
[4] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006, processos n.º 2951/05 e n.º 461/06, respetivamente, acessíveis in www.dgsi.pt.
[5] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.
[6] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 75.
[7] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.
[8] O julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.
[9] O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
[10] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, relatado pelo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos – acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Abril de 2008, proferido no processo n.º 07P4723 e acessível em in www.dgsi.pt/jstj
[12] Neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de julho de 2000 [in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 499, pág. 177], de 26 de novembro de 2003, de 13 de abril de 2005 e de 22 de Março de 2006 [in Coletânea de Jurisprudência\ Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo 3, pág. 245, Tomo 2, pág. 174 e Tomo I, pág. 216, respetivamente].
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de janeiro de 2002, relatado pelo Senhor Conselheiro Franco de Sá, no processo n.º 3026/01 – 3.ª secção – acessível em www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2002.pdf
[14] Professor Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 3.ª Reimpressão, Coimbra Editora, páginas 333 e 342 e seguintes.