Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1091/22.9T8AMD-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: MEDIDA TUTELAR
DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Resulta do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea c), do RGPTL que não foi estabelecido um limite mínimo de idade para a audição da criança ou jovem; a sua audição é obrigatória sempre que o menor manifeste capacidade de compreensão dos assuntos em discussão. Desta feita a audição de uma criança é obrigatória quando o tribunal tenha que decidir questões que lhe digam respeito desde que aquela revele capacidade para compreender aquilo que estiver causa; tudo dependerá, por conseguinte, das circunstâncias do caso e da personalidade da criança.
2 - Não ouvir a criança sobre uma decisão que lhe diz respeito, concretamente sobre a aplicação de uma medida de promoção e proteção de confiança com vista a futura adoção quando a criança, apesar da sua idade (11 anos) revela maturidade para compreender, se lhe for devidamente explicado, o que envolve tal medida, é a negação do direito de audição e de participação da criança amplamente consagrado na legislação nacional e no direito internacional acolhido pelo Estado Português.
3 - A decisão em causa é uma decisão nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC na medida em que o tribunal se pronunciou sobre questão que não podia conhecer antes de ouvir a menor sobre a matéria.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1091/22.9T8AMD-A.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Maria Emília Ramos Costa
Mário João Canelas Brás


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
AA, na qualidade de progenitora e requerida no processo de promoção e proteção relativo à menor BB, interpôs recurso do acórdão proferido pelo Juízo de Família e Menores de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., o qual decidiu:
1) Aplicar à menor BB a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção;
2) Inibir do exercício das responsabilidades parentais a progenitora AA, com a consequente proibição de visitas por parte da mesma à menor BB.
3) Nomear como curador provisório da criança o diretor da instituição de acolhimento “...”, em ....
O presente processo de promoção e proteção foi instaurado em 09/06/2022 por iniciativa do Ministério Público, o qual solicitou o tribunal que se aplicasse à menor a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, alegando para tal desiderato que a menor se encontrava a beneficiar de acolhimento desde 04/06/2021, com o consentimento da progenitora que, entretanto, veio a retirar esse consentimento, e que não existia alternativa familiar ao acolhimento residencial.
Em 9 de junho de 2022, e após a audição da mãe da menor, foi declarado o encerramento da instrução, realizada uma conferência com vista à obtenção de um acordo de promoção e proteção e ordenada uma perícia às competências parentais da progenitora da menor. Nos termos do acordo de promoção e proteção firmado naquela data a menor BB ficou sujeita à medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, concretamente, na “...”, pelo período de seis meses.
Mediante despacho proferido em 23/01/2023 foi decidido manter a medida de acolhimento residencial.
Em 4 de abril de 2023 o tribunal suspendeu as visitas da progenitora à menor BB.
Após a junção aos autos de um relatório social de acompanhamento realizado pelo EMAT de ... (Equipa de Assessoria Técnica aos Tribunais do Centro Distrital de ...) no qual é proposta a alteração da medida de acolhimento residencial aplicada à menor BB para a medida de confiança a instituição com vista a adoção, e de promoção do Ministério Público também no sentido de aplicação à menor da medida de confiança a instituição com vista à adoção, o Tribunal proferiu despacho em 19/12/2023, no qual foi mantida a medida de acolhimento residencial apenas a título provisório até à realização de debate judicial e determinou a realização de debate judicial.
Após a realização de debate judicial foi proferido o acórdão objeto do presente recurso.

I.3
A Recorrente formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I. O douto tribunal a quo veio a considerar, outrossim, que os laços afetivos entre mãe e filha se mostram, não só séria, como irremediavelmente comprometidos em face das características de personalidade e de comportamento da progenitora;
II. Porquanto, ademais, considerando que se afigura inviável o retorno da criança à sua família natural, e não existirem também outros familiares que pudessem constituir-se como
alternativas ao cenário de adoção, e relevando também a vontade da criança de ver o seu direito a uma família respeitado, pelo que assim o vem a entender como “forçoso” o ter que “ concluir pela aplicação da medida de confiança a instituição com vista a adoção”;
III. Resultando pontos da matéria de facto que se consideram incorretamente julgados, e cujos meios probatórios, ou ausência dos mesmos, impunham decisão necessariamente diversa da recorrida;
IV. Designadamente, os pontos 2, 13, 29, sem que tenha existido prova cabal e suficiente que possa ter relevado para a decisão proferida;
V. Nos termos previstos no artigo 84.º da LPCJP, relativamente à revisão ou cessação da medida de promoção e proteção, e artigo 58.º, n.º 1, alínea d), da mesma Lei, afigura-se como um pleno direito o da criança acolhida em instituição ser ouvida e participar ativamente, em função do seu grau de discernimento,” em todos os assuntos do seu interesse, que incluem os respeitantes à definição e execução do seu projeto de promoção e proteção…”;
VI. Sendo que, nos termos previstos no artigo 4.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), como princípio orientador de intervenção nestes processos, nos termos da alínea c) do n.º 1, a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito;
VII. Nos termos do artigo 5.º do RGPTC, a sua audição e opinião devem ser tidas em conta pela autoridade judiciária na determinação do seu superior interesse;
VIII. E cuja audição é precedida da prestação de informação clara sobre o alcance e significado da mesma (n.º 3);
IX. Mostrando, assim, violados os artigos 84.º da LPCJP e 58.º, n.º 1, alínea d), da citada Lei;
X. Assim como os princípios orientadores da intervenção, previstos no artigo 4.º da LPCJP, designadamente, do seu superior interesse- al. a), da proporcionalidade e atualidade – alínea e), e da obrigatoriedade da informação e audição obrigatória e participação – alíneas i) e j;
XI. Mostra-se, ainda, violado, na pessoa da progenitora, aqui recorrente, o direito de informação, previsto no artigo 4.º, alínea i), da LPCJP, porquanto até à data designada para o debate, fase derradeira e consequente, a progenitora não viria a entender/ conhecer os seus direitos, designadamente ante a prévia proposta de que o projeto de vida da criança passasse já a ser a adoção, pela EMAT e Ministério Público;
XII. E que a medida de acolhimento residencial havia sido mantida agora já a título provisório (conforme despacho de fls…, de 18/12/2023);
XIII. Verificando-se uma diminuição considerável das garantias da progenitora, e em contraste ao prescrito no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que se encontra assim em manifesta violação;
XIV. Sendo que um dos princípios orientadores da intervenção, previsto na alínea e) do artigo 4.º da LPCJP é o da proporcionalidade e atualidade, a mesma deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança se encontra no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
XV. E que a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção tem de assentar no rompimento ou sério comprometimento dos laços afetivos próprios da filiação (n.º 1 do artigo 1978.º do CC), só devendo ser decretada perante quadro factual que mostre com certeza e segurança que a relação parental se esvaziou de forma absoluta ou quase absoluta;
XVI. Mostrando-se a medida de acolhimento em Instituição, como a que decorre, ainda ser a única necessária e adequada à situação de perigo em que a menor se encontra no momento da decisão;
XVII. Nesta senda, somos de crer, que sobre as questões de facto impugnadas, e ante os preceitos legais violados, deveria ser proferida diversa decisão, no sentido de ser mantido o acolhimento residencial por mais seis meses, medida prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP, e melhor caracterizada no artigo 50.º e seguintes da mesma Lei;
XVIII. Com reforço nas obrigações da progenitora, designadamente de se sujeitar a educação parental e terapêuticas que se reputarem necessárias e adequadas;
XIX. Forcejando-se, ante a atual situação da mesma, para que, em cooperação, e com apoio, as condições da mãe se vejam já alteradas para melhor;
XX. Não se mostrando a ligação entre mãe e filha a regredir, e estando a criança bem adaptada à instituição em que se encontra, não há fundamento legal para a confiança para
adoção (artigo 1978.º do Código Civil);
XXI. Configurando-se, assim, a medida de confiança judicial com vista a futura adoção, ora aplicada, por excessiva e desproporcional, em face dos princípios orientadores da intervenção, previstos no artigo 4.º da Lei n.º 147/99, de 01/09, mormente o interesse superior da criança, e os princípios basilares da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família”».
I.4.
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, sustentando a sua improcedência.
O recurso foi admitido pelo tribunal de primeira instância que sustentou não ter violado o direito de audição e de participação da menor.
Corridos os vistos, nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2 e I.3) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (cfr. artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
As questões suscitadas e a decidir são as seguintes:
1 – Saber se houve violação do direito de audição e de participação da menor na definição da medida de promoção e proteção que lhe foi aplicada e, em caso afirmativo, quais as consequências processuais.
2 - Impugnação da decisão de facto.
3 – Reapreciação do mérito da decisão: saber se se verificam os pressupostos de aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.

II.3.
FACTOS
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
1 – A criança BB nasceu em ../../..12, sendo filha de AA e de pai incógnito.
2 – No período entre 19/12/2014 a 06/04/2018 a menor BB esteve acolhida no Centro de Acolhimento Temporário da ..., situada no ....
3 – Em 29/10/2019 foi instaurado novo processo de promoção e proteção na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens do ... em razão de sinalização de violência doméstica de que a progenitora seria vítima por parte do seu companheiro na altura.
4 – Na sequência de avaliação diagnóstica foi aplicada inicialmente à criança a medida de apoio junto da mãe, em 30/06/2020.
5 – Segundo a avaliação da CPCJ datada de 03/03/2022, durante o período que mediou a execução de tal medida, até 04/06/2021, a progenitora não cooperava com o CAFAP, chegando atrasada às sessões ou não comparecendo e não avisando previamente, estando constantemente a alterar o seu número de telefone, o que dificultava tais contactos.
6 – Do ponto de vista da organização da sua vida, a progenitora oscilava entre trabalhos precários e situações de desemprego.
7 – Vivendo com a criança em casa arrendada por senhorio (senhor CC), o qual também arrendava a referida habitação outros inquilinos, tendo assim a mãe e a BB de conviver com tais pessoas.
8 – Nesse período de tempo, a progenitora incompatibilizava-se com tais outros inquilinos, os quais eram obrigados a sair da habitação.
9 – A progenitora, nesse período de tempo, também mudou de casa, mas voltava de novo à habitação arrendada pelo senhorio de nome CC.
10 – Tendo saído mais uma vez de tal habitação e estado com a criança a viver em casa de um outro senhor que, no entanto, comunicava à CPCJ que já estava cansado e que “ia meter a progenitora e a criança na rua”.
11 – Durante esse período a progenitora mudava constantemente de localização (tendo estado no ... e depois em casa de amigos) e depois referia-se aos sítios onde havia estado como “onde as coisas não tinham corrido bem”.
12 – Segundo ainda a CPCJ, a progenitora sempre revelara ser uma pessoa muito religiosa, referindo constantemente “ter recebido uma bênção e ter encontrado o seu caminho”, que “recebeu um dom da Igreja para lutar e ter força”, frequentando na altura a Igreja Universal do Reino de Deus e a ....
13 – De acordo com as pessoas que acolhiam a mãe e a criança nos termos referidos em (6 a 10) a progenitora não apresentava higiene, não tinha capacidade de “fazer nada”, incompatibilizando-se sempre com as pessoas que a acolhiam ou com quem vivia.
14 – Em função do referido em 4) a 12), em 04/06/2021 a CPCJ, com o acordo da progenitora, aplicou à criança BB a medida de acolhimento residencial executada na Casa de Acolhimento de ..., m ....
15 – Já depois de ser acolhida e em ambiente escolar, a criança revelava aplicação e bons resultados, frequentando, ainda, o andebol e os escuteiros.
16- Tinha visitas na instituição com alguma regularidade (6 visitas quinzenais durante o período de janeiro a abril de 2021) por parte da progenitora; no entanto, esta, aquando desses momentos, tinha para com a filha um discurso repetitivo sobre o poder e a bondade de Deus, sobre as qualidades da BB e a importância de estar sempre alegre e esperançada no futuro, fazendo orações durante o tempo de convívio e trazendo outras orações escritas que levava para a filha, dizendo-lhe que as tinha de ler todos os dias.
17 – Ainda durante tais visitas, a progenitora manifestava comportamentos afetivos intrusivos, estando todo o tempo do convívio abraçada à filha e a dar-lhe beijos, passando-lhe a mão pelo corpo, trazendo roupas e obrigando a criança a vesti-las, pedindo à filha para fazer pose, algo que visivelmente incomodava a criança mas que a mesma consentia para corresponder às expectativas da sua mãe.
18 – Quando a criança queria fazer um desenho ou uma atividade durante tais visitas a mãe não a deixava, agarrando-a e abraçando-a.
19 – Quando os técnicos da casa de acolhimento lhe chamaram a atenção para tais comportamentos mais desadequados, a progenitora passou a colocar a criança de costas para as técnicas.
20 – Numa ocasião, quando uma técnica lhe disse para não agarrar tanto a filha, a progenitora, visivelmente alterada, pegou num caixote do lixo e atingiu a referida técnica com tal instrumento na cabeça, pegando ainda num segundo caixote de lixo, altura em que a BB começou a chorar, abraçando a mãe para ela parar com tais agressões. Nessa altura, a progenitora agarrou a filha, tendo-lhe a técnica dito que tinha de largar a criança por ser tempo de parara com a visita, o que aquela recusou, tendo a técnica dito que iria chamar a polícia, o que fez com que a BB implorasse que a mesma não o fizesse, tendo sido chamado um outro técnico que conseguiu acalmar a situação.
21 – Na sequência do episódio descrito em 20), e em 03/03/2022, a CPCJ remeteu os autos ao tribunal a fim de que este passasse a tramitar o processo.
22 – Em 09/06/2022, o Tribunal de Família ..., ..., ouviu a progenitora, tendo esta aceite a proposta de acordo de promoção e proteção homologado nessa data, nos termos do qual a mesma assumia as seguintes obrigações: a) manter ocupação profissional que permitisse a satisfação das necessidades do seu agregado (incluindo a criança, caso fosse viver com a mãe); b) manter a habitação limpa e higienizada; c) cooperar com a casa de acolhimento, respeitando as regras da instituição; d) colaborar com os outros serviços que acompanham a situação da filha; e) visitar a criança de acordo com as normas da casa de acolhimento; f) esforçar-se por reorganizar a vida de forma a poder acolher de novo a filha.
23 – No ano letivo de 2022/2023, a criança transitou para a Escola Básica ..., ..., tendo inicialmente tido algumas dificuldades de adaptação, mas depois fez amigos.
24 – Durante esse período, entre junho de 2022 e dezembro de 2022, ocorreram visitas quinzenais da progenitora nas quais ocorreram as seguintes situações descritas pela Casa de Acolhimento nos seguintes termos em relatório junto aos auto em 22712/2022:
«17/06/2022 – Visita conjunta com a presença da dra. DD. A mãe apresentou um comportamento adequado.
30/06/2022 – A visita teve apenas uma duração de 30 minutos devido aos comportamentos desadequados da mãe. A BB ficou aliviada com o final da visita.
../../2022 – Dia do aniversário da BB. A mãe trouxe um bolo de anos e algumas colegas da BB foram à sala de visitas para lhe cantar os parabéns. A BB estava envergonhada porque a mãe tinha-lhe feito uns totós e obrigado a vestir uma blusa com folhos. Mas a BB ficou feliz por a mãe ter trazido o bolo.
19/07/2022 – A mãe puxou a BB do banco para dançar com ela no meio da sala. A BB ficou com um ar muito triste.
29/07/2022 – A mãe deu dois pares de ténis para a BB. A BB gostou apenas de um dos pares. A mãe deu-lhe também uns ganchos para o cabelo muito infantis.
11/08/2022 – A BB tentou falar sobre a sua experiência no ACANAC (Acampamento Nacional do Corpo Nacional de Escutas) em que participara na semana anterior mas sem sucesso, a mãe interrompia sempre, dando respostas às suas próprias perguntas.
26/08/2022 – A mãe trouxe roupas de verão para a BB, algumas não serviam e também não iam ao encontro dos gostos da BB.
20/09/2022 – A mãe chegou quase uma hora depois da hora agendada para a visita. A visita teve que ser mais curta. A mãe aparentava estar desorientada.
12/10/2022 – A mãe trouxe um caderno e propôs à BB escreverem uma oração cada uma. No final a mãe rasgou a folha da BB e disse para ficar com a sua folha e que lesse a oração que ela havia escrito todas os dias à noite, antes de se deitar.
26/10/2022 – A mãe trouxe materiais para realizarem uma atividade conjunta (cartolina, tesoura, cola, canetas de feltro). A mãe pediu à BB para desenharem na cartolina um jardim.
10/11/2022 – (Progenitora) chegou muito atrasada à visita. A mãe trouxe uma caixa de cartão para forrar, que seria um presente de aniversário da BB para si. A caixa continha uns papéis com adjetivos sobre a BB. Em seguida, a mãe pediu para tirar fotos com a BB, dizendo que eram para enviar para as suas sobrinhas que residem no Brasil. A BB verbalizou descontentamento mas foi forçada a tirar as fotos. A BB ficou a jogar no telemóvel da mãe o resto da visita, procurando ignorar a mãe.
25/11/2022 – A mãe havia solicitado antes da visita que a BB levasse a cartolina que havia deixado numa visita anterior para continuarem a desenhar, o que aconteceu por pouco tempo. Praticamente em todo o tempo da visita a mãe da BB proferiu um discurso de manipulação afetiva e mental e alusão a questões de teor espiritual, forçando a BB ao contacto físico.
20/12/2022 – A mãe trouxe três prendas de natal para BB, verbalizando que em casa teria mais. Estes embrulhos continham uma camisola de lã cor-de-rosa que estava larga para a BB; umas calças de ganga cheias de florzinhas vermelhas bordadas; um vestido axadrezado preto e branco de flanela. Discurso da mãe excessivamente manipulado, verbalizado que iria oferecer um telemóvel à BB (presente de Natal pedido pela BB), se a BB passasse a ser mais simpática e obediente para a mãe».
25. Ainda durante as referidas visitas a mãe dirigia-se à filha com as seguintes expressões: “Penas na mamãe com carinho?”, “Tens que sorrir para a mãe senão não vais conseguir coisas boas”, “A BB tem que pensar que se dor boazinha, se for esforçada, mais coisa boa vai ganhar”, “A mãe agora está curada, já tem as energias positivas, não está mais com aquelas energias negativas”, “A BB é uma boa menina, tem que obedecer à mãe e agradecer a Deus pela mãe que tem, que é do bem e gosta da BB”, “A BB é uma menina amiga, simpática, obediente, amorosa, que gosta da mãe que tem”, “A mãe e a BB se relacionam bem, de forma natural, normal, saudável, capaz, simples”, “Se a BB não for boazinha para a mãe, Deus não vai trazer coisa boa para a BB” (sic).
26 – Do mesmo modo, em algumas visitas, no momento da saída e quando a BB já havia saído do local, a mãe pedia à técnica presente que lhe dissesse a verdade sobre a saúde da BB e se na Casa de Acolhimento lhe estavam a dar alguma medicação, designadamente calmantes pois que a BB já não seria a criança que era antes do acolhimento, alegre e amorosa para com a progenitora.
27 – Nessas ocasiões, as técnicas da casa de acolhimento procuravam assegurar à mãe da BB que a filha não tomava qualquer tipo de medicação e que se nas visitas ficava sempre com o olhar triste é porque sentia que a mãe não se relacionava com ela de forma adequada para a sua idade, não compreendendo a progenitora a referida crítica.
28 – Segundo a casa de acolhimento «as visitas da mãe da BB na (…) decorrem de forma negativa. Observamos que a mãe da BB tende a adotar sempre uma postura física muito abusiva, mostrando insensibilidade pelas necessidades da BB e indiferença perante a sua rejeição física a essa intrusão. A equipa técnica da casa de acolhimento ... sente muita dificuldade em ajudar a mãe a manter um relacionamento saudável para com a BB, por se afigurar que esta apresenta algumas disfunções ao nível mental, considerando-se o seu discurso e atitudes totalmente desapropriadas, alucinadas, abusivas e nocivas para com a filha. O discurso manipulador da mãe para com a BB faz com que a BB adote perante a mãe uma postura submissa e de anulação da sua própria identidade, retraindo e evitando dizer algo contrário aos desejos da mãe com receio de a magoar ou entristecer. A BB consegue verbalizar que não pode contrariar a mãe através da verbalização do seu desagrado perante algumas situações mais abusivas porque a mãe irá ficar muito triste e a BB não quer fazer com que a mãe fique triste. A BB também consegue reconhecer que as atitudes e conversas da mãe não são adequadas mas acaba por se resignar com a esperança de que a mãe consiga agir de forma diferente. (…)».
29 – Durante esse período entre junho e dezembro de 2022, a progenitora esteve a trabalhar a tomar consta de uma senhora idosa, tendo sido dispensada desse trabalho por o seu desempenho não ser considerado satisfatório, tendo um parente da referida senhora idosa mencionado à Casa de Acolhimento que a progenitora teria levado umas joias e outros bens da referida habitação.
30 – Em 23/01/2023, o Juízo de ... decidiu manter a medida de acolhimento residencial aplicada à criança.
31 – Em 31/01/2023 o processo foi remetido ao Juízo de Família e Menores de ... (J...).
32 – Em 27/04/2023, em função do referido em 24) e 25) a EMAT sugeriu a suspensão das visitas da progenitora à criança, tendo o tribunal determinado a audição da BB sobre tal questão.
33 – Na audição da criança, ocorrida em 14/06/2023, a BB referiu o seguinte: tem 10 anos, vive na ..., dizendo que gosta de lá estar. Referiu que tinha visitas, que se dava bem com a mãe, mas que esta dizia coisas que não gostava durante esses convívios e que lhe dava demasiados abraços nesses momentos, sentindo-se desconfortável e não gostando disso. Referiu que a mãe tinha uma religião. Perguntada se tinha religião, referiu que era cristã. Esclareceu que queria continuar a ter visitas, mas de 15 em 15 dias, mencionando, por um lado, que queria estar com a mãe, mas, por outro, que a incomodava a maneira como os convívios decorriam, nomeadamente a questão do contacto físico excessivo da progenitora. Esclareceu que falava com a mãe por telefone 3 vezes por semana mas que a mãe tinha sempre a mesma conversa e que não gostava muito desses contactos telefónicos. Referiu, neste contexto, que quando tentava acabar o telefonema, a mãe não a deixava terminar a conversa.
34 – Em 16/08/2023 o tribunal determinou a suspensão das visitas da progenitora pelo período de 3 meses.
35 – Na casa de acolhimento, em 2022 antes da referida suspensão das visitas da progenitora, a criança integrou o projeto “Famílias Amigas”, permitindo-lhe conviver com duas famílias distintas, o que lhe proporcionou momentos agradáveis e gratificantes, gostando a BB muito de tais convívios.
36 – A criança é acompanhada na especialidade de Medicina Geral e Familiar- Unidade de Saúde Familiar ..., sem médico de Medicina Familiar atribuído, e na especialidade de Psicologia Clínica, pela dra. EE, na Clínica .... Entre outubro de 2022 e outubro de 2023, a BB beneficiou de acompanhamento psicológico por parte da dra. FF.
37 – A progenitora foi submetida a exame pericial de avaliação psicológica realizado no INML, tendo o perito constatado o seguinte: «AA (…) evidencia um discurso desorganizado, centrado em temas religiosos e na intencionalidade negativa dos intervenientes no processo em curso, sobretudo nas duas primeiras entrevistas, quando se abordam antecedentes. (…) Da avaliação psicológica realizada sobressai uma organização da personalidade marcada pela impulsividade, imprevisibilidade, comportamento errático, não conformista, compatível com perturbação emocional significativa. A examinanda poderá ter sofrido maus tratos e rejeição no seu percurso de desenvolvimento o que a leva a desenvolver uma atitude de desconfiança em relação ao mundo que é percecionado como frio e perigoso. AA revela estar muito centrada sobre si mesma. Considera que os problemas dos outros não são da sua responsabilidade e, por isso, raramente ajuda os outros e desconfia das pessoas que solicitam ajuda. Por outro lado, não se interessa por escutar perspetivas distintas das suas e, por isso, rejeita-as. Não suporta que alguém a contrarie, que tenha de alterar planos à última hora e que as coisas não corram como desejaria. Não muda de opinião independentemente dos argumentos que os outros proporcionem e acredita que existe apenas uma maneira de fazer bem as coisas, a sua. Sente-se sobrecarregada perante os imprevistos e mostra-se intranquila e incapaz de responder às situações que perturbam a sua vida quotidiana. Evidencia, ainda, elevada irritabilidade, dificuldades no controlo dos impulsos, flexibilidade reduzida e pouca tolerância à frustração. (…). No âmbito das competências parentais a examinanda apresenta dificuldade ao nível do exercício da parentalidade adotando um estilo parental negligente marcado pelas dificuldades na imposição de regras e limites e dificuldades no reconhecimento das necessidades emocionais da criança. No domínio das crenças associadas ao exercício da parentalidade apresenta rigidez relativamente às expectativas sobre o comportamento das crianças. Revela reduzida capacidade para interpretar de forma adequada as necessidades e interesses da criança, adotando comportamentos intrusivos e um discurso manipulador e, por vezes, desorganizado nas interações com BB. Revela pouca crítica face às suas dificuldades e uma atitude de desconfiança em relação aos técnicos, fator de mau prognóstico para a aquisição/desenvolvimento de competências parentais adequadas. As vistas da mãe em nada contribuem para o bem-estar emocional da BB, pelo contrário apenas contribuem para acentuar na BB vivências traumáticas».
38 – Segundo a psicóloga da criança, dra. FF, em relatório juntos aos autos: «Parece existir uma vinculação insegura/ambivalente relativamente à figura materna. A BB relata sentir-se mais ansiosa quando saber que terá uma visita da mãe. Após a mesma, não relata sentimentos de bem-estar e/ou maior conforto. Fazendo referência à última visita da mãe, BB relatou sentimentos de desconforto, parecendo ter havido uma descompensação por parte da mãe, sendo as visitas temporariamente canceladas».
39 – No dia de aniversário da criança em 2023, a progenitora não telefonou à filha, tendo esta ficado triste e tendo comentado o assunto com as técnicas da casa de acolhimento.
40 – Passados dois dias, a progenitora ligou mas não mencionou o aniversário da criança, não se apercebendo de que se tinha esquecido, tendo a BB optado por não falar do assunto à progenitora e passando esta a proferir o habitual discurso autocentrado e de contornos religiosos, nesse contexto dizendo à criança que, muito em breve, mãe e filha estariam reunidas pois todas as suas ações estavam centradas nesse objetivo ambas seriam merecedoras de que isso acontecesse.
41 – Na sequência do telefonema, a BB refugiou-se no quarto para chorar.
42 – Em data não concretamente apurada, numa das visitas da progenitora à criança na instituição, e como a BB não estaria a corresponder às expectativas da sua mãe, tendo feito um comentário que desagradou a esta, a progenitora gritou “Sai”, tendo depois explicado à técnica da casa de acolhimento, já depois de o convívio ter terminado, que a filha estaria possuída por um espírito e que a mesma estaria a tentar expulsar tal espírito da criança.
43 – Em setembro de 2023, a progenitora esteve acolhida no ... (...).
44 – À data do debate judicial, a progenitora estava a viver numa casa arrendada à Igreja Evangélica da Assembleia de Deus, na ..., o que sucedia há cerca de dois meses.
45 – Fazia limpezas nas casas de acolhimento da referida Igreja, mormente em ..., onde passou a viver, pagando € 160,00 de renda.
46 – A criança BB, a frequentar o 6.º ano, possui notas de 4 e 5, sendo uma aluna com desempenho escolar elevado, tendo participado com empenho de assiduidade, bem como de forma excelente nos treinos encontros do Grupo/Equipa de Futsal Feminino, no escalão de Infantis B, inserido no Clube de Desporto Escolar da escola, participando igualmente em torneios.
47 – Em reunião com a dra. GG, técnica da EMAT a criança verbalizou em novembro de 2023 o desejo de ter uma família.

II.5.
Apreciação do objeto do recurso.
II.5.1.
Direito de audição e de participação da menor
A apelante defende que aquando do debate judicial a menor BB não foi ouvida relativamente à revisão ou cessação da respetiva medida de promoção e proteção, ocorrendo, por isso, uma violação do artigo 84.º e do artigo 58.º, n.º 1, alínea d), ambos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP).
Vejamos.
«As crianças deixam de ser vistas como pessoas incapazes de agir e de exercer os seus direitos, orientando-se hoje as reformas dos Códigos Civis por um princípio de capacidade natural dos menores, de acordo com as suas faculdades físicas, intelectuais e volitivas presentes em cada fase ou etapa do seu desenvolvimento» – Clara Sottomayor, Temas de Direito das Crianças, 2016, pág. 27.
A criança ou jovem que revele capacidade de discernimento tem o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe digam respeito e a sua opinião deve ser tomada em consideração aquando da tomada de decisões que lhe diga respeito.
Este direito de participação das crianças/jovens nas tomadas de decisão em questões a eles atinentes está consagrada em instrumentos internacionais e na legislação nacional. Com efeito:
(i) O artigo 12.º da Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 – e que foi ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990 – consagra o direito da criança de participar nas decisões que lhe digam respeito, seja diretamente, seja através de representante.
Estabelece o referido artigo 12.º o seguinte:
«1. Os Estados Parte garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.
2. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representantes ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional».
O direito de participação previsto naquela Convenção implica, por conseguinte, que seja assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida quer nos processos judiciais quer nos processos administrativos que lhe digam respeito.
A norma acima citada vincula todos os Estados que ratificaram a Convenção.
(ii) Os direitos de audição e de participação da criança nos processos tutelares cíveis têm também consagração expressa no artigo 6.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças adotada em Estrasburgo, em 25 de janeiro de 1996, nele se mencionando que nos processos que digam respeito a uma criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá, caso à luz do direito interno se considere que a criança tem discernimento suficiente, assegurar que a criança recebeu toda a informação relevante, consultar pessoalmente a criança nos casos apropriados, se necessário em privado diretamente ou através de outras pessoas ou entidades, numa forma adequada à capacidade de discernimento da criança, a menos que tal seja manifestamente contrário ao superior interesse da criança; permitir que a criança exprima a sua opinião, ter devidamente em conta as opiniões expressas da criança.
(iii)Também o artigo 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estatui que as crianças podem exprimir livremente a sua opinião que será tomada em consideração nos assuntos que lhe digam respeito, em função da sua idade e maturidade.

No caso concreto estamos no âmbito de um processo de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, estando em causa uma decisão judicial que aplicou à menor BB a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a adoção em substituição da que lhe fora anteriormente aplicada, a saber, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial.
No domínio da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, doravante designada por LPCJP, um dos princípios orientadores da intervenção para promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo é o da audição obrigatória e participação da criança e do jovem [artigo 4.º, alínea j)]; de acordo com este princípio a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, têm o direito a ser ouvidos e participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção.
Este princípio é também expressamente plasmado no artigo 84.º daquele diploma legal, o qual, sob a epígrafe Audição da criança e do jovem, dispõe o seguinte:
«As crianças e jovens são ouvidos pela comissão de proteção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção, nos termos previstos nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro».
Este preceito legal remete, assim, para Regime Geral do Processo Tutelar Cível aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, concretamente para os seus artigos 4.º e 5.º.
O artigo 4.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, sob a epígrafe Princípios Orientadores, prescreve no seu n.º 1, alínea c) que a criança com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica do tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse, dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que a capacidade de compreensão da criança relativamente aos assuntos em discussão é aferida casuisticamente e por despacho pelo juiz, o qual pode, para o efeito, recorrer ao apoio de assessoria técnica. Os termos da audição da criança/jovem são, depois, concretizados no artigo 5.º do mesmo diploma legal, ali se referindo que «A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse» (n.º 1), que «A audição da criança é precedida da prestação de informação clara sobre o significado e alcance da mesma» (n.º 3) e que «Sempre que o interesse da criança o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos atos processuais posteriores, incluindo o julgamento» (n.º 6).
Resulta do supra citado artigo 4.º, n.º 1, alínea c), do RGPTL que não foi estabelecido um limite mínimo de idade para a audição da criança ou jovem; a sua audição é obrigatória sempre que o menor manifeste capacidade de compreensão dos assuntos em discussão. Desta feita a audição de uma criança é obrigatória quando o tribunal tenha que decidir questões que lhe digam respeito desde que aquela revele capacidade para compreender aquilo que estiver causa; tudo dependerá, por conseguinte, das circunstâncias do caso e da personalidade da criança. Não se olvida que no que respeita à idade da criança/jovem – a qual que surge como um dos critérios orientadores para aferição da capacidade da criança para compreender os assuntos em discussão [artigo 4.º, n.º 1, alínea c) ] – o escalão etário dos 12 (doze) anos é utilizado na Lei de Promoção e Proteção como indicador da aquisição pela criança de faculdades intelectuais que lhe permitem participar ativamente na definição da medida de promoção e proteção que lhe for aplicada; veja-se, por exemplo, o artigo 5.º, alínea f), onde se estabelece que a criança e o jovem com mais de 12 anos devem participar no acordo de promoção e proteção; o artigo 10.º onde se estabelece que a intervenção das entidades com competência em matéria de infância e juventude e das comissões de proteção de crianças e jovens depende da não oposição da criança/jovem com idade igual ou superior a 12 anos; o artigo 105.º/2 que dispõe que a criança ou jovem com idade superior a 12 anos pode requerer a intervenção do tribunal no caso previsto na alínea g) do artigo 11.º[1]; o artigo 112.º que dispõe que a criança ou jovem com mais de 12 anos é convocada para a conferência com vista à obtenção de acordo de promoção e proteção. Contudo, não sendo a idade o único critério orientador para a aferição da capacidade de discernimento da criança ou jovem para entender as questões que estão em causa e que lhes dizem respeito, deverá concluir-se que uma idade inferior a 12 anos, por si só, não pode determinar o juiz a não ouvir a criança sobre questões que lhe digam respeito. Refira-se, aliás, que de acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 2, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo a oposição da criança com idade inferior a 12 anos à intervenção das entidades com competência em matéria de infância e juventude e das comissões de proteção de crianças e jovens é considerada relevante «de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção».
Volvendo ao caso concreto extrai-se dos autos e da própria decisão recorrida que a menor BB não foi ouvida sobre a alteração da medida de promoção e proteção decidida pela decisão sob recurso, ou seja, sobre a alteração da medida de promoção e proteção de acolhimento institucional para a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, sendo esta última uma medida que visa, como o nome o indica, encaminhar a criança para uma adoção, e que implica a inibição dos pais do exercício das responsabilidades parentais (artigo 1978.º-A do Código Civil).
A menor BB tem 11 anos de idade, mas a idade é, como já referimos, apenas um dos critérios orientadores para aferir da capacidade da criança para compreender o que está em causa. E, no caso, os autos revelam que a menor BB tem capacidade para compreender a finalidade da medida de promoção e proteção em causa e o que ela implica, designadamente a extinção das relações familiares entre o adotado e os seus ascendentes (artigo 1986.º/1, do Código Civil). Com efeito, resulta do teor das declarações prestadas pela menor BB ao tribunal, quando foi ouvida sobre a possibilidade de suspensão do regime de visitas da mãe, que aquela conseguiu exprimir o efeito que as visitas da mãe têm sobre a sua pessoa bem como as suas ansiedades quanto ao comportamento da mãe e o seu desejo quanto à periodicidade das visitas da mãe (cfr. facto provado n.º 33) e que a menor consegue valorar os comportamentos da mãe e depois verbalizar as suas avaliações (cfr. facto provado n.º 28).
Desta feita, estando em causa uma decisão que afetará o curso da sua vida, impunha-se, sem dúvida, a sua audição.
Diz o julgador a quo no despacho que acompanhou a admissão do recurso que «não deve o tribunal confrontar a criança com tal cenário possível ou até provável quando a mesma não foi preparada para aquele enquanto o mesmo não é posto em prática pelo tribunal por via do decretamento da adoptabilidade através da medida prevista no artigo 35.º, n.º 1, alínea g), da LPCJP» e que «tal não significa que o tribunal não possa saber, ou pelo menos, intuir a real vontade da criança através dos demais factos constantes da matéria de facto provada no acórdão, os quais fornecem amplos episódios de interação entre mãe e filha e entre esta e outros intervenientes (designadamente as famílias amigas com quem passou férias). E, outrossim o tribunal tem de decidir com base no superior interesse da criança, o qual, como se sabe, nem sempre coincide com a vontade real da criança e, ainda menos, com a sua vontade declarada».
Que dizer?
Não ouvir a criança sobre uma decisão que lhe diz respeito, concretamente sobre a aplicação de uma medida de promoção e proteção de confiança com vista a futura adoção quando a criança, apesar da sua idade (11 anos) revela maturidade para compreender, se lhe for devidamente explicado, o que envolve tal medida, é a negação do direito de audição e de participação da criança amplamente consagrado na legislação supra referida e no direito internacional acima referidos.
O direito da criança de participar nas decisões que lhe dizem respeito não pode ser postergado porque alegadamente a criança «não foi preparada para tal cenário», pois que é a própria lei que prevê que «a audição da criança é precedida da prestação de informação clara sobre o significado e alcance da mesma» (artigo 5.º, n.º 3, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), que a criança deve ser assistida no decurso do ato processual (tomada de declarações) «por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento» (artigo 7.º, alínea a), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível) e a intervenção de operadores judiciários com formação adequada (artigo 5.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
Sendo certo que o tribunal até pode vir a decidir no sentido contrário àquele que lhe for manifestado pela criança, à luz do seu superior interesse – critério máximo orientador de qualquer decisão relativo às crianças e jovens (artigo 4.º, alínea a), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, entre outros – ainda assim não deve deixar de auscultar a criança antes de proferir a decisão de eventual alteração da medida de promoção e proteção, sob pena de violação do direito da criança de participar nas decisões que lhe dizem respeito.
Aqui chegados, e porque o tribunal a quo não procedeu à audição da menor antes de proferir a decisão recorrida, quando deveria tê-lo feito, cumpre determinar as consequências processuais de tal omissão.
A decisão sob recurso viola o princípio da audição e de participação da menor BB, ou seja, o tribunal a quo omitiu uma formalidade que deveria ter sido observada, que é suscetível de influir no exame (instrução e decisão da causa) – artigo 195.º do CPC.
As nulidades processuais devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz, como resulta do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CPC, sendo a decisão que recair sobre a respetiva arguição impugnável por via recursiva. No caso, a recorrente não arguiu a referida nulidade perante o tribunal de primeira instância.
Sucede que a decisão em causa é também nula na medida em que o tribunal se pronunciou sobre questão que não podia conhecer antes de ouvir a menor sobre a matéria. Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, pág. 90, referem que «a falta de audição prévia (e, portanto, a violação pelo tribunal do dever de consulta) implica que o despacho saneador que venha a ser proferido é nulo por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d)): o tribunal conhece de matéria que, nas circunstâncias em que o faz (omissão do dever de consulta), não pode conhecer».
Assinala também Teixeira de Sousa[2] que ainda que a falta de audiência prévia constitua uma nulidade processual por violação do princípio do contraditório, aquela é consumida por uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.
Em face de todo o exposto, alcança-se a conclusão de que a decisão recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC e, consequentemente, há que o declarar e, consequentemente, ordenar que os autos regressem à primeira instância para que o tribunal reabra o debate judicial e proceda à audição da menor para os efeitos supra referidos.
Procedendo este segmento da apelação, fica prejudicado, por ora, o conhecimento das demais questões suscitadas no presente recurso.


Sumário: (…)

III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência:
1 – Declaram a nulidade do acórdão recorrido que aplicou à menor BB a medida de acolhimento em instituição com vista a futura adoção;
2 - Ordenam que os autos retornem à primeira instância para que o tribunal reabra o debate judicial e proceda à audição da menor quanto à alteração da medida de promoção e proteção que lhe foi aplicada e nomeadamente sobre a possibilidade de lhe vir a ser aplicada a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção.
Sem custas.
Notifique.
DN.
Évora, 6 de junho de 2024
Cristina Dá Mesquita
Maria Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Mário João Canelas Brás (2.º Adjunto)


__________________________________________________
[1] O qual dispõe que a intervenção judicial tem lugar quando decorridos seis meses após o conhecimento da situação pela comissão de proteção não tenha sido proferida qualquer decisão e os pais, representante legal ou as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou jovem requeiram a intervenção judicial.
[2] https: //blogippc.blogspot.pt.