Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
86/21.4PAVNO-A.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
TESTEMUNHA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Na ponderação a efetuar face à previsão do artigo 33.º da Lei 112/2009, de 16set – declarações para memória futura de testemunha - o conceito de vítima não corresponde à “vítima de um crime”, pois que tal conceito se alarga hoje sobremaneira, de forma a incluir a previsão do artigo 67.º-A, nº 1, al. a) – i) e iii) e al. b) CPP, para o qual “vítima” se considera:
i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime;
iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;
II. Sem esquecer que face ao n.º 2 do artigo 26.ª da Lei nº 93/99, de 14jul (Lei de Proteção de Testemunhas) – a «especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.»
III. E, assim, a premência da audição até está diretamente prevista na Lei 93/99 (artigo 28.º. n.º 1) quando determina que «durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.»
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório

Nos autos de inquérito supra numerados que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Instrução Criminal, J2 - e em que é arguido AA, por despacho da Mª Juíza de 04-07-2022, foi indeferida uma promoção da Digna magistrada do Ministério Público que requeria fossem tomadas declarações para memória futura à vítima BB, companheira de AA e mãe de CC.

A Digna magistrada do Ministério Público interpôs recurso com as seguintes conclusões:

I. Por despacho proferido nestes autos, em que se investiga a prática do crime de violência doméstica agravado, por parte do arguido AA, nas pessoas:
i) da sua companheira BB (artigo 152° n." 1, al, a) e n." 2, alínea a) do Código Penal) e
ii) da filha da sua companheira CC (nascida em .../.../2011) (artigo 152°, n. 1, alínea d), e), n." 2, al. a) do mesmo diploma legal), em .../.../2022 (no despacho judicial com a referência ...21), foi rejeitada a tomada de declarações para memória futura à jovem ofendida CC,
II. É desta decisão que discordamos. e dai a interposição do presente recurso.
III. Nos presentes autos, em 23.06.2022 (com a referência ...62) o Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura à testemunha CC nos seguintes termos:
«Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, por AA, do crime de violência doméstica, nas pessoas da sua esposa BB (artigo 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal) e da filha da sua companheira CC (nascida em .../.../2011) (artigo 152º, n.º 1, alínea d), e), n.º 2, al. a) do mesmo diploma legal).
Resulta dos autos que:
1.- No dia 31.10.2021, a PSP foi chamada à residência sita na Rua ..., ... ..., (cfr. auto de notícia),
2.- BB disse que foi agredida com um soco na face, pelo marido,
3.- Ao que o marido AA disse que a sua esposa o agrediu com um vidro na cabeça, (cfr. auto de notícia).
4.- Tendo as agressões sido presenciadas pela filha da ofendida, CC (cfr. auto de notícia),
5.- Quando a PSP chegou ao local, AA encontrava-se sob o efeito de álcool (cfr. auto de notícia),
6.BB tinha os olhos inchados provavelmente pelo facto de estar a chorar há algum tempo (cfr. auto de inquirição do agente DD, de fls. 85), 7.E CC informou a PSP que «estas situações ocorrem nos fins-de-semana, em que o padrasto está em casa e ingere bebidas alcoólicas, sendo que a sua mãe não exerce profissão por o seu padrasto não deixar» (cfr. auto de notícia).
Ouviram-se vizinhos dos intervenientes que disseram «que desde que o casal foi viver para aquela habitação, há alguns meses, têm existido discussões, em tom de voz bastante alto, sendo audível o quebrar de artigos do lar, sendo mais audíveis as discussões ao final do dia e sempre ao fim-de-semana sendo que, EE já teve de chamar a polícia várias vezes (cfr. declarações de FF, de fls. 51 e seguintes, de GG, de fls. 52 e seguintes, EE, de fls. 53 e seguintes).
CC foi notificada para comparecer nestes serviços do Ministério Público e não a fizeram comparecer.
Resulta, assim, que CC terá sido exposta a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatária de atos de violência, sendo vítima daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP).
Resulta, assim, que a menor ofendida poderá ter estado sujeita e/ ou estar sujeita a atos de maus tratos, podendo estar a ser expostas a situações de perigo para a saúde, integridade física e psicológica, importando proceder à sua audição, em ambiente informal e reservado, de modo a assegurar que a mesma seja o mais livre e imparcial possível, de forma a esclarecer os factos.
Assim, promovo que seja designada data para tomada de declarações para memória futura a CC , nos termos dos artigos 2º, al. a), 33º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, 152º do Código Penal, Ponto IV 2 da Diretiva n.º 5/2019 da PGR, a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento, bem como a aferir da necessidade de aplicação de medida de coacção para além do TIR e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições da menor/ ofendida (importando que a audição da menor seja feita uma única vez e o mais breve possível, assim se acautelando a frescura da sua memória e se acautelando sucessivos e eventuais confrontos com o sistema judicial).
Mais se promove que as declarações sejam prestadas sem a presença do arguido, de modo a assegurar que as mesmas seja o mais livre e imparcial possível, e com a assistência de técnico especializado.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.»
IV. Por seu turno, no despacho ora recorrido, decidiu-se do seguinte modo:
«A nosso ver, não indiciam os autos que a menor CC seja ela própria vítima de quaisquer actos que possam integrar o tipo de ilícito de violência doméstica. A mera percepção/conhecimento/presença da menor em ou de actos praticados por referência aos seus pais, seja pai ou mãe, pelo outro progenitor, não permite tal considerar.
Assim sendo, não vislumbramos que se mostrem verificados os requisitos legais para a audição da mesma como vítima especialmente vulnerável.
Assim sendo, terá o M.P. que esclarecer se pretende a sua audição a outro título e caso a resposta seja positiva, se será necessário ou não a presença de intérprete da língua ..., mormente se a menor domina suficientemente o português por forma a prestar declarações em tal língua.
Notifique e DN, devolvendo-se os autos aos serviços do M.P..»
V. Em face do despacho judicial, que solicitou que o Ministério Público viesse prestar esclarecimentos, em 11.07.2022, vieram a ser prestados os esclarecimentos de 11s. 99 e seguintes (com a referência ...92), ali se referindo:
(…)
VI. Na sequência destes esclarecimentos, o Mmo JIC proferiu despacho, em 13.07.2022 (com a referência ...76) nos seguintes termos:
(…)
VII. CC é testemunha, poi presenciou factos agressivos,
a. tendo (a própria) informado a PSP que «estas situações ocorrem nos fins-de-semana, em que o padrasto está em casa e ingere bebidas alcoólicas, sendo que a sua mãe não exerce profissão por o seu padrasto não deixar» (cfr. auto de notícia que deu origem aos autos),
b. E tendo BB denunciado recentemente novos factos (referindo que no dia 08.07.2022 pelas 21 horas, o seu marido, arguido agrediu-a no braço esquerdo, na cabeça e desferiu-lhe um murro na face esquerda, ficando com hematomas, e que no dia 09-07-2022 saiu de casa, com a filha pelas, 13 horas, para ir à piscina e, quando chegou a casa, pelas 15.40 h, o seu marido não a deixou entrar e que a sua filha assistiu a toda a situação – cfr auto de notícia do inquérito 68/22.... (recentemente apenso a estes autos).
VIII. CC é vítima direta do crime de violência doméstica. pois presenciou agressões entre a sua mãe e o companheiro da sua mãe. tendo sido exposta a situações de violência doméstica.
IX. A Lei n. 57/2021, de 16/08, veio alargar a proteção das vitimas de violência doméstica, alterando os artigos 67.o-A do Código de Processo Penal e 2.° da Lei n." 112/2009, de 16 de setembro, X. Resultando daquelas normas legais que a exposição a contextos de violência doméstica constituí mau tratos.
XI. CC, sendo exposta a contextos de violência doméstica, é vítima de maus tratos psicológicos e físicos (vendo a sua saúde e integridade física/ mental afetados), sendo vítima do crime de violência doméstica, logo, sendo vítima especialmente vulnerável (cfr. 67º-A,nº 3, do CPP).
XII. CC é vítima especialmente vulnerável também por ser muito jovem e porquanto terá assistido a actos de violência, sobre a sua mãe e na sua residência, ou seja, entre pessoas e no lugar que devia ser o de maior segurança e conforto para uma criança/ jovem (artigo 67°-1, n. 1, alínea b) do Código Processo Penal).
XIII. Tem a ofendida CC o direito a ser ouvida o mais brevemente possível e em sede de declarações para memória futura (artigos 28°/1/2 da Lei 11.° 93/99. de 14 de Julho c 33.° Lei n. 112/2009, de 16 de setembro).
XIV. A ofendida CC viu a sua saúde, a sua integridade física e psicológica afetada, encontrando-se numa posição de particular e especial vulnerabilidade,
XV. Sendo de toda a importância, para a salvaguarda da integridade psíquica (e física) da ofendida CC que a mesma possa, desde já, prestar declarações para memória futura, de forma rigorosa e esclarecedora, as quais poderão ser valoradas nas fases subsequentes do processo (inclusivamente de julgamento).
XVI. É de todo o interesse da ofendida CC ser ouvida em declarações para memória futura, de modo a evitar a vitimização secundária em (eventual) julgamento e bem assim assegurar a valoração das suas declarações em todas as outras fases do processo,
XVII. Só ouvindo, desde já, a ofendida CC e em sede de declarações para memória futura se conseguirá evitar a repetição da audição daquela jovem vítima (especialmente vulnerável) e protege-la do perigo de revitimização artigo 17° da lei nº 130/2015 de 4 de setembro).
XVIII. A audição da testemunhal ofendida/ vitima especialmente vulnerável CC é fundamente para a descoberta da verdade material, pois ela terá presenciado os factos) sendo fundamental ouvir esta jovem sobre o que efectivamente aconteceu, só assim se podendo fazer justiça,
XIX. Na verdade, a audição desta jovem nesta fase do processo e em sede de declarações para memória futura permitira evitar uma contaminação do depoimento assim como a perda de memória dos factos na sua plenitude.
XX. Nos termos dos indicados artigos 28° da Lei n." 93/99, de 14 de julho, e artigo 33." Lei n." 112/2009, de 16 de setembro, estão reunidos os pressupostos para a audição para memória futura da ofendida CC.
XXI. Ao ter decidido como decidiu, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 1°, ns. 1, 3 e 4, 2°, al. a), 28º da Lei n. 93/99, de 14 de julho, 2°, al. a), b), 16 n. 2, 33º Lei n. 112/2009) de 16 de setembro, artigo 17 e 21° a). d), 22º, 24º da lei n. 130/2015 de 4 de setembro, artigos 67°, n. l/a)i), iii), al. b), ns. 3 e 4, 262° e 263º do Código de Processo Penal, 152° do Código Penal,
XXII. Assim, e nos termos de tudo o que foi supra exposto, substituindo o despacho recorrido por outro que determine a prestação de declarações para memória futura de CC, Vossas Excelências, como sempre, farão a tão costumada JUSTIÇA!

*

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer no seguinte sentido:

2.1.1. O recurso vem interposto pelo Ministério Público da decisão do Juiz de Instrução que não deferiu a promoção do Ministério Público para que fossem tomadas de declarações para memória futura a CC, nos termos que melhor se desenvolvem no recurso e no que segue.
2.2. Parecer sobre as questões a decidir. Quadro factual. Enquadramento jurídico. Análise.
O Ministério Público recorre do despacho do Mmo JI que recusou conhecer/deferir a promoção para tomada de declarações para memória futura da menor CC, nascida a .../.../2011.
Entende o Ministério Público que os indícios existentes nos autos permitiam concluir de forma indicativa que o denunciado AA agredira a sua esposa BB a soco e que tais agressões tinham sido presenciadas pela filha da ofendida, a referenciada CC.
Extraiu o Ministério Público do núcleo factual que apresentou, ainda embrionário, a conclusão que a menor havia sido exposta a situações de violência doméstica, passando a ser também vítima desse crime, conforme artigo 2.º, alínea a) da lei 112/2009 e artigos 152.º, n.º 1, alínea d) e) do Código Penal e 67.º–A, n .º 1, alínea iii) do Código de Processo Penal, promovendo, na sequência, a tomada de declarações para memória futura da mesma menor.
Mais demonstrou o Ministério Público que a menor não pode deixar de ser considerada testemunha, face aos elementos recolhidos nos autos e que citou, como não pode deixar de ser considerada vítima direta do crime de violência doméstica, por ter presenciado as agressões a que se aludiu, além de ser vítima especialmente vulnerável, impondo–se que seja ouvida com a brevidade aconselhável, mediante declarações para memória futura.
Vejamos.
Face às alterações introduzidas pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto, aos artigos 2.º, alínea a), da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e 67.º-A, alínea a), iii), do Código de Processo Penal, ficou definitivamente clarificado que as crianças ou jovens até aos 18 anos que sejam expostos a atos subsumíveis ao crime de violência doméstica, ainda que não sejam objeto imediato e direto desses atos, i.e., ainda que não sejam ofendidos do crime, são considerados vítimas e vítimas especialmente vulneráveis (artigos 1.º, alínea j), e 67.º-A, n.ºs 1, alínea b), e 3, do Código de Processo Penal, 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, e 2.º, alínea b), da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro), sendo-lhes, como tal, aplicável o disposto nos artigos 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, que preconiza a respetiva audição através do meio de produção antecipada da prova das declarações para memória futura.
A especial vulnerabilidade da vítima é um conceito iminentemente processual (cf. artigo 67.º-A do Código de Processo Penal) mas reconhece-se nos conceitos de “pessoa particularmente indefesa em razão da idade”, etc., prevista no artigo 152.º ou 152.º-A, 132.º, 155.º quanto à agravação da coação e ameaça, 158.º relativo ao sequestro, todos do CP, e também se encontra no artigo 218º relativo à burla qualificada.
Dizer que se trata de um conceito iminentemente processual significa que, qualquer que seja o crime, independentemente de no tipo de ilícito ser considerada a particular tutela de pessoas particularmente indefesas ou vulneráveis em razão da idade, a existir uma vítima especialmente vulnerável em razão da idade, fragilidade ou dependência (designadamente criança, que em absoluto e objetivamente é dependente ou especialmente vulnerável) todo um conjunto de instrumentos processuais diferenciadores são convocáveis e mobilizáveis para efeitos de tutela penal e processual penal.
Diz o artigo 67.º-A do Código de Processo Penal: Vítima especialmente vulnerável é a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.
O n.º 3 do mesmo artigo dispõe que “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1, criminalidade essa em que se inclui a violência doméstica.
Por sua vez o n.º 4 desse artigo 67.º-A do CPP dispõe que “Assistem à vítima os direitos de informação, de assistência, de proteção e de participação ativa no processo penal, previstos neste Código e no Estatuto da Vítima..
A análise do artigo 67.º-A do CPP permite distinguir a especial vulnerabilidade objetiva e a vulnerabilidade subjetiva.
Sob o ponto de vista objetivo da vítima especialmente vulnerável tem que ver com situações que podem gerar fragilidade física ou mental da vítima, que pode ser a criança, como é o caso dos crimes de violência doméstica, maus-tratos, terrorismo, criminalidade violenta e especialmente violenta, etc.
Objetivamente, no caso destes autos, estamos perante criança que é vítima especialmente vulnerável.
Estes critérios objetivos, constando da lei (artigo 67.º-A do Código de Processo Penal), são quase automáticos para a qualificação de uma vítima como especialmente vulnerável.
Subjetivamente, é isento de dúvida que as crianças são sempre vítimas especialmente vulneráveis.
Estamos, pois, no caso, perante especial vulnerabilidade da vítima em termos objetivos e subjetivos.
Todo o quadro legal citado revela, também, que, hoje, a vítima, é um verdadeiro sujeito processual e não um mero participante processual, como no caso das testemunhas comuns.
Ao ser sujeito, o Estatuto da vítima confere–lhe direitos especiais à proteção, entre eles à prestação de declarações para memória futura – independentemente do artigo 271.º Código de Processo Penal (ver artigo 24.º do Estatuto da Vítima).
Afigura-se inquestionável que a CC, à vista dos factos que originaram os autos e que o Mmo JI não parece ter também questionado relevantemente, deve ser qualificada como vítima, in casu, vítima especialmente vulnerável, nos termos do Estatuto da Vítima e do artigo 67.º–A do CPP, ou, se assim não se entender, como testemunha especialmente vulnerável (artigo 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho), sendo certo que em qualquer uma dessas hipóteses a lei recomenda, sem grandes reservas, que se proceda à respetiva inquirição para memória futura, quer para proteção da sua situação pessoal e emocional, quer para garantia da fiabilidade dos seus depoimentos.
2.3. Conclusão:
Nos termos expostos, deve o recurso interposto pelo Ministério Público merecer integral provimento e ser determinada a revogação do despacho recorrido e determinada a prolação de despacho que defira a tomada de declarações para memória futura, conforme foi requerido.

*

Foi observado o disposto no n. 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.

***

B - Fundamentação:

B.1 – A matéria de facto relevante consta do relatório que antecede.

Foi esta a promoção do Ministério Público:

«Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, por AA, do crime de violência doméstica, nas pessoas da sua esposa BB (artigo 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal) e da filha da sua companheira CC (nascida em .../.../2011) (artigo 152º, n.º 1, alínea d), e), n.º 2, al. a) do mesmo diploma legal).
Resulta dos autos que:
1.- No dia 31.10.2021, a PSP foi chamada à residência sita na Rua ... ..., (cfr. auto de notícia),
2.- BB disse que foi agredida com um soco na face, pelo marido,
3.- Ao que o marido AA disse que a sua esposa o agrediu com um vidro na cabeça, (cfr. auto de notícia).
4.- Tendo as agressões sido presenciadas pela filha da ofendida, CC (cfr. auto de notícia),
5.- Quando a PSP chegou ao local, AA encontrava-se sob o efeito de álcool (cfr. auto de notícia),
6.BB tinha os olhos inchados provavelmente pelo facto de estar a chorar há algum tempo (cfr. auto de inquirição do agente DD, de fls. 85), 7.E CC informou a PSP que «estas situações ocorrem nos fins-de-semana, em que o padrasto está em casa e ingere bebidas alcoólicas, sendo que a sua mãe não exerce profissão por o seu padrasto não deixar» (cfr. auto de notícia).
Ouviram-se vizinhos dos intervenientes que disseram «que desde que o casal foi viver para aquela habitação, há alguns meses, têm existido discussões, em tom de voz bastante alto, sendo audível o quebrar de artigos do lar, sendo mais audíveis as discussões ao final do dia e sempre ao fim-de-semana sendo que, EE já teve de chamar a polícia várias vezes (cfr. declarações de FF, de fls. 51 e seguintes, de GG, de fls. 52 e seguintes, EE, de fls. 53 e seguintes).
CC foi notificada para comparecer nestes serviços do Ministério Público e não a fizeram comparecer.
Resulta, assim, que CC terá sido exposta a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatária de atos de violência, sendo vítima daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP).
Resulta, assim, que a menor ofendida poderá ter estado sujeita e/ ou estar sujeita a atos de maus tratos, podendo estar a ser expostas a situações de perigo para a saúde, integridade física e psicológica, importando proceder à sua audição, em ambiente informal e reservado, de modo a assegurar que a mesma seja o mais livre e imparcial possível, de forma a esclarecer os factos.
Assim, promovo que seja designada data para tomada de declarações para memória futura a CC , nos termos dos artigos 2º, al. a), 33º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, 152º do Código Penal, Ponto IV 2 da Diretiva n.º 5/2019 da PGR, a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento, bem como a aferir da necessidade de aplicação de medida de coacção para além do TIR e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições da menor/ ofendida (importando que a audição da menor seja feita uma única vez e o mais breve possível, assim se acautelando a frescura da sua memória e se acautelando sucessivos e eventuais confrontos com o sistema judicial).
Mais se promove que as declarações sejam prestadas sem a presença do arguido, de modo a assegurar que as mesmas seja o mais livre e imparcial possível, e com a assistência de técnico especializado.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.»

*

É este o teor do despacho recorrido:

«A nosso ver, não indiciam os autos que a menor CC seja ela própria vítima de quaisquer actos que possam integrar o tipo de ilícito de violência doméstica. A mera percepção/conhecimento/presença da menor em ou de actos praticados por referência aos seus pais, seja pai ou mãe, pelo outro progenitor, não permite tal considerar.
Assim sendo, não vislumbramos que se mostrem verificados os requisitos legais para a audição da mesma como vítima especialmente vulnerável.

*
Assim sendo, terá o M.P. que esclarecer se pretende a sua audição a outro título e caso a resposta seja positiva, se será necessário ou não a presença de intérprete da língua ..., mormente se a menor domina suficientemente o português por forma a prestar declarações em tal língua.
Notifique e DN, devolvendo-se os autos aos serviços do M.P..»
*

B.2 – Cumpre apreciar e decidir.

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação e, no caso, a questão abordada no recurso reconduz-se a apurar se devem ser tomadas declarações para memória futura a CC, convivente com sua mãe e padrasto e indiciariamente vítima das circunstâncias e actos já sobejamente expostos nos autos.

Fazemos notar, desde logo, o valor e acerto do parecer do Exmº PGA, que nos dispensa de grandes desenvolvimentos fundamentadores, reduzindo-nos nós à explanação de simples argumentos processuais diretamente referentes à questão deferimento/indeferimento da pretensão da Digna magistrada recorrente.

Fazemos apelo a anteriores relatos sobre o tema.

Pode afirmar-se que a perfeita delimitação, sistematização e clareza dos comandos legais é base essencial da decisão de que os autos necessitam, sendo certo que a jurisprudência já burilou o conceito em discussão, como bem realçam a Digna recorrente e o Exmº PGA.

Tendo isso em mente e visando poupar os destinatários da decisão a um excurso demasiado longo na fundamentação, vistas as valias já constantes dos autos, resumiremos o nosso contributo a pouco mais do que à vertente histórica de reproduzir o sumário jurisprudencial melhor sistematizado sobre o tema “declarações para memória futura”, expresso no acórdão da Relação de Lisboa de 11-01-2012 (689/11.5PBPDL–3), no seguinte sumário:

I. A redacção originária do CPP de 1987, em coerência com o modelo acusatório que adoptou, previa no seu art. 271.º que, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a pudesse vir a impedir de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução procedesse à sua inquirição no decurso do inquérito para que o seu depoimento pudesse, se necessário, vir a ser tomado em conta no julgamento.
II. Embora o formalismo estabelecido para esse acto possibilitasse, em certa medida, o exercício do contraditório, o acto não decorria em condições idênticas àquelas em que teria lugar se realizado na audiência.
III. Este instituto, na versão originária do Código, desempenhava uma função puramente cautelar visando obter uma prova que poderia ser impossível de produzir na audiência de julgamento.
IV. A prova assim recolhida somente poderia ser utilizada, através da leitura do respectivo auto, se tal viesse a ser necessário.
V. As revisões de 1998 e de 2007 alteraram a natureza meramente cautelar do art. 271.º do CPP.
VI. Conquanto esta finalidade se tenha mantido, as declarações para memória futura passaram a poder ter igualmente lugar para protecção de vítimas de determinados crimes. A partir de 1998, dos crimes sexuais e, a partir de 2007, dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual.
VII. Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas em conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respectivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar.
VIII. O art. 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito.
IX. Deixou de ter uma mera função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo art. 2.º, alínea a), da Lei n.º 93/99, de 14/07, e a abarcar qualquer tipo legal de crime.
X. A Lei n.º 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art. 33.º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art. 271.º do CPP.
XI. Admitindo o art. 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
XII. Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
XIII. (…).

A ponderação a efectuar no caso concreto face à previsão do artigo 33º da Lei 112/2009, de 16/09, ao afirmar no seu nº 1, que «O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento» mostra-se favorável ao deferimento das sobreditas declarações na medida em que a vítima, física e psiquicamente diminuída, se encontra exposta e indefesa e é do interesse da realização da justiça a obtenção do seu depoimento de forma rápida e expedita.

E aqui o conceito de vítima não pode ser reduzido ao seu conceito restrito de “vítima de um crime”, pois que tal conceito se alarga hoje sobremaneira, de forma a incluir a previsão do artigo 67º-A, nº 1, al. a) – i) e iii) e al. b) do Código de Processo Penal, para o qual “vítima” se considera:

i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime;
iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;

Sem esquecer que face ao nº 2 do artigo 26ª da Lei nº 93/99, de 14 de Julho - Lei de Protecção de Testemunhas – a «especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.»

E CC é, pelo menos, testemunha de um crime, sem que seja necessariamente vítima directa desse crime, requisito hoje já ultrapassado..

E, assim, a premência da sua audição até está directamente prevista na lei acabada de citar, agora no nº 1 do seu artigo 28º quando determina que «Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.»

Razão pela qual o recurso merece provimento.


*

C - Dispositivo:

Face ao que precede os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando que o tribunal recorrido determine data para declarações para memória futura a CC.

Sem tributação.

Notifique.

Évora, 12 de Outubro de 2022

(processado e revisto pelo relator).


João Gomes de Sousa (Relator)

Carlos Campos Lobo (1º Adjunto)

Ana Bacelar (2ª Adjunta)