Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
392/04.2TBLGS-G.E1
Relator: ANTÓNIO FERNANDO MARQUES DA SILVA
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR
EMBARGOS DE TERCEIRO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE
FUNDAMENTO DE FACTO
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- o despacho de indeferimento liminar, em embargos de terceiro, não constitui uma «decisão surpresa».


- nesse despacho não existe, em regra, selecção de factos provados e não provados, nem, por isso, é ele nulo em virtude da não realização de tal selecção.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I. AA intentou embargos de terceiro contra Arrow Global Limited, Basseterre Limited, BB e CC, pedindo que sejam os autos de execução sustados.


Alegou para tanto, no essencial, que:


- é possuidor do prédio que identifica, no qual reside, sendo que os familiares (a executada CC, de quem é filho adoptivo, e um tio, que financiou a construção) sempre lhe garantiram que aquela era a sua casa e a casa da sua família.


- exerce todos os actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, correspondendo o imóvel à sua casa de família.


Foi depois proferido despacho que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro, considerando no essencial que:


- foi ultrapassado o prazo legal para intentar os embargos, e


- não existe, de acordo com a alegação, verdadeira posse (que de qualquer modo não prevaleceria sobre a hipoteca de que dispõe o exequente).


Deste despacho vem interposto o presente recurso, no qual o recorrente formula as seguintes conclusões:


1. O Embargante, ora Recorrente deduziu os presentes embargos de terceiro.


2. Por sentença datada de 13-09-2024 o tribunal “a quo” concluiu pela carência de fundamento para a dedução dos presentes embargos, motivo pelo qual foram os mesmos liminarmente indeferidos.


3. Sem que tivesse sido produzida alguma prova, realizada audiência prévia ou proferido despacho saneador.


4. Em violação do vertido no artigo 345.º do Código de Processo Civil que consagra que na fase introdutória dos embargos são realizadas todas as diligências probatórias necessárias e bem assim o disposto nos artigos 590.º e seguintes do Código de Processo Civil.


5. A decisão recorrida viola ainda o disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil e de modo geral, o princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa que é atentatória do princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do citado art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa e o dever de motivação da matéria de facto, dado que a complexidade da mesma impunha que o tribunal “a quo” ouvisse e produzisse a prova testemunhal indicada.


6. A sentença recorrida é nula, nos termos do 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil na medida em que o tribunal “a quo” não deveria ter proferido a sentença sem realizar audiência de discussão e julgamento e sem produzir a prova testemunhal indicada.


7. Veja-se a este propósito o vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7, datado de 05-05-2015, disponível em www.dgsi.pt.


8. O que nos permite concluir que o tribunal “a quo” não especifica os fundamentos de facto que suportem a sentença recorrida, tendo-se baseado apenas no facto de a posse do Embargante não justificar os presentes embargos.


9. Motivos pelos quais deverá a sentença recorrida ser revogada por violação do disposto nos artigos 3.º, 345.º, 590.º e seguintes todos do Código de Processo Civil, da nossa jurisprudência dominante dos princípios do processo justo e equitativo, garantidos no n.º 4 do citado artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.


10. O embargante, ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida porquanto o tribunal “a quo” cometeu erro de julgamento sobre a matéria de facto, pois os elementos de prova apresentados com os embargos impunham decisão diversa.


11. Sendo a sentença omissa quanto aos factos dados como provados e como não provados.


12. Desconhecendo-se em absoluto e sendo a sentença recorrida totalmente omissa quanto ao critério da selecção da matéria de facto dada como provada.


13. O tribunal “a quo” não atendeu correctamente aos elementos de prova juntos aos autos.


14. Termos em que e por violação do disposto nos artigos 342º, 343º, 345º, 347º e 348º, nº 1 do Código de Processo Civil deverá a sentença recorrida ser revogada e consequentemente deverá ser proferida outra que julgue os presentes embargos totalmente procedentes por provados.


15. E bem assim por a sentença recorrida se encontrar ferida de nulidade nos termos do disposto no artigo 615.º do Código de Processo Civil.


16. Devendo ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e em consequência deverão os presentes embargos serem julgados procedentes por provados.


Não foi apresentada resposta.


O tribunal a quo sustentou a inexistência das invocadas nulidades.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Deste modo, importaria avaliar, atendendo à ordem pela quais as questões são colocadas e abstraindo dos termos em que foram colocadas (nas alegações/conclusões), se o despacho recorrido:


- violou o disposto nos art. 345º e 590º e ss. do CPC, configurando uma nulidade processual.


- violou o art. 3º n.º3 do CPC, constituindo uma decisão surpresa.


- é nulo, nos termos do art. 615º n.º1 al. b), c) e d) do CPC, por não poder ser proferido sem audiência de discussão e julgamento nem audição da prova testemunhal, por não especificar factos provados e não provados e por os factos provados estarem em oposição com a decisão, e ainda por ocorrer erro de julgamento quanto à matéria de facto - acabando a final por se apelar também ao regime do art. 195º n.º1 do CPC.


III. Porquanto o despacho recorrido tem natureza liminar, incidindo sobre o requerimento inicial, e o objecto do recurso é estritamente formal (visando vícios processuais), inexistem factos concretos a descrever: os factos relevantes correspondem aos termos da tramitação processual adoptada (incluindo o teor do requerimento inicial e do despacho impugnado).


IV.1. A tramitação do incidente de oposição mediante embargos de terceiro conhece, na sua fase inicial (ou introdutória, na designação legal), os seguintes momentos:


- petição de embargos, alegando os elementos relevantes para a admissibilidade e subsequente procedência da oposição (art. 344º n.º2, no início, do CPC).


- indeferimento liminar, se houver razões que o determinem (art. 345º do CPC).


- não sendo caso disso, realização de diligências probatórias com vista à avaliação do recebimento ou rejeição dos embargos - sendo estes recebidos ou rejeitados conforme exista, ou não, probabilidade séria da existência do direito invocado pelo requerente (art. 345º do CPC).


Admitidos os embargos, segue-se a notificação das partes primitivas para contestar e os demais termos do processo comum (art. 348º do CC).


No caso, foi proferido despacho de indeferimento liminar, considerando-se, de forma inicial e terminal (logo após a petição de embargos e sem espaço para actos subsequentes), que os embargos deviam ser excluídos.


O recorrente não discute o acerto ou desacerto do despacho (o mérito dos seus fundamentos), sustentando a sua impugnação apenas na existência de vícios formais ou processuais.


2. Assim, começa por invocar a violação do disposto nos art. 345º e 590º e ss. do CPC, por não ter sido realizada qualquer diligência probatória (não dando ao embargante a oportunidade de se pronunciar sobre a selecção da matéria de facto) nem ter sido realizada a audiência prévia nem proferido despacho saneador - o que configuraria uma nulidade processual.


O despacho de indeferimento liminar caracteriza-se formalmente por surgir logo no momento inicial do processo ou procedimento (em regra logo após a petição ou requerimento inicial [1]), por afirmar logo a inviabilidade de prossecução da acção ou incidente, por tal avaliação se efectuar exclusivamente em função dos termos (do conteúdo) da petição ou requerimento inicial, e por ser proferido de forma imediata, sem audição do autor ou requerente nem intervenção da parte contrária. Em termos materiais, pode basear-se em obstáculos processuais ou em razões materiais, mas, em qualquer caso, o fundamento da rejeição terá que ter um carácter evidente ou manifesto [2]. Isto porque só assim se justifica a intervenção liminar peremptória e só assim esta se adequa à sua justificação final (evitar a prática de actos inúteis), e já que só será certa esta inutilidade, e assim justificado o indeferimento, quando seja patente ou segura a inviabilidade (e assim quando seja certo que a subsequente tramitação não pode conduzir a resultado eficaz).


No caso, a lei processual é, como se referiu, expressa em sujeitar a petição de embargos a despacho liminar, o que garante só por si a legalidade formal da sua prolação, enquanto acto inserido na tramitação do incidente. Além disso, este despacho liminar tem precedência legal e lógica sobre a tramitação subsequente. A precedência legal deriva do referido art. 345º do CPC, dele resultando claro que as diligências probatórias relacionadas com o recebimento ou rejeição dos embargos apenas se realizam se não houver lugar a indeferimento liminar (o que exclui a alegada violação desta norma). E a sua precedência lógica é evidente: a decisão de indeferimento liminar, pondo termo ao processo, impossibilita legalmente a prática de actos subsequentes (pois o processo extinguiu-se), pelo que, sendo lícito o indeferimento liminar (como é no caso [3]), não é apenas lícita a omissão dos actos subsequentes como esta omissão é, em rigor, processualmente necessária (e legalmente pressuposta). Pretender impor a sua realização equivale a negar a possibilidade de indeferimento liminar que a própria lei prevê.


E a mesma razão vale para a pretensa violação dos art. 590º e ss. (ex vi do art. 348º n.º1) do CPC. O despacho de indeferimento liminar tem justamente o efeito de afastar a aplicação daquelas normas precisamente por, em termos formalmente legítimos, pôr termo ao incidente em momento anterior ao momento em que aquelas normas (e os actos que prevêem) deveriam intervir. Assim, também aqui a omissão de actos subsequentes, que as normas em causa prevêem, deriva de decisão judicial que o regime processual admite e a que atribui o efeito de extinguir o procedimento, caso em que deixa de ser imposta, obviamente, a prática de actos subsequentes.


É, pois, manifesto que o despacho liminar não contraria o regime dos art. 345º e 590º e ss., e que inexiste a omissão da prática de acto que a lei prescreva, nos termos do art. 195º n.º1 do CPC (única forma de enquadrar a nulidade invocada (a qual o recorrente não chega a caracterizar). Conclusão esta, clara, que torna desnecessário enquadrar com maior rigor o eventual vício invocado e a forma como a ele se deve reagir.


3. Em segunda linha, o recorrente qualifica o despacho impugnado como uma decisão-surpresa, violadora do disposto no art. 3º n.º3 do CPC e do princípio do contraditório.


Em termos gerais, tende a considerar-se decisão surpresa aquela decisão que aprecie certa questão sem previamente facultar aos interessados a possibilidade de sobre ela se pronunciarem. A sua proibição constitui, na verdade, derivação do princípio do contraditório (embora, para outra opinião, derive do princípio da cooperação) e este princípio constitui manifestação do princípio do processo equitativo (por sua vez integrado no direito de acesso aos tribunais). Mas a regra legal, e o princípio em que assenta, não têm natureza absoluta. Desde logo, a regra legal pode ser excepcionada por outra regra legal, e é isso que ocorre com o despacho de indeferimento liminar, que é legalmente pensado como reacção imediata à petição ou requerimento inviável, sem previsão de audição prévia (dizendo-se até que seria contraditória a previsão de um despacho liminar que supõe uma audição que iria impedir que aquele despacho fosse liminar; também se dizendo que, a constituir violação de princípio fundamental, não seria então prevista pelo próprio legislador). Trata-se de caso de dispensa de audição prévia por inerência legal, e em que, em contrapartida, se facilita a recorribilidade da decisão (art. 629º n.º3 al. c) do CPC [4]), assim se garantindo o controlo da intervenção liminar (que deverá ser reservada para situações seguras) e uma discussão alargada subsequente (incluindo com a parte contrária, nos casos do art. 641º n.º7 do CPC). De outro lado, a prolação deste despacho constitui uma forma de intervenção legal com que a parte deve contar por ser expressão do regime legal. Nesse sentido, cabe-lhe ajustar a sua intervenção aos requisitos formais e materiais exigíveis, de molde a excluir um indeferimento liminar. O que significa, de uma banda, que a avaliação contida no despacho liminar deriva de prévia posição da parte, e, de outra banda, que não existe a imprevisibilidade (surpresa) que concorre para qualificar a decisão violadora do contraditório. Por isso afirma T. de Sousa que a qualificação do indeferimento liminar como decisão-surpresa «só pode fundar-se no equívoco de que a decisão-surpresa é toda a decisão com a qual a parte não contava. A verdade é que a decisão-surpresa é apenas aquela em que o tribunal decide algo com que a parte, de forma previsível, não podia contar.» [5]. Acresce que o indeferimento liminar apenas deve, como referido, ter lugar em situações em que a avaliação se mostra segura: em que o obstáculo ao prosseguimento é patente e manifesto. Ou seja, em situações em que, pela própria evidência do fundamento de rejeição, o próprio autor ou requerente estava em condições de antever ou antecipar a decisão. E por isso que existisse também uma situação de desnecessidade processual de contraditório. Por fim, a contraditoriedade tem menos intensidade, e por isso é legalmente dispensada, por se colocar exclusivamente perante o autor ou requerente, sem intervenção de outras partes, e por se colocar exclusivamente perante os termos em que o autor definiu a sua pretensão e respectivos fundamentos e elementos probatórios. Assim, e em suma, o que o regime do indeferimento liminar supõe é que a parte apresenta a sua posição ao tribunal, sabendo que ela vai ser sujeita a avaliação liminar, com a qual conta e que tem que antecipar (pois a rejeição apenas lida com obstáculos seguros e evidentes [6]), de molde a garantir o prosseguimento da acção ou incidente. A avaliação liminar não é surpreendente, e o tribunal não tem que, antecipadamente, discutir com as partes o seu «parecer jurídico» [7].


Inexiste, pois, o vício invocado.


4. O recorrente alega depois que a «sentença recorrida é nula, nos termos do 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil na medida em que o tribunal “a quo” não deveria ter proferido a sentença sem realizar audiência de discussão e julgamento e sem produzir a prova testemunhal indicada.».


Antes de mais, cabe esclarecer que, ao contrário do sucessivamente sustentado pelo recorrente, está em causa um despacho e não uma sentença pois, independentemente dos termos do art. 152º do CPC, a decisão de indeferimento liminar é qualificada como despacho pela lei em sucessivos momentos (v. art. 569º n.º1, 647º n.º1 al. c) e d), 853º n.º1 ou a articulação dos n.º1 e 2 do art. 726º do CPC [8]).


Sendo aplicável ao despacho aquele art. 615º do CPC, por força do art. 613º n.º3 do CPC, verifica-se que da al. b) invocada deriva que o despacho é nulo quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».


Ora, é manifesto que o fundamento invocado (não se ter realizado a audiência de julgamento nem produzido prova testemunhal) não se adequa à previsão da norma: aquela omissão de actos processuais não corresponde à falta de indicação dos fundamentos da decisão. Acresce que já se deixou explicitada a razão por que, perante o indeferimento liminar, fica legalmente sustentada a exclusão da prática dos actos processuais subsequentes.


5. O recorrente invoca também a nulidade do despacho com fundamento nas al. b), c) e d) do n.º1 do art. 615º CPC, a partir de uma dupla constatação: inexistência de elenco de factos provados e não provados, e «por os factos provados estarem em manifesta oposição com a decisão». A suscitação das nulidades nas alegações é expressa e clara, mas a sua tradução nas conclusões é algo comedida ou escassa. Admite-se, contudo, que a invocação, quando assenta na falta de indicação de factos provados e não provados, tem ainda suficiente apoio nos art. 11 e 15 das conclusões, permitindo considerar a questão ainda contida no objecto do recurso. Tal já não vale, porém, para a invocada oposição (contradição) entre os factos provados e a decisão, que não encontra qualquer eco nas conclusões. O que inviabiliza o seu conhecimento. Com efeito, e como já referido, as conclusões delimitam o âmbito do recurso e assim o objecto da apreciação pelo tribunal de recurso: trata-se de efeito da restrição (expressa ou tácita) do objecto de cognição que as conclusões efectuam (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC). Assim, não incluindo o recorrente nas conclusões questões discutidas nas alegações, fica tacitamente restringido o objecto do recurso, que já não contempla tais questões [9]. Por isso se não pode conhecer a aludida questão (relacionada com a al. c) do n.º1 do art. 615º do CPC). Sem embargo, sempre se nota que a lógica da impugnação parece algo fugidia, pois, se o recorrente afirma inexistirem factos dados como provados, não se vê como pode a decisão estar em oposição com factos provados (que, como também alega, não existem), nem, na verdade, o recorrente o explicita, tornando a alegação, a ter que ser avaliada, inconsequente.


6. Considera o recorrente, como referido, que o despacho seria nulo, para os termos do art. 615º n.º1 al. b) do CPC, por não especificar os fundamentos de facto que o suportam e ser omisso quanto aos factos não provados.


O vício em causa relaciona-se com o disposto no art. 154º n.º1 do CPC, que impõe a todas as decisões processuais um dever genérico de fundamentação, garantindo, internamente, a sua racionalização, e, externamente, a publicitação e compreensibilidade das suas razões, como garantia de coerência e exclusão da arbitrariedade, e como meio de convencimento pela sua fundamentação. O desvalor da decisão radica na sua incapacidade em garantir a inteligibilidade ou compreensibilidade da decisão e assim aqueles valores.


Este dever vem, para as sentenças, especialmente concretizado no art. 607º n.º2 e 3 do CPC, que estabelece um programa formal definido, no qual se insere efectivamente o elenco de factos provados e não provados. Sucede que na situação vertente não está em causa, como se explicitou, uma sentença mas um despacho, inexistindo norma que preveja a aplicação daquele art. 607º n.º2 e 3 aos despachos. O que se compreende por o despacho, ao contrário da sentença, ter uma abrangência muito ampla, compreendendo actos muito diversos e objectos de avaliação muito variados, com contornos também muito diferenciados, os quais se repercutem também no conteúdo daquele acto: na extensão, sentido e limites do dever de fundamentação. Expressão legal desta contingência está no facto de o regime constante dos art. 607º e 608º do CPC não ser directamente aplicável aos despachos (a regra extensiva do citado art. 613º n.º3 não abrange os artigos anteriores). Por isso que se deverá entender que os despachos estão sujeitos a um dever específico de fundamentação, por força do referido art. 154º n.º1 do CPC, mas que esse dever de fundamentação não está adstrito aos precisos cânones do art. 607º n.º3 e 4 do CPC, parecendo que aquelas regras deverão funcionar como apoios hermenêuticos na avaliação da fundamentação devida face a cada caso - e mesmo quando se admita a aplicação (mormente analógica) daquelas normas, tal só valerá, obviamente, na medida em que a natureza e similitude das situações o justifique [10], o que importará sempre uma avaliação casuística das circunstâncias, para aferir em que medida certo despacho se pode aproximar ou não de uma sentença. Ou, o que vale o mesmo, sempre será perante as circunstâncias de cada despacho que se haverá de avaliar o que é exigível em termos da sua fundamentação.


Neste quadro, e no que toca à fundamentação de facto, cabe notar que o despacho de indeferimento liminar avalia apenas o conteúdo de uma peça processual (o requerimento inicial dos embargos) e é esse o seu objecto de cognição. Não existem factos em sentido estrito ou naturalístico a avaliar (e descrever). Aliás, os factos são, todos eles, incertos porquanto ainda não discutidos pela parte contrária nem, onde se justifique, sujeitos a prova. Por isso que não sejam os factos mas a alegação (aquilo que é invocado) que é objecto de avaliação [11], e esta alegação não se confunde com factos que se tenham que descrever (dando-os como provados ou não provados). Assim, o acto processual postulativo que pretende suportar os embargos constitui o único «facto» (no sentido de objecto de avaliação face ao direito) e este não tem, obviamente, que ser reproduzido na decisão (porque constitui acto processual e não dado apurado, a descrever). Aliás, essa realidade processual (o requerimento dos embargos) também se não ajusta, obviamente, ao regime do art. 607º n.º3 (no que à exigência de menção dos factos provados ou não provados respeita) e 4 do CPC, tratando-se assim este de regime que, não sendo directamente aplicável como se referiu, também nenhum contributo interpretativo faculta no caso. Desta forma, inexiste falta de fundamentação de facto. Naturalmente, o exposto prejudica a afirmação do recorrente atinente à falta de indicação do critério de selecção da factualidade (afirmação igualmente fugidia, já que simultaneamente se afirma que inexistiu selecção de factos).


7. Trata-se esta de questão que o recorrente retoma quando afirma, sinteticamente, que a omissão das formalidades previstas no art. 607º n.º4 do CPC constitui uma nulidade processual prevista no art. 195º n.º1 do CPC (pois aquelas «formalidades» analisam-se na descrição de factos provados e não provados, e respectiva fundamentação). A questão não consta, em rigor, das conclusões, o que deveria justificar a sua exclusão - pese embora, na verdade, ela não tenha realmente autonomia face à questão anteriormente avaliada e excluída [12] (sendo que, inexistindo selecção de factos, inexiste obviamente qualquer inerente dever de fundamentação).


8. De seguida, o recorrente volta a invocar a falta de indicação de factos provados e não provados como causa de nulidade do despacho mas agora sob a veste da omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º n.º1 al. d) do CPC, norma da qual decorre que a omissão de pronúncia existe quando O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.


Esta omissão de pronúncia ocorre quando o tribunal deixe de apreciar questões que, nos termos do art. 608º n.º2 do CPC, devia ter conhecido. A noção de questões relevante para este efeito, co-determinada pela definição do âmbito do caso julgado, corresponde às questões de direito correspondentes aos pedidos, causas de pedir e excepções formuladas (ou, nas excepções, também as oficiosamente cognoscíveis). Logo por qui se vê que não contempla a falta de fundamentação (a sua omissão), a qual corresponde a vício distinto (e já invocado e apreciado).


Inexiste, pois, também esta nulidade.


9. O recorrente efectua ainda uma enigmática referência a um «erro de julgamento sobre a matéria de facto, pois os elementos de prova apresentados com os embargos impunham decisão diversa». Tal afirmação vem colocada apenas nas conclusões (concl. 10), não tendo sido objecto de discussão nas alegações, o que a tornava irrelevante. Pois, como as conclusões constituem mera precipitação da prévia alegação (na alegação desenvolve-se a tese; nas conclusões aquela alegação é enunciada de forma resumida, meramente enunciativa), a falta de alegação que sustente a conclusão inviabiliza a apreciação desta questão [13]. E assim é também porquanto as conclusões, dada a sua exposta natureza (de síntese do alegado), não podem inovar nem ampliar o recurso (como aliás deriva, a contrario, do art. 635º n.º4 do CPC, pois aí admite-se a restrição mas não a ampliação do recurso nas alegações). Sem embargo, a afirmação não tem alcance próprio pois o despacho recorrido não efectuou qualquer julgamento sobre a matéria de facto, tendo apenas apreciado a viabilidade dos embargos, a qual recusou. Seria sempre a menção irrelevante.


10. Sendo estas as questões trazidas ao recurso, tem este que improceder.


11. As custas correm pelo recorrente por decair no recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.


Custas pelo recorrente.


Notifique-se.

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).


Relator:


António Fernando Marques da Silva


Adjuntos:

Sónia Moura

Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto

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1. Em regra porque se discute se aquele indeferimento liminar pode ser precedido de despacho de aperfeiçoamento.↩︎

2. É a qualificação que deriva do art. 590º n.º1 do CPC, o qual pode ser usado como modelo do critério do indeferimento liminar (aplicável por interpretação extensiva do art. 549º n.º1 do CPC).↩︎

3. Poderiam era discutir-se os seus fundamentos, mas esta discussão o recorrente não empreende.↩︎

4. Esta norma reporta-se a acção ou procedimento cautelar, permitindo a discussão sobre o seu alcance, mormente quanto à integração dos incidentes (embora os embargos de terceiro acabem por adoptar a estrutura de uma acção: art. 348º n.º1 do CPC). Não obstante, e ainda que se adopte uma solução mais literal, tal não prejudica o entendimento, geral, do texto.↩︎

5. Jurisprudência 11.09.2019 (73), no Blog do IPPC, online.↩︎

6. Sempre, como referido, sujeitos a controlo por via de recurso.↩︎

7. Esta solução, da desnecessidade de audição que anteceda o despacho de indeferimento liminar, é claramente maioritária, como se alcança dos Ac. do TRL de 11.05.2021, proc. 82020/19.9YIPRT.L1-7 ou de 18.01.2023, proc. 8095/21.7T8ALM.L1-4 (em 3w.dgsi.pt).↩︎

8. Assim, L. Freitas e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 1º, Almedina 2021, pág. 323.↩︎

9. V. A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 135.↩︎

10. L. de Freitas sustenta a aplicação, «com as devidas adaptações», do art. 607º n.º4 do CPC aos despachos (Novos estudos sobre direito civil e processo civil, Gestlegal 2021, pág. 39).↩︎

11. Tal como ocorreu, aliás, na decisão impugnada.↩︎

12. Tirando o paradoxo de o recorrente considerar o vício uma nulidade da decisão e simultaneamente uma nulidade processual.↩︎

13. Assim, A. Geraldes, ob. cit., pág. 135, e R. Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 295 (se as conclusões versam matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes, diz-se aí, aderindo a Ac. do TRC, proc. 1840/16).↩︎