Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
58/14.5GAGLG.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: INCÊNDIO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 02/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Para o tipo penal do artigo 274º, o incêndio florestal, são essenciais os conceitos de «atear fogo» e «incêndio».
2 - O atear fogo será um dos elementos que delimita negativamente o tipo penal. Quem ateia fogo não causa, ipso facto, incêndio. O tipo penal exige um mais! Por isso que se imponha determinar em termos de facto se estamos perante atear fogo ou se já estamos perante incêndio, tendo presente que será a tónica do excesso que delimitará os dois conceitos.

3 - Apesar de os elementos objectivos do tipo penal de “incêndio florestal” se bastarem quanto à caracterização do conceito de incêndio – exclusão do “atear fogo”, como delimitação negativa do tipo penal – é essencial fazer a exegese do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28-06 (alterado pelo Decreto-Lei n.º 17/2009, de 14-01) pois que tal diploma rege sobre o direito contra-ordenacional e estabelece outras duas fronteiras “negativas” do tipo penal. Referimo-nos às “queimas” e “queimadas”.

4 - Em breve, o que é fogo, fogueira, queima e queimada não é incêndio.

5 - Nos termos do artigo 27º, n. 4 do diploma “a realização de queimadas só é permitida fora do período crítico e desde que o índice de risco temporal de incêndio seja inferior ao nível elevado”. Ora, no caso, ambas as condições estavam preenchidas. Ou seja, a realização de queimadas é permitida fora do período crítico e desde que o índice de risco temporal de incêndio seja inferior ao nível elevado.

6 - Aqui rege o artigo 39º do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18-12, que estatui ser “proibido acender fogueiras nas ruas, praças e mais lugares públicos das povoações, bem como a menos de 30 m de quaisquer construções e a menos de 300 m de bosques, matas, lenhas, searas, palhas, depósitos de substâncias susceptíveis de arder e, independentemente da distância, sempre que deva prever-se risco de incêndio”.

7 - Por sua vez e preceituando sobre “queimadas” o artigo 40º do mesmo diploma afirma que é proibido fazer queimadas que de algum modo possam originar danos em quaisquer culturas ou bens pertencentes a outrem e que a câmara municipal pode autorizar a realização de queimadas, mediante audição prévia dos bombeiros da área, que determinarão as datas e os condicionamentos a observar na sua realização».

8 - Ora, “fogueiras” ou “queimadas”, na análise destes diplomas, já nos coloca a fazer uma exegese estranha ao tipo penal. Estamos, portanto a lidar com tipos contra-ordenacionais de que não curamos por ser de competência administrativa e por nos presentes autos estar ausente o apuramento dos factos essenciais a qualquer juízo sobre ilicitude e culpa contra-ordenacional.

Decisão Texto Integral:






Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório

Na Secção de Competência Genérica do Tribunal correu termos o processo comum singular supra numerado no qual o arguido A. nascido a 18.11.1945, foi:

- Absolvido da prática do crime de incêndio florestal a título doloso pelo qual vinha acusado;

- Condenado pela prática de um crime de incêndio negligente, p. e p. pelo art.º 274º ns.º 1 e 4 do Cód. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 5,50 cinco euros e cinquenta cêntimos perfazendo um total de € 550, 00 (quinhentos e cinquenta euros).


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O Ministério Público havia imputado ao arguido a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de incêndio florestal, previsto e punível pelo artigo 274°, n. 1, do Código Penal.

Foi comunicada uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do disposto pelo artigo 358°, n. 1 e 3 do Código de Processo Penal.


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Inconformado, o Exmº Procurador-Adjunto no tribunal recorrido interpôs o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:

A sentença recorrida enferma dos vícios enunciados na al. b), 1ª parte, e al. c), do nº 2 do art. 410º do CPP, o que resulta manifestamente do seu texto, por si e à luz das regras da lógica e da experiência comum;

De facto, entre os factos provados e os factos não provados existe uma contradição insanável, fruto de erro notório, ostensivo e gritante na apreciação da prova produzida;

Na verdade, o último facto não provado – “Ao agir do modo descrito, o arguido previu e quis agir sempre com o propósito de provocar um incêndio” devia ter sido julgado provado, pois é a decorrência lógica, natural e normal dos factos provados constantes dos nºs 1 a 7;

Afirmando-se, na sentença recorrida, que o arguido ateou fogo a terreno ocupado com silvas e mato, com o propósito de conseguir passagem para outro terreno, não pode, depois, o mesmo Tribunal concluir que o mesmo não agiu com dolo, isto é, que não quis e conseguiu queimar as referidas silvas e mato;

Como também não pode o Tribunal a quo concluir, em face dos factos provados 1. a 7., que o arguido agiu de modo negligente e leviano, “não tendo representado como possível que a sua conduta provocasse um incêndio naquele terreno”;

E que o arguido teria então descurado um determinado elenco de deveres objectivos de cuidado, formulado “esforçadamente” pelo Tribunal a quo, tais como o não estar autorizado para proceder a qualquer queimada ou o estar sozinho numa zona de floresta, sem estar munido de instrumentos que lhe permitissem controlar aquela queima, deveres estes que bem revelam o profundo equívoco do Tribunal a quo na apreciação da prova;

Na fundamentação de direito da sentença, o M.º Juiz a quo começa por não convocar a correcta norma jurídica aplicável ao caso concreto, uma vez que decompõe o elemento objectivo do crime de incêndio florestal tendo por base a versão da norma do art. 274º-1 do CP anterior à alteração introduzida pela Lei nº 56/2011, de 15 de Novembro, aqui não aplicável, tendo em conta a data dos factos – 10.03.2014;

Na sentença recorrida, o M.º Juiz a quo parece querer distinguir entre o início da queima das silvas e o “incêndio” resultante da propagação daquele fogo ao terreno circundante;

Ora, tal distinção não tem qualquer razão de ser, dado que o incêndio é só um, o que é ateado pelo arguido em terreno ocupado por mato e silvas, estas enquanto formações vegetais espontâneas, e que se propagou por uma área de 0,0239 hectares, até ser extinto pelos bombeiros;

10ª O Tribunal a quo inexplicavelmente não deu como provado o dolo do imputado crime de incêndio florestal, sendo que este, na modalidade de dolo directo, é uma decorrência normal e típica dos factos provados 1. a 7., à luz das regras da experiência comum, pelo que deveria ter sido dado igualmente por provado;

11ª Os factos dados como provados nos nºs 8 a 10 são, assim e também, ilógicos e flagrantemente contraditórios com os factos provados constantes nos nºs 1 a 7;

12ª Tendo ficado provado que o arguido ateou fogo a silvas de altura considerável e mato, implantadas em terreno alheio, como forma de garantir a sua passagem pelo mesmo até alcançar terreno sito em Casal da Pereira, na Chamusca, é evidente, manifesto, notório e ostensivo que ele quis e conseguiu provocar tal incêndio, bem sabendo que tal conduta era reprovável e punida por lei criminal e que, ao agir do modo descrito, incorria em responsabilidade criminal;

13ª A sentença recorrida, que está flagrantemente inquinada, alinhou por uma construção factual, doutrinal e jurídica clamorosa, notória e manifestamente virtual, arredando-se da realidade e das regras da experiência comum, condenando o arguido pela prática de um crime de incêndio florestal negligente, quando a sua conduta é, sem qualquer dúvida, integradora do crime doloso que lhe vinha imputado na acusação e pelo qual deve ser condenado;

14ª Ao decidir neste sentido, o M.º Juiz a quo fez ainda incorrecta aplicação do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 127º do CPP, e violou, entre outros, o disposto no art. 274º, nº 1, do CP, na redacção introduzida pela Lei nº 56/2011, de 15 de Novembro.

Termos em que, dando-se provimento ao recurso e, em consequência, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra onde se dê como provado o dolo directo do arguido A. e, em consequência, se condene o mesmo, pela prática de um crime de incêndio florestal, p. e p. no art. 274º, nº 1, do Código Penal, numa pena justa e equilibrada, tendo em conta a moldura abstracta da pena aplicável, nos termos sobreditos, farão V. Ex.ªs a costumada JUSTIÇA!


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O arguido apresentou resposta defendendo a improcedência do recurso, com as seguintes conclusões:

1 – O douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” fez uma correcta apreciação da prova produzida e da matéria de facto dada como provada.

2- Considerando que o arguido não agiu com dolo.

3 – Mas sim, actuou com uma conduta negligente.

4 - Termos em que, nos melhores de direito e, invocando ainda o douto suprimento de Vossa Excelências, devem:

5 – Concluir pela improcedência do Recurso.

6 – Devendo o douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” ser confirmado.

7 – E, consequentemente, ser negado provimento ao presente Recurso.


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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação apôs visto nos autos.

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B - Fundamentação

B.1.a) - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 10.03.2014, pelas 17h20m, o arguido deslocou-se a terreno sito em Casal, sendo que, para aí chegar, se mostra necessário atravessar um caminho florestal, passando também por terreno pertencente a B.

2. Nesse caminho e por aí existirem silvas de altura considerável, o que lhe impedia a passagem, o arguido, de modo não concretamente apurado ateou fogo às silvas aí existentes.

3. Ora a queima de tais silvas veio a provocar um fogo que incendiou e destruiu uma área de 0,0239 hectares, atingindo a propriedade de B, tendo ardido silvas e mato.

4. Para combater tal incêndio foi necessária a comparência dos Bombeiros Voluntários que receberam uma comunicação de incêndio e deslocaram-se ao local, extinguindo-o.

5. Este incêndio foi combatido, durante cerca de 15 minutos, por um total de quatro bombeiros, com a utilização de uma viatura.

6. Na data, hora e local referidos em 10, o tempo estava seco, embora o risco de incêndio florestal era reduzido.

7. O arguido não tinha qualquer autorização para proceder a qualquer queimada no referido local.

8. O arguido não actuou com a diligência e o cuidado devidos e que uma pessoa sensata e prudente, colocada na situação concreta no momento da acção, teria observado.

9. Ao agir da forma descrita, o arguido actuou de modo leviano e com manifesta falta de zelo, não tendo representado como possível que a sua conduta provocasse um incêndio naquele terreno, naquele dia e apesar dessas consequências serem previsíveis para alguém cuidadoso e prudente colocado na sua situação.

10. O arguido agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais, ao queimar as silvas nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências possíveis da sua conduta.

11. O arguido está reformado. Aufere uma reforma de cerca de 545,00 €. Vive com a mulher. Tem o 4.0 ano de escolaridade. O arguido é tido na comunidade um homem pacato, pacífico e amigo do seu amigo.

12. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.


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B.1.b) - Factos não provados

- Que os bombeiros tenham estado uma hora a combater o incêndio em causa.

- Que o terreno em causa fosse do arguido.

- Que para além das silvas existisse mato com altura considerável e que o arguido se tenha baixado e ateou fogo no mato seco aí existente, junto ao solo. - Que na data, hora e local referidos em 10, o tempo estava propício à rápida acção do fogo.

- Ao agir do modo descrito, o arguido previu e quis agir sempre com o propósito de provocar um incêndio.


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B.1.c) - B.1 - O tribunal recorrido apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:

«A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto dada como provada, fundou-se nas declarações do arguido, nas declarações das testemunhas inquiridas, assim como no auto de notícia de fls. 3-4, documento de fls. 6-11, relatório de ocorrência de fls. 40, CRC de fls. 84 e informação do IMPA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera) de fls. 157-158.
Para prova dos factos descritos nos pontos 1-5 teve-se em conta o depoimento do arguido que declarou que de facto queimou umas silvas que impediam a sua passagem em terreno agrícola, todavia refere que não era sua intenção provocar um incêndio, sendo que segundo o arguido ele tinha a queima das silvas controlada, estando aliás munido de enxada e barril de água (nesta última parte nenhuma prova corroborou a afirmação do arguido de que estava munido de instrumentos que lhe permitiam controlar o incêndio que entretanto deflagrou).
Foi ainda valorado o depoimento da testemunha C, que foi o militar da GNR que elaborou o auto de notícia, declarou que foi chamado ao local porque estava a deflagrar um incêndio, sendo a área consumida a que resulta da medição feita por GPS por parte do Núcleo de Protecção ambiental (razão pelo qual o valor que consta do auto de notícia não é o mais exacto). Foi também valorado o depoimento de D, militar da GNR que foi ao local, mas que quando chegou o incêndio já estava extinto, esta testemunha confirmou a versão do arguido que o mesmo apenas pretendia queimar as silvas para poder passar. O depoimento destas testemunhas foi credível atento o modo sério e coerente com que depuseram, para além de haver corroboração com a prova documental junta.
Já a proprietária do terreno apenas afirmou que o terreno é seu, não tendo qualquer interesse no procedimento criminal.
Importante para os autos foi o depoimento de E, mestre florestal do SEPNA da GNR que declarou que viu uma coluna de fumo e deslocou-se ao local onde estava o arguido a fazer uma queimada de silvas, mas que a mesma era extensiva e porque a mesma poderia fugir ao controlo do arguido, sentiu necessidade de chamar os bombeiros, uma vez que a zona é de floresta e o arguido já não conseguiria apagar o incêndio que entretanto se iniciava sozinho. O depoimento desta testemunha revelou-se credível, porquanto o mesmo limitou-se a relatar os factos que havia presenciado e isento, uma vez que a testemunha se encontrava no exercício das suas funções profissionais.
Para prova dos factos referidos nos pontos 4. e 5. Foram ainda valorados os depoimentos dos bombeiros que se deslocaram ao local, a saber F, G, H e I, bem como o documento de fls. 40
Os depoimentos destas testemunhas (designadamente de F, uma vez que os restantes bombeiros pouco se lembravam da ocorrência em causa) revelaram-se credíveis, porquanto os mesmos limitaram-se a relatar os factos que haviam presenciado e isentos, uma vez que a testemunhas se encontravam no exercício das suas funções profissionais.
O facto descrito no ponto 6. Resulta da informação do IMPA de fls. 157-158.
O facto descrito no ponto 7. é incontroverso porquanto é admitido pelo arguido.
Os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo (sob os n.os 8 a 10) extraem-se da matéria objectiva dada como provada que permitiu a este Tribunal, com base nas regras de experiência comum, inferir a sua verificação. De facto o arguido apenas pretendia queimar umas silvas que impediam a sua passagem sem que tenha tido o cuidado necessário para o fazer, ou seja o arguido não quis o incêndio, tendo o mesmo surgido em consequência da sua falta de cuidado.
Relativamente às condições pessoais do arguido, teve o tribunal na base da sua convicção o teor das declarações deste, na parte que nos mereceram credibilidade, bem como nas declarações de J e L que tiveram um depoimento credível, revelando conhecer o arguido por serem seus amigos e com ele privarem.
Quanto aos seus antecedentes criminais, teve o tribunal em consideração o teor do CRC, do arguido, actualizado, junto aos autos.
No que concerne aos factos não provados o tribunal atendeu à circunstância de não ter sido produzida prova no sentido da sua verificação, por outro lado não foram levados aos factos não provados os factos incompatíveis com os factos provados.
Cumpre esclarecer que relativamente aos factos atinentes ao elemento subjectivo e como referimos supra os mesmos resultam da análise dos factos objectivos em conjugação com as regras de experiência e da lógica. Ora e como evidenciámos supra a acção do agente não foi de querer provocar o incêndio, ou vê-lo como algo necessário e decorrente da sua conduta, ou mesmo conformar-se com a possibilidade de provocar o incêndio, na verdade, o que o arguido quis fazer foi queimar umas silvas, não tendo tomado os cuidados necessários essa queimada descontrolou-se, mas tal não implica que o arguido tenha provocado dolosamente um incêndio. Se atentarmos aos aos elementos objectivos recolhidos verificamos que não está provado o dolo do agente. A igual solução chegaríamos conjugando os elementos recolhidos com o princípio in dubio pro reo - critério decisivo em matéria de apreciação da prova».

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***


Cumpre decidir.

B.2 - A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

São três as questões suscitadas pelo recorrente:

- a contradição insanável da fundamentação e o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, n. 2, al. b), 1ª parte e c), respectivamente, do C.P.P. – conclusões 1ª a 6ª;

- a errada interpretação do tipo penal contido no artigo 274º, nº 1 do Código Penal – conclusões 7ª a 13ª.


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B.3 – As razões para que o recorrente afirme que os factos provados levam necessariamente à existência de um “incêndio” doloso entendem-se desde que o conceito de incêndio corresponda à definição seguinte ou equivalente: “provocar de chamas em qualquer local e em qualquer circunstância”.

De tal forma amplo que impede se retire qualquer operatividade ao conceito. Não é assim!

Aliás, tudo aquilo que o recorrente define como “vício de facto” advém da indefinição prévia desse conceito de incêndio.

Desde logo é contra-indicado o fazer constar de tal termo – incêndio - da matéria de facto quando, como é manifesto, ele já passou à categoria de conceito normativo.

Não foi por acaso que o legislador alterou o tipo penal de incêndio florestal, autonomizado-o do inicial crime de incêndio do artigo 272º do Código Penal, cujo tipo - na redacção do Decreto-lei n.º 48/95, de 15-03 - previa no seu número um que o incêndio de relevo podia ocorrer, “nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara”.

Na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, já autonomizado o tipo de incêndio florestal, o nº 1 do artigo 274º dispunha:

1 - Quem provocar incêndio em floresta, mata, arvoredo ou seara, próprias ou alheias, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

Com a redacção dada pela Lei n.º 56/2011, de 15/11, a aplicável ao caso sub iudice, o preceito passa a estatuir:

1 - Quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Como claramente se deduz da literalidade da norma o tipo penal passa a ser mais abrangente, prevendo realidades excluídas da anterior redacção, designadamente para o que aqui releva, o “mato” e as “formações vegetais espontâneas”.

Ficamos, no entanto, com o mesmo problema: o que é um incêndio? Mais, como o tipo penal é de «incêndio florestal» a pergunta final correcta será essa: o que é um «incêndio florestal»? E o tipo penal não dá resposta a qualquer das questões.

Mas há um contributo relevante já dado pela doutrina e pela jurisprudência na definição de outro conceito, o de “incêndio de relevo”, já anteriormente constante do artigo 272º, nº 1, al. a) do Código Penal, também em duas versões tipológicas, cujas diferenças para o caso não relevam.

Aí fixou-se o entendimento de que «incêndio de relevo” era um conceito necessariamente dependente de um critério quantitativo, adiantando-se a diferenciação de dois conceitos que se revela essencial compreender para enfrentar estes dois tipos penais: “atear um fogo é desencadear uma combustão com material a isso propenso” (…). “Incêndio pressupõe em definitivo uma tónica de excesso”.

Neste ponto basta recordar – como acabámos de fazer – e remeter para as considerações do Prof. Faria Costa no “Comentário Conimbricense (Tomo II, edição de 1999, pag. 870), pois que seria insensatez estar a tentar dizer melhor.

Isto é, há uma óbvia diferença entre “atear fogo” e “causar incêndio”, já que aquele conceito é diverso deste. Ou seja, ficámos com três conceitos para a análise daquele tipo penal, o conceito de «atear fogo», o conceito de «incêndio» e o conceito de «incêndio de relevo».

Mas é necessário ter presente que nesse sub-tipo penal [actual artigo 272º, n. 1, al. a)] se revela indispensável fazer a distinção entre dois conceitos, o de “incêndio” e o de “relevo” que a norma aglutina na mesma realidade normativa, incêndio de relevo.

Esta última noção, o relevo, deve entender-se como o incêndio que tem “uma extensão ou uma intensidade que se devam considerar, à luz das regras da experiência, como manifestas, indiscutíveis ou relevantes” (Prof. Faria Costa, ob. cit., pags. 870-871).

E se o conceito de “relevo” não releva para o tipo penal do artigo 274º, o incêndio florestal, os outros dois conceitos - «atear fogo» e «incêndio» - mantêm todo o interesse. Aliás, são indispensáveis.

Desde logo porque o atear fogo será um dos elementos que delimita negativamente o tipo penal. Quem ateia fogo não causa, ipso facto, incêndio. O tipo penal exige um mais!

Por isso que se imponha determinar, no caso dos autos, se estamos perante atear fogo ou se já estamos perante incêndio, tendo presente que será a tónica do excesso que delimitará os dois conceitos.

E o Prof. Faria Costa tem um exemplo que é elucidativo e coloca o caso sub iudicio nas suas devidas proporções: “… se A faz um pequeno fogo – aliás, abolutamente controlado – para queimar as silvas e algum restolho e se B, sem A disso dar conta, lança para o meio do fogo, uma lata de gasolina, não temos dúvidas algumas em considerar que é B quem provoca o incêndio. Porque, não obstante a existência do fogo que A ateara, é B que o intensifica para níveis que se devem qualificar já de incêndio” (ob. e loc. cit.).


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B.4 – É sabido que a mais recente legislação ambiental se tem mostrado cada vez mais radical e limitativa de direitos do cidadão, mas não convém homologar condutas excessivas das entidades públicas e que, no caso concreto, roçam o ridiculo.

Também convém não esquecer que o ambiente rural, a sociedade rural, deve ser analisado com regras de experiência comum que lhe são próprias, rurais, e não com as regras de experiência comum urbanas de quem pretende a aplicação das normas e a apreciação dos factos com uma visão asfaltada da vida rural.

E, nessa vida rural, o fogo é ancestralmente usado, também, como ferramenta. E, nesta visão, queimar silvas tem tudo de natural.

Aliás, um dos elementos da GNR que prestou depoimento – D - confirmou as declarações do arguido, afirmando que este apenas pretendia queimar as silvas. Até a testemunha que chamou os bombeiros, E, se refere a “queimada” de silvas.

Há, portanto, um agir doloso do arguido quanto ao “atear” o fogo, sem dúvida. Já não há quanto ao incêndio. Sequer dolo eventual.

Por isso que baqueiem as duas pretensões factuais do recorrente. Nem há erro notório na apreciação da prova – por este motivo – nem contradição na fundamentação.


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B.5 – Ora, que nos dizem os factos? Que o “incêndio” tinha estas características:

3. Ora a queima de tais silvas veio a provocar um fogo que incendiou e destruiu uma área de 0,0239 hectares, atingindo a propriedade de B, tendo ardido silvas e mato.

4. Para combater tal incêndio foi necessária a comparência dos Bombeiros Voluntários que receberam uma comunicação de incêndio e deslocaram-se ao local, extinguindo-o.

5. Este incêndio foi combatido, durante cerca de 15 minutos, por um total de quatro bombeiros, com a utilização de uma viatura.

6. Na data, hora e local referidos em 10, o tempo estava seco, embora o risco de incêndio florestal era reduzido.

O facto 3) fala em “queima de silvas” e “fogo” e os factos 4) e 5) falam em “incêndio”.

Pelo meio ficam ardidos 0,0239 hectares.

No total arderam 0,0239 hectares! Parece muito porque se fala em hectares. Quantos serão os metros quadrados? 239? Pois! E foram necessários 4 bombeiros, uma viatura e 15 minutos para o extinguir.

Não levamos em conta a circunstância de o auto de notícia falar em queima de 80 m2, como realidade factual que dá início ao procedimento, depois extendida para os tais 239 m2 por via de uma medição via GPS, que foi aceite pelo tribunal recorrido. Ou seja, aceitamos tal apreciação factual pois que a leitura da decisão recorrida não permite concluir que haja aqui erro notório na apreciação da prova

Será este o excesso? Pouco para excesso em área rural.

Não só apenas se prova que o arguido ateou fogo e que uma testemunha apenas chamou os bombeiros por receio de o mesmo ficar sem controlo (ou seja, não se prova o descontrolo), como não se caracteriza – sequer na acusação – as características do terreno, suas confrontações com elementos de risco e sua natureza. Designadamente, qual a extensão de silvas a que o arguido pretendia atear fogo e qual a área (e materiais) que ardeu para além das silvas – se ardeu – e eventualmente fora do controlo do arguido.

Só isto já poria em causa a decisão de aceitar alguns dos factos como provados e de integrar os que sobram num qualquer tipo penal.

Por isso que se deva concluir que há erro notório na apreciação da prova quanto aos factos provados sob 4) e 5) quando se referem a “incêndio”, que se deve ler como “fogo”.

Não olvidemos que o tribunal deu como provado que:

8. O arguido não actuou com a diligência e o cuidado devidos e que uma pessoa sensata e prudente, colocada na situação concreta no momento da acção, teria observado.

9. Ao agir da forma descrita, o arguido actuou de modo leviano e com manifesta falta de zelo, não tendo representado como possível que a sua conduta provocasse um incêndio naquele terreno, naquele dia e apesar dessas consequências serem previsíveis para alguém cuidadoso e prudente colocado na sua situação.

10. O arguido agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais, ao queimar as silvas nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências possíveis da sua conduta.


Se como afirmámos supra, os factos são insuficientes para caracterizar o «incêndio», sua área de propagação e materiais ardidos, para além das silvas que o arguido pretendia destruir, como concluir que houve a violação de deveres de cuidado?

Também aqui há erro notório na apeciação da prova, o que implica que os factos sob 8), 9) e 10) devam ser dados como não provados, pois que se referem ao tipo penal (e não contra-ordenacional).

É, pois, desapropriado falar em agir negligente.

Os vícios - de erro notório na apreciação da prova - são patentes na leitura da decisão recorrida quanto a tais factos já que, se ausente o “incêndio” (cuja ausência se infere, igualmente, da decisão recorrida), inexistente o dever a ele inerente.

Em consequência, improcede a última razão de desacordo do recorrente.


*

B.6 – Mas mais. Que significado tem o facto provado sob 7?

“7. O arguido não tinha qualquer autorização para proceder a qualquer queimada no referido local”.

O arguido tinha que pedir autorização a alguém? É costume o cidadão ter que pedir autorização a alguém para fazer algo? Não será ao contrário? O cidadão não terá liberdade de acção que apenas pode ser limitada por lei pré-existente? E que lei é essa? Consta da acusação? Consta da sentença condenatória? Qual a fonte normativa da exigência de autorização, da proibição? Qual o relevo do facto provado sob 7)?

Podemos, à partida mas sabendo o caminho a percorrer, afirmar que o facto é irrelevante para a matéria penal.

Há que louvar o tribunal recorrido por ter solicitado ao IPMA o relatório que consta de fls. 158, que conclui que na data dos factos o risco de incêndio era “Reduzido”. Aliás, tal relatório era essencial.

Mas era essencial antes de deduzida acusação. E o facto “risco de incêndio” e seu enquadramento no dia em questão era essencial ao teor da acusação. Desde que a acusação tivesse sido deduzida em provcesso contra-ordenacional.

As Classes de Risco de Incêndio por Concelho – RCM - que são 5, vão de “reduzido” a “máximo” (passando por “moderado”, “elevado” e “muito elevado”, sempre na ordem ascendente), assumem uma importância fulcral na delimitação do risco de incêndio e na integração legal de condutas. [1]

Como se afirma na página do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, «O Instituto utiliza o índice meteorológico de risco de incêndio do sistema canadiano FWI (Fire Weather Index)». [2]

Para além da necessidade de ter em atenção o “risco de incêndio” assim objectivamente delimitado, convém saber qual seja o “período crítico de incêndios florestais”.

E para 2014 o “período crítico de incêndios florestais” decorreu entre 1 de Julho a 30 de Setembro, tal como estabelecido na Portaria n.º 110/2014, de 22-05.

Ora, os factos dos autos, de Março, ocorreram portanto fora desse período crítico.

E porquê falar de “risco de incêndio” e de “período crítico de incêndio florestais”?

Porque, apesar de os elementos objectivos do tipo penal de “incêndio florestal” se bastarem com o afirmado supra quanto à caracterização do conceito de incêndio – exclusão do “atear fogo”, como delimitação negativa do tipo penal – é essencial fazer a exegese do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28-06 (alterado pelo Decreto-Lei n.º 17/2009, de 14-01) pois que tal diploma rege sobre o direito contra-ordenacional e estabelece outras duas fronteiras “negativas” do tipo penal.

Referimo-nos às “queimas” e “queimadas”. Em breve, o que é fogo, fogueira, queima e queimada não é incêndio.

Se para efeitos penais o ocorrido não é “fogo”, para efeitos contravencionais (florestais) também não é “queima”. Resta saber se pode ser incluído no conceito de “queimada”.

O diploma define vários conceitos que são relevantes para se ter uma visão ampla dos factos nos presentes autos. Reproduzamos, pois, a definição de tais conceitos, que constam das seguintes alíneas do artigo 3º:

f) «Espaços florestais» os terrenos ocupados com floresta, matos e pastagens ou outras formações vegetais espontâneas, segundo os critérios definidos no Inventário Florestal Nacional;

g) «Espaços rurais» os espaços florestais e terrenos agrícolas;

o) «Índice de risco temporal de incêndio florestal» a expressão numérica que traduza o estado dos combustíveis florestais e da meteorologia, de modo a prever as condições de início e propagação de um incêndio;

s) «Período crítico» o período durante o qual vigoram medidas e acções especiais de prevenção contra incêndios florestais, por força de circunstâncias meteorológicas excepcionais, sendo definido por portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas;

x) «Queima» o uso do fogo para eliminar sobrantes de exploração, cortados e amontoados;

z) «Queimadas» o uso do fogo para renovação de pastagens e eliminação de restolho e ainda, para eliminar sobrantes de exploração cortados mas não amontoados;

hh) «Sobrantes de exploração» o material lenhoso e outro material vegetal resultante de actividades agro-florestais;

Com uma interpretação in bonam parte pode extrair-se da definição de “queimada” que o conceito de restolho permite abranger o atear fogo às silvas, tal como efectuado pelo arguido e tal como supra referido pelo Prof. Faria Costa.

Nos termos do artigo 27º, n. 4 “a realização de queimadas só é permitida fora do período crítico e desde que o índice de risco temporal de incêndio seja inferior ao nível elevado”.

Ora, no caso, ambas as condições estavam preenchidas. Ou seja, a realização de queimadas é permitida fora do período crítico e desde que o índice de risco temporal de incêndio seja inferior ao nível elevado.

Questão está em saber se havia necessidade de obter licenciamento na respetiva câmara municipal ou pela junta de freguesia (se houver delegação de competências), na presença de técnico credenciado em fogo controlado ou, na sua ausência, de equipa de bombeiros ou de equipa de sapadores florestais.

Aqui rege o artigo 39º do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18-12, que estatui ser “proibido acender fogueiras nas ruas, praças e mais lugares públicos das povoações, bem como a menos de 30 m de quaisquer construções e a menos de 300 m de bosques, matas, lenhas, searas, palhas, depósitos de substâncias susceptíveis de arder e, independentemente da distância, sempre que deva prever-se risco de incêndio”:

Por sua vez e preceituando sobre “queimadas” o artigo 40º do mesmo diploma afirma:

«1 — É proibido fazer queimadas que de algum modo possam originar danos em quaisquer culturas ou bens pertencentes a outrem.

2 — A câmara municipal pode autorizar a realização de queimadas, mediante audição prévia dos bombeiros da área, que determinarão as datas e os condicionamentos a observar na sua realização».

Ora, “fogueiras” ou “queimadas”, na análise destes diplomas - e como é evidente - já nos coloca a fazer uma exegese estranha ao tipo penal.

Dispõe o artigo 38º, n. 1 e 2, al. o) do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28-06, que constitui contra-ordenação cuja coima pode ir de 140€ a 5000€, para pessoas singulares, e 800€ até 60000€ para pessoas coletivas, “a infracção ao disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 27.º”.

Estamos, portanto a lidar com tipos contra-ordenacionais, de que não curamos por ser de competência administrativa e por nos presentes autos estar ausente o apuramento dos factos essenciais a qualquer juízo sobre ilicitude e culpa.

Pelo que supra ficou exposto é improcedente o recurso mas haverá, oficiosamente, que alterar os factos dados como provados e daí retirar as devidas ilações.


*

C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 4ª Secção deste tribunal da Relação em:

A - Negar provimento ao recurso interposto.

B – Em oficiosamente:

- Declarar que há erro notório na apreciação da prova quanto aos factos provados sob 4) e 5) quando se referem a “incêndio”, que se deve ler como “fogo”;

- Declarar que há erro notório na apreciação da prova quanto aos factos provados sob 8), 9) e 10) que devem ser dados como não provados;

- Em absolver o arguido da acusação deduzida.

Sem tributação.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 23 de Fevereiro de 2016

João Gomes de Sousa

António Condesso

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[1] - Essas classes podem, no respectivo dia, ser vistas no IPMA (http://www.ipma.pt/pt/ambiente/risco.incendio/).

[2] - in http://www.ipma.pt/pt/enciclopedia/otempo/risco.incendio/index.html?page=index.xml - «O Índice meteorológico de risco de incêndio FWI foi desenvolvido pelo Serviço Canadiano de Florestas e é utilizado por vários países do mundo, em particular na Europa. Através da utilização deste índice é possível estimar um risco de incêndio a partir do estado dos diversos combustíveis presentes no solo florestal, estando esse determinado indiretamente através das observações de elementos meteorológicos.

Para o cálculo do índice de risco de incêndio do sistema canadiano FWI, entra-se em consideração com os valores observados, Às 12 UTC, da temperatura do ar, da humidade relativa, da velocidade do vento e da quantidade de precipitação ocorrida nas últimas 24 horas (12-12 UTC). Sendo o FWI um índice cumulativo, significa que o valor do índice no dia reflete tanto as condições observadas nesse mesmo dia, como a sua evolução ao longo do tempo desde a data de início do cálculo do índice.

O índice FWI é composto por 6 sub-índices que são calculados com base nos valores dos elementos meteorológicos q avaliam diferentes estados possíveis do solo. O índice final FWI é então distribuído segundo a escala distrital de risco de incêndio por um conjunto de cinco classes de risco: Reduzido, Moderado, Elevado, Muito Elevado e Máximo, que correspondem à escala utilizada durante a época de Verão dos incêndios florestais, entre 15 de Maio e 14 de Outubro.

Desde 2002 que o índice FWI é calculado diariamente pelo Instituto sem interrupções ao longo do ano, com utilização operacional nas ações de prevenção e combate dos incêndios florestais, inclusive na época de Inverno, onde passou a utilizar-se uma nova escala, também à escala distrital, com redução a três níveis: Baixo, Médio e Alto».