Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | TOMÉ DE CARVALHO | ||
Descritores: | INTERPRETAÇÃO DA LEI NACIONALIDADE COMPETÊNCIA MATERIAL UNIÃO DE FACTO | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | 1 – A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicada. 2 – A interpretação da disciplina precipitada no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade não pode ficar restrita ao seu elemento literal e tem de ser enquadrada em critérios hermenêuticos actualistas, face à evolução legislativa entretanto ocorrida. 3 – A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível. 4 – Alterada a Lei da Organização do Sistema Judiciário, atenta a previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei n.º 62/2013, de 26/08, face à opção legislativa de especialização e concentração de matérias de direito da família em juízos especializados, encontrando-nos no domínio de uma acção que tem como pressuposto e objectivo apurar uma realidade relativa ao estado civil de pessoas, os Juízos de Família e Menores são actualmente materialmente competentes para preparar e julgar as acções de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 928/24.2T8OLH.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local de Competência Genérica de Olhão – J1 * Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora: * I – Relatório: Na presente acção comum proposta por (…) e (…) contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, os Autores vieram interpor recurso do despacho de indeferimento liminar. * Os Autores pediram que fosse reconhecida judicialmente a união de facto dos Autores durante 1 (um) ano, 10 (dez) meses e 11 (onze) dias (desde 06/07/21 até 16/05/2023), nos termos e para efeitos dos artigos 3.º da Lei da Nacionalidade e 14.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa. * Os Autores invocaram que, antes do matrimónio, viveram em condições análogas às dos cônjuges por um período de 1 (um) ano, 10 (dez) meses e 11 (onze) dias. * Por decisão datada de 17/10/2024, o Tribunal a quo declarou o Juízo de Competência Genérica de Olhão absolutamente incompetente por violação das regras de competência em razão da matéria, indeferindo liminarmente a petição inicial. * Inconformados com tal decisão, os recorrentes apresentaram recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões: «I. Em causa está, pois, a proposição de uma acção para o reconhecimento judicial da situação de união de facto – ao abrigo e para efeitos do n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade. II. O que foi feito mediante apresentação em juízo cível (rectius, juízo de competência genérica3) de Olhão, ao invés daquilo que intuitivamente – concede-se – resultaria da interpretação do ordenamento jurídico adjetivo, i.e. os juízos de família e menores. III. Caberá por isso esclarecer que a decisão – ponderada – de o fazer resultou de uma análise cuidada da jurisprudência nacional; tendo em conta a circunstância de a praxis judiciária pender maioritariamente para a solução de atribuir competência ao “tribunal cível”4 (rectius, juízos cíveis). Das quais são representativos, entre muitos outros, os seguintes acórdãos: • Acórdão Tribunal da Relação do Porto (Proc. 1196/23.9T8MTS.P1, Judite Pires, 25-01-2024; • Acórdão Tribunal da Relação Lisboa (Proc. 21648/23.0T8LSB.L1-8, Carla Figueiredo, 20-06-2024); • Acórdão Tribunal da Relação Lisboa (Proc. 10313/22.5T8LSB.L1-6, António Santos, 27-04-2023); • Acórdão Supremo Tribunal Justiça (Proc. 3193/22.2T8VFX.L1.S1, João Cura Mariano, 22/06/2023); • Acórdão Supremo Tribunal Justiça (Proc. 5034/23.4T8ALM.L1.S1, Emídio Santos, 04-07-2024); • Acórdão Supremo Tribunal Justiça (Proc. 8894/22.2T8VNG.P1.S1); • Acórdão do Supremo Tribunal Justiça (Proc. 286/20.4T8VCD.P1.S1, João Cura Mariano, 2021-06-17); IV. Infortunadamente para o Autores, o tribunal a quo situa-se na corrente jurisprudencial – sublinhe-se, minoritária – que entende estar na competência dos juízos de família e menores o ajuizamento da situação da união de facto referida no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade – da qual é seu ínclito proponente o Ac. do STJ no Processo n.º 546/22.0TVLG.P1.S1 (16/11/2023). V. Munido deste entendimento, julgou o douto tribunal a quo existir violação das regras da competência em razão da matéria, determinando a sua incompetência absoluta e o indeferimento liminar da petição inicial dos Autores – o que motiva o presente recurso. Ora, VI. É suficiente mau que o ordenamento jurídico nacional lance os Autores ao fardo e obrigação de recorrer á máquina judicial para ver resolvidas questões tão simples e costumeiras que compõem pilares básicos da sua estrutura familiar – como é o reconhecimento da situação de união de facto, consequentemente habilitador do pedido de nacionalidade e organização da vida familiar futura do casal. VII. Asserção que se agrava quando entendida tanto à luz da expectável morosidade e da normal cadência que um processo judicial comporta, como à luz dos gastos e custas processuais que um processo desta ordem pode significar na vida quem quer/está a começar a sua vida em conjunto. VIII. Pior do que isso: é ainda jogar as partes para o meio de uma disputa jurisprudencial de conflito de competências, obrigando-os a uma lotaria na eleição do foro judicial, em função das chances de ser acolhida a hipótese de avaliação da sua pretensão. IX. Com franqueza, não se entende como, face à quantidade de acórdãos proferidos num e noutro sentido (sem conceder que a esmagadora maioria vá no sentido propugnado pelos autores e pelo STJ no Acórdão do Proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1) ainda não exista um acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a matéria. X. Porque, entenda-se, mesmo que os Autores Recorrentes se conformassem com a decisão vertida no despacho do tribunal a quo, nada garante a estes que o juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Faro se viria a considerar competente para julgar a causa. A última coisa que os Autores querem é ver-se metidos no meio de um conflito negativo de competências – cada vez com mais custos e morosidade. XI. Pelo contrário, o que os Autores pretendem é a resolução célere destes autos, para que possam ambos prosseguir com o seu projecto de família. XII. É por isso imperioso que, no seio dos presentes autos, o douto tribunal ad quem designe quais dos juízos têm competência para julgar o caso sub judice. Ou bem que é o juízo de família e menores do Tribunal judicial da Comarca de Faro ou bem que é o Juízo de competência genérica de Olhão, onde residem os Autores (como aqui se propugna). Ora, XIII. Porque, por vezes, parece negligenciado ou esquecido no âmbito da discussão puramente adjetiva de que demos conta acima, neste tipo do acções está em causa, na verdade, tão somente, o apuramento de factos simples. A saber: se os Autores têm ou não uma vida em comum; se vivem juntos; se partilham teto e leito; se têm um projecto de vida em comum e há quanto tempo. XIV. Um processo que, na sua substância, se apresenta virtualmente simples, desejavelmente célere e sem delongas e incidentes anómalos ou contraditórios alongados. Como é bom dever, não se pede ao tribunal a resolução de qualquer litígio familiar, mas antes a verificação de um simples pressuposto para atribuição da nacionalidade…. XV. Argumento este que, forçosamente, atribui sentido à permanência deste tipo acções na esfera de competências atribuída às secções cíveis ao invés dos juízos de família e menores – por força da lei especial vertida no art. 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, por contraponto com a lei geral vertida no artigo 122.º da LOSJ. Com efeito, XVI. Ainda que se reconheça – como bem ilustra a decisão ora recorrida – a existência de uma corrente jurisprudencial diferente daquela aqui perfilhada pelos Autores, não poderá haver dúvidas quanto á existência de uma esmagadora maioria de decisões no sentido proposto pelos Autores – especialmente quando considerados os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça acima referenciados. Por certo não se discute a liberdade que cada tribunal tem para apreciar, ainda que em sentido e em rumo minoritário, qualquer questão trazida ao seu desenlace. Contudo, não podemos negligenciar o valor da praxis jurídica e do precedente jurisdicional e a sua desejada influência nas decisões tomadas pelos nossos tribunais. XVII. No entendimento dos Autores, as questões suscitadas pelo tribunal a quo, com auxílio da fundamentação carreada no Ac. do STJ (Proc. n.º 546/22.0T8VLG.P1.S1, Maria Clara Sottomayor, de 16/11/2023), não se vislumbram suficientes para ajuizar incompetente, em razão da matéria, os juízos cíveis. XVIII. De facto, perfilhando a posição vertida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1, João Cura Mariano, 22/06/2023) entendem os Autores que não é suficiente dizer que a competência para julgar estas ações pertence aos tribunais de competência especializada de família e menores, pelo facto de este tipo de ações se enquadrar na competência especializada atribuída na referida alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, aos tribunais de família e menores, por se tratarem de ação relativas ao estado civil das pessoas. Como é ajuizado pelo douto tribunal superior, parece-nos que «estes arestos não têm, porém, valorizado a menção de atribuição de competência específica aos tribunais cíveis para decidir estas ações que consta do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, sendo certo que nada impede o legislador de atribuir competência específica para o julgamento de determinadas ações, contrariando as regras gerais de competência dos diferentes tribunais judiciais especializados constantes da LOSJ» XIX. Por outras palavras, para descartar a corrente jurisprudência maioritária (e, bem assim, a letra da lei) não basta dizer – como faz o Acórdão do STJ (Proc. n.º 546/22.0T8VLG.P1.S1 – que maior racionalidade sistémica haveria na solução de conferir competência aos juízos de família e menores. A solução terá forçosamente de ser aferida à luz de todo o marco legislativo nacional existente, norteada pelo princípio da prevalência da lei especial sobre a lei geral. Sendo certo que – como já se teve oportunidade de aqui referir – mesmo de um ponto de vista de racionalidade da solução legal, logra sentido a permanência deste tipo de acções na competência dos juízos cíveis tendo em conta que o seu objecto se preenche com a simples verificação factual de um pressuposto para o pedido da lei da nacionalidade – e não da resolução de disputas e litígios de natureza familiar, tipicamente objecto dos juízos de família e menores. XX. Recorrendo à argumentação vertida no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1, João Cura Mariano, 22/06/2023), por facilidade de referência, nesta sede fazemos referência ao seguinte trecho: «Chama-se ainda a atenção para a importância de na interpretação da lei processual, o modelo constitucional do processo equitativo exigir que a definição do sentido das normas que indiquem às partes um determinado comportamento processual que devam seguir, incluindo a daquelas que estabelecem quais os tribunais onde devem ser propostas as ações que os cidadãos decidam instaurar para defesa dos seus direitos, não se traduza numa solução de difícil previsibilidade, afetando a confiança da parte no que a letra do preceito legal dispõe. Essa situação ocorreria, com manifesta ofensa dessa exigência constitucional caso se entendesse que o tribunal competente não é aquele que é indicado no preceito que especificamente determina qual o tribunal onde devem ser propostas um concreto tipo de ações. Ponderados os argumentos da Recorrente, não há, pois, razões para concluir que o disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, se encontre implicitamente revogado,(…) » XXI. Nestes termos, requerer-se que o douto tribunal ad quem julgue competente, em razão da matéria, do tribunal a quo, ou se for o caso – o que não se concede – da competência do juízo de família e menores do tribunal judicial da comarca de Faro. XXII. Atribuindo aos Autores, com isso, importante e desejada certeza quanto ao foro competente e, sobretudo, permitindo aos Autores um caminho adiante. Nestes termos e nos mais de direito que V/Exas. doutamente suprirão, deve ser reconhecido o tribunal a quo como o juízo competente em razão da matéria, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade, revogando a decisão do tribunal a quo». * Admitido o recurso, foi ordenada a citação do Ministério Público, em representação do Réu, para os termos do recurso e da causa. * Efectuada a citação, o Ministério Público não apresentou resposta ao recurso. * Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso: É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma). Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da competência material para a tramitação da presente acção. * III – Dos factos apurados: Os factos com interesse para a justa resolução do litígio são os que constam do relatório inicial. * IV – Fundamentação:Em face do disposto no n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, estabelecendo os artigos 64.º do Código de Processo Civil e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/08), que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tendo consequentemente também competência residual no confronto com as outras ordens de tribunais. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa ensinam que a «competência é, grosso modo, a adstrição a certo tribunal de certa categoria de processos. Vista pelo ângulo do tribunal, a competência pertence à organização judiciária e como tal é regulada pelas leis de organização judiciária (artigos 37.º, n.º 1, 40.º, 41.º e 42.º, n.º 1 e 2, da LOSJ) e, por vezes, pelo CPC (artigos 65.º e 66.º)»[1]. No entendimento de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, «a competência em razão da matéria distribui-se deste modo por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram»[2]. Este critério da competência em razão da matéria não actua «apenas no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, mas também, como resulta do artigo 65.º, no plano da contraposição dos vários tribunais de 1.ª instância entre si»[3]. E, nesta problemática, conforme defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, a distribuição da competência afere-se pelo pedido efectuado e pela causa de pedir[4] [5]. A única questão colocada para apreciação no presente recurso consiste em determinar qual o Tribunal materialmente competente para a tramitação da acção aqui em discussão. Sobre a competência material para o reconhecimento da judicial da união de facto nos termos e para os fins das Leis n.ºs 7/2001, de 11/05 e 37/81, de 03/10 existe múltipla e variada jurisprudência de sentido contraditório. Temos uma linha jurisprudencial a atribuir a competência aos tribunais de competência especializada de família e menores (considerando que esse tipo de acções se enquadra na competência especializada atribuída na referida alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário), por se tratar de acção relativa ao estado civil das pessoas no âmbito do direito da família (uma vez que a designação abarca as condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, onde se devem incluir as que resultam da união de facto)[6] [7]. No sentido da competência pertencer aos tribunais de competência especializada cível (considerando que decorre do texto do n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica ao juízo cível e que é possível que o legislador atribua competência específica para o julgamento de determinadas acções, fora da previsão estabelecida na Lei da Organização do Sistema Judiciário) posicionam-se outros arestos[8] [9]. Em sede de incidentes de conflito de competência, a Presidente do Tribunal da Relação de Évora já tomou posição nas decisões proferidas em 05/02/2024 (Proc. n.º 3417/22.6T8PTM), em 12/02/2024 (Proc. n.º 933/23.6T8PTM) e 17/05/2024 (Proc. n.º 2469/23.6T8STR.E1) e, mais recentemente, o aqui relator, no uso de poderes delegados, em decisão sumária de 23/05/2025 (Proc. n.º 2295/24.5T8STR.E1), optou-se pela solução de fixar a competência material para conhecer do objecto aos Juízos de Família e Menores. Estamos perante um caso onde os argumentos num e noutro sentido são conhecidos, mas em que a indefinição decisória causa alguma incógnita junto dos operadores judiciários e é motivadora de insegurança na resposta do próprio sistema de justiça, sendo que, na sua essência, estamos perante um problema de interpretação da lei. Sobre a problemática da interpretação podem consultar-se Manuel de Andrade[10], Pires de Lima e Antunes Varela[11], Baptista Machado[12], Oliveira Ascensão[13], Castro Mendes[14], Menezes Cordeiro[15], Fernando Bronze[16], Castanheira Neves[17], Herbert Hart[18], Karl Engish[19] e Karl Larenz[20], entre outros. O n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade prescreve que «o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível». Baptista Machado observa muito justamente que o jurista «deve proceder como um agente activo do direito, chamado a descortinar, a interpretar e a conformar segundo a ideia de direito e dinâmica dos dados institucionais face aos movimentos de utilidade social»[21]. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicada (n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil). O enunciado textual da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», como decorre do n.º 2 do preceito sub judice. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil). A teleologia da norma reclama a análise das situações reguladas, do interesse que se pretendeu proteger e do âmbito de tal protecção. Qualquer norma jurídica faz parte de um sistema global que se pretende coerente, não podendo deixar de ser interpretada no âmbito do complexo normativo em que se insere. As circunstâncias políticas, culturais e sociais em que as normas foram elaboradas, eventualmente constantes de trabalhos preparatórios ou preâmbulos dos diplomas legislativos, facilitam a compreensão desta unidade do sistema jurídico. Ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada, o referido artigo 9.º não deixa expressamente de considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada, segmento que assume uma evidente conotação actualista[22] e dinâmica. Estamos absolutamente convictos que a referência a tribunal cível surge no contexto então vigente de repartição material de competências com a jurisdição administrativa e não como norma ad hoc de atribuição directa de uma competência a um determinado tribunal integrado na jurisdição comum. Porém, ainda que, assim não fosse, face à vocação tendencialmente integradora de todas as regras de competência material na Lei da Organização do Sistema Judiciário, para nós, a interpretação da disciplina precipitada no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade não pode ficar restrita ao seu elemento literal e tem de ser enquadrada em critérios hermenêuticos actualistas, face à evolução legislativa entretanto ocorrida. Como afirma Castro Mendes, a interpretação deve ser actualista, pois a lei tem valor como instrumento social e não como peça de tradição[23]. Baptista Machado lembra que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na “unidade do sistema jurídico”[24]. Pinto Monteiro propugna que «particularmente importante, como forma de renovação interna do sistema jurídico (dentro da perspectiva tradicional e corrente) (…) é transpor para a realidade presente o juízo de valor que presidiu à elaboração da norma, adaptando o seu significado à evolução – social e jurídica – entretanto operada, por forma a extrair da norma um novo sentido e ajustá-la assim à evolução histórica ocorrida. O que poderá eventualmente implicar uma mudança de sentido que lhe era originalmente atribuído, em face da realidade histórica vigente ao tempo da sua entrada em vigor»[25]. Neste campo, é de atender que «só será legítimo estender o campo da aplicação da norma, se dela resultar um desfecho que se compagine com o sistema jurídico enquanto unidade e o resultado interpretativo não afrontar o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas valores caros ao Direito»[26]. Buscando apoio em Miguel Teixeira de Sousa, o professor afiança que «a expressão "tribunal cível" pode ser tomada como referindo-se a um género de tribunais judiciais, embora nesse género haja que incluir, como espécies, pelo menos não só o juízo central ou local cível, mas também o juízo de família e menores» e remata que a solução deve ser encontrada na «prevalência da competência especializada dos juízos de família e menores sobre a competência indiferenciada dos juízos centrais ou locais cíveis (artigos 117.º, n.º 1 e 2 e 130.º, n.º 1, da LOSJ)»[27]. Acompanhamos aqui a já citada jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora que defende que a lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível” deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível[28]. De igual modo, este é o entendimento partilhado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/11/2023, que sublinha que «a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais» e que são os Juízos de Família aqueles que estão mais preparados para avaliar «o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa», até porque são dotados de competência para apreciar outras matérias integradas na esfera de protecção da união de facto. Por conseguinte, para nós, sem prejuízo de melhor interpretação, a referência a tribunal cível não corresponde necessária, verbal e estruturalmente ao actual conceito de Juízo Local de Competência Cível. Ademais, apesar da adequação do Código Civil à nova Constituição, a Reforma de 1977 foi bastante parca na consagração de direitos ao nível do reconhecimento da união de facto. Este acervo de direitos apenas é ampliado aquando da elaboração da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio e, sobretudo, por altura da sua alteração através da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, momento em que o legislador ficou mais consciente dos litígios associados ao acordo de coabitação e às respectivas repercussões no domínio dos direitos e deveres que assistem aos unidos de facto. E, assim sendo, em 2006, ao alterar a Lei da Nacionalidade (Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril), o legislador não poderia estar historicamente a impor um determinado modelo de fixação de competência e a ter uma opção sistemática de carácter definitivo. Encontrando-nos no domínio de uma acção que tem como pressuposto e objectivo apurar uma realidade relativa ao estado civil de pessoas. Desta forma, alterada a Lei da Organização do Sistema Judiciário, atenta a previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei n.º 62/2013, de 26/08, face à opção legislativa de especialização e concentração de matérias de direito da família em juízos especializados, os Juízos de Família e Menores são actualmente materialmente competentes para preparar e julgar as acções de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa. Em suma, a lei da nacionalidade ao referir-se a tribunal “cível” está a referir-se ao juízo especializado que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária. Assim sendo, concorda-se com a solução expressa na decisão recorrida, mantendo-se a decisão recorrida. * V – Sumário: (…) * V – Decisão: Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a cargo dos recorrentes, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil. Notifique. * Processei e revi. * Évora, 10/07/2025 José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho Isabel de Matos Peixoto Imaginário Cristina Maria Xavier Machado Dá Mesquita __________________________________________________ [1] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 141. [2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 207. [3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 165. [4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 103. [5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/05/2014, publicitado em www.dgsi.pt. [6] Já referidos na decisão recorrida: Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 09/09/2021 (Proc. n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1), do Tribunal da Relação do Porto de 26/04/2021 (Proc. n.º 12397/20.1T8PRT.P1) e 15/02/2024, Proc. n.º 1544/23.1T8MAI, do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/12/2020 (Proc. n.º 379/20.8T8MFR.L1-7), de 30/06/2020 (Proc. 23445/19.8T8LSB.L1-7) e 11/12/2018 (Proc. n.º 590/18.1T8CSC.L1-6), do Tribunal Relação Coimbra de 23/06/2020 (Proc. 610/20.0T8CBR-B.C1), de 31/03/2020 (Proc. 136/20.1T8CBR.C1) e 08/10/2019 (Proc. n.º 2998/19.6T8CBR.C1) e, bem assim, a decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/07/2020 (Proc. n.º 160/20.4T8FIG.C1) e do Supremo Tribunal Justiça de 16/11/2023 (Proc. nº 546/22.0T8VLG.P1.S1). [7] A que acrescentamos, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 06/12/2022 – processo n.º 1163/22.0T8FNC.L1-7 (Edgar Taborda Lopes), e de 11/10/2022 – processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7 (Micaela Sousa) e do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/10/2019 – processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1 (Luís Cravo), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [8] Já referidos na decisão recorrida: Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16/12/2021 (Proc. 12142/20.1T8LSB.L1-2), de 25/10/2018 (Proc. n.º 25835/17.1T8LSB.L1-6), de 16/12/2021 (Proc. n.º 787/20.4T8MTJ.L1-2), de 23/06/2022 (Proc. n.º 2380/21.5T8VFX.L1-6), de 07/07/2022 (Proc. n.º 258/22.4T8FNC.L1-2), de 29/09/2022 (Proc. nº 1832/21.1T8CSC.L1-6), de 27/10/2022 (Proc. nº 14919/21.1T8LSB.L1-2), com voto de vencido, de 27/04/2023 (Proc. n.º 10313/22.5T8LSB.L1-6), do Tribunal da Relação do Porto de 22/03/2022 (Proc. n.º 34/22.4T8PRD.P1), de 22/05/2023 (Proc. n.º 14992/22.5T8PRT.P1) e de 25/01/2024 (Proc. n.º 1196/23.9T8MTS.P1), do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/12/2023 (Proc. n.º 1007/23.5T8CBR.C1) e de 24/10/2023 (Proc. n.º 2367/22.0T8VIS.C1) e do Supremo Tribunal de Justiça de 22/06/2023 (Proc. n.º 3193/22.2.T8VFX.L1.S1). [9] A que acrescentamos os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/06/2021 – Proc. n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1 (João Cura Mariano) e de 08/02/2024 – Proc. n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1 (Nuno Pinto Oliveira), do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/10/2014 – Proc. 5187/10.1TCLRS.L1-8 (Maria Amélia Ameixoeira), de 16/12/2021 – Proc. n.º 2142/20.1T8LSB.L1-2 (Carlos Castelo Branco), de 29/04/2022 (Proc. n.º 26016/21.5T8LSB.L1 (Inês Moura), com voto de vencido, de 23/06/2022 – Proc. n.º 2380/21.5T8VFX.L1-6 (Anabela Calafate), de 07/06/2022 – Proc. 258/22.4T8FNC.L1-2 (Inês Moura), de 29/09/2022 – Proc. n.º 1832/21.1T8CSC.L1-6 (António Santos). [10] Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 4ª edição, Coimbra, 1987. [11] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 1987. [12] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2002. [13] Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11ª edição, Almedina, Coimbra, 2003. [14] Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, Dislivro, Lisboa, 1994. [15] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2012. [16] Fernando Bronze, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 2006. [17] Castanheira Neves, Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, BFDUC, Coimbra Editora, Coimbra, 1993. [18] Herbert Hart, O conceito de Direito, tradução Ribeiro Mendes, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1996. [19] Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, tradução Baptista Machado, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977. [20] Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução José Lamego, 6ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977. [21] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 120. [22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2007, in www.dgsi.pt. [23] Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, pág. 221. [24] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 191. [25] Pinto Monteiro, Cláusulas limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 25. [26] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/10/2007, in www.dgsi.pt. [27] Miguel Teixeira de Sousa, no blogue do Instituto Português do Processo Civil (IPPC), em comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 220/6/2023 (3193/22.2T8VFX.L1.S1). [28] Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 30/01/2025 (2056/24.1T8STB.E1 – Rel. Isabel Imaginário) e 09/09/2021 (supra identificado) e, bem assim, as sobreditas decisões sumárias da Exma. Presidente da Relação de Évora acima referenciadas. |