Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
58/11.7MAOLH-A.E1
Relator: ANTÓNIO LATAS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ACUSAÇÃO
INQUÉRITO
FACTOS DIVERSOS
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A obrigatoriedade do inquérito em processo comum implica, na sua dimensão garantística, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, pelo que a abertura da instrução a requerimento do assistente com vista à pronúncia de alguém não acusado, apenas pode ter lugar se, relativamente a ele, foi suscitada, em inquérito, a possibilidade de o mesmo ser autor ou comparticipante de factos ilícitos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
II - Assegura-se, deste modo, que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo Ministério Público, titular da ação penal, e sem que possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas.
Decisão Texto Integral:


Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo crime que correram termos nos serviços do Ministério Público na 1ª Secção de Instrução Criminal (J2) de Faro da Comarca de Faro, O MP deduziu acusação contra MCM por factos ocorridos em 20 de agosto de 2011 na Ria Formosa, próximo da ilha da Culatra, em Faro, de que resultaram lesões para AMV, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física simples por negligência p. e p. pelos arts 148º nºs 1 e 3 , com referência ao art. 144º als a), b), c) e d), do C.Penal.

2. – Notificado do despacho de acusação do MP, veio o assistente e ofendido, AMV, ora recorrente, requerer abertura de instrução para que PCM fosse pronunciado como coautor daquele mesmo crime de ofensa à integridade física simples por negligência, tendo em conta os factos que alega no requerimento inicial para abertura de instrução (RAI).

3. Por despacho de 18.08.2014, o juiz de instrução então titular do processo, admitir a abertura de Instrução requerida pelo assistente e ora corrente.

4. Não se conformando, o MP interpôs recurso daquele despacho de abertura de instrução, que foi oportunamente admitido, dando lugar, em 5.12.2014, à prolação de despacho de reparação pelo senhor juiz de Instrução, agora titular do processo, que não admitiu a instrução requerida pelo assistente para pronúncia de PCM, por considerar ser a mesma inadmissível contrariamente ao genericamente decidido no despacho anteriormente proferido e agora reparado.

5. É deste último despacho que o assistente e ofendido, AMV, vem interpor o presente recurso, de cuja motivação extrai as seguintes conclusões:

« DAS CONCLUSÕES
A. Por despacho de fls. 790 a 793 o Juiz de Instrução, então titular do processo, admitiu a abertura de instrução requerida pelo aqui Recorrente contra PCM: "( ... )Por ser legalmente admissível e tempestiva, por ter sido requerida por quem para tal tem legítímidade e ser este o tribunal competente e por ter sido liquidada a taxa de justiça devida, declaro aberta a instrução peticionada pelo assistente (ctr. novamente os artigos 286.° e 287.° do CPP e 8,° do RCP).(".)".
D. O Ministério Público não se conformou com o despacho que declarou aberta a instrução requerida pelo assistente, aqui Recorrente, e dele interpôs recurso.
C. O Juiz de Instrução, agora titular do processo, admitiu o recurso, sendo que ° mesmo não chegou a subir para o Tribunal da Relação de Évora uma vez que a decisão foi reparada: "( ... )Por legal e tempestivo, admito o recurso interposto pelo Ministério Público, que é para o Tribunal da Relação. O regime de subida é em separado e de imediato, o que não sucederá em virtude da reparação da decisão que intra se concretizará. ( ... )".
D. O Juiz de Instrução entendeu que a instrução é inadmissível legalmente porque não correu contra PCM inquérito, uma vez que o mesmo nunca foi denunciado ou objecto de queixa, o que consubstancia uma nulidade insanável prevista no artigo 119.°, aI. b) e na aI. d), do CPP.
E. Com este argumento o Juiz de Instrução reparou o despacho anterior e não admitiu a abertura de instrução requerida pelo ora Recorrente contra PCM, º que não se aceita, pelo que deste despacho se recorre.
F. O Juiz de Instrução assenta a sua decisão numa premissa errada, isto é, que não existiu queixa contra PCM, ou que o mesmo nunca foi denunciado no processo, quando na realidade, o aqui Recorrente, a tis. 63, quando veio ao processo manifestar a intenção de procedimento criminal, formalizando assim a competente queixa-crime, fê-lo contra todos aqueles que ao longo do inquérito fosse recolhidos indícios da sua participação no crime, não restringindo a queixa-crime, ou a denúncia, contra ninguém em particular.
G. O Juiz de Instrução não terá reparado, certamente por lapso, nesse requerimento de fls. 63, pois é unicamente neste momento, que o assistente formaliza a queixa-crime e a sua intenção de procedimento criminal.
H. Todos os outros requerimentos posteriores foram complementos ao requerimento de fls, 63 (onde foi formalizada a queixa-crime) pelo que em nada alteram a posição manifestada nesse momento, em concreto o procedimento criminal contra todos os intervenientes nos factos ocorridos na Ria Formosa.
I. Outra premissa errada é a de que não existiu inquérito contra PCM, ou seja, formalmente o mesmo não foi constituído arguido, mas não deixou de ser investigado no âmbito do inquérito.
J. Desde o primeiro momento, altura do acidente, que ficou patente a existência de uma mota de água, e da possibilidade, real, de a mesma ter contribuído para a verificação do sinistro, veja-se a este propósito o auto de notícia da Polícia Marítima a fls ...
K. Esta possibilidade ganhou consistência ao longo do inquérito, através do depoimento das testemunhas e dos requerimentos do ora aqui Recorrente, tendo inclusive PCM sido inquirido como testemunha, sabendo desde o início que corria o processo de inquérito, e que se encontravam em investigação os factos relacionados com o acidente.
L. Pelo que nunca se poderá dizer que não ocorreu inquérito contra PCM. O inquérito ocorreu, o que aconteceu foi o Ministério Público, titular do processo na fase de investigação, não ter dado relevância à sua actuação, o que se discorda, dai a abertura de instrução.
M. Não estamos perante um caso de uma pessoa, que nunca tenha sido ouvida em fase de inquérito, que nunca tenha sido falada, que não se saiba a sua participação, de repente seja constituída arguida e seja aberta instrução contra si.
N. Muito pelo contrário, estamos perante um caso em que determinada pessoa foi falada desde o início do inquérito, que se sabe onde estava, a fazer o que, em que circunstancias de tempo, modo e lugar, pelo que nada obsta a que seja constituída arguida, e aberta a instrução contra si, com o propósito de vir a ser pronunciada pela pratica do crime.
O. Conforme estabelece o nº 1 do artigo 57.° do CPP, assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal, pelo que não restam dúvidas de que qualquer pessoa pode apenas ser constituída arguida se contra ela for requerida abertura de instrução num processo penal.
P. O Juiz de Instrução que ab initio, e bem, admitiu a instrução contra PCM, uma vez que o mesmo ainda não tinha sido constituído arguido, ordenou a sua constituição, dando seguimento ao estabelecido no supra mencionado artigo.
Q. Com as alterações introduzidas ao CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, a constituição de arguido em inquérito deixou de ter carácter automático pois, nos termos conjugados dos artigos 58°, n.º 1, al. a) e 272°, n.º 1 o juiz, o Ministério Público ou o órgão de polícia criminal não têm de constituir arguida e interrogar como tal a pessoa determinada contra quem corre Inquérito se não houver suspeita fundada da prática de crime.
R. Não quer isto dizer que, pese embora não tenha sido constituída arguida determinada pessoa, por o MP entender que não há suspeita fundada da prática de crime, o Assistente não discorde dessa opinião e pretenda que a mesma seja corroborada em sede de instrução.
S. A não constituição de arguida de determinada pessoa em fase de inquérito não limita a abertura de instrução requerida contra si.
T. A queixa-crime foi formalizada contra todos os intervenientes nos factos ocorridos na Ria Formosa e dos quais resultou as ofensas à integridade física do assistente, aqui Recorrente, (não foi apresentada contra MCM) -, correu inquérito não só contra MCM, mas também contra todos esses intervenientes, em concreto PCM (embora não tenha sido constituído arguido por opção do MP) que desde o primeiro momento foi identificado como estando no local, e tendo tido participação nos factos -, o assistente, aqui Recorrente, apresentou o requerimento de abertura de instrução em tempo, liquidou a taxa de justiça e constituiu mandatário, pelo que,
U. Estão reunidos todos os requisitos legalmente exígíveís para a constituição de arguido de PCM e para que corra contra si a instrução.
Nestes termos e nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de v. Exas deve ser dado provimento à presente Apelação e deve o despacho que não admitiu a abertura de instrução contra PCM ser revogado, sendo substituído por outro que admita a abertura de instrução nos termos requeridos. »
6. – Devidamente notificados, responderam na 1ª instância o arguido recorrido, PCM, e o MP, pronunciando-se ambos pela improcedência do recurso.
7. – Nesta Relação, o senhor magistrado do MP emitiu parecer igualmente no sentido da total improcedência do recurso.
8. – Cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP, o recorrente nada veio acrescentar.
9. Transcrição do despacho recorrido:
« (…)
Em tempo, o Ministério Público vem apresentar recurso da decisão de admissão da instrução requerida por AMV contra PCM (fls 791).

Cumpre apreciar e decidir:

Sobre esta temática dispõe o artigo 414.° do Código de Processo Penal que"l -Interposto o recurso e junta a motivação ou expirado o prazo para o efeito, o juiz profere despacho e, em caso de admissão, fixa o seu efeito e regime de subida.

2 - O recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não reunir as condições necessárias para recorrer, quando faltar a motivação ou, faltando as conclusões, quando o recorrente não as apresente em 10 dias após ser convidado a fazê-lo.

3 - A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior.

4 - Se o recurso não for interposto de decisão que conheça, a final, do objeto do processo, o tribunal pode, antes de ordenar a remessa do processo ao tribunal superior, sustentar ou reparar aquela decisão.

( ... )"

Da leitura deste artigo resulta que interposto cumpre admitir ou rejeitar o recurso.

Após e antes de ordenar a sua remessa, o Tribunal pode sustentar ou reparar a decisão colocada em crise, desde que a decisão não conheça a final, do objeto do processo. Com efeito, desde que o recurso não seja de sentença, decisão instrutória ou acórdão, o juiz pode sustentar ou reparar a decisão. Não é obrigatória, apenas só facultativa. A sustentação prende-se com a possibilidade do juiz explicar melhor a razão da sua decisão. A reparação tem como efeito prático a celeridade processual, a economia dos atos e evitar que se pratiquem atos inúteis

No caso dos autos, pese embora não tenha sido proferido pelo signatário, cumpre reparar o despacho de admissão da instrução de fls. 791, já que concordamos e subscrevemos na integra com os argumentos avançados pelo Ministério Público. Por outro lado, a decisão agora colocada em crise não configura uma decisão final, pelo que nada obsta à sua reparação. De igual modo, assim o impõe os princípios de celeridade, eficácia e de proibição de praticar atas inúteis e nulos. Na verdade, a admissão da instrução contra PCM é inadmissível, já que o aludido arguido nunca foi objeto de queixa, suspeito, inquérito ou de qualquer despacho de arquivamento ou de acusação, o que configura nulidade insanável. Da mesma forma, não concedia ao arguido toda uma fase importante do processo e suprimia-lhe a faculdade deste reagir através de uma abertura de instrução. Já para não falar de estarmos perante uma decisão surpresa, pois nunca foi considerado suspeito, arguido ou acusado, e de repente na fase da instrução seria confrontado com um despacho de pronúncia.

Vejamos mais amiúde.

Os autos iniciaram-se com um auto de notícia (cfr. fls 4 e 4verso) elaborado pela Polícia Marítima, onde se dava notícia que no dia 20/8/20 II, o assistente AMV foi abalroado, na Ria Formosa, por uma embarcação denominada "lBIS II", com o conjunto de identificação 623SCSS, comandado por MCM. Na sequência do referido acidente o assistente sofreu lesões físicas graves.

No referido auto consta como testemunha, PCM, irmão do arguido, pois este comandava uma mota de água, que seguia atrás da embarcação supra referida, tendo sido um dos primeiros a auxiliar o sinistrado. No mês de novembro de 2011, após consulta dos autos pelo mandatário do assistente, este informou os autos que pretendia procedimento criminal contra MCM.

No dia 20 de fevereiro de 2012, o assistente juntou aos autos um documento (vide fls. 108), onde reforçou o desejo de proceder criminalmente contra MCM e descreveu a dinâmica do acidente. Neste relato, o assistente afirmou que" pode dizer-se com segurança que o acidente teve lugar, motivado tanto pela distração do piloto da embarcação que era seguida por duas motos de água, como pela própria velocidade excessiva a que navegava".

A fls. 151 veio a confirmar a dinâmica do acidente, porém corrigiu que apenas era uma mota de água e não duas.

A fls. 375 a 378, o Ministério Público deduziu acusação contra MCM, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, . p. e p. pelo artigo 148.°, lts 1 e 3 do Código Penal, por referência ao art. 144.° do mesmo diploma legal.

Indicou como testemunhas, além de outros, PCM, o qual nunca foi denunciado, nem indicado como suspeito, tendo sempre intervindo como testemunha.

Na verdade, no inicio quer na ulterior tramitação do inquérito, PCM, nunca foi objeto de queixa, denúncia ou figurou como suspeito, pelo que nunca correu inquérito contra si, nem objeto de arquivamento ou acusação. Sempre assumiu e foi visto como testemunha presencial do acidente.

Posto isto, vejamos sobre a admissibilidade da instrução.

Estatuí o artigo 286 º nº 1 do CPP que" A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. "

Por sua vez, dispõe o artigo 287.°, nº 3 do CPP que" o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal"

Ora, entendemos, como bem salienta o Ministério Público, que estamos perante um caso em que a instrução é inadmissível legalmente. Com efeito, a instrução visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em submeter ou não uma determinada pessoa a julgamento, com os elementos constantes dos autos e outros que se realizem na instrução. A instrução não é, nem pode ser a realização de um novo inquérito, pois deixaria o seu caracter meramente de comprovação da decisão do Ministério Público.

No caso dos autos, nunca correu inquérito contra o PCM, pelo que a pretensão do assistente não é de comprovação da decisão do Ministério Público em submeter ou não alguém a julgamento, mas sim a realização de um novo inquérito contra pessoa não visada anteriormente, basta atentar no requerimento probatório do assistente, que pretende a reinquirição de todas as testemunhas, com vista a abordar o comportamento de PCM. Esta pretensão é toda ela mais grave, já que estamos perante crime semipúblico, cujo procedimento criminal depende de queixa (cfr, art. 148.°, n04 e 113.° do Código Penal e 49.° do CPP), que tem de ser exercida no período de seis meses após os factos, sob pena de caducidade, mas o assistente não a apresentou contra PCM, mas só quanto a MCM. Sendo certo, que o assistente desde o início do processo sabe da existência de PCM (Novembro de 2011) e que este comandava a mota de água que seguia a embarcação que lhe embateu (cfr. art, 115.° do CPP). Nesta medida, por não apresentação de queixa tempestiva, PCM não pode ser objeto de instrução.

Por outro lado, a instrução é inadmissível, já que o processo está inquinado pela absoluta ausência de inquérito contra PCM (o qual como já referido não foi objeto de qualquer inquérito). Na realidade, PCM se tivesse sido alvo de inquérito podia ter intervindo neste, oferecendo provas e requerendo diligências ou prestando esclarecimentos, com vista à sua defesa, o que no caso de admissibilidade da instrução ser-lhe-ia completamente coartada. Da mesma banda, estaríamos ainda a impedir que PCM, enquanto arguido pudesse, querendo, reagir contra um despacho de acusação, requerendo a competente instrução. Uma das garantias de defesa do arguido ficava completamente comprometida, violando-se o disposto no art, 32.º da Constituição da República Portuguesa - vide Ac. da TRP de, 30/1/2008, in bdjur.almedina.net/júris.

A este propósito salientemos o referido pelo Ministério Público, já que reflete bem a situação dos autos, " Com efeito, uma situação é ser pronunciado, com base em instrução requerida pelo assistente, quando o Ministério Público anteriormente se pronunciou pelo arquivamento dos autos, diferente e atentatório das garantias de defesa do arguido, é ser pronunciado quando nem sequer sabia que existia qualquer inquérito contra si (cfr. art. 58.°, 59.°,60,°,61.°, n'T, do CPP e 32,° da CRP).

Não nos devemos ainda olvidar que não foi proferido quer despacho de acusação ou de arquivamento relativo a PCM, o que configura uma nulidade prevista no art. 119.°, al, b) e na aI. d), do CPP. Logo, não se pode realizar uma instrução, alicerçada em vício tão grave e inultrapassável, como é a nulidade insanável.

Pelo exposto. ao abrigo do disposto no art. 414.°, nº 4 do CPP, reparamos o despacho de fis. 791. não admitindo a instrução requerida pelo assistente AMV contra PCM. »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No presente recurso apenas há que decidir se a Instrução, cuja abertura foi requerida pelo assistente e ora recorrente, AMV, é admissível, contrariamente ao decidido no despacho recorrido.
2. Decidindo
O despacho recorrido rejeitou a instrução, essencialmente por considerá-la inadmissível em virtude de nunca ter corrido inquérito contra o ora requerido, PCM. Como ali se diz, entendeu-se que no caso concreto a pretensão do assistente não é de comprovar a decisão do Ministério Público em submeter ou não alguém a julgamento, mas sim a realização de um novo inquérito contra pessoa não visada anteriormente, pois PCM “…nunca foi objeto de queixa, suspeito, inquérito ou de qualquer despacho de arquivamento ou de acusação, o que configura nulidade insanável.”
Diferentemente, o assistente, ora recorrente, alega que quando veio ao processo manifestar a intenção de procedimento criminal, a fls 63, formalizando assim a competente queixa-crime, fê-lo contra todos aqueles que ao longo do inquérito fosse recolhidos indícios da sua participação no crime, não restringindo a queixa-crime, ou a denúncia, contra ninguém em particular.
Em segundo lugar, acrescenta, não poderá dizer-se que não ocorreu inquérito contra o requerido, PCM, que apesar de não ter sido constituído arguido, não deixou de ser investigado no âmbito do inquérito, pois desde o primeiro momento, altura do acidente, que fícou patente a existência de uma mota de água e da possibilidade, real, de a mesma ter contribuído para a verificação do sinistro, tendo inclusive PCM sido inquirido como testemunha, sabendo desde o início que corria o processo de inquérito e que se encontravam em investigação os factos relacionados com o acidente. Conclui que o inquérito correu contra o requerido, mas o Ministério Público, titular do processo na fase de investigação, não deu relevância à sua atuação, do que se discorda, daí a abertura de instrução.
Vejamos.
2.1. Nos termos do artigo 287º nº3 do CPP o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, pelo que no caso presente a rejeição do requerimento do assistente com fundamento na inadmissibilidade da instrução por ele pretendida enquadra-se formalmente nas causas de rejeição legalmente previstas.
A questão está em saber, como aludido, se no caso presente a instrução requerida pelo assistente é inadmissível por não ter corrido inquérito contra o requerido, PCM, pelos factos que lhe são imputados pelo assistente no seu requerimento para abertura da instrução e dos quais resulta, no seu entender, dever ser o ora requerido pronunciado, em coautoria, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art. 148ºnºs 1 e 3, do C.Penal, com referência ao art. 144º als a), b), c) e d) do C. Penal.
2.2. Conforme decorre da delimitação operada pelos artigos 286º nº 1 e 287º nº1 b) , do CPP, relativamente às finalidades e âmbito da instrução, a instrução requerida pelo assistente visa a comprovação pelo JI da decisão do MP de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Do disposto no artigo 283º nº 3 b) e no artigo 284º, do CPP, resulta que os factos pelos quais o MP não deduziu acusação, que legitimam a abertura de instrução, são os que fundamentam a aplicação ao requerido de uma pena ou medida de segurança, quer o MP tenha arquivado o inquérito quanto eles, quer apenas tenha deduzido acusação por outros. Nesta última hipótese, os factos novos relativamente aos quais o assistente ver pronunciado o requerido, são os que impliquem alteração substancial dos factos descritos na acusação pública, pois se não importarem aquela alteração substancial o assistente pode deduzir acusação particular por eles, pelo que, conforme tem sido consensualmente entendido, é inadmissível a abertura da instrução por esses mesmos factos.
No caso presente, o assistente pretende que o ora requerido seja pronunciado por alguns dos factos descritos na acusação pública contra o arguido acusado (MCM) e por outros factos, não mencionados na acusação, de que resulta a responsabilidade penal do ora requerido, PCM, não acusado, máxime os enunciados sob os nºs 42 a 52 e 73 a 83 do requerimento para abertura da instrução.
Isto é, não estamos perante novos factos que impliquem mera alteração substancial de factos, dado que esta pressupõe identidade de arguidos (cfr art. 1º al. f) do CPP), mas perante requerimento para abertura da instrução por fatos imputados ex novo a quem não foi acusado pelo MP, o que implicaria, nos termos do art. 286º nº 1 do CPP, que o MP tivesse decidido arquivar inquérito quanto ao requerido, legitimando a pretendida abertura de instrução contra o requerido para comprovação judicial daquela mesma decisão do MP, em ordem a submeter o requerido a julgamento.
2.3. Este é o enquadramento jurídico processual que nos parece correto e do qual decorre que a abertura da instrução a requerimento do assistente apenas pode ter lugar com vista à pronúncia de alguém não acusado se, relativamente a ele, foi suscitada, em inquérito, a possibilidade de o mesmo ser autor ou comparticipante de factos ilícitos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
Este enquadramento legal que, no essencial foi seguido em 1ª instância pelo MP e pelo Juiz de Instrução, é o que se harmoniza com aspetos estruturais do nosso processo penal e com princípios constitucionais nele implicados, como procuraremos ver melhor, ainda que de forma sumária.
Em primeiro lugar, conforme se diz no preâmbulo do Código de Processo Penal de 1987, aquele Código “…optou decididamente por converter o inquérito, realizado sob a titularidade e a direção do MP, na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação».
O inquérito, como fase do processo que compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262º nº1 do CPP), tem mesmo natureza obrigatória em processo comum, constituindo a falta de inquérito nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º al. d) do CPP. Esta opção estrutural teve claras implicações na configuração da fase judicial de instrução como meio de comprovar decisão prévia do MP, ao mesmo tempo que determinou a forma como se encontram processualmente consagrados os direitos dos principais sujeitos processuais nas faces preliminares do processo.
A obrigatoriedade do inquérito em processo comum, implica, na sua dimensão garantística, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
Assegura-se deste modo que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo MP, titular da ação penal, e sem que o arguido possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas, pois o art. 61º nº 1 g) do CPP reconhece ao arguido direito a intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias.
Por outro lado, a obrigatoriedade de prévia existência de inquérito contra a pessoa que o assistente pretenda ver pronunciado, não põe em causa o direito que tem o ofendido, através da abertura da fase de Instrução, de “ contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima”, abrangido pela garantia de tutela jurisdicional efetiva desse seu direito reconhecida pelos arts 32º nº7 e 20º nº1, da CRP, face ao estatuto processual que lhe é conferido pelo Código de Processo Penal.
O art. 69º nº1 do CPP reconhece ao assistente a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja atividade subordina a sua intervenção no processo, e o nº2 confere-lhe o direito de intervir no inquérito (e na instrução), oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias, para além de conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem, pelo que lhe é possível suscitar a apreciação do MP relativamente a factos concretamente atribuídos a pessoa determinada, provocando decisão de acusar ou arquivar o inquérito (ainda que implicitamente), por parte do MP, relativamente a esses mesmos factos.
Daí que, como vimos, a obrigatoriedade de inquérito sob pena da nulidade sanável prevista na al. d) do art. 119º do CPP, implique ser inadmissível instrução requerida pelo assistente com vista à pronúncia de quem não foi acusado, se a instrução requerida respeitar a factos que fundamentam a aplicação ao arguido requerido de uma pena ou de uma medida de segurança, que não tenham sido objeto de inquérito e relativamente aos quais não tenha sido decidido pelo MP o arquivamento respetivo, ainda que implicitamente. Isto é, conforme tem sido decidido na jurisprudência em casos como o presente, de que é exemplo, por todos, o Ac RP de 30.01.2008 (relator Francisco Marcolino), igualmente citado pelo MP e pela decisão recorrida, entende-se que “O assistente não pode requerer a abertura de instrução em relação a pessoa contra a qual o Ministério Público não deduziu acusação, se o inquérito não foi dirigido contra essa pessoa.”
Como enfatiza Germano Marques da Silva[1], referindo-se amplamente à falta de inquérito por factos relativamente aos quais o assistente pretenda a abertura de instrução, “No requerimento da instrução o assistente tem de indicar os factos, mas a indiciação desses factos pode resultar dos atos de instrução requeridos. Essencial é apenas que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objeto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução”. Conclui o autor: “ …se o requerimento da instrução do assistente contiver factos que não tenham sido objeto do inquérito, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, em razão da nulidade prevista no art. 119º al. d).”.
A instrução não pode, pois, assumir-se materialmente como um novo inquérito, que compete exclusivamente ao MP, deixando de ter o caracter de mera comprovação judicial da decisão do Ministério Público, que o Código de Processo penal lhe atribui.

2.2. Exposto o quadro jurídico aplicável no caso concreto e que coincide, no essencial, com o seguido em 1ª instância, tanto pelo MP como pelo Juiz de Instrução, ora recorrido, impõe-se agora apreciar se a situação processual verificada nos autos é a alegada pelo recorrente ou, antes, a pressuposta pelo despacho recorrido.
Ora, no caso presente e contrariamente ao afirmado em recurso, não ficou patente, nem tão pouco foi afirmada, a possibilidade de a moto conduzida pelo requerido ter contribuído para a verificação do sinistro, apenas se fazendo referência à mesma por seguir atrás da embarcação que abalroou a vítima e ser conduzida pelo requerido, que foi ouvido como testemunha, não sendo o requerido mencionado em passo algum dos autos como suspeito ou arguido, pelo que de tais factos não resulta a imputação de responsabilidade penal ao ora requerido pelo acidente verificado e respetivas consequências.
De igual modo é irrelevante que o ora requerido soubesse que desde o início corria o processo de inquérito e que se encontravam em investigação os factos relacionados com o acidente, pois sempre resultou do inquérito que tal conhecimento decorria da sua qualidade de testemunha presencial do abalroamento em causa e não de autor dos factos, a qualquer título.
Quanto à falta de queixa invocada no despacho recorrido e referida na motivação de recurso, não se verifica a mesma enquanto pressuposto de procedibilidade. O que está em causa nos autos, como vimos, é a falta de atribuição ou imputação (em sentido amplo) ao requerido, de factos que fundamentassem a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao mesmo requerido, sem a qual não pode sequer falar-se em necessidade ou omissão de queixa.
Na verdade, caso o requerido tivesse sido perspetivado em inquérito como coautor dos factos pelos quais se encontra acusado o arguido MCM- para quem admita a coautoria nos crimes negligentes (vd Pinto de Albuquerque, Comentário do C.Penal, 2008, p. 95) -, a queixa que foi apresentada contra o arguido acusado teria tornado o procedimento criminal extensivo ao ora requerido, enquanto comparticipante, nos termos do artigo 114º do C.Penal. Para quem entenda não ser concebível a coautoria nos crimes negligentes (vd F. Dias, Comentário do C.Penal, I, 2ª ed., p. 186)), apenas podendo falar-se de autorias paralelas e autorias plurais, sempre o prazo de 6 meses teria que contar-se da data em que o assistente tivesse tido conhecimento dos factos que fundamentassem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, ao requerido, nos termos do art. 115º nº1 do C.Penal, os quais não se confundem com a mera condução de moto de água atrás da embarcação tripulada pelo acusado MCM, única conduta referida ao longo do inquérito, como deixámos dito.
Assim, embora não possa dizer-se, com o despacho recorrido, que PCM não pode ser objeto de instrução por falta de apresentação de queixa tempestiva, por se tratar de crime semipúblico e terem já decorrido 6 meses sobre os factos sem que tenha sido apresentada queixa, resulta da fundamentação do despacho no seu conjunto que a rejeição da instrução assenta essencialmente na falta de inquérito contra o requerido, com o que concordamos, como vimos, pelo que não deixa de improceder totalmente o presente recurso.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, AMV, do despacho que rejeitou o requerimento para abertura da instrução contra PCM, o qual se mantem integralmente.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC - Cfr art. 515º b) do CPP.

Évora, 8 de setembro de 2015
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas

Carlos Jorge Berguete
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[1] Cfr. Curso de Processo Penal III, 2ª ed.-2000 p. 140.