Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | LEGITIMIDADE PROCESSUAL INTERESSE EM AGIR | ||
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Data do Acordão: | 10/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - a legitimidade na ação, enquanto pressuposto processual, afere-se pela titularidade da relação jurídica controvertida tal como configurada pelo demandante; - releva, para tanto, o interesse processual ou o interesse em agir em face dessa relação jurídica, não bastando, no que respeita à legitimidade passiva, a afirmação do interesse em contradizer para evitar o prejuízo que provenha da procedência da causa em que lhe é dirigido pedido de condenação. Sumário da Relatora | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrentes / Autores: (…) e (…) – Sociedade de (…) e Avaliação de Activos, Lda. Recorrida / Ré: (…) Os Autores propuseram a presente ação contra (…) e (…), peticionando a condenação dos Réus a pagarem ao 1º Autor o montante de € 31.511,25 e a que se vier a apurar em liquidação de sentença, a título de indemnização por danos patrimoniais, e a quantia de € 15.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora desde a citação até integral pagamento. Mais vem peticionada a condenação dos Réus a pagarem à 2ª Autora a quantia de € 259,49 a título de reembolso por imposto único automóvel por esta suportado, acrescida de juros de mora. Alegaram, para tanto e em resumo, que o 1º Autor declarou comprar ao 1º Réu, que declarou vender àquele, um veículo automóvel destino à participação em provas de automobilismo. Após a conclusão desse negócio, o veículo veio a revelar faltas de conformidade imputáveis ao 1º Réu, por cuja reparação este é responsável, pelo que tem obrigação de ressarcir os demais prejuízos não patrimoniais e patrimoniais que o 1º Autor suportou e ainda terá de suportar, estes a liquidar em execução de sentença. Na medida em que assume relevância para a questão suscitada no presente recurso, atente-se na concreta alegação inserta na petição inicial: - o 1º Autor adquiriu, através de contrato de compra e venda verbal celebrado com o 1º Réu um veículo ligeiro de passageiros, de marca Lotus, no estado de usado; - veículo anunciado e comercializado pelo 1º Réu como “unidade restaurada de A a Z”, “sem qualquer tipo de restrição de custos e com recurso aos melhores equipamentos”, como tendo sido estreado nesta nova construção pouco tempo antes, no evento “Estoril (…)”; - o 1º Réu assegurou ao 1º Autor que a viatura se encontrava em ótimas condições de funcionamento e sem qualquer problema mecânico, pronto para participar nas competições, por ter sido restaurado “de A a Z”, “sem qualquer tipo de restrição de custos e com recurso aos melhores equipamentos”; - o 1º Réu garantiu ao 1º Autor o seu bom funcionamento, referindo que tinha efetuado ele próprio a preparação para competição e que o carro estava em perfeitas condições de conservação e funcionamento; - o 1º Autor ficou plenamente convencido de que o Réu era pessoa idónea, que falava verdade e de que o veículo se encontrava nas condições afirmadas; - o 1º Réu é conhecido por ter várias décadas de experiência profissional na preparação de viaturas para competição e reconstrução de viaturas clássicas; - o 1º Autor ficou convencido que, em virtude de todo o trabalho de preparação do veículo pelo 1º Réu, inexistiam defeitos intrínsecos, estruturais e funcionais no veículo; - o veículo aparentava não ter nenhum problema de funcionamento; - confiando na profusamente divulgada excelente preparação do veículo para competição alegadamente realizada pelo Réu, e nas palavras deste, o 1º Autor adquiriu a viatura; - o preço foi pago da seguinte forma: a) entrega da quantia de € 30.000,00 em 3 prestações, através de transferência bancária, para a conta da 2ª Ré; b) transferência da propriedade de um veículo de marca BMW, modelo 420d, matrícula (…), propriedade da 2ª Autora, para a 2ª Ré; c) entrega de um relógio Omega, modelo (…), avaliado em € 5.800,00. Em sede de contestação, os Réus, para além do mais, invocaram a ilegitimidade da Ré (…). Ao que os Autores responderam, sustentando a regularidade da instância. II – O Objeto do Recurso Em sede de audiência prévia, foi julgada procedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva e, em consequência, a Ré (…) foi absolvida da instância. Inconformados, os Autores apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue a Ré parte legítima na ação ou, subsidiariamente, que convide ao aperfeiçoamento da petição inicial. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes: «A. Os Autores recorrem do despacho que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva da 2ª Ré. B. Os Autores alegaram que, no contrato de compra e venda de um veículo automóvel a 2ª Ré, filha do 1º Réu, participou ao lado do seu pai como parte, por ter recebido o preço pago pelos Autores. C. Quanto ao pedido formulado em c) a 2ª Ré é claramente parte legítima porquanto a propriedade do veículo BMW, modelo 420d, matrícula (…), foi-lhe transmitida e a 2ª Autora pagou o IUC em sua vez, exigindo agora o reembolso. D. Ao interesse em demandar da 2ª Autora corresponde direta e necessariamente o interesse em se opor à pretensão da 2ª Ré. E. Na lição de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a legitimidade passiva pertence a quem juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Só assim se garantirá o efeito útil da ação, vinculando a decisão os verdadeiros sujeitos da relação controvertida. F. Quando o 1ºAutor adquiriu uma viatura de marca Lotus ao 1º Réu, entregou a maior parte do preço à sua filha, a 2ª Ré (…), que ganhou, desse modo, um interesse direto no desfecho da causa, porquanto a mesma a poderá afetar patrimonialmente. G. O seu património aumentou de valor na medida do pagamento feito pelo 1º Autor, pelo que deverá assumir os riscos do negócio pois integrou a parte vendedora. H. A douta decisão recorrida legitima uma estratégia de fuga aos credores, ao considerar parte ilegítima quem recebe o preço, permitindo ao vendedor negociar ser risco por nada manter no seu património. I. A ilegitimidade da 2ª Ré tem, portanto, a consequência de retirar qualquer efeito útil à decisão por falta de património do 1º Réu em virtude de ter logrado que a filha recebesse o preço em sua vez. J. Apesar de a sua declaração negocial ser tácita, a 2ª Ré participou no negócio e deverá assumir os riscos próprios do negócio da parte que integrou. K. A decisão judicial tem que alcançar todos quantos participaram no negócio jurídico, sob pena de total ineficácia, não só da decisão em si, mas também de todo o sistema judiciário, traído pelo simples mecanismo de entregar a um terceiro irresponsável o produto dos negócios. L. O Autor formulou a relação material contrapartida como possuindo duas partes: de um lado o Autor; do outro os Réus enquanto parte vendedora e beneficiários do pagamento do preço e, em contrapartida, responsáveis pelo cumprimento perfeito da obrigação de entrega do objeto do negócio nas condições acordadas. M. A procedência da ação não pode deixar de significar a possibilidade real de prejuízo para a esfera jurídica e património da 2ª Ré, motivo pelo qual é parte legítima para contradizer o interesse do Autor. N. A douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 30.º, nºs 1, 2 e 3, do CPCivil. O. Sem prescindir, porque a lei consagra um dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressuposto processual que seja sanável, deveria o Tribunal ter convidado os Autores a aperfeiçoar a sua petição inicial de forma a evitar a ilegitimidade da parte, nos termos do disposto nos artigos 590.º, n.º 2, alínea b), n.º 3, 6.º, n.º 2 e 7.º, n.º 1, do CPC. P. Para o que se cita o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17/06/2021, pelo que, subsidiariamente, o Recorrente pugna pela revogação do douto aperfeiçoem a sua petição inicial por forma a obviar à ilegitimidade passiva, prosseguindo depois, o processo os seus termos ulteriores, sempre com observância do contraditório exigido após a resposta a esse despacho. Q. A douta decisão violou o disposto nos artigos 590.º, n.º 2, alínea b), n.º 3, 6.º, n.º 2 e 7.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.» Não foram apresentadas contra-alegações. Cumpre apreciar se a 2.ª Ré, (…) é parte legítima na ação. III – Fundamentos A – Dados a considerar: os acima relatados. B – A questão do Recurso A ilegitimidade processual de alguma das partes constitui exceção dilatória que dá lugar à absolvição da instância – cfr. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º do CPC. “A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objeto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. A legitimidade material, substantiva ou ad actum consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.”[1] É que, “uma coisa é saber se as partes são sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista. Outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objeto e a sua perduração. A primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da ação.”[2] Enquanto pressuposto processual, a legitimidade, nos termos do disposto no artigo 30.º do CPC, vai aferir-se a legitimidade pela titularidade do interesse direto em demandar (legitimidade ativa) e pelo interesse direto em contradizer (legitimidade passiva). Este interesse tem por base a posição subjetiva da pessoa perante a relação controvertida ou seja, a relação do sujeito com o concreto objeto da causa, pelo que se distingue do mero interesse (objetivo) em agir «traduzido na necessidade objetivamente justificada de recorrer à ação judicial.»[3] Por força do regime consagrado no artigo 30.º do CPC, a legitimidade, como pressuposto processual, exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupara-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o. Afere-se tal pressuposto pelo interesse direito em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, e pelo interesse direito em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda. E a titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se pela titularidade das situações jurídicas que a integram: legitimados são então os sujeitos da relação jurídica controvertida.[4] Pressuposto processual que será sempre de identificar em função da relação jurídica configurada pelo autor. Importa, contudo, atentar na circunstância de que, ao definir-se o interesse em contradizer do réu como o interesse em evitar o prejuízo que provenha da procedência da causa, todo aquele que seja demandado numa ação condenatória seria de considerar parte legítima, ainda que nenhuma relação revele com o objeto da causa. Logo, tais critérios alicerçados no interesse em demandar e em contradizer não serão suficientes para aferir a legitimidade das partes, impondo-se antes, para retirar sentido útil ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 30.º do CPC, referir o interesse em demandar e o interesse em contradizer ao interesse processual ou interesse em agir.[5] No caso em apreço, a Ré (...) é demandada na ação, pretendendo os Autores que seja condenada, em solidariedade com o 1º Réu: - a pagar ao 1º Autor indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes dos vícios detetados no veículo Lotus que o 1º Réu declarou vender ao 1º Autor; - a reembolsar a 2ª Autora pela quantia que teve de pagar a título de IUC relativo ao veículo cuja propriedade foi por si transferida para a 2ª Ré como meio de pagamento parcial do preço daquele negócio, pagamento de IUC que foi devido pela 2ª Autora por causa do atraso na transferência da propriedade do veículo. Ora, este é um dos mencionados casos em que a 2ª Ré tem interesse em contradizer, pois pretende obviar a condenação que lhe causa prejuízo patrimonial. Contudo, embora tenha revertido em favor do seu património o preço pago pelo veículo Lotus transacionado entre 1º Autor e 1º Réu, certo é que a Ré (…) não é sujeito da relação jurídica controvertida, do contrato de compra e venda que teve por objeto o veículo Lotus, nem é sujeito sobre a qual recaia o dever de indemnizar por danos decorrentes da venda do veículo Lotus com vícios. Nem à 2ª Ré as Autoras imputam o atraso no registo em seu favor da propriedade do BMW entregue como parte do preço. À 2ª Ré não é imputada conduta da qual resulte para os Autores qualquer prejuízo cuja indemnização aqui vem peticionada. Caso a relação jurídica controvertida se alicerçasse no direito do 1ª Autora à resolução do negócio, ou no direito à redução, implicando no dever de restituição, ainda que parcial, do que foi prestado a título de pagamento do preço de aquisição do Lotus, então a esfera patrimonial da Ré (…) seria diretamente afetada; então, a 2ª Ré seria sujeito da relação material controvertida, sobre si impenderia, na ótica das Autoras, o dever de restituir, pelo menos, parte do que foi prestado e a 2ª Ré recebeu. Inexiste fundamento para aperfeiçoamento da petição inicial de modo a assegurar a legitimidade da 2ª Ré. A relação jurídica controvertida a atender é aquela que foi configurada pelos Autores, que não é de modelar ou adaptar para passar a envolver a 2ª Ré como sujeito da mesma. Acompanha-se, assim, a decisão proferida em 1ª instância no sentido da ilegitimidade da 2ª Ré na ação. As custas recaem sobre as Recorrentes – artigo 527.º, n.º 1, do CPC. Sumário: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida. Custas pelas Recorrentes. Évora, 10 de outubro de 2024 Isabel de Matos Peixoto Imaginário José Manuel Tomé de Carvalho Eduarda Branquinho __________________________________________________ [1] Ac. STJ de 18/10/2018 (Bernardo Domingos). [2] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 134. [3] Antunes Varela, ob. e loc. citados. [4] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 1.º, 3.ª edição, págs. 70 e 71. [5] Tudo melhor explicitado por MTS, CPC online, artigo 30.º, 4 (a) e (b) e 6 (a) e (b). |