Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1163/232.2T9ENT.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: CONTRAORDENAÇÕES AMBIENTAIS
PROCEDIMENTO
DIREITO SUBSIDIÁRIO
SUSPENSÃO DOS PRAZOS DE PRESCRIÇÃO
COVID 19
PRINCÍPIO DA INAPLICABILIDADE RETROATIVA DA LEI CONTRAORDENACIONAL
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: I. O ilícito de mera ordenação social (IMOS) é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, através das regras e garantias procedimentais (estando a competência para a instrução e decisão dos ilícitos deferida às autoridades administrativas, mediante um procedimento com estrutura inquisitória e célere) e recurso para um tribunal, em conformidade com o que dispõem os artigos 33.º e 59.º RGC, 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º da Constituição (e 6.º da CEDH justamente por razão da garantia do recurso judicial) , surgindo o direito e processo penais comos seus referenciais subsidiários (artigos 32.º e 41.º RGC).
III. Só sendo aplicáveis ao processo contraordenacional as normas do Código de Processo Penal subsidiariamente, nos estritos termos previstos no artigo 41.º RGC.

IV. A suspensão dos prazos de prescrição relativos aos processos penais e contraordenacionais que tenham por referência factos praticados (por ação ou omissão) em data anterior à vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, não vulnera o disposto no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa - princípio da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional.

V. Tal questão foi (naturalmente, diríamos) objeto de controvérsia quando tinha de o ser (no período da crise pandémica Covid19 e no tempo que se lhe seguiu). Mas deixou – naturalmente também - de o ser, em razão da estabilização da jurisprudência constitucional sobre esta matéria.

Decisão Texto Integral: 1. Relatório
a. No âmbito de procedimento contraordenacional, a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território aplicou a AA, com sede no …, …, no município da …, uma coima única de 30 000€, pela prática, a título de negligência, de:

- uma contraordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 81.º, § 3.º, al. c) do DL n.º 226-A/2007, de 31 de maio, sancionável nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 e agosto (na sua redação atual); e de,

- uma contraordenação ambiental grave, prevista no artigo 7.º, § 1.º e 2.º e na al. a) do § 2.º do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de agosto, sancionável nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (na sua redação atual).

b. A arguida impugnou judicialmente tal decisão administrativa, invocando a nulidade da mesma, por preterição de garantias fundamentais de defesa; e com outros fundamentos relacionados com a verificação dos ilícitos e a espécie e medida da sanção.

Remetidos os autos ao Ministério Público pela autoridade administrativa, aquele fê-los presentes a Juízo, indicando prova para ser apreciada e valorada.

Decorreu a audiência de discussão e julgamento, vindo o tribunal a proferir sentença no dia 3 de maio de 2024, pela qual, na parcial procedência do recurso decidiu:

«a) Manter a decisão da Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, que considerou que a arguida AA praticou:

- uma contraordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 81.º, § 3.º, al. c) do DL n.º 226-A/2007, de 31 de maio, a título de negligência, nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 e agosto (na sua redação atual); e,

- uma contraordenação ambiental grave, prevista no artigo 7.º, § 1.º e 2.º e pela al. a) do § 2.º do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de agosto, a título de negligência, nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (na sua redação atual);

b) Reduzir as coimas aplicadas para os montantes de:

- 12 000€ pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 81.º, §3.º, al. c) do DL n.º 226-A/2007, de 31 de maio, a título de negligência, nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (na sua redação atual);

- 6 000€, pela prática de uma contraordenação ambiental grave, prevista no artigo 7.º, § 1 e 2 e pela al. a) do § 2.º do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de agosto, a título de negligência, nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (na sua atual redação);

c) Fixar a coima única em 15 000€;

d) Suspender parcialmente a execução da coima aplicada relativamente à quantia de 5 000€, pelo prazo de 2 anos, nos termos do artigo 20.º-A, § 1.º e 4.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (na redação dada pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto);

e) Manter o pagamento parcial da coima na quantia de 10 000€, pela prática das referidas contraordenações ambientais.»

c. Inconformado com essa decisão a arguida interpôs o presente recurso, pretendendo seja a mesma revogada, com a consequente absolvição da recorrente, rematando a respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1 - Vai o presente recurso interposto contra a douta sentença, apenas, parcialmente a impugnação judicial da decisão administrativa, por se considerar que a mesma opera uma errada aplicação das normas jurídicas.

2 - A douta sentença recorrida considerou improcedente a nulidade que foi tempestivamente arguida da decisão administrativa.

3 - Contudo, e salvo o devido respeito, labora em erro, e faz errada interpretação do arrigo 50º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro.

4 - A decisão final pura e simplesmente fez tábua rasa sobre todos os elementos probatórios e defesa de direito carreados para os Autos pela Arguida (exceto quanto à nulidade invocada).

5 - Quando deveria de acordo com o preceituado no artigo 50º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, os elementos novos suscitados na defesa são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.

6 – A decisão administrativa não se pode resumir a uma não pronuncia de (quase todos) todos os argumentos que foram carreados para o processo.

7 - A própria Constituição da República Portuguesa, na norma em que consagra as garantias do processo criminal (art. 32º), consigna sob o nº 10, que nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

8 - A interpretação e aplicação do disposto nos art. artigos 1º do CP, art. 120º, nº2, al. d) e 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal, e art. 43º e 50 do RGCO no sentido de que seria da decisão ser omissa quanto a argumentos esgrimidos pela Arguida/Recorrente sempre constituiria uma dimensão interpretativa de tais normativos em manifesta violação do disposto no art. 32º nº 10 da CRP, e consequentemente uma interpretação fulminada com um manifesto juízo de inconstitucionalidade, que aqui se deixa expressamente invocada para todos os efeitos legais.

9 - Tal como resultou provado até outubro de 2016 a unidade produtiva da arguida/recorrente esteve em testes e em otimização de processos (factos provados 22 e 23, numeração da douta sentença)

10 - Ora, não existe qualquer legislação especifica que regule os procedimentos específicos para o período de testes.

11 - É do mais elementar senso comum que um sistema complexo como o da Arguida/Recorrente, para conseguir entrar em pleno funcionamento, necessita ter um período de testes.

12 - A fase de teste tem, necessariamente, de ser um período de experimentação para ver em primeiro lugar se o sistema funciona e por outra de cumpra na integra toda a legislação em vigor. Sendo necessários ajustes.

13 - Naturalmente que numa fase de arranque poderão acontecer, como aconteceu, ligeiros desvios.

14 - Ora, a Arguida/recorrente foi condenada por ter incumprido os preceitos legais sem ser tido e conta que estava em fase de testes.

15 - Ora, salvo o devido respeito, labora em erro a douta sentença em considerar aplicável Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto e DL n.º 226-A/2007, de 31.05 a unidade produtiva em testes.

16 - A conduta da arguida, dado que estava em fase de testes (facto que resultou provado) não se enquadra no artigo 7.º, n.º1 e 2 do DL n.º 127/2013, de 30.08 e nem tampouco p. e p. pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea c) do DL n.º 226-A/2007, de 31.05.

17 - Outro entendimento, que não este, esvaziaria por completo o conceito de teste, embora o mesmo não esteja legalmente caracterizado.

18 - As contraordenações estão prescrita, dado que a suspensão dos prazos de prescrição relativos aos processos penais e contraordenacionais que tenham por referência factos praticados (por ação ou omissão) em data anterior à vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro viola o princípio da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional, agravando da responsabilidade penal dos arguidos e, como tal, é inadmissível do ponto de vista constitucional, quando interpretado no sentido de alargar o prazo de prescrição dos processos/procedimentos criminais e contraordenacionais, inconstitucionalidade que expressamente se invoca por violação do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.

19 - Deste modo, considera a arguida que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos das contraordenações de que vinha acusada, pelo que a douta decisão recorrida opera uma errada interpretação do artigo 7.º, n.º1 e 2 do DL n.º 127/2013, de 30.08 e nem tampouco p. e p. pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea c) do DL n.º 226-A/2007, de 31.05, face à fase de testes.

20 - Acresce ainda que mal andou a douta sentença recorrida que opera uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 1º do CP, art. 120º, nº2, al. d) e 379.º, n.º 1, al. c), 410º nº 2 do CPP. Art. 32° e 41º, 43º e 50º do RGCO, art.. 23º-A da mesma Lei nº 50/2006, Artigo 72.º do CP, dos Artºs 2° da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, e ainda o disposto nos art. 29º, 32.º, n.º 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida da contra ordenação de que vinha acusada.»

d. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese (transcrição) que:

«1. Uma vez que a autoridade administrativa, pronunciou-se na decisão administrativa, sobre os factos alegados pela recorrente (ponto II da Instrução e Defesa – Análise da Defesa, e ainda o ponto III – Motivação), não se verifica qualquer omissão de pronúncia sobre os mesmos, e por conseguinte, não se encontra verificada qualquer nulidade, nem houve a violação de qualquer preceito legal ou constitucional, designadamente os arts. 50.º, 58.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, arts. 120.º, n.º 2, alínea d) e 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, e art. 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.

2. Tendo ficado provada a actividade exercida pela recorrente, bem como o facto de que a captação subterrânea tinha uma autorização de utilização dos recursos hídricos para captação, emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente, é notório que quanto a esta não existia qualquer período de testes, sendo que o título teria sido emitido dois anos antes, pelo que caberia à sociedade recorrente respeitar os limites aí previstos, dos quais tinha conhecimento, sem porém, agir com a diligência necessária e de que era capaz - encontrando-se quanto a esta o elemento objectivo e subjectivo de ilícito contraordenacional preenchido.

3. Por sua vez, e atendendo à actividade da Recorrente (enquadrada na categoria PCIP 5.2 b) do Anexo I do DL n.º 127/2013, de 30 de Agosto), e a existência da Licença de exploração n.º 2/2016, não restam dúvidas de que a mesma se encontrava abrangida pelo âmbito de aplicação do referido Decreto-Lei, cabendo-lhe o cumprimento das obrigações gerais do operador, nos termos do art. 7.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, cumprindo o disposto na Lei e nas condições de licenciamento estabelecidas, das quais tinha conhecimento, sem porém, agir com a diligência necessária e de que era capaz - pelo que aqui também se verifica o preenchimento do tipo objectivo e subjectivo de ilícitos contraordenacionais.

4. A aplicação da suspensão dos prazos de prescrição em matéria de contraordenações, imposta pela resposta normativa nacional à crise sanitária SARS-Covid 19 (artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março), não é inconstitucional – vide Acórdão n.º 798/2021 do Tribunal Constitucional.

5. Atenta a data da prática dos factos, as interrupções referentes à notificação para exercício do direito de defesa, e da prolação da decisão administrativa, bem como a aplicação da suspensão dos prazos de prescrição (artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março e art. 27.º-A, alínea c) do RGCO), ainda não se encontra decorrido o prazo de prescrição.

6. Não foram violados quaisquer artigos do Código de Processo Penal e /ou da Constituição da República Portuguesa, bem como quaisquer outros preceitos legais/constitucionais ou princípios de direito

7. A douta sentença não merece qualquer reparo, por correcta interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis in casu, devendo manter-se na sua íntegra.»

e. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância limitou-se a apor o seu visto.

f. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

2. Conhecendo dos fundamentos do recurso

O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância relativas a processos de contraordenação, consta dos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC). Daí decorre que nos processos de contraordenação o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, § 1.º e 74.º, § 4.º do RGC, e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito, podendo alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo tribunal. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, que delimitam o seu âmbito, verifica-se terem sido trazidas as seguintes questões, de que importa conhecer: i. nulidade da decisão administrativa; ii. verificação dos ilícitos; iii. prescrição das contraordenações.

3. Factos provados (da sentença recorrida)

«Com relevância para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

Da decisão administrativa:

1. No dia 22 de Agosto de 2017, pelas 10h00, a IGAMAOT realizou uma acção inspectiva no estabelecimento denominado “…”, sito em …, …, no concelho da ….

2. A instalação …, pertencente à empresa AA, localizada na …, dedica-se à actividade de eliminação de resíduos perigosos e não perigosos por incineração, cuja capacidade produtiva instalada corresponde a 16,1 t/dia e 5000t/ano para um perído de funcionamento anual de 310 dias.

3. A empresa arguida é detentora da Licença de Exploração n.º …/2016, emitida em …2016, pela Agência Portuguesa do Ambiente, e válida até …2023.

4. O abastecimento de água na instalação referida em 1) é proveniente de duas captações de água subterrânea (SB1 e SB2) destinando-se à utilização no processo industrial, instalações sanitárias e sociais.

5. A captação subterrânea SB1 detém a Autorização de Utilização dos Recursos Hidrícos para Captação de Água Subterrânea n.º …2015.RH5, emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente em 16/10/2015 sem data de validade.

6. De acordo com a autorização referida em 5), a arguida obriga-se a instalar um contador que permita conhecer com rigor o volume total de água captada e as leituras do contador terão de ter uma periocidade mensal devendo ser reportadas à entidade licenciadora com periocidade trimestral.

7. À data da inspecção, esta captação possuía contador e foram disponibilizadas as leituras dos volumes captados referentes ao ano de 2016, encontrando-se esses valores abaixo do volume máximo mensal para o mês de maior consumo, 1000 m3.

8. A arguida apresentou comprovativo de envio do registo dos volumes captados à entidade licenciadora através da submissão do portal Siliamb.

9. A captação subterrânea SB2 detém a Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos para Captação de Água Subterrânea n-º ….2014.RH5, emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente em 18.09.2014, sem data de validade.

10. De acordo com a autorização referida em 10), a arguida obriga-se a instalar um contador que permita conhecer com rigor o volume total de água captada e as leituras do contador terão de ter uma periocidade mensal devendo ser reportadas à entidade licenciadora com periocidade trimestral.

11. À data da inpecção esta captação possuía contador e foram disponibilizadas as leituras dos volumes captados referentes ao ano de 2016, encontrando-se esses valores abaixo do volume máximo mensal para o mês de maior consumo, 1000 m3, à excepção do mês de Março em que se registou 1090m3 de água captada (doc 5, fl. 63).

12. A arguida apresentou comprovativo de envio do registo dos volumes captados à entidade licenciadora através da submissão do portal Siliamb.

13. As emissões pontuais de poluentes para a atmosfera encontram-se associadas às fontes de emissão FF1– Incinerador, FF2-Caldeira de água quente e FF3 – Incinerador (emergência), conforme descrito na Licença de exploração n.º …/2016.

14. Relativamente às fontes FF1 – Incenerador e FF2 – Caldeira de água Quente, o ponto 8.2.2.3 (Monotorização e Valores Limite de Emissão) da Licença de Exploração n.º …/2016 estabelece que o controlo da emissão de gases deverá ser efectuado de acordo com o especificado nos Quadros 10 e 11 desta licença, não devendo nenhum parâmetro de emissão exceder os valores limite de emissão (VLE) aí mencionados.

15. No que se refere ao autocontrolo pontual das emissões atmosféricas da Fonte FF1 – Incinerador e da Fonte FF2 – Caldeira de água Quente, a arguida não procedeu, no ano de 2016, à obrigatoriedade de efectuar a monotorização das referidas Fontes, duas vezes em cada ano civil.

16. Em 2016 a empresa incinerou 4888,54t de resíduos.

17. Relativamente ao autocontrolo pontual das emissões atmosféricas da Fonte FF1 – Incinerador em 2017, cujos ensaios de caracterização das emissões gasosas foram realizados em 05.04.2017 e 06.04.2017, conforme relatórios de ensaio n.º 674.17/SMB-xs1 e 675.17/SMB-xs1, verifica-se que no parâmetro dioxinas e furanos foi apresentado um resultado de 1,4ngTe/Nm3, valor acima do respctivo VLE (0,1ngTE/Nm3).

18. Da análise ao autocontrolo em contínuo das emissões atmosféricas da Fonte FF1, verifica-se que:

a. Quanto ao 1.º trimestre de 2016 (Janeiro, Fevereiro e Março): - os valores apresentados no 1.º Relatório trimestral de 2016 (doc. 8, Fl. 77-80, doc. 10, fls. 85) foram expurgados de todos os valores referentes a “outliers” e possíveis avariais.

- relativamente ao parâmetro Cloreto de Hidrogénio (HCI), da análise aos resultados referentes ao 1.º trimestre, resulta que no mês de Março existiram oito incumprimentos às médias diárias, sendo a maior de 8,23mg/Nm3;

- quanto ao parâmetro Flureto de hidrogénio (HF), da análise aos resultados referentes ao 1.º trimestre, resulta que no mês de Janeiro existiram nove incumprimentos às médias diárias, sendo a maior de 1,48mg/Nm3 e no mês de Março existiram oito incumprimento às médias diárias (a maior de 1,10 mg/Nm3);

- relativamente ao parâmetro dióxido de enxofre (SO2), no mês de Janeiro existiram cinco incumprimentos às médias de 30 minutos, sendo a maior de 263,06 mg/Nm3) e um incumprimento às médias diárias, de 53,05 mg/Nm3; e no mês de Março existiu um incumprimento às médias de 30 minutos, de 303,12mg/Nm3.

b. Quanto ao 2.º semestre de 2016 (Abril, Maio e Junho):

- os valores apresentados no 2.º Relatório trimestral de 2016 foram já expurgados de todos os valores referentes a “outliers” e possíveis avarias;

- relativamente ao parâmetro Cloreto de Hidrogénio (HCI), no mês de Junho existiu um incumprimento às médias diárias, de 8,06mg/Nm3;

- quanto ao parâmetro Dióxido de enxofre (SO2), no mês de Junho existiram dois incumprimentos às média de 30 minutos, a maior de 176,23 mg/Nm3) e um incumprimento às médias diárias, de 44,70mg/Nm3.

19. Os resultados da comunicação à APA foram comunicados em 05.08.2016, fora do prazo legal para o efeito, em 30.07.2016.

20. A arguida exerce actividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma.

21. Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude aos factos ou censurabilidade às suas condutas.

- Da Impugnação Judicial

22. A unidade produtiva da arguida esteve até Outubro de 2016 em testes e em optimização de processos.

23. A APA notificou a arguida em 10.11.2016 que a unidade de produção terminou o período de testes no final de Outubro de 2016.

Mais resultou provado que

24. Não são conhecidas outras contra-ordenações ambientais à arguida.»

4. Dos fundamentos do recurso

4.1 Da invalidade da decisão administrativa impugnada

Comecemos por afirmar que a punição de condutas lesivas do ambiente encontra escora constitucional no direito fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 66.º, § 1.º da Constituição da República, bem assim, nas als. d) e e) do artigo 9.º, onde se enumeram as tarefas fundamentais do Estado, entre as quais está justamente a promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e a defesa da natureza e do ambiente.

A tutela dos bens jurídicos conexos com o ambiente é feita pelo Direito Penal, pelo Direito Contraordenacional (direito penal administrativo), pelo Direito Administrativo e ainda por outros ramos do direito.

No concernente ao direito contraordenacional, justamente por se constituir como um dos meios de tutela desses bens jurídicos, importa referir que este (novo) ramo do direito surge com o advento e desenvolvimento do Estado Social, que passa pela assunção pelo Estado que as infrações no âmbito das novas áreas da intervenção pública deveriam ser resolvidas no âmbito da própria administração, pelo menos numa primeira linha, deixando-se aos tribunais o foco da criminalidade mais relevante, sem prejuízo da garantia de recurso para estes das decisões daquela nas referidas matérias.

Criou-se assim não apenas uma nova categoria de ilícitos, que a lei (o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) crismou de «ilícito de mera ordenação social» (IMOS), constituindo as contraordenações, em conformidade com o que dispõe o seu artigo 1.º, os factos ilícitos e censuráveis que preencham um tipo legal no qual se comine uma coima. A autonomia material do IMOS perante o direito penal não é incontroversa, a ponto de, por vezes mesmo, mesmo os que a afirmam, discordam adiante sobre o exato posicionamento da linha de fronteira. Jorge de Figueiredo Dias (1) entende que o critério decisivo para a distinção material entre ilícitos penais e ilícitos de mera ordenação social se deverá fazer entre as condutas (que não entre os ilícitos): as que se mostram com mais amplo desvalor moral, cultural ou social, corresponderão aos crimes. «O que no direito de mera ordenação social é axiológico-socialmente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal». De modo não muito distinto opina Inês Ferreira Leite quando refere que: «não existe neutralidade ética, per se, mas o desvalor social e ético das condutas proibidas pelo IMOS – por oposição àquelas que têm legítimo cabimento no Direito Penal – no sentido em que tal desvalor deverá associar-se a interesses e valores jurídicos, não decorre imediatamente e sempre da mera descrição, sendo necessária uma contextualização organizacional, mediada pelo conjunto compreendido pelas normas impositivas de regulação da atividade e pela proibição da norma sancionatória...» (2) Acrescenta, quanto à distinção entre a sanção administrativa e a pena criminal, que ambas têm um caráter e função punitiva, diferenciando-se aquela face a esta «na já referida inexistência de uma forte censurabilidade ética. Assim, a coima é uma sanção punitiva – simboliza o castigo (ou consequência intrínseca) pela prática da infração, contribui para o reforço da validade da norma e serve de prevenção no que respeita à prática de novas infrações.» (3) Seguro parece ser que é ao nível da ressonância ética das condutas que se traçará a separação; sendo especial a ressonância ética das condutas criminosas em termos de estas constituírem «comportamentos socialmente insuportáveis». (4) O regime jurídico do IMOS é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, sobretudo através das regras e garantias procedimentais (a competência para a instrução e decisão dos ilícitos está deferida às autoridades administrativas, mediante um procedimento com estrutura inquisitória e célere) e recurso para um tribunal, em conformidade com o que dispõem os artigos 33.º e 59.º RGC, 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º da Constituição (e 6.º da CEDH (5) justamente por razão da garantia do recurso judicial) (6), surgindo o direito e processo penais comos seus referenciais subsidiários (artigos 32.º e 41.º RGC). Relembremos: não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito – isto é, direito constitucional aplicado -, nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais (artigo 32.º, § 10.º da Constituição). Sendo essa a «pedra de toque» que permite aferir, em cada caso, se a realização do ato processual de uma dada maneira (por uma dada «forma») vulnera (ou não) o(s) valor(es) que ela própria tem por função acautelar. Volvendo ao caso concreto. Para sustentar o argumento da nulidade da decisão administrativa, por violação do dever de fundamentação, a recorrente refere que a autoridade administrativa desconsiderou «todos os elementos probatórios e defesa de direito» alegados pela arguida. E que, a decisão administrativa «não se pode resumir a uma não pronuncia de (quase todos) todos os argumentos que foram carreados para o processo»! Este argumentário foi já esgrimido no recurso para o tribunal de 1.ª instância, que sobre tal matéria considerou e decidiu, essencialmente, o seguinte: «(…) secundamos o entendimento, segundo o qual “a fase de investigação e aplicação subsequente da coima no âmbito do processo administrativo não está subordinada ao princípio da acusação em vigor no processo penal.

(…) não pode deixar de ser tido em consideração que a Administração não é um Tribunal, que o decisor da aplicação da coima não é um juiz e que, sobretudo, por mais voltas que se deem, este processo, enquanto decorre perante as autoridades administrativas, tem necessariamente uma estrutura inquisitória sem distinção entre a acusação e o julgamento que, como é sabido, cabe aos tribunais.

Não tem, pois, sentido, aplicar o princípio do acusatório, tal como o processo penal o concebe, na fase administrativa do processo de contraordenação, até porque os direitos dos cidadãos estão absolutamente garantidos, dado que pode sempre o destinatário da decisão.

(…) não é passível de censura constitucional que, no processo contraordenacional, e antes da sua passagem à fase jurisdicional, atenta a menor ressonância ética do ilícito contraordenacional face ao direito criminal, o legislador possa, no exercício da sua liberdade conformadora, subtrair das mais rigorosas exigências previstas para o processo penal, determinados procedimentos concretos, mais rigorosos e porventura inultrapassáveis, quer no domínio criminal, quer no domínio de uma fase procedimental jurisdicionalizada, procedimentos esses que se reflitam, no referido processo, numa menos ampla exigência de observação de específicos requisitos processuais, como, por exemplo, a análise concreta, na decisão aplicadora da coima, de «exceções» ou «questões prévias» suscitadas pelo acoimando na sua defesa, podendo, inclusivamente, retirar dessa não análise concreta, que se depararia como uma não expressa pronúncia, a consequência de a autoridade administrativa ter entendido pela não procedência das citadas «exceções» ou «questões prévias».

Ponto é, porém, que, como se viu, seja assegurado o «núcleo mínimo» do exercício do contraditório no desenho acima feito e que se não precluda o acoimado de, na fase jurisdicional de que porventura lance mão, poder esgrimir com os vícios procedimentais que se lhe afiguraram existir na fase administrativa e de, nesse particular, se poder (e dever) debruçar o órgão jurisdicional que há de decidir o recurso.

(…) Os requisitos enunciados no referido preceito [artigo 58.º RGC] visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercer de forma cabal e efectiva o seu direito de defesa, o que se verificará se o arguido tiver conhecimento dos factos que lhe são imputados, das normas legais aplicáveis e a possibilidade de impugnar a decisão.

Com efeito, por força do disposto no n.º 10, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”, pelo que para o exercício do seu direito de defesa, tem o arguido de ter conhecimento daqueles elementos.

(…)

Comece-se por dizer que a decisão administrativa satisfaz as exigências previstas no artigo 58.º do RGCO.

Com efeito, a mesma contém a identificação da arguida, a descrição dos factos imputados, com a indicação das provas obtidas, a indicação das normas punitivas, os fundamentos da decisão e as coimas aplicadas.

Ademais, da decisão administrativa constam ainda as informações a que aludem os n.ºs 2 e 3 do RGCO.

A recorrente alega que os factos carreados para os autos pela recorrente em sede de Defesa não foram considerados pela autoridade administrativa, não constando dos factos provados/não provados.

É certo que a autoridade administrativa não levou à matéria de facto assente/não assente os factos alegados pela recorrente, no entanto, verifica-se que a mesma se pronunciou sobre os mesmos – vd. ponto II. Instrução e Defesa – Análise da Defesa.

Ademais, resulta também da decisão administrativa que a mesma teve em consideração a defesa da arguida e o documento junto – vd. ponto III – Motivação.

Deste modo, improcede a invocada nulidade.»

Pois bem. Dispõe o artigo 58.º RGC que:

«1. A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

a) a identificação dos arguidos;

b) a descrição dos factos imputados, com a indicação das provas obtidas;

c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) a coima e as sanções acessórias.

2. Da decisão deve ainda constar a informação de que:

a) a condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º;

b) em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.

3. A decisão conterá ainda:

a) a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;

b) a indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.» Ora, vista (e revista) a decisão administrativa, constatamos que a mesma respeita a matriz estabelecida neste normativo, nela se contemplando todos os aspetos ali indicados, designadamente dela constando validamente, todos os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos dos ilícitos em referência com respeitos à atuação negligente da arguida.

No recurso para este tribunal superior a recorrente repisa a invocação do disposto nos artigos 374.º e 379.º do Código de Processo Penal (CPP), para sustentar a sua tese da nulidade da decisão administrativa. Mas as normas do CPP só são aplicáveis no processo contraordenacional nos estritos termos previstos no artigo 41.º RGC. Não há deveras nenhuma lacuna a integrar, razão pela qual aquelas normas não são chamadas ao caso! Sendo, pois, juridicamente desajustado lançar mão de norma de ordenamento subsidiário, por – como supra se deixou dito - não haver lacuna que o legitime, daí resultando não só estar arredada a apontada nulidade como nenhuma irregularidade há a aponta à decisão administrativa. E, como bem refere o tribunal recorrido, a decisão administrativa não é uma sentença, sendo o artigo 58.º RGC a norma que no direito contraordenacional equivale aos aludidos preceitos do CPP (para as sentenças). Outra manifestação da inconsistência da apontada nulidade à decisão administrativa, decorre da regra constante do § 2.º do artigo 118.º CPP, nos termos da qual «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular». Ora, contrariamente ao que sucede no § 1.º do artigo 379.º CPP (para as sentenças), no artigo 58.º do RGC não se comina de nula a decisão administrativa que não observe as suas prescrições. A valia dos argumentos pertinentemente alegados pela recorrente foi apreciada pelo tribunal de 1.ª instância, que deles conheceu, tendo sido acolhidos os que se mostraram pertinentes, alterando-se o decidido pela autoridade administrativa, na parte que disso se mostrava merecedora. Mas nenhuma nulidade se pode assacar à decisão administrativa. Nada há, pois, a censurar à decisão recorrida neste conspecto.

4.2 Da verificação dos ilícitos contraordenacionais

Considera a recorrente que tendo ficado provado que no período temporal em referência na decisão administrativa (e na sentença recorrida) «a unidade produtiva da arguida esteve até outubro de 2016 em testes e em otimização de processos» (ponto 22.º dos factos provados da sentença recorrida), e [tal] não se contemplando no artigo 7.º, § 1.º e 2.º do DL n.º 127/2013, de 30 de agosto, nem ainda no artigo 81.º, § 3.º, al. c) do DL n.º 226-A/2007, de 31 de maio, não se podem considerar verificados os ilícitos pelos quais foi sancionada. E isso porquanto, refere: - «a fase de teste tem, necessariamente, de ser um período de experimentação para ver em primeiro lugar se o sistema funciona e por outro de cumpra na integra toda a legislação em vigor. Sendo necessários ajustes (…) Naturalmente que numa fase de arranque poderão acontecer, como aconteceu, ligeiros desvios (…) Outro entendimento, que não este, esvaziaria por completo o conceito de teste, embora o mesmo não esteja legalmente caracterizado (…) não existe qualquer legislação especifica que regule os procedimentos específicos para o período de testes.» Respondendo a este argumentário refere o Ministério Público na sua resposta, que tendo ficado provada a atividade exercida pela recorrente, bem como o facto de a captação subterrânea ter uma autorização de utilização dos recursos hídricos para captação, e não existindo quanto a esta qualquer período de testes, tendo o título sido emitido dois anos antes, caberia à sociedade recorrente respeitar os limites nela previstos. E no mais, atendendo à atividade da recorrente (enquadrada na categoria PCIP 5.2 b) do Anexo I do DL n.º 127/2013, de 30 de agosto), e à existência da Licença de exploração n.º 2/2016, não restam dúvidas de que a mesma se encontrava abrangida pelo âmbito de aplicação do referido Decreto-Lei, cabendo-lhe o cumprimento das obrigações gerais do operador, nos termos do art. 7.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, cumprindo o disposto na Lei e nas condições de licenciamento estabelecidas, das quais tinha conhecimento. Nestas matérias entendeu, aliás proficientemente, a sentença recorrida que:

«Embora a recorrente tenha alegado que esteve em período de testes até outubro de 2016, inexistia qualquer regime mais permissivo relativamente ao referido período, pelo que tal condição apenas poderá ser valorada em sede de medida da coima a aplicar.

Ademais, os incumprimentos verificaram-se não só no período de testes, mas após o referido período de testes, pelo que não procede o invocado.

Por seu turno, embora resulte da Licença de Exploração que:

“A instalação deverá ser explorada e mantida de acordo com as condições estabelecidas nesta licença. Sempre que se verifique o incumprimento de alguma das condições desta licença o operador deve:

a) Informar a Agência Portuguesa do Ambiente, IP (APA), no prazo máximo de 48 horas, por qualquer via disponível que se mostre eficiente;

b) Executar imediatamente as medidas necessárias para reestabelecer as condições da licença num prazo tão breve quanto possível;

c) Executar as medidas complementares que a APA considere necessárias”.

A circunstância e a observância do aí estipulado não tem a virtualidade de se considerar não violado o disposto no artigo 7.º, n.º 1 e 2 do DL n.º 127/2013, de 30.08, com a consequente punição consagrada no disposto no artigo 111.º, n.º2, alínea a) do mesmo diploma.

Não procedendo, do mesmo modo, o alegado pela recorrente.» Deveremos, em primeiro lugar, afirmar o óbvio: não está inscrito na natureza das coisas nem nas regras humanas (na lei), que nas fases de teste dos procedimentos das atividades reguladas, na falta de previsão específica as regras ordinárias não se aplicam!

Dito isto, a atuação lícita alternativa da recorrente era clara: cumprir o estabelecido na Licença de Exploração n.º …/2016, na qual se fixaram as regras para a monotorização e valores limite para as emissões atmosféricas. Daquela constando que: «sempre (7) que se verifique o incumprimento de alguma das condições desta licença o operador deve:

«a) Informar a Agência Portuguesa do Ambiente, IP (APA), no prazo máximo de 48 horas, por qualquer via disponível que se mostre eficiente;

b) Executar imediatamente as medidas necessárias para reestabelecer as condições da licença num prazo tão breve quanto possível;

c) Executar as medidas complementares que a APA considere necessárias.»

A recorrente estava, pois, balizada pelas regras contidas na licença concedida e também pelas constantes das leis reguladoras da atividade, as quais (umas e outras) negligentemente não cumpriu.

Acresce que, conforme demostram os factos provados (cf. 17. e 22.º dos Factos Provados), os incumprimentos não se verificaram apenas no período de testes – como alega a recorrente -, mas também para além dele.

A questão não está, pois, na verificação ou inverificação dos ilícitos, na medida em que a sua ação negligente mostra-se, indubitavelmente, integradora dos ilícitos previstos no artigo 81.º/3.c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, conjugado com o artigo 22.º/4-b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto; e no artigo 7.º/1 do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de agosto e 111.º/2-a), conjugado com o artigo 22.º/4-b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, tal como foi considerado na decisão recorrida.

Mas não é indiferente que os ilícitos se tenham verificado, durante uma parte significativa de tempo, quando a organização industrial se encontrava em fase de testes. Isso releva para a medida da sanção. Tendo sido isso mesmo que (muito bem) considerou e decidiu o tribunal recorrido, diminuindo a medida concreta das sanções aplicadas e também a coima única, que de 30 000€ (inicialmente fixada pela entidade administrativa) foi fixada em 15 000€, com suspensão da execução relativamente à quantia de 5 000€, pelo prazo de 2 anos.

Improcedendo também este fundamento do recurso.

4.3 Da prescrição das contraordenações

Sustenta o recorrente que as contraordenações em referência, pelas quais foi sancionada, estão prescritas.

Este argumento já havia sido esgrimido perante o tribunal de 1.º instância, pronunciando-se a sentença recorrida, com total acerto, decidindo não estarem as mesmas prescritas, designadamente por razão da suspensão dos prazos de prescrição no período da crise da Covid19, nos termos do regime estabelecido pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março (na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril e Lei n.º 16/2020, de 29 de maio) e pela Lei n.º 4B/2021, de 1 de fevereiro e Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.

Nessa sequência a recorrente agora alega que «a suspensão dos prazos de prescrição relativos aos processos penais e contraordenacionais que tenham por referência factos praticados (por ação ou omissão) em data anterior à vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro viola o princípio da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional (…)», vulnerando o artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

Pronunciando-se sobre esta dimensão desta questão (da prescrição) refere o Ministério Público, na sua resposta ao recurso, que «cumpre referir que já se pronunciou sobre essa questão, o acórdão n.º 798/2021 do Tribunal Constitucional ao dispor que: “não julga inconstitucional a norma contida no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos contraordenacionais em que estejam em causa alegados factos ilícitos imputados ao arguido, praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes”.»

Tem razão o Ministério Público e não tem razão a recorrente. Acrescentaremos apenas, sumariamente, que esta questão que foi (naturalmente, diríamos) objeto de controvérsia quando tinha de o ser (no período da crise pandémica e no tempo que logo se lhe seguiu). Mas deixou – naturalmente, também - de o ser, em razão da estabilização da jurisprudência constitucional sobre esta matéria.

O Tribunal Constitucional considerou que aquelas leis não só são aplicáveis aos processos contraordenacionais, como não vulneram nenhum dos princípios constitucionais que foram sendo invocados, designadamente aquele que vem suscitado pela recorrente (da proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional) (8).

Acolhendo integralmente o sentido dessas decisões jurisprudenciais, consideramos que as referidas leis não são vulneradoras do princípio constitucional da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional (artigo 29.º, § 1.º, 3.º e 4.º, e artigo 32.º, § 10.º da Constituição).

Com o que consideramos não ser o recurso merecedor de provimento.

5. Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:

a) confirmar a decisão recorrida, por esta se mostrar irrepreensivelmente bem fundada na lei e no direito.

b) Sem custas (artigos 522.º, § 1.º CPP e 94.º, § 4.º RGC).

Évora, 10 de setembro de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Nuno Garcia (vencido conforme declaração infra)

Laura Goulart Maurício

Declaração de voto: Com o devido respeito, discordo do acórdão relativamente à questão da prescrição, reiterando a posição por mim assumida no acórdão de 23/1/2024, proferido no âmbito do processo 6/23.1T8FTR.E1, publicado em www.dgsi.pt, entendendo que a suspensão da prescrição não se aplica a factos anteriores.

Nuno Garcia

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1 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, parte geral, tomo I, 3.ª Edição, Gestlegal, 2019, pp. 186/187; e O Movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, 1983, pp. 317 ss., mormente pp. 323.

2 Inês Ferreira Leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 38.

3 Inês Ferreira leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 40/41.

4 Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5.ª Ed., Duncker u. Humblot, Berlim, 1996, tradução de Miguel Olmedo Cardenete, Editorial Comares, Granada, 2002, pp. 64 (citado por Inês Ferreira leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 35).

5 O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem vindo a confirmar a aplicação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, respeitante ao processo justo e equitativo, em processos contraordenacionais (Cf. Acórdão do TEDH de 27set2011, (Menarini Diagnóstics S.R.L. c. Itália, queixa 43509/08).

6 Sobre a natureza do regime das contraordenações e da sua estrutura procedimental cf. Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações: da cisão à convergência material, pp. 19 ss., Coimbra Editora, 2016.

7 Negrito e sublinhado é da nossa responsabilidade (para frisar o respetivo significado semântico).

8 Nesse sentido poderão ver-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 500/2021, 660/2021 e 798/2021, preferidos respetivamente a 9jun2021, 29jul2021 e 21out2021 (nos quais foram relatores, também respetivamente, os Cons. José João Abrantes, Joana Fernandes Costa e José António Teles Pereira). E ainda o voto de vencido da aqui 2.ª adjunta no acórdão deste Tribunal, de 23jan2024, proferido no proc. 6/23.1T8FTR.E1.