Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
555/13.0TBMMN.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
FORMALIDADES
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – As condicionantes de acesso à venda por negociação particular têm de ser definidas pela positiva de acordo com o texto do anúncio e não através de um sistema de exclusões.
2 – A venda por negociação particular pode ser feita por apresentação de propostas na plataforma e-leilões, caso em que lhe é aplicável a disciplina prevista no Despacho n.º 12624/2015, da Ministra da Justiça, publicado no DR, II série, n.º 219, de 09/11/2015.
3 – Caso se aceitasse uma proposta fora desse condicionalismo excepcional, seria praticada uma irregularidade viciadora do resultado final da venda por negociação particular através do sistema de leilão electrónico, o que motivaria a anulação da venda, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 835.º[18], por aplicação extensiva do regime previsto no n.º 3 do artigo 837.º[19], ambos do Código de Processo Civil.
4 – Mesmo que seja apresentada uma proposta de valor superior, a mesma não pode ser considerada se esta foi feita fora da plataforma de leilões escolhida e em momento posterior ao termo final do calendário constante do anúncio.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 555/13.0TBMMN.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora –Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
No presente inventário aberto por morte de (…), os interessados (…) e (…) vieram interpor recurso do despacho que reconheceu que a proposta do Requerente/proponente (…) era válida e indeferiu o requerido pelos ora recorrentes.
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Em 20/10/2023, (…) e (…) vieram requerer que fosse reconhecido que a respectiva proposta no valor de € 62.000,00 (sessenta e dois mil euros) foi manifestamente a mais alta e que, nessa conformidade, lhes deveria ser adjudicado o direito de superfície a que correspondeu a negociação particular com a Referência NP 713532023.
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Após ter feito uma descrição do historial da venda em causa e enunciado a legislação aplicável, o Tribunal «a quo» proferido um despacho com o seguinte conteúdo:
«(…) resulta do anúncio de publicação da venda com a ref.ª citius 3608329, 22/4/2023 junto aos autos que a Sr.ª Agente de Execução (AE) promoveu a venda do direito de superfície mediante venda por negociação particular a realizar por leilão electrónico sendo a forma de licitação divulgada pela Exma. Sr.ª AE, note-se, a licitação através da plataforma e-leiloes, nomeadamente, acessível no link para consulta e licitação https://www.e-leiloes.pt/particular.aspx?np=NP713532023.
Não resulta da documentação junta aos autos que a Exma. Sr.ª AE tenha tomado qualquer decisão, ou mesmo, prestado qualquer informação contraditória, por referência à presente venda em negociação particular aos proponentes, tanto que a informação veiculada se traduziu na constatação da existência de duas propostas por parte de diferentes proponentes, sendo que apenas uma das propostas foi submetida através da plataforma E-Leilões remetendo assim a decisão quanto à proposta vencedora, a tomar oportunamente pelo Tribunal.
Face à clareza das informações prestadas pela Exma. Sr.ª AE aos proponentes a que supra se aludiu, assim como, pelo teor do anúncio de publicação da venda com a ref.ª citius 3608329, 22/4/2023 do direito de superfície mediante venda por negociação particular a realizar por leilão electrónico (plataforma E-Leilões), nomeadamente, acessível no link para consulta e licitação https://www.e-leiloes.pt/particular.aspx?np=NP 713532023, não carece tal procedimento de qualquer irregularidade, susceptível de reparo.
Note-se que encontrando-se os proponentes em igualdade de circunstâncias –, entenda-se, igualdade de informação – constante do aviso de venda, com a clara menção de que se trata de venda por negociação particular a realizar por leilão electrónico através da plataforma E-Leilões –, local onde devem ser feitas as licitações –, não é de admitir qualquer outra forma de apresentação de propostas, que não através da presente plataforma, só assim se garantindo a transparência no processo de venda.
Nessa medida, sem necessidade de maiores considerandos e tendo por referência os fundamentos a que supra se aludiu e para os quais se remete a proposta dos Requerentes (…) e (…), porquanto, obtida via email, terá necessariamente que ser desconsiderada, uma vez que não cumpriu as regras definidas (sem qualquer justificação para o efeito), logo irregular face ao disposto no anúncio de publicação da venda com a ref.ª citius 3608329, 22/4/2023.
Face ao exposto, o Tribunal decide:
- reconhecer que a Proposta do Requerente/proponente (…), se apresenta válida, porquanto, formulada através da plataforma E-Leilões, em respeito às regras constantes do anúncio de publicação da venda do direito de superfície nos presentes autos e, nessa conformidade, adjudica-lhe o Direito de Superfície a que correspondeu a negociação particular com a Referência NP 713532023;
- Indeferir o requerido pelos proponentes/Requerentes (…) e (…), uma vez que a sua proposta se afigura irregular, porquanto, não cumpriram as regras definidas no anúncio de publicação da venda do direito de superfície em referência nos presentes autos, nomeadamente, a licitação através da plataforma E-Leilões, sem qualquer justificação para o efeito.
Notifique».
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Inconformados com tal decisão, os recorrentes apresentaram recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«A) Do link para consulta ou licitação:
https://www.eleiloes.pt/particular.aspx?np=NP713532023
Não consta qualquer proibição de apresentar propostas através de email directamente à Sra. Agente de Execução.
B) Desse link também não consta qualquer obrigatoriedade de apresentação de propostas exclusivamente na plataforma electrónica e-leilões.
C) A Sra. Agente de Execução não excluiu qualquer forma de apresentação de propostas, nem tão pouco obrigou a que essa apresentação fosse somente através de leilão online.
D) Numa Negociação Particular, as propostas podem inclusive ser enviadas via CTT ou entregues directamente no escritório da Agente de Execução, ou seja do Encarregado da Venda.
E) Nada existe no anúncio de venda por Negociação Particular dos autos que impeça a licitação por email.
F) Nada existe no anúncio de venda por Negociação Particular dos autos que obrigue a licitação na plataforma e-leilões.
G) A Meritíssima Juiz a quo errou na apreciação da prova quando da análise do anúncio publicitado na plataforma e-leilões retira que a AE promoveu a venda do direito de superfície mediante venda por negociação particular a realizar por leilão electrónico, não sendo de admitir qualquer outra forma de apresentação de propostas.
H) Ou seja, dito dessa forma parece que essa venda por NP seria exclusivamente por leilão electrónico, o que não se pode concluir do anúncio publicitado.
I) A venda por LO (leilão electrónico online) é que é feita exclusivamente por propostas na plataforma e-leilões.
J) A venda por negociação particular pode ser feita por apresentação de propostas na plataforma e-leilões, mas também o pode ser de outras formas, nomeadamente por email, como foi o caso da apresentação da proposta de licitação dos Recorrentes.
K) Se a Sra. AE pretendia somente a apresentação de propostas no e-leilões, então deveria ter publicitado essa sua interdição aquando da publicitação da modalidade de venda na plataforma electrónica, ou ainda, ter decidido por outra forma de venda que não a Negociação Particular, mas sim o Leilão Online (LO).
L) No caso dos autos não estamos perante um Leilão Electrónico, mas sim perante uma Negociação Particular.
M) A Sra. AE não excluiu a apresentação de propostas por email.
N) A Sra. AE na publicitação da venda não obrigou a que as propostas fossem todas apresentadas na plataforma e-leilões.
O) Incorre também em erro na apreciação da prova a Meritíssima Juiz a quo quando conclui, sem qualquer fundamento que não era de admitir outras formas de apresentação de propostas, que não através da plataforma e-leilões.
P) Decide assim, de forma errada pois nada no anúncio de publicitação da venda por negociação particular o refere, nem no anúncio se excluem outras formas legais e habituais de apresentação de propostas na negociação Particular.
Q) A própria Plataforma electrónica informa e adverte que se “se pretender submeter uma proposta para a compra de um bem em negociação particular, se deve ter em atenção que a venda em negociação particular não está sujeita às mesmas regras do leilão electrónico, pelo que podem surgir outras propostas junto do gestor do processo”.
R) Acresce que, ao licitar na plataforma (enviar proposta no e-leilões), no caso da negociação particular o licitante tem, inclusivamente, que clicar no “botão” onde se pode ler: “Compreendi e quero fazer a proposta” (ou seja, sabendo que podem surgir outras propostas junto do gestor do processo, isto é, fora da plataforma e-leilões).
S) Esta informação/aviso surge a todos os licitantes de uma Negociação Particular antes de apresentarem a sua proposta no e-leilões, pelo que não podem posteriormente vir dizer que não sabiam, nem alegar falta de transparência na venda, uma vez que tiveram de aceitar expressamente que poderiam existir licitações sem ser na plataforma electrónica e-leilões;
Nestes termos, nos mais de direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve a presente Apelação ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser dado total provimento ao pedido dos Recorrentes, pois os factos provados e a prova produzida impõem decisão diversa da plasmada na douta sentença recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que reconheça que a proposta dos ora Recorrentes foi validamente apresentada via email e em nada contrariando o anúncio de publicitação da venda e, nessa consequência, que lhes seja adjudicado o Direito de Superfície a que correspondeu a negociação particular com a Referência NP 713532023,
Fazendo Vossas Excelências, a costumeira Justiça!».
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Não houve lugar a contra-alegações. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de erro de facto e de erro na aplicação do direito.
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III – Da factualidade com interesse para a justa resolução do caso:
3.1 – Apurada oficiosamente pelo Tribunal da Relação:
1) Após diversas sessões, em sede de conferência de interessados ocorrida em 18/02/2020, relativamente à verba n.º 2 do Activo, por todos os presentes foi acordado na venda e posterior distribuição do produto da alineação pelos interessados, sendo a venda realizada preferencialmente por leilão eletrónico, e tendo sido indicada, para o efeito, a Sra. Agente de execução – (…).
2) Nessa sequência, em sede da referida diligência, foi proferido o seguinte despacho: «Para encarregada da venda da verba n.º 2, preferencialmente por leilão eletrónico, nomeio a agente de execução acima indicada.
Prazo para a venda: 45 dias.
Caso nada seja comunicado naquele prazo, solicite informação acerca do estado da venda.
Os encargos decorrentes da venda serão suportados por todos os interessados.
Notifique».
3) A verba n.º 2 da Relação de Bens corresponde ao bem aqui em causa.
4) As sucessivas diligências de venda resultaram desertas por ausência de ofertas.
5) Em 10/02/2022, foi prolatado despacho em que se dizia que «frustrada a venda em leilão electrónico por falta de proponentes foi determinado o prosseguimento dos autos, mormente, a venda por negociação particular».
3.2 – Da matéria de facto compilada pelo Tribunal de Primeira Instância:
6) A venda por negociação particular tinha como início da proposta o dia 15/04/2023 pelas 11:42:09 e [teve efectivamente o seu] fim no dia 14/06/2023 pelas 14:58:01.
7) Por informação com a ref. ª citius 3697952, de 14/07/2023 veio a Exma. Sra. Encarregada da venda informar os autos da existência de:
- Proposta apresentada no e-leilões em negociar particular, no valor de 60.999,00 euros por (…) – cfr. documento que anexa – dando conta que a mesma foi submetida em 14/06/2023, pelas 14:53:01; e ainda
- Proposta apresentada posteriormente via email, no valor de 62.000,00 euros por (…) e (…) datada de 14/06/2023, pelas 14:54 – cfr. documento que anexa.
8) A I. A. E. respondeu ao e-mail da proposta dos Requerentes (…) e (…), no dia 17 de Junho de 2023, às 10,20h informando-os que, na plataforma e-leilões.pt a negociação particular tinha terminado com a melhor proposta de € 60.990,00 (sessenta mil e novecentos e noventa euros) – cfr. documento n.º 2 junto com o datado de 20/10/2023, com a ref.ª citius 3788309.
9) Resulta do anúncio de publicação com a Refª. ª citius 3608329, 22/04/2023:
Tipo de Bem: Imóvel
Descrição do Bem: a) Direito de superfície, constituído pelo período de 75 anos, sobre o prédio urbano inscrito sob o artigo (…), da freguesia de (…), concelho de Montemor-o-Novo, e b) Direito de superfície, adquirido pelo período de 75 anos, constituído sobre a parcela terreno com a área 4.203 m2, a confortar a norte e nascente com o prédio da vendedora, a sul com herdeiros de (…) e a poente com caminho público, do prédio rústico inscrito sob o artigo (…), secção (…), da freguesia de (…), concelho de Montemor-o-Novo.
LINK PARA CONSULTA OU LICITAÇÃO:
https://www.e-leiloes.pt/particular.aspx?np=NP713532023
Valor Base: € 65.981,25
Valor de Avaliação: € 65.981,25
Modalidade da Venda: Venda por negociação particular
Data da Venda: 2023-06-14 14:30
Valor da Venda: € 56.084,06
Data Limite da Publicação: 14-06-2023
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IV – Fundamentação:
A parte recorrente coloca em causa a matéria de facto, mas, no fundo, não dirige a sua divergência a qualquer facto concreto. Na verdade, a parte não impugna a factualidade provada, antes coloca reticências à interpretação que o Tribunal a quo faz de determinada matéria e discorda da solução jurídica encontrada na decisão recorrida.
Além do mais, a discordância em causa não segue o método operativo definido no artigo 640.º[1] do Código de Processo Civil. E, assim sendo, por via da violação do ónus de impugnação impresso na lei, rejeita-se a impugnação em causa e é com base nos factos acima elencados que será feita a operação de subsunção e a construção do silogismo judiciário.
O actual Código de Processo Civil optou, como regra, pela venda mediante leilão electrónico, sendo que apenas em casos excepcionais (devidamente discriminados nos seus pressupostos) se admite a venda através de outras modalidades.
Olhando para o histórico do processo verifica-se que a venda mediante leilão electrónico ficou frustrada e foi sucessivamente tentada a venda por negociação particular, embora com a particularidade dessa negociação ter sido ordenada através da plataforma electrónica disponibilizada para os leilões.
Nesta ordem de ideias, existe assim uma interpenetração dos regimes da venda por leilão electrónico e da venda por negociação particular tramitada através de plataforma electrónica.
A venda por negociação particular é uma das modalidades de venda prevista no processo executivo visando a satisfação do interesse do credor (artigo 811.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil)[2].
O disposto no artigo 818.º[3], no n.º 2 do artigo 827.º[4] e no artigo 828.º[5] para a venda mediante propostas em carta fechada aplica-se, com as necessárias adaptações, às restantes modalidades de venda e o disposto nos artigos 819.º[6] e 823.º[7] aplica-se a todas as modalidades de venda, exceptuada a venda directa.
Esta modalidade de venda é adoptada, designadamente, quando se frustre a venda por propostas em carta fechada, por falta de proponentes, não aceitação das propostas ou falta de depósito do preço pelo proponente aceite (artigo 832.º, alínea d), do Código de Processo Civil)[8].
Em todas as modalidades de venda processualmente admitidas a verba fixada como valor base da transacção serve de referência para a conclusão do negócio intraprocessual executivo.
É certo que a venda por negociação particular pode ser feita por apresentação de propostas na plataforma e-leilões, mas também o pode ser de outras formas, designadamente por contacto directo com o encarregado de venda.
Entendem os recorrentes que se se pretendia apenas a apresentação de propostas no e-leilões, então deveria ter publicitado essa interdição aquando da publicitação da modalidade de venda na plataforma electrónica.
No entanto, as condicionantes de acesso à venda têm de ser definidas pela positiva e não através de um sistema de exclusões e aqui aquilo que prevalece é que de acordo com as circunstâncias em que o anúncio foi elaborado e as condições específicas da venda todos os elementos interpretativos apontam para a intenção de a venda ser realizada integralmente através da plataforma e-leilões.
Ao nível da orientação teleológica do direito das obrigações, incluindo aqui em sentido lato as cláusulas privadas de regulação do acto de venda, a correcta interpretação e integração contratual deve ser cometida à luz dos critérios da boa-fé e da função social do direito.
Na esteira de Sousa Ribeiro, isto exige a busca de «uma solução que resulta de uma ponderação objectiva de incidência de factores externos na originária conformação de interesses, destinando-se a evitar a desvirtuação do seu sentido ou funcionalidade, é aqui, em termos redaccionais, apresentada em veste de cominação de um modo de agir negocial»[9].
São de convocar ainda para a justa solução da causa os critérios de interpretação precipitados nos artigos 236.º[10] e 237.º[11] do Código Civil e que são aplicáveis às declarações negociais, tanto expressa como tácitas, quer respeitem a negócios jurídicos sujeitos a forma especial quer não.
No domínio jurisprudencial destacam-se, entre outros, a respeito da problemática da interpretação das declarações negociais, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2012, 12/06/2012, 25/10/2011, 20/01/2010, 21/05/2009, 16/10/2008, 17/04/2008, 19/02/2008, 02/10/2003 e 04/06/2002[12].
Com as necessárias adaptações, seguindo a linha de raciocínio da jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça[13], na interpretação de um contrato ou de um acto jurídico com conteúdo equivalente, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo. Por isso, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (artigo 236.º do Código Civil).
Furtando as palavras a Oliveira Ascensão uma coisa é interpretar a proposta (e eventualmente a aceitação), actos unilaterais, outra é interpretar o contrato global que é negócio jurídico complexo e a sua interpretação tem de fazer-se atendendo simultaneamente às declarações de todas as partes, porque todas são simultaneamente declarante e declaratário[14].
Na formulação adoptada por Pedro Pais de Vasconcelos, este autor avança que na interpretação deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, como acção de autonomia privada e como globalidade da matéria negociada ou contratada[15].
Neste ponto, face a todo o percurso negocial, independentemente da caracterização do acto de determinação da venda, não temos dúvidas que prevalece aqui o regime da venda negociação particular numa dimensão puramente electrónica, face aos interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento) e à finalidade prosseguida.
Não estamos aqui perante um cenário em que a negociação particular pressupõe a consulta directa do mercado, mediante a procura de propostas, que possam corresponder a uma correcta intercepção do binómio económico da lei da oferta e da procura.
Aliás, face à não interoperatividade entre um sistema electrónico e o modelo de contacto directo, não se torna possível comunicar aos utentes da plataforma electrónica o resultado das negociações particulares mantidas com o encarregado de venda, enquanto aqueles que assistem ao leilão podem beneficiar dessa informação e apresentar propostas ao agente de execução sem que, em tempo útil, os outros potenciais interessados possam, em termos concorrenciais e em situação de igualdade, reverter o sentido da arrematação.
E, certamente, por isso, o encarregado de venda não aceitou a proposta comunicada através de e-mail e, posteriormente, o Tribunal reconheceu como válida a proposta apresentada por (…) e indeferiu o requerido pelos proponentes (…) e (…).
Na realidade, a primeira posição respeitou as regras constantes do anúncio de publicação da venda do direito de superfície, enquanto a segunda foi apresentada de forma não processualmente prevista e para lá do tempo fixado no anúncio (14h30m).
In casu, as propostas deveriam ser apresentadas até à hora limite fixada, sendo que esse momento temporal somente pode ser diferido nas situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º do Despacho n.º 12624/2015, da Ministra da Justiça, publicado no DR, II série, n.º 219, de 09/11/2015, ou seja, «havendo proposta apresentada dentro dos últimos cinco minutos que antecedem a hora limite inicialmente fixada, a hora limite passa a ser a do registo na plataforma da última licitação, acrescida de cinco minutos (alínea a)); O ciclo de apresentação de licitações e subsequente diferimento da hora limite, só termina depois de decorridos cinco minutos sobre a apresentação da última licitação (alínea b))».
Caso se aceitasse uma proposta fora desse condicionalismo excepcional, seria praticada uma irregularidade viciadora do resultado final da venda por negociação particular através do sistema de leilão electrónico, o que motivaria a anulação da venda, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 835.º[16], por aplicação extensiva do regime previsto no n.º 3 do artigo 837.º[17], ambos do Código de Processo Civil.
Neste espectro lógico-jurídico, a proposta dos recorrentes não cumpriu as regras definidas no anúncio de publicação da venda do direito de superfície. Por conseguinte, mesmo que seja apresentada uma proposta de valor superior, a mesma não pode ser considerada se esta foi feita fora da plataforma de leilões escolhida e em momento posterior ao termo final do calendário constante do anúncio.
Desta forma, não existe motivo para revogar a decisão recorrida, tal como é pedido na impugnação por via recursal, mantendo-se o decidido pela Primeira Instância.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do presente recurso a cargo dos apelantes, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 23/05/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
Maria Emília dos Ramos Costa


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[1] Artigo 640.º (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
[2] Artigo 811.º (Modalidades de venda):
1 - A venda pode revestir as seguintes modalidades:
a) Venda mediante propostas em carta fechada;
b) Venda em mercados regulamentados;
c) Venda direta a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens;
d) Venda por negociação particular;
e) Venda em estabelecimento de leilões;
f) Venda em depósito público ou equiparado;
g) Venda em leilão eletrónico.
2 - O disposto no artigo 818.º, no n.º 2 do artigo 827.º e no artigo 828.º para a venda mediante propostas em carta fechada aplica-se, com as necessárias adaptações, às restantes modalidades de venda e o disposto nos artigos 819.º e 823.º aplica-se a todas as modalidades de venda, excetuada a venda direta.
[3] Artigo 818.º (Obrigação de mostrar os bens):
Até ao dia de abertura das propostas, o depositário é obrigado a mostrar os bens a quem pretenda examiná-los, podendo este fixar as horas em que, durante o dia, faculta a inspeção e devendo o agente de execução indicá-las no anúncio e no edital da venda.
[4] Artigo 827.º (Adjudicação e registo):
1 - Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.
2 - Seguidamente, o agente de execução comunica a venda ao serviço de registo competente, juntando o respetivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.
[5] Artigo 828.º (Entrega dos bens):
O adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados.
[6] Artigo 819.º (Notificação dos preferentes):
1 - Os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio ato, se alguma proposta for aceite.
2 - A falta de notificação tem a mesma consequência que a falta de notificação ou aviso prévio na venda particular.
3 - À notificação prevista no n.º 1 aplicam-se as regras relativas à citação, salvo no que se refere à citação edital, que não terá lugar.
4 - A frustração da notificação do preferente não preclude a possibilidade de propor ação de preferência, nos termos gerais.
[7] Artigo 823.º (Exercício do direito de preferência):
1 - Aceite alguma proposta, são interpelados os titulares do direito de preferência presentes para que declarem se querem exercer o seu direito.
2 - Apresentando-se a preferir mais de uma pessoa com igual direito, abre-se licitação entre elas, sendo aceite o lance de maior valor.
3 - Aplica-se ao preferente, devidamente adaptado, o disposto no n.º 1 do artigo seguinte.
[8] Artigo 832.º (Casos em que se procede à venda por negociação particular):
A venda é feita por negociação particular:
a) Quando o exequente propõe um comprador ou um preço, que é aceite pelo executado e demais credores;
b) Quando o executado propõe um comprador ou um preço, que é aceite pelo exequente e demais credores;
c) Quando haja urgência na realização da venda, reconhecida pelo juiz;
d) Quando se frustre a venda por propostas em carta fechada, por falta de proponentes, não aceitação das propostas ou falta de depósito do preço pelo proponente aceite;
e) Quando se frustre a venda em depósito público ou equiparado, por falta de proponentes ou não aceitação das propostas e, atenta a natureza dos bens, tal seja aconselhável;
f) Quando se frustre a venda em leilão eletrónico por falta de proponentes;
g) Quando o bem em causa tenha um valor inferior a 4 UC.
[9] A boa fé como norma de validade, in Direito dos Contratos, Coimbra Editora, págs. 211-212.
[10] Artigo 236.º (Sentido normal da declaração):
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
[11] Artigo 237.º (Casos duvidosos):
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
[12] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2012, in www.dgsi.pt.
[14] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pág. 435.
[15] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª edição, 2010, Almedina, Coimbra, págs. 546-547.
[16] Artigo 835.º (Irregularidades da venda)
1 - Os credores, o executado e qualquer dos licitantes podem reclamar contra as irregularidades que se cometam no ato do leilão; para decidir as reclamações, o juiz pode examinar ou mandar examinar a escrituração do estabelecimento, ouvir o respetivo pessoal, inquirir as testemunhas que se oferecerem e proceder a quaisquer outras diligências.
2 - O leilão é anulado quando as irregularidades cometidas hajam viciado o resultado final da licitação, sendo o dono do estabelecimento condenado na reposição do que tiver embolsado, sem prejuízo da indemnização pelos danos que haja causado.
3 - Sendo anulado, o leilão repete-se noutro estabelecimento e, se o não houver, procede-se à venda por propostas em carta fechada, se for caso disso, ou por negociação particular.
[17] Artigo 837.º (Venda em leilão eletrónico):
1 - Exceto nos casos referidos nos artigos 830.º e 831.º, a venda de bens imóveis e de bens móveis penhorados é feita preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - As vendas referidas neste artigo são publicitadas, com as devidas adaptações, nos termos dos nºs 2 a 4 do artigo 817.º,
3 - À venda em leilão eletrónico aplicam-se as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão em tudo o que não estiver especialmente regulado na portaria referida no n.º 1.
[18] Artigo 835.º (Irregularidades da venda)
1 - Os credores, o executado e qualquer dos licitantes podem reclamar contra as irregularidades que se cometam no ato do leilão; para decidir as reclamações, o juiz pode examinar ou mandar examinar a escrituração do estabelecimento, ouvir o respetivo pessoal, inquirir as testemunhas que se oferecerem e proceder a quaisquer outras diligências.
2 - O leilão é anulado quando as irregularidades cometidas hajam viciado o resultado final da licitação, sendo o dono do estabelecimento condenado na reposição do que tiver embolsado, sem prejuízo da indemnização pelos danos que haja causado.
3 - Sendo anulado, o leilão repete-se noutro estabelecimento e, se o não houver, procede-se à venda por propostas em carta fechada, se for caso disso, ou por negociação particular.
[19] Artigo 837.º (Venda em leilão eletrónico):
1 - Exceto nos casos referidos nos artigos 830.º e 831.º, a venda de bens imóveis e de bens móveis penhorados é feita preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - As vendas referidas neste artigo são publicitadas, com as devidas adaptações, nos termos dos n.ºs 2 a 4 do artigo 817.º,
3 - À venda em leilão eletrónico aplicam-se as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão em tudo o que não estiver especialmente regulado na portaria referida no n.º 1.