Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1689/05-2
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
REIVINDICAÇÃO
INVERSÃO DE TÍTULO
Data do Acordão: 05/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I – Se um facto provado por documento, cuja força se imponha plena e decisivamente em termos de afastar as demais provas, não constar da especificação, terá ele que ser considerado na sentença.

II – Da resposta “não provado” dada a um quesito formulado negativamente, não pode concluir-se o facto contrário.

III – A actuação como proprietário reúne os actos materiais exteriores reveladores do poder físico sobre a coisa e a correlativa submissão desta ao domínio daquele (corpus) com o estado de espírito psicológico, intelectual e volitivo, de ter a coisa como sua (animus domini).

IV – A inversão do título de posse precária em posse animus domini pode ter lugar por acto do detentor, opondo-se directa e frontalmente ao possuidor e passando a comportar-se, futuramente, contra este ou por acto de terceiro capaz de transmitir o animus da posse, uma vez que, como detentor, já detinha o corpus da posse.
Decisão Texto Integral:
PROCESSO Nº 1689/05 - 2

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
*
RELATÓRIO
A acção de reivindicação que “A” intentou contra “B” e na qual aquele peticionava a condenação desta a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a parcela do prédio rústico denominado …, sito em … e descrito sob o nº 11.717 na Conservatória do Registo Predial de … que a Ré ocupa e fez registar em seu nome sob o nº 01814 e ainda a restitui-la ao Autor, livre de pessoa se bens e ainda a nulidade e cancelamento do registo a favor da Ré, veio a ser julgada improcedente por sentença proferida pelo Círculo Judicial de …
Tal sentença julgou simultaneamente procedente a reconvenção deduzida pela Ré no sentido de ser reconhecida como legítima proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, desse concelho de …, sob o art. 1306 e descrito na mesma Conservatória sob a ficha nº 01814/240898 e aí inscrito em seu nome, por o ter adquirido por via sucessória, de seus pais, os quais, por via de usucapião (fundada em posse iniciada com a inversão de título de posse), o teriam adquirido originariamente e condenou aquele Autor a reconhecer este direito da Ré e também como litigante de má-fé na multa de 4 Ucs.

Não se conformou tal Autor com tal sentença e apelou para esta Relação, pugnando pela sua revogação, para o que, no final da respectiva alegação, formulou as seguintes conclusões:
1 - O prédio reivindicado faz parte integrante do prédio registado a favor do apelante em 11.06.1990 (cfr. arts A), B) e C) da matéria assente e resp. art.27° da BI).
2 - O mesmo foi registado em 1998 a favor da apelada apenas com base nas suas declarações de que o prédio era omisso, o tinha herdado de seus pais e desconhecia os antepossuidores. (cfr. al. E) da matéria assente).
3 - Sendo falsas tais declarações, foi a apelada, em 10.12 de 2003, objecto de acusação pelo M.P pelo crime de falsificação.
4 - O registo da apelada provocou uma duplicação de registo do terreno reivindicado, pois não houve qualquer desanexação do prédio a que o mesmo pertencia.
5 - Não houve qualquer processo de justificação notarial tendente à aquisição originária por usucapião;
6 - O recibo de fls. 85 referido em J) da matéria assente não inverte o título da posse.
7 - O subscritor “C” não era à altura proprietário do prédio do qual o terreno reivindicado faz parte integrante.
8 - A outra subscritora “D” era fiduciária, pelo que não tinha legitimidade para outorgar qualquer venda (cfr. docs a fls. 160 a 164 e 179), e art. 2290o nº 2 do C.Civil).
9 - Tal facto, provado por documento deveria haver sido incluído na sentença como provado (cf. Acta a fls. de 4.10.01).
10 - Quando o pai da Apelada pretendeu erigir uma construção, a C. Municipal transmitiu ao pai da Apelada, em 2.8.1980 que o referido recibo não concedia a posse do terreno (fls. 73 e 74)
11 - Não está em causa a titularidade da construção/casa que se encontra erigida mas o terreno onde a mesma está implantada.
12 - Até à sua morte, em 1995 e 1997, apesar de utilizarem esporadicamente o terreno em causa e se servissem da construção/casa de 53 m2 no mesmo erigida clandestinamente, os pais da Apelada não inverteram o título da posse.
13 - Apenas usavam, e muito esporadicamente, o terreno e a referida construção por mera tolerância do apelante e demais comproprietários.
14 - Para a contagem do prazo de usucapião é necessária a inversão do título da posse.
15 - Os pais da Apelada não pagaram nem metade do preço constante do recibo referido.
16 - Apenas se consideravam como promitentes-compradores e não como proprietários (docs.45 a 48, 113 a 115 e 117 e 118)
17 - Os mesmos reconheceram o apelante e demais comproprietários como proprietários do terreno em causa até à sua morte ou pelo menos até à data dos documentos supra 1989 e 1990.
18 - A resposta do tribunal "a quo" aos arts 22° e 36° da base instrutória deve ser alterada no sentido inverso.
19 - A resposta aos art. 23 a 26° da BI contém interpretação de direito extravasando portanto dos factos na mesma questionados.
20 - O art. 20° da BI, por remissão para os arts 16° e 17° não foi objecto de prova e é inverosímil face ás regras da experiência comum.
21 - Os pais da Apelada não tinham "animus possidendi" em termos de direito de propriedade.
22 - A apelada não pode pois suceder na posse destes.
23 - A inversão do título de posse só se verificou por parte desta aquando das obras de construção em 1999, ou no máximo aquando do registo predial a que a mesma procedeu em 1998.
24 - Não se mostram preenchidos os requisitos legais para aquisição originária por usucapião.
25 - O apelante não litigou de má fé, mas legitimamente convencido do seu direito.
A sentença apelada violou os arts 7° C. R. Predial, arts.1251º, 1290º, 1305º e 2290° do C. Civil e 456° do C.P.C.
Conclui, pedindo a revogação da sentença e sua substituição por outra que considerando a acção procedente condene a apelada no pedido, bem como a revogação da sua condenação como litigante de má fé.

A Ré contra-alegou, defendendo a subsistência da sentença.

Apreciando tal recurso, esta Relação revogou tal sentença e julgou procedente a acção e improcedente a reconvenção.
Interposto pela Ré recurso de revista, o STJ detectou contradição entre a invocada qualidade de promitentes-compradores dos pais da Ré e a resposta negativa ao ponto 37° da base instrutória onde se indagava se eles se diziam promitentes-compradores e ordenou a baixa dos autos a esta Relação para ser resolvida tal contradição.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância, foram considerados provados os seguintes factos:
1. O autor é dono e legitimo co-proprietário do prédio rústico denominado "…", com a área de 6.250 m2, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.o 11717 e inscrito na matriz sob o art. 102 secção F - certidão de fls. 5 a 8 da providência cautelar apensa - (alínea A da matéria de facto assente).
2. O autor adquiriu 8/48 do mencionado prédio, por sucessão de sua avó “D”, é um dos titulares inscritos, pela Ap. 05/110690 - certidão de fls. 5 a 8 da providência cautelar apensa - (alínea B da matéria de facto assente).
3. Encontra-se registada, e como primeira inscrição, a favor da ré, na Conservatória do Registo Predial de …, sob a ficha o n.o 01814/240498, a aquisição, por sucessão de “E” e mulher “F”, de um prédio urbano composto por uma casa de rés-do-chão para habitação com 53,10 m2, logradouro com 452,90 m2, que confronta do Norte e Poente com “D”, Nascente com Rua … e Sul com … - certidão de fls. 10 a 12 da providência cautelar apensa - (alíneas C e D da matéria de facto assente).
4. A descrição do prédio atrás referido (n.o 3 dos factos provados) e a inscrição da sua titularidade a favor da ré foi realizada apenas com base nas declarações desta que, na altura, disse: «O prédio faz parte do acervo de herança de “E” e de “F”, falecidos, e o prédio é constituído com casas de rés-do-chão com 3 compartimentos para habitação, casa de banho e logradouro, tendo como área coberta 53,10 m2 e logradouro com 452,90 m2, confinando a parte Norte e Poente com terras de “D”, Nascente com a Rua dos … e Sul com herdeiros de … O prédio referido tem como artigo matricial o n.º 1306 de …. A apresentante desconhece os antepossuidores, devido à antiguidade dos mesmos» - certidão de fls. 32 a 36 da providência cautelar apensa - (alínea E da matéria de facto assente).
5. A declaração prestada na Conservatória do Registo Predial de … e atrás mencionada foi acompanhada, para o efeito, de caderneta predial urbana, certidão de habilitação de herdeiros e certidão de imposto sucessório - certidão de fls. 32 a 36 da providência cautelar apensa - (alínea F da matéria de facto assente).
6. O prédio urbano referido em 3. encontra-se inscrito na matriz cadastral urbana do concelho de …, da freguesia de …, sob o artigo n.o 1306, desde 11/08/1978 em nome de “E” e em nome da ré, desde 24/04/98 - doc. de fls. 38 e 118 a 121 - (alíneas G e H da matéria de facto assente).
7. No dia 13/01/1998, no … Cartório Notarial de … e perante o notário respectivo, “G” como 1° outorgante, “H” como 2° outorgante e “I” como 3° outorgante, disseram: « ... Que no dia vinte e nove de Janeiro de mil novecentos e noventa e cinco, na freguesia e concelho de …, faleceu “E”, natural da freguesia e concelho de …, com última residência habitual no …, concelho de …, no estado de casado, em primeiras núpcias de ambos e no regime de comunhão geral, com “F”.
Que o falecido não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros o cônjuge sobrevivo, “F”, viúva dele, natural da freguesia do …, concelho de …; e sua filha “B”, divorciada, natural da freguesia de …, concelho de … e residente na …, número um, terceiro andar, D, …, concelho do …
Que no dia oito de Outubro de mil novecentos e noventa e sete, na freguesia de …, concelho de …, faleceu a mencionada “F”, viúva, com última residência habitual na dita Rua …, número vinte, a qual não fez testamento ou outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como única herdeira, sua filha “B”, atrás identificada.
Que não há outras pessoas que, segundo a lei, prefiram às indicadas herdeiras ou com elas possam concorrer na sucessão às heranças ... » certidão de fls. 38 a 41 - (alínea I da matéria de facto assente).
8. Por documento particular intitulado recibo e subscrito por “D”, cujas assinaturas se encontram reconhecidas notarialmente, foi declarado que: «Recebi do Sr. “E”, casado, empregado de escritório, residente na Rua … n.º 20, …, a quantia de Esc. 50.000$00 - (cinquenta mil escudos) como sinal e princípio de pagamento dum lote de terreno com o n.° 1 (um) com frente para a Rua … em … com a área de 506 m2 ao preço de 200$00 cada m2. Cuja escritura se fará logo que haja possibilidade. O comprador ficará desde já com a devida autorização para construir.
…, 31 de Julho de 1976 » - doc. de fls. 85 da providência cautelar (alínea J da matéria de facto assente).
9. Na relação de bens para liquidação do imposto sucessório por morte de “E” e “F”, apresentada na Repartição de Finanças de …, consta o prédio urbano referido em 3. – certidão de fls. 42 a 46 - (alínea L da matéria de facto assente).
10. O autor enviou através de correio, a “C” em 01/06/1988 o escrito particular onde escreveu:
« Caro Tio.
Venho por esta, como interessado na partilha dos bens da herança de “D”, minha avó, alertá-lo para que na qualidade de cabeça de casal de que foi investido em 1/6/83, no sentido de administrar prudente e diligentemente a herança, nada ainda foi dito da sua parte que eu tivesse tido conhecimento, para desonerar as duas parcelas de terreno que foram objecto de contratos-promessa de compra e venda pertencentes à … e nas quais os compradores, numa delas instalaram uma casa bem como exploram a terra onde cultivam legumes, bem como na outra a muraram. Como tal situação se arrasta há longo tempo, solicito que providencie a adequada rapidez a desoneração das referidas parcelas com é seu dever legal.
Igualmente, aproveito para solicitar que apresente de imediato as contas da sua administração o que até agora não fez nestes cinco anos e como sabe é de lei que o faça anualmente.
Sem mais de momento, na certeza de que acolherá com a consideração devida estas observações, envio-lhe os meus melhores cumprimentos e subscrevo-me atenciosamente.» - doc. de fls. 59 - (alínea M da matéria de facto assente).
11. No decorrer do mês de Março de 1999, o autor tomou conhecimento de que no prédio urbano referido em 3., bem como o muro que delimita o logradouro de tal prédio, estavam a ser feitas obras por ordem e por conta da ré. (resposta dada aos quesitos 1° e 2°).
12. As pessoas de …, particularmente as que eram vizinhas do prédio rústico referido em 1. e no qual a parcela referida em 3. originariamente se integrava, consideravam que o mesmo era propriedade de “D” e dos familiares desta. (resposta dada ao quesito 4°).
13. Em 1977, “E” construiu no terreno referido em 3., uma casa para habitação com 3 (três) compartimentos e 1 (uma) casa de banho. (resposta dada ao quesito 7°).
14. E, desde essa altura que pelo menos aos fins-de-semana e período das férias de Verão ele e a sua mulher, aí passaram a dormir, comer e receber os amigos. (resposta dada aos quesitos 8° e 9°).
15 – “J”, desde 1978, com autorização de “E” e mulher, semeou no logradouro do prédio referido em 3., vários produtos hortícolas e cuidou das árvores aí existentes. (resposta dada ao quesito 10°).
16. Em 1976, “E” e mulher muraram o terreno e construíram um poço. (resposta dada aos quesitos 11 ° e 12°).
17. Em 1982, colocaram uma marquise na casa - doc. de fls. 60 - (resposta dada ao quesito 13º)
18. Desde 1980 que, na casa referida em 3., existe electricidade e água, cujos fornecimentos foram requisitados e pagos por “E” - documentos juntos a fls. 86 e 87 da providência cautelar - (resposta dada aos quesitos 14° e 15°).
19. Desde 1977, que “E” pagava a contribuição autárquica e imposto para o serviço de incêndios - doc. de fls. 50 a 55, 57 e 58 - (resposta dada aos quesitos 16° e 17).
20. Só entrava no terreno e na casa referida em 3., quem “E” e “F” permitiam. (resposta dada ao quesito 18°).
21. Nunca ninguém se opôs aos factos referidos sob os n.ºs 13. a 20., que foram praticados à vista de todos e de forma ininterrupta. (resposta dada aos quesito 19°, 20° e 21°).
22. “E” e “F” estavam convencidos de que eram os donos da casa e do terreno referido em 3. (resposta dada ao quesito 22°).
23. A ré, após a morte dos pais, continuou a praticar em relação ao prédio especificado em 3., os actos próprios de proprietária e no convencimento dessa qualidade, aí passando fins-de-semana e períodos de férias, recebendo familiares e amigos, pagando os consumos de energia, água, contribuições, seguros e outras despesas - doc. juntos a fls. 142, 144, 145, 152, 153 e no de fls. 88 junto à providência cautelar - (resposta dada aos quesitos 23° e 26°).
24. Em Fevereiro de 1999, a ré iniciou no prédio urbano referido em 3. e no muro que delimita o logradouro do mesmo, obras de ampliação (casa) e beneficiação (casa e muro), devidamente autorizadas pelo alvará camarário n.º 95 emitido em 18/02/1999, pela Câmara Municipal de … doc. de fls. 84 junto à providência cautelar - (resposta dada ao quesito 24°).
25. A ré cedeu à Câmara Municipal de … 44 m2 do logradouro da casa referida em 3. - doc. de fls. 49 - (resposta dada ao quesito 25°).
26. A parcela de terreno referida em 3. fazia parte do prédio referido em 1. (resposta dada ao quesito 27°).
27. A casa referida em 3. foi erigida sem autorização camarária. (resposta dada ao quesito 29°).
28. “E”, após a construção da casa referida em 3., desenvolveu, junto da Câmara- Municipal de …, esforços no sentido de legalizar a referida construção juntando ao processo que aí correu sob o n.º 223/79, cópia do documento referido em 8., documento este que não foi considerado, pelos serviços camarários, bastante e suficiente para o efeito pretendido por aquele - doc. de fls. 70 a 76 - (resposta dada aos quesitos 30°, 31 ° e 32°).
29. Em Março de 1999, “C” dirigiu-se à Câmara Municipal de … no sentido de saber se a ré possuía licença para a realização das obras de ampliação e beneficiação da casa que havia sido construída pelo seu pai em 1977, tendo recebido dos respectivos serviços camarários a informação constante do documento de fls. 69, datado de 18/03/1999 - doc. de fls. 69 - (resposta dada ao quesito 34°).
Modificação da matéria de facto:
Questiona o apelante a decisão da matéria de facto por insuficiência, por excesso e por incorrecta apreciação das provas.
Por insuficiência, na medida em que não considerou provado um facto que o estava por força de documento autêntico e que era a qualidade de fiduciária de “D” que interveio no negócio documentado no recibo de fls. 85.
Por excesso, na medida em que as respostas aos quesitos 23º e 26º (e não 36° como se refere nas conclusões) conteriam matéria de direito.
Por erro na apreciação das provas as respostas aos quesitos 20º, 22º e 36º.

Apreciando:
O Tribunal da Relação, em sindicância da decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância, pode alterar esta nos casos previstos no art. 712º nº 1, 2 e 4 CPC.
E um destes, prevê a hipótese de do processo constar documento autêntico cuja força probatória se imponha plena e decisivamente em termos de afastar as demais provas (art. 712° n° 1.b) CPC).
Apesar de não estar questionada nos autos a qualidade de fideicomissária de “D”, a escritura pública de partilha por óbito de “K” (cfr. fls. 427- 433) conjugada com o respectivo testamento (cfr. fls. 106 e segs da Provid. Caute!ar) está documentalmente comprovada no processo.
Logo, tal facto deveria ter sido como tal considerado, desde logo por força do art. 659° nº 3 CPC que manda atender na sentença, entre outros, aos factos "provados por documentos", tanto mais que o Autor apelante sustentava a ausência de legitimidade substantiva de “D” para alienar o prédio onde se situa o terreno cuja propriedade se discute.
Tem, pois, razão o apelante.

Quanto ao alegado excesso na resposta conjunta aos quesitos 23° e 26º:
É o seguinte o teor de tal resposta:
"Provado que a ré, após a morte dos pais, continuou a praticar em relação ao prédio especificado em C), os actos próprios de proprietária e no convencimento dessa qualidade, aí passando fins-de-semana e períodos de férias, recebendo familiares e amigos, pagando os consumos de energia, água, contribuições, seguros e outras despesas".
Concede-se que numa acção em que se discute a titularidade do direito de propriedade, a decisão da controvérsia fáctica no sentido de que uma das partes pratica actos próprios de proprietário e no convencimento dessa qualidade tende à resolução da questão jurídica subjacente a essa questão de facto: proprietário será quem exerce poderes próprios de proprietário.
Por isso deveria ter sido evitada a utilização dessa expressão.
A concretização fáctica que, na resposta em crise, sobrevém logo a seguir - "aí passando fins-de-semana e períodos de férias, recebendo familiares e amigos, pagando os consumos de energia, água, contribuições, seguros e outras despesas" - visa substantivar essa expressão, da qual é subordinada, como o demonstra o emprego do gerúndio.
Logo, envolvendo a expressão "actos próprios de proprietária e no convencimento dessa qualidade" matéria de direito, deve a mesma ter-se por não escrita (art. 646° nº 4 CPC).
Por isso, altera-se a resposta conjunta aos quesitos 23° e 26° para:
"Provado que a ré, após a morte dos pais, e em relação ao prédio especificado em C) continuou a passar fins-de-semana e períodos de férias, a receber aí familiares e amigos, a pagar os consumos de energia, água, contribuições, seguros e outras despesas".
Quanto ao alegado erro na apreciação das provas nas respostas aos quesitos 20°, 22° e 36°:
No quesito 20º perguntava-se se os factos enunciados nos quesitos anteriores foram praticados à vista de todos e teve resposta afirmativa.
Acontece que entre esses factos se incluíam alguns como o pagamento dos consumos de água e electricidade, contribuições autárquicas, imposto do serviço de incêndios cuja publicidade é obviamente inverosímil.
Mas não é este o sentido da questão colocada nesses pontos da controvérsia.
O sentido relevante e pertinente dessas questões reside, não na realização dos pagamentos propriamente ditos nem a sua publicidade efectiva ou possível (como poderiam eles ser feitos à vista de toda a gente?), mas no carácter não oculto nem clandestino da utilização e aproveitamento do terreno por eles evidenciada.
No quesito 22º indagava-se se “E” e “F” estavam convencidos de que eram os donos do terreno e da casa aí construída.
Teve resposta afirmativa.
O convencimento íntimo é facto cujo conhecimento se baseia, não na percepção directa e imediata, mas na interpretação da conduta humana.
Somente o lado externo da conduta humana é acessível, de modo imediato, à percepção. A conduta humana é, em ampla medida, um agir dirigido a fins. E, como tal, só a entendemos com base nas experiências que cada um faz consigo mesmo e com os outros.
Logo, percepcionados os comportamentos humanos e as modificações por eles causadas no mundo exterior, a sua interpretação como agir dirigido a fins depende da experiência anterior de quem interpreta sobre os fins visados pelas pessoas com tais condutas nessas concretas situações.
A interpretação assenta, pois, numa reflexão subjectiva sobre os fins, podendo redundar em ambiguidade, nos casos em que o comportamento percepcionado é susceptível de servir a diversos fins ou de a situação em que eles ocorrem ser equívoca. [1]
Assim, na impossibilidade de observação directa e imediata do convencimento interior da titularidade do direito de propriedade de determinado objecto, é a percepção dos comportamentos adoptados pelas pessoas relativamente ao referido objecto e a sua interpretação pela generalidade das pessoas (maxime, pelas testemunhas inquiridas) conjugada com a experiência que pode conduzir à prova daquele convencimento.
Ora, a interpretação da actuação dos referidos “E” e “F” relativamente à parcela de terreno cuja propriedade se discute não é decisiva para determinar a evidência daquele convencimento interior.
Com efeito, tal comportamento, sendo típico de quem é e está convencido da titularidade do direito de propriedade, também o é de quem se encontra na expectativa dessa titularidade, ou seja, de quem é proprietário e de quem, como o promitente comprador autorizado a construir e a utilizar o prédio que lhe foi prometido vender e que ele prometeu adquirir, espera vir a ser proprietário.
Aliás, foi nesta expressa qualidade de promitente-comprador que o pai da apelada outorgou no contrato promessa de permuta celebrado com a “L” em 23-10-1989 e foi também na mesma qualidade de promitentes compradores que os pais da apelada outorgaram no contrato datado de 5-6-1990 com “M” e outro; repete-se de promitentes compradores e não de proprietários ... o que, desde logo, afasta o alegado convencimento desta qualidade; por via de regra, quem dispõe ou promete dispor auto-legitima-se logo com a invocação do direito (quando não também do título em que ele se funda) que a tal o habilita (v.g., o direito de propriedade) e não com a invocação do direito de crédito ou da expectativa da sua aquisição e o certo é que os pais da apelada não alegaram ser proprietários mas apenas promitentes compradores do direito de propriedade ...
Consequentemente, impõe-se a alteração da resposta ao quesito 22° para não provado.

Outro ponto da controvérsia fáctica contra cuja decisão a apelante se insurge está na resposta ao quesito 36°.
Nele se perguntava se “E” e “F” nunca se arrogaram a qualidade de donos do terreno e teve resposta "não provado".
Mas, em bom rigor, não se compreende a discordância do apelante perante esta resposta que lhe parece ser favorável.
É que, ao invés da álgebra (em que (-) + (-) =(+), da resposta negativa a uma questão de facto formulada negativamente não resulta necessariamente o contrário, ou seja, que eles se tivessem arrogado a qualidade de proprietários ...
Da resposta não provado a um determinado ponto da controvérsia apenas decorre que esse ponto não se provou e não que se tivesse provado o contrário do que nesse ponto se indagava ... para mais quando formulado na negativa.
Improcede, pois, a discordância do apelante quanto a esta resposta.

Cabe agora resolver a contradição apontada pelo STJ entre a resposta "não provado" dada pela 1ª instância ao ponto 37 da BI - onde se perguntava se os pais da Ré se diziam promitentes compradores - e a qualidade por eles documentalmente invocada de promitentes-compradores no contrato promessa de permuta celebrado com a “L” em 23-10-1989 e no contrato datado de 5-6-1990 com “M” e outro.
Ora, pelo menos nesses referidos negócios, é inquestionável que eles se reclamaram por escrito a qualidade de promitentes-compradores; daí que a contradição apontada deva ser resolvida por remissão restritiva para o facto destes negócios, uma vez que se desconhece se eles invocavam frequente e amiúde essa qualidade.
Daí que, alterando a resposta ao ponto 37° da BI, esta passe a ter a seguinte redacção:
"Provado apenas que eles invocaram a qualidade de promitentes-compradores em contrato promessa de permuta celebrado com a “L” em 23-10-1989 e em contrato datado de 5-6-1990 com “M” e outro”.

Assim sendo a matéria de facto provada é a seguinte:
1 - O autor é dono e legítimo co-proprietário do prédio rústico denominado "…", com a área de 6.250 m2, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.o 11717 e inscrito na matriz sob o art. 102 secção F - certidão de fls. 5 a 8 da providência cautelar apensa - (alínea A da matéria de facto assente).
2. O autor adquiriu 8/48 do mencionado prédio, por sucessão de sua avó “D”, é um dos titulares inscritos, pela Ap. 05/110690 - certidão de fls. 5 a 8 da providência cautelar apensa - (alínea B da matéria de facto assente).
3. Encontra-se registada, e como primeira inscrição, a favor da ré, na Conservatória do Registo Predial de …, sob a ficha o n.o 01814/240498, a aquisição, por sucessão de “E” e mulher “F”, de um prédio urbano composto por uma casa de rés-do-chão para habitação com 53,10 m2, logradouro com 452,90 m2, que confronta do Norte e Poente com “D”, Nascente com Rua dos … e Sul com … - certidão de fls. 10 a 12 da providência cautelar apensa - (alíneas C e D da matéria de facto assente).
4. A descrição do prédio atrás referido (n.o 3 dos factos provados) e a inscrição da sua titularidade a favor da ré foi realizada apenas com base nas declarações desta que, na altura, disse: «O prédio faz parte do acervo de herança de “E” e de “F”, falecidos, e o prédio é constituído com casas de rés-do-chão com 3 compartimentos para habitação, casa de banho e logradouro, tendo como área coberta 53,10 m2 e logradouro com 452,90 m2, confinando a parte Norte e Poente com terras de “D”, Nascente com a Rua dos … e Sul com herdeiros de … O prédio referido tem como artigo matricial o n.o 1306 de …A apresentante desconhece os antepossuidores, devido à antiguidade dos mesmos» - certidão de fls. 32 a 36 da providência cautelar apensa - (alínea E da matéria de facto assente).
5. A declaração prestada na Conservatória do Registo Predial de … e atrás
mencionada foi acompanhada, para o efeito, de caderneta predial urbana, certidão de habilitação de herdeiros e certidão de imposto sucessório - certidão de fls. 32 a 36 da providência cautelar apensa - (alínea F da matéria de facto assente).
6. O prédio urbano referido em 3. encontra-se inscrito na matriz cadastral urbana do concelho de …, da freguesia de …, sob o artigo n.º 1306, desde 11/08/1978 em nome de “E” e em nome da ré desde 24/04/98 - doc. de fls. 38 e 118 a 121 - (alíneas G e H da matéria de facto assente).
7. No dia 13/01/1998 no … Cartório Notarial de … e perante o notário respectivo,”G” como 1° outorgante, “H” como 2° outorgante e “I” como 3° outorgante disseram: « ... Que no dia vinte e nove de Janeiro de mil novecentos e noventa e cinco, na freguesia e concelho de …, faleceu “E”, natural da freguesia e concelho de …, com última residência habitual no …. concelho de …, no estado de casado, em primeiras núpcias de ambos e no regime de comunhão geral, com “F”.
Que o falecido não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros o cônjuge sobrevivo, “F”, viúva dele, natural da freguesia do …, concelho de …; e sua filha “B”, divorciada, natural da freguesia de …, concelho de … e residente na …, número um, terceiro andar, D, …, concelho do …
Que no dia oito de Outubro de mil novecentos e noventa e sete, na freguesia de …(…), concelho de …, faleceu a mencionada “F”, viúva, com última residência habitual na dita Rua …, número vinte, a qual não fez testamento ou outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como única herdeira, sua filha “B”, atrás identificada.
Que não há outras pessoas que, segundo a lei, prefiram às indicadas herdeiras ou com elas possam concorrer na sucessão às heranças ... » certidão de fls. 38 a 41 - (alínea I da matéria de facto assente).
8. Por documento particular intitulado recibo e subscrito por “D” e “C”, cujas assinaturas se encontram reconhecidas notarialmente, foi declarado que: «Recebi do Sr. “E”, casado, empregado de escritório, residente na Rua … nº 20, …, a quantia de Esc. 50.000$00 - (cinquenta mil escudos) como sinal e princípio de pagamento dum lote de terreno com o nº 1 (um) com frente para a Rua dos …, em …, com a área de 506 m2 ao preço de 200$00 cada m2. Cuja escritura se fará logo que haja possibilidade. O comprador ficará desde já com a devida autorização para construir.
…, 31 de Julho de 1976 » - doc. de fls. 85 da providência cautelar - (alínea J da matéria de facto assente).
9. Na relação de bens para liquidação do imposto sucessório por morte de “E” e “F”, apresentada na Repartição de Finanças de …, consta o prédio urbano referido em 3. - certidão de fls. 42 a 46 - (alínea L da matéria de facto assente).
10. O autor enviou através de correio, a “C” em 01/06/1988 o escrito particular onde escreveu:
«Caro Tio.
Venho por esta, como interessado na partilha dos bens da herança de “D”, minha avó, alertá-lo para que na qualidade de cabeça de casal de que foi investido em 1/6/83, no sentido de administrar prudente e diligentemente a herança, nada ainda foi dito da sua parte que eu tivesse tido conhecimento, para desonerar as duas parcelas de terreno que foram objecto de contratos-promessa de compra e venda pertencentes à … e nas quais os compradores, numa delas instalaram uma casa bem como exploram a terra onde cultivam legumes, bem como na outra a muraram. Como tal situação se arrasta há longo tempo, solicito que providencie a adequada rapidez a desoneração das referidas parcelas com é seu dever legal.
Igualmente, aproveito para solicitar que apresente de imediato as contas da sua administração o que até agora não fez nestes cinco anos e como sabe é de lei que o faça anualmente.
Sem mais de momento, na certeza de que acolherá com a consideração devida estas observações, envio-lhe os meus melhores cumprimentos e subscrevo-me atenciosamente.» - doc. de fls. 59 - (alínea M da matéria de facto assente).
11. No decorrer do mês de Março de 1999, o autor tomou conhecimento de que no prédio urbano referido em 3., bem como o muro que delimita o logradouro de tal prédio, estavam a ser feitas obras por ordem e por conta da ré. (resposta dada aos quesitos 1° e 2°).
12. As pessoas de …, particularmente as que eram vizinhas do prédio rústico referido em 1. e no qual a parcela referida em 3, originariamente se integrava, consideravam que o mesmo era propriedade de “D” e dos familiares desta. (resposta dada ao quesito 4°).
13. Em 1977, “E” construiu no terreno referido em 3., uma casa para habitação com 3 (três) compartimentos e 1 (uma) casa de banho. (resposta dada ao quesito 7°).
14. E, desde essa altura que pelo menos aos fins-de-semana e período das férias de Verão ele e a sua mulher, aí passaram a dormir, comer e receber os amigos. (resposta dada aos quesitos 8° e 9°).
15. “J”, desde 1978, com autorização de “E” e mulher, semeou no logradouro do prédio referido em 3., vários produtos hortícolas e cuidou das árvores aí existentes. (resposta dada ao quesito 10°).
16. Em 1976, “E” e mulher muraram o terreno e construíram um poço. (resposta dada aos quesitos 11° e 12°).
17. Em 1982, colocaram uma marquise na casa - doc. de fls. 60 - (resposta dada ao quesito 13º.
18. Desde 1980 que, na casa referida em 3., existe electricidade e água, cujos fornecimentos foram requisitados e pagos por “E” - documentos juntos a fls. 86 e 87 da providência cautelar - (resposta dada aos quesitos 14° e 15°).
19. Desde 1977, que “E” pagava a contribuição autárquica e imposto para o serviço de incêndios - doc. de fls. 50 a 55, 57 e 58 - (resposta dada aos quesitos 16° e 17º)
20. Só entrava no terreno e na casa referida em 3., quem “E” e “F” permitiam. (resposta dada ao quesito 18°).
21. Nunca ninguém se opôs aos factos referidos sob os n.o 13. a 20., que foram praticados à vista de todos e de forma ininterrupta. (resposta dada aos quesito 19°, 20º e 21°).
22 . (Eliminado - Conferência de fls. 820)
23. A ré, após a morte dos pais, e em relação ao prédio especificado em C) continuou a passar fins-de-semana e períodos de férias, a receber aí familiares e amigos, a pagar os consumos de energia, água, contribuições, seguros e outras doc. juntos a fls. 142, 144, 145, 152, 153 e no de fls. 88 junto à providência cautelar - (resposta dada aos quesitos 23° e 26º).
24: Em Fevereiro de 1999, a ré iniciou no prédio urbano referido em 3. e no muro que delimita o logradouro do mesmo, obras de ampliação (casa) e beneficiação (casa e muro), devidamente autorizadas pelo alvará camarário n.º 95 emitido em 18/02/1999, pela Câmara Municipal de … - doc. de fls. 84 junto à providência cautelar - (resposta dada ao quesito 24°).
25. A ré cedeu à Câmara Municipal de … 44 m2 do logradouro da casa referida em 3. - doc. de fls. 49 - (resposta dada ao quesito 25°).
26. A parcela de terreno referida em 3., fazia parte do prédio referido em 1. (resposta dada ao quesito 27°).
27. A casa referida em 3. foi erigida sem autorização camarária. (resposta dada ao quesito 29º)
28. “E”, após a construção da casa referida em 3., desenvolveu, junto da Câmara Municipal de …, esforços no sentido de legalizar a referida construção juntando ao processo que aí correu sob o n.º 223/79, cópia do documento referido em 8., documento este que não foi considerado, pelos serviços camarários, bastante e suficiente para o efeito pretendido por aquele - doc. de fls. 70 a 76 - (resposta dada aos quesitos 30°, 31 ° e 32°).
29. Em Março de 1999, “C” dirigiu-se à Câmara Municipal de … no sentido de saber se a ré possuía licença para a realização das obras de ampliação e beneficiação da casa que havia sido construída pelo seu pai em 1977, tendo recebido dos respectivos serviços camarários a informação constante do documento de fls. 69, datado de 18/03/1999 - doc. de fls. 69 - (resposta dada ao quesito 34°).
30 –“K” deixou testamento no qual, além do mais, instituiu sua viúva, “D”, herdeira fideicomissária da sua quota disponível que veio a ser preenchida, entre outros, com o prédio referida em 1.
31 – “E”, invocando ser promitente comprador do lote 1 da …, prometeu cedê-lo à “L”, no âmbito de um contrato de permuta assinado em 23-10-1989 (Doc. fls. 48 da Provid. Cautelar).
32 – “E” e esposa, “F”, outorgando com “M” e “N”, em contrato datado de 5-6-1990, que assinaram, declararam que "por escrito particular prometeram comprar a “D”, um lote de terreno para construção na …, em …, onde está implantada uma construção", que "renunciavam expressamente à posição que lhes advém do referido contrato e reconhecem os primeiros e segundos outorgantes, bem como os que demais compraram, únicos proprietários do referido terreno" e que deixariam livre e devoluto o referido lote de terreno até 30-09-1990, mediante o pagamento pelos 1°s e 2a outorgantes, naquela data de 2.000.000$00 (Doc. de fls. 117-118 da Prov. Cautelar).
FUNDAMENTOS DE DIREITO
A questão de direito colocada na apelação é tão só, invocada que foi a excepção de usucapião e atenta a procedência que a mesma mereceu na 1ª instância, saber se a autorização concedida pelos promitentes vendedores para a ocupação da e construção na parcela de terreno prometida vender configura inversão do título de posse susceptível de converter a mera detenção em posse juridicamente relevante para usucapião.
A 1ª instância respondeu afirmativamente a esta questão e, coerentemente, julgou procedente a excepção de usucapião, negando razão ao apelante.
Não concordamos.
Sabe-se que a posse do direito de propriedade durante certo lapso de tempo faculta ao possuidor a aquisição do direito correspondente à sua actuação (art. 12870 CC).
E que a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (art. 1251º CC).
A actuação como proprietário reúne elementos objectivos (corpus) e subjectivos (animus).
Aqueles são os actos materiais exteriores, reveladores do poder físico de uma pessoa sobre uma coisa (apreensão) e, correlativamente, da submissão desta ao domínio daquele.
Estes - os elementos subjectivos - prendem-se com o estado de espírito psicológico (intelectual e volitivo) que preside àquela actuação; em suma, consistem na vontade de ter a coisa como sua, própria (animus domini) .
A posse de uma coisa é, portanto, uma actuação material intencionada ao aproveitamento das suas vantagens, como se dono fosse.
Daí que não sejam possuidores, mas apenas detentores ou possuidores precários, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito e os possuidores em nome de outrem (art. 1253° CC).
O possuidor actual que houver sucedido ao anterior por título diferente da sucessão por morte pode juntar a sua posse à do seu antecessor e, assim, cumprir os prazos legais de usucapião (art. 1256º nº 1 CC).
Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si por usucapião, o direito possuído, excepto se inverterem o título de posse (art.1265º CC), caso em que o prazo de usucapião se iniciará desde a inversão do título (art. 1290º CC).
Uma das formas de aquisição da posse é a inversão do título de posse (art. 1263° -d) CC), mas esta tanto pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (art. 1265º CC.).
A inversão do título de posse precária em posse animus domini pode ter lugar por acto do detentor, opondo-se directa e frontalmente ao possuidor e passando a comportar-se futuramente contra este ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse, melhor será dizer, de transmitir o animus da posse, uma vez que, como detentor, ele já detinha o corpus da posse"
Não se discutindo, portanto, que os pais da apelada fossem, pelo menos e pela mera celebração do contrato-promessa meros detentores ou possuidores precários da parcela prometida vender, discute-se a questão de saber se, o mero facto da concessão de autorização para a ocupar e nela construir configuram actos susceptíveis de alterar qualitativamente o título, convertendo a posse meramente precária ou detenção emergente do contrato-promessa em posse jurídica.
Por outras palavras se, tendo já o "corpus" na qualidade de detentores, adquiriram o "animus" por qualquer das formas previstas no art. 1265º CC deixando eles de comportar-se como meros detentores e passando a comportar-se como verdadeiros possuidores.
É a noção que decorre do art. 1141º do Código Italiano, no qual se inspirou o Português, sobre a mutação da detenção em posse.
A posse presume-se em quem exerce o poder de facto, quando se não prove que foi iniciada como simples detenção.
A detenção iniciada continua como tal e não pode converte-se em posse, excepto se o título vier a ser alterado por causa proveniente de um terceiro ou por força de oposição do detentor feita contra o possuidor [2] .
A matéria de facto provada exclui logo este meio inversão do título; com efeito, sendo os pais da apelada meros detentores por via do contrato-­promessa não ocorreu qualquer acto de terceiro susceptível de lhes transferir a posse da parcela em causa e, consequentemente, de lhes alterar o espírito que presidia à sua relação com a dita parcela.
Fica-nos, pois, a inversão do título por oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía.
Esta oposição, ensina o Prof. Oliveira Ascensão, tem que ser categórica de modo a sobrepor-se à aparência que era representada pelo título [3] .
E tem que se traduzir em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar sobre a coisa como se tivesse o direito real que até então considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem, efeito este que se obtêm pela prática de actos materiais, a saber, factos ou palavras do detentor contra ou em negação do direito da pessoa em nome de quem possui, jurídicos ou judiciários. É também necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor através de actos que traduzem o exercício do direito que a esta pertence.
Opera-se, pois, uma substituição da posse precária, em nome de outrem, pela posse em nome próprio. Mas, para isso, torna-se necessário, por um lado, um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome possuía, uma contraditio, devendo o detentor tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito [4] e por outro, que tal oposição não seja repelida pelo possuidor.
Tal acto de oposição deve ser inequívoco (implícita ou explicitamente), isto é, deve significar que o detentor quer, doravante, possuir para si, e para que este significado se imponha, deve adoptar condutas e comportamentos (actos) positivas(os), materiais ou jurídicos, na presença ou com o conhecimento daquele a quem se opõe, reve!adores desse processo psicológico de inversão do animus [5] .
Escreve, a propósito da inversão do título, Carvalho Fernandes:
" ... o detentor, continuando, porventura, a praticar sobre a coisa actos análogos aos que vinha praticando, passa, porém, a fazê-lo como se fosse o verdadeiro titular do direito a cujo exercício eles correspondem e não como quem actua em nome de outrem. Em regra, porém, haverá uma alteração desse exercício, indiciadora da nova qualidade que reveste a actuação material da coisa.
Neste caso, como a inversão exige a oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía, para ter lugar, é necessário que o comportamento exterior do detentor signifique essa alteração do título por que pratica os actos de exercício do direito." [6] .
A conduta típica do que já foi designado como apropriação indébita consiste em, tendo o sujeito a posse ou a detenção do objecto que lhe foi entregue pelo proprietário, em algum momento, o agente faz mudar o título da posse ou da detenção, passando a comportar-se como se dono do objecto fosse. Exige-se, para a configuração da apropriação indébita, o elemento subjectivo, ou seja, o animus rem sibi habendi, que consiste na vontade consciente de o agente, que está na posse ou detenção do objecto alheio, passar a se comportar como se fosse dono da coisa.
Exige, portanto, uma acção (não uma omissão ... ) por parte do detentor sujeito activo da apropriação.
Na base da inversão do título de posse está, assim, uma alteração psicológica do estado de espírito do detentor em nome alheio exteriorizada pela alteração qualitativa da conduta que adopta perante o titular do direito em clara oposição a este: passa a actuar sobre a coisa como se fosse ele o verdadeiro titular do direito a cujo exercício essa actuação corresponde e não como quem actua em nome de outrem - o titular do direito - mediante autorização ou tolerância deste; há, pois, uma mutação qualitativa do animus: o animus detinendi transforma-se em animus possidendi.
A alteração qualitativa do espírito que preside à actuação (a actuação pode continuar a ser a mesma ... ) deve ser exteriorizada por actos de oposição à pessoa - ou ao seu direito - em nome de quem possuía.
Não há, portanto, inversão do título de posse se o detentor ocupa a parcela de terreno e leva a cabo aí uma construção de acordo com a autorização que lhe foi dada por quem lhe prometeu vender a dita parcela; a sua actuação revela, sim, conformidade com a vontade do titular do direito ou, pelo menos, ausência de oposição deste.
Estando a actuação material em que se analisa o corpus da posse prevista e autorizada no âmbito da relação negocial em que se funda a detenção, a mera execução desses actos materiais consentidos pela pessoa contra quem, em princípio, se dirigiriam, não configura inversão do título de posse.
Daí que improceda a argumentação aduzida na sentença recorrida para fundar a aquisição da posse e a consequente aquisição do direito de propriedade por usucapião.
A relação de facto estabelecida entre os pais da apelada e a parcela de terreno não reúne, assim, as características da posse hábil para usucapir; com efeito, muito embora se verifique uma actuação exterior compatível com o exercício do direito de propriedade - o corpus material da posse falta-lhe a intenção de agir como beneficiário desse direito - o animus possidendi.
A autorização do titular do direito de propriedade para a ocupação e construção justifica-se pelo facto de o direito radicar na sua esfera jurídica; logo, a dita construção era obra em prédio alheio.
A união e incorporação numa coisa, propriedade de alguém, de outra que não lhe pertence denomina-se acessão (art. 1325º CC).
O direito de propriedade tem em si a virtualidade de absorver tudo o que se vier a incorporar no seu objecto, seja por acção do homem; seja por acção da natureza [7] .
A realização por alguém, utilizando materiais próprios, de construções em prédios alheios suscita um conflito de direitos de propriedade entre o da coisa principal e o da coisa acessória que se lhe uniu ou incorporou, que deveria ser resolvido, mas, no caso sub judice, não o foi.
Ao lado do direito de propriedade do prédio rústico, subsistiu, assim, o direito de propriedade da construção.
Até ao exercício da acessão, as propriedades mantêm-se distintas e separadas, uma do solo, outro da obra nele incorporada e exercendo o dono do implante os poderes jurídicos e de facto que são conteúdo da propriedade e lhe correspondem, mas apenas relativamente à obra e não ao solo [8] .
Segundo este Mestre, o dono do implante «exerce totalmente os poderes de facto que são conteúdo da propriedade, e da mesma forma exerce os poderes jurídicos que lhe correspondem, podendo inclusivamente arrendar o edifício construído ou alienar o implante» .
Não obstante qualificada, para efeitos fiscais, como prédio urbano, não estava solucionado o problema da respectiva incorporação no solo de prédio pertencente a outrem.
O que decisivamente comprometia o animus possessório: quer a Ré, quer os seus antecessores sabiam necessariamente que o solo onde estavam implantadas pertencia a outrem, tanto que não prescindiram da sua autorização - e que o problema da propriedade decorrente de tal incorporação não estava resolvido; logo, as construções, não obstante edifícios materialmente incorporadas no solo (e prédios para efeitos fiscais), não eram, jurídico-civilmente, prédios urbanos, dado o desfasamento entre as duas- propriedades - do solo e do implante (art. 1302º e 2040 nº 1-a) e nº 2 CC).
E porque aproveitou da autorização quanto à implantação das construções no solo desta, falecia aos pais da apelada o animus possessório quanto a tal terreno; daí que, quanto a ele, haja de ser qualificado como mero detentor ou possuidor precário (art. 1253º-b) CC), tendo sido nessa qualidade que as transmitiu à ora Ré e apelante.
A Ré é, pois, mera detentora do solo, não podendo adquirir, para si, por usucapião o direito de propriedade sobre este e sobre as ditas construções, ou seja, sobre os prédios urbanos assim constituídos (art. 1290° CC).
Por conseguinte:
Construída obra em terreno alheio, com autorização do respectivo dono, e não resolvido o problema da incorporação imobiliária assim suscitado, permanece por resolver um conflito de direitos de propriedade entre o proprietário do solo e o autor da obra;
A utilização do solo com tal construção, assim baseada em acta de autorização do respectivo proprietário, configura-se como uma posse precária ou detenção - na medida em que lhe subjaz uma autorização do respectivo dono - inábil para usucapir.
Não podendo, por falta de animus, ser considerado possuidor em nome próprio, mas tão só detentor do solo, o aproveitamento das utilidades da construção durante o prazo de tempo da usucapião não lhe confere, a ele nem a quem a ele suceda, a aquisição do direito de propriedade do prédio urbano formado pelo conjunto do solo e da dita construção, a menos que se verifique inversão do título de posse quanto ao solo, o que o processo não evidencia ter ocorrido.
Todavia, esta questão da acessão não foi discutida na 1ª instância nem suscitada na apelação, razão porque, sendo nova, não tem que ser apreciada.
Por conseguinte, improcede a pretensão de aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Contemplemos agora o reflexo deste desfecho em sede de Registo Predial, uma vez que vem pedida a declaração de nulidade do registo efectuado pela apelada e o se cancelamento.
Do exposto decorre que quanto à parcela de terreno não se operou qualquer transmissão do direito de propriedade.
Logo, independentemente da arguida falsidade, o registo (descrição e inscrição) foi efectuado com base em elementos insuficientes para a prova do facto registado.
Por isso, enferma do vício previsto na al. B) do art. 16º do CRPredial e eventualmente também do previsto na al. A) do mesmo preceito.
Logo, sendo nulo e procedendo a impugnação do facto registado, deve o registo ser cancelado (art. 80 nº 1 do CRP).
Com efeito, o cancelamento é uma consequência necessária da procedência do pedido de reconhecimento de que o facto registado pertence a pessoa diversa do titular inscrito [9] .
ACÓRDÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em, revogando a douta sentença recorrida, julgar procedente a acção e, consequentemente:
- condenar a Ré a reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre a parcela do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 11.717 denominado … sito na freguesia de … do qual ela fez registar e descrever uma parcela sob o nº 01814 que ocupa e a restituí-la ao Autor livre de pessoas e bens;

- declarar a nulidade do registo e o cancelamento da descrição predial nº 01814 da mesma Conservatória e o respectivo cancelamento.
- julgar improcedente a reconvenção e absolver o Autor, apelante, dos respectivos pedidos principal e subsidiário.
- revogar a condenação do Autor, apelante, como litigante de má-fé.
Custas pela apelada.
Évora e Tribunal da Relação, 10/05/2007




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[1] Cfr. K. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3a ed., p. 401.
[2] É o seguinte o teor do art. 1141º citado sobre Mutamento della detenzione in
possesso:
"Si presume il possesso in colui che esercita il potere di fatto, quando non si prova che ha cominciato a esercitarlo semplicemente come detenzione.
Se alcuno ha cominciato ad avere la detenzione, non puà acquistare il possesso finché il Títolo non venga ad essere mutato per causa proveniente da un terzo o in forza di opposizione da lui fatta contra il possessore. Ciò vale anche per i successori a Titolo universale"
[3] Cfr. Direitos Reais, 1983, pag. 98
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob cit. p. 30.
[5] Cfr. Manuel Rodrigues, A Posse, pag. 232 e segs; Orlando de Carvalho, Apontamentos, p. 71-72
[6] Cfr. Lições de Direitos Reais, Lisboa,1966, pag. 260-261.
[7] Cfr. Pires de Lima – A. Varela, Cod. Civil Anotado, Vol. III, pag. 137, em anotação ao art. 1325º CC.
[8] Cfr. STJ 29.01.2004, Cons. Luís Fonseca, sumário acessível através de http://www.dgsi.pt; Rel Ev 10.11.1982, CJ 1982, Tomo V, p.264; O. Ascensão, Estudos sobre a acessão, p. 71
[9] Cfr. Ac. STJ 22.01.1998, CJ, 1998, tomo I, p. 26