Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA ADELAIDE DOMINGOS | ||
Descritores: | CONTRADITÓRIO NULIDADE PROCESSUAL ARGUIÇÃO NULIDADE DA SENTENÇA | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ANULADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
Área Temática: | CÍVEL | ||
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Sumário: | Sumário:
O não cumprimento do artigo 567.º, n.º 2, do CPC determina a violação do princípio do contraditório e corresponde a uma nulidade processual que pode apenas ser arguida em sede de recurso enquanto nulidade da sentença (por esta ter incorporado e absorvido a referida nulidade processual não invocada autonomamente), nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 717/23.1T8LAG.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Portimão – J1 Apelante: AA Apelado: BB
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora I – RELATÓRIO 1. BB intentou ação declarativa condenatória comum contra CC e AA, formulando os seguintes pedidos: a. Ser reconhecido e declarado como legítimo e único proprietário do imóvel identificado no artigo 1º da petição inicial; b. Condenação dos Réus a restituir-lhe o imóvel que ocupam, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando da celebração do contrato de comodato; c. Condenação dos Réus pagar-lhe a quantia de €700,00, a título de indemnização, por cada mês de ocupação abusiva, contados desde a data do termo do contrato de comodato até entrega efetiva do imóvel. 2. Em suma, alegou a titularidade registada do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, sob o n.º ...590 da freguesia de Local 1 e inscrito na matriz sob o artigo ...010; a cedência aos Réus através de um contrato que qualifica juridicamente como contrato de comodato (a título gratuito e para residência habitacional), com início a 11-01-2023 e termo a 31-03-2023, não tendo os Réus desocupado o imóvel findo o referido prazo, apesar das diversas interpelações que lhes foram feitas para esse efeito. 3. Os Réus foram citados em 22-11-2023, e não contestaram. 4. Em 23-01-2023, foram juntos aos autos documentos provindos do Centro Distrital da Segurança Social de Faro comunicando que foi concedido à Ré o benefício do apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono para a patrocinar nestes autos, estando a comunicação datada de 23-01-2025. 5. Em 19-02-2025, previamente à prolação da sentença foi proferido o seguinte despacho: «Tendo em consideração que nenhum dos réus juntou aos presentes autos, no decurso do prazo de contestação (tendo ambos sido citados a 22.11.2023), o documento comprovativo da apresentação do pedido de apoio judiciário, o prazo para contestar não se interrompeu ao abrigo do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho e encontrando-se o mesmo já esgotado, nada obsta a que seja proferida decisão, sem necessidade da realização de quaisquer ulteriores diligências - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 4833/23.1T8MTS.P1.S1 , de 19.09.2024, disponível em www.dgsi.pt. * Ao abrigo do disposto no art. 547º do Código de Processo Civil e na medida em que está em causa a observância de formalismo que, ante a manifesta da simplicidade da presente causa, se afigura dispensável, não será dado cumprimento ao disposto no art. 567º nº2 do Código de Processo Civil, 1ª parte (prazo de 10 dias para exame e alegações por escrito), sendo de imediato proferida sentença.» 6. A sentença imediatamente proferida, jugou a ação procedente constando da parte dispostita o seguinte: «1) Declaro o autor dono e legítimo possuidor do prédio urbano que se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, sob o n.º ...590 da freguesia de Local 1 e inscrito na matriz sob o artigo ...010. 2) Condeno os réus a restituírem, de imediato, ao autor o imóvel que ocupam, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando da celebração do contrato referido no ponto 2) dos factos provados, absolvendo os demandados do que demais foi peticionado.» 7. Inconformada, apelou a Ré sendo o recurso subscrito pela sua I. Patrona nomeada, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: A. Foi intentada ação de reivindicação sob a forma de processo comum no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Lagos – Juiz 2. B. A ré, aqui recorrente, regularmente citada não contestou a ação. C. O tribunal a quo, supra citado, por despacho em 04-12-2024 (ref.ª134488654), fundamentou a decisão, da Incompetência em Razão do Valor, tendo remetido o processo para o Juízo Central Cível de Portimão, aqui tribunal a quo. D. A ré, aqui requerente, notificada do despacho do tribunal Juízo de Competência Genérica de Cidade 1, apresenta a 23.01.2025 o comprovativo de apoio judiciário, na modalidade de nomeação e pagamento da compensação de patrono e dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo. E. O tribunal a quo por despacho (ref.ª135274356), fundamentou a decisão, conforme se transcreve “Tendo em consideração que nenhum dos réus juntou aos presentes autos, no decurso do prazo de contestação (tendo ambos sido citados a 22.11.2023), o documento comprovativo da apresentação do pedido de apoio judiciário, o prazo para contestar não se interrompeu ao abrigo do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho e encontrando-se o mesmo já esgotado, nada obsta a que seja proferida decisão, sem necessidade da realização de quaisquer ulteriores diligências – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 4833/23.1T8MTS.P1.S1 , de 19.09.2024, disponível em www.dgsi.pt. E, ainda “Ao abrigo do disposto no art. 547º do Código de Processo Civil e na medida em que está em causa a observância de formalismo que, ante a manifesta da simplicidade da presente causa, se afigura dispensável, não será dado cumprimento ao disposto no art.º 567º nº2 do Código de Processo Civil, 1ª parte (prazo de 10 dias para exame e alegações por escrito), sendo de imediato proferida sentença.” F. Vem o presente recurso interposto do douto despacho (ref.ª135274356) porquanto; G. O tribunal a quo fundamentou a decisão da sentença omitindo o formalismo exigido pelo art.º 567º nº 2 do CPC, não obstante ter conhecimento da nomeação de patrono oficioso, à ré aqui recorrente. H. Ora, tal omissão pelo tribunal a quo não garantiu à ré, aqui recorrente, a possibilidade de se pronunciar nas alegações escritas sobre todos os aspetos relevantes para a decisão do tribunal. I. A omissão do convite previsto no art.º 567º, nº 2 do CPC, constitui uma restrição inadmissível ao exercício do contraditório, impedindo a recorrente de alegar de direito. J. O art.º 3º do CPC impõe o princípio do contraditório, garantindo às partes a possibilidade de se pronunciarem, sobre todos os aspetos relevantes para a decisão do tribunal. K. O tribunal a quo não garantiu o princípio de igualdade das partes previsto no art.º 4º do CPC, designadamente no exercício de faculdades e meios de defesa. L. O tribunal a quo violou o dever de cooperação nos termos do disposto no art.º 6º do CPC, na medida em que o juiz deve assegurar a adequada instrução do processo e permitir às partes a oportunidade de complementar alegações ou prova quando necessário. M. A violação dos princípios supra descritos configura uma nulidade da sentença nos termos do disposto na alínea d), do nº 1, do art.º 615º do CPC, a sentença é nula, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. N. A omissão do convite previsto no art.º 567º nº 2, do CPC, constitui uma violação dos princípios da igualdade das partes, contraditório e da cooperação, podendo levar à nulidade da sentença, conforme sustentado pela doutrina e corroborado pela jurisprudência mencionada. Termos, em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente pelo exposto, requer-se a este Venerando Tribunal que se digne: a) Declarar a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal "a quo" por violação do artigo 567.º, n.º 2, do CPC, com fundamento na omissão do convite para a ré, aqui recorrente, apresentar alegações; b) Ordenar a remessa dos autos ao tribunal de primeira instância, a fim de ser cumprido o disposto na norma violada, garantindo-se os princípios de igualdade das partes, do contraditório e do dever de cooperação.» 8. Na resposta ao recurso, o Recorrido defendeu a confirmação do decidido. 9. A 1.ª instância aquando da admissão do recurso, pronunciou-se nos termos do artigo 641.º, n.º 1, do CPC, sobre a não ocorrência da nulidade arguida. II- FUNDAMENTAÇÃO A. Objeto do Recurso Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar quais as consequências jurídicas do não cumprimento do disposto no artigo 576.º, n.º 2, do CPC. B- De Facto A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto: «a) Os factos Uma vez que os réus não contestaram a presente ação, encontrando-se devidamente citados, face ao disposto nos artigos 563º e 567º, nº 1 e 3 do Código de Processo Civil, considera-se assente a seguinte factualidade: 1. O autor tem inscrita a seu favor a aquisição, por compra, conforme apresentação n.º 5918 de 10.01.2023, do prédio urbano, sito em ..., na freguesia de Local 1, concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número ...590 da referida freguesia. 2. Através de documento particular, datado de 11 de janeiro de 2023, o autor cedeu, com início na referida data e términus a 31 de março de 2023, por mero favor, aos réus, para habitação destes, o imóvel referido em 1). 3. O autor solicitou aos réus, através de missivas que foram por si expedidas a 26 de Abril de 2023 e a 1 de Agosto de 2023 (a primeira sob registo e a segundo com aviso de receção) e também através de notificação judicial avulsa, esta concretizada a 03 de Outubro de 2023, a devolução do imóvel identificado em 1), no prazo de 07 (sete) dias, pretensão essa que os demandados não satisfizeram.» C. Do Conhecimento do objeto do recurso 1. A Apelante aceita que se encontra numa situação de revelia não tendo apresentado contestação, mas defende que a falta de cumprimento do disposto no artigo 567.º, n.º 2, do CPC, quando já era conhecido nos autos que lhe tinha sido concedido o benefício do apoio judiciário na modalidade de nomeado um patrono, constituiu violação dos princípios do contraditório (artigo 3.º do CPC), do princípio da igualdade das partes (artigo 4.º do CPC), do dever de cooperação (artigo 7.º do CPC, embora a recorrente se reporte ao artigo 6.º que prevê o dever de gestão processual) e, finalmente, que ocorre uma nulidade da sentença por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente de omissão de pronúncia. 2. Na análise jurídica da questão em apreço, cumpre afastar in limine a violação do princípio da igualdade previsto no artigo 4.º do CPC, porquanto o não cumprimento do referido artigo 567.º, n.º 2, do CPC, tanto abrangeu o Autor como a Ré, não se verificando um tratamento desigual das partes quanto à dispensa do cumprimento do preceito. Sendo que é precisamente o tratamento diferenciado injustificado que determina a violação do princípio da igualdade das partes. 3. Também é de afastar a violação do dever de cooperação previsto no artigo 7.º do CPC, cuja previsão não se vê que seja suscetível de ser chamada à colação numa situação como a descrita nos autos. Afigura-se-nos, antes, que a recorrente, provavelmente, quereria referir-se ao artigo 6.º do CPC e à violação dos princípios que enformam o dever de gestão processual. Mesmo assim, não se afigura que seja essa a figura processual aqui chamada a decidir a questão, apesar do tribunal a quo de forma não muito explícita dar a entender que a dispensa do cumprimento do disposto no artigo 567.º, n.º 2, do CPC, poderia enquadrar-se nessa figura (cfr. o segmento do despacho proferido antes da sentença e o despacho proferido aquando da admissão do recurso). Entende-se, todavia, que a questão não deve ser analisada nessa perspetiva. Primeiro, porque a ter sido utilizado o dever de gestão processual, na vertente de adequação processual (cfr. artigo 547.º do CPC), sempre o juiz teria de previamente ouvir as partes, resultando essa omissão, por sua vez, também na violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º do CPC. Segundo, porque como se faz notar no Ac. da Relação de Coimbra de 14-10-2014, «O principio da adequação formal, consagrado no art. 547.º CPC, não transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo.», acrescentando-se ali ainda: «(…) poder-dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado ás especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica.»1 4. Efetivamente, o que se nos afigura estar em causa é a violação do princípio do contraditório ao dispensar-se a audição das partes quando a lei o determina, projetando-se essa omissão no desvalor intrínseco da própria sentença. Para alguns, estaremos perante a emissão de uma sentença nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, reconduzível a uma decisão-supressa, enquanto para outros, estamos perante a prática de uma nulidade processual reconduzível ao disposto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC. Sendo que existem consequências processuais de um e de outro entendimento, mormente no que concerne à sua invocação da nulidade apenas em sede de recurso. 5. Começando pelo normativo em causa – artigo 567.º, n.º 2, do CPC -, o mesmo estipula que, havendo uma situação de revelia operante, como sucede no caso em apreço, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor, mas antes da prolação da sentença no que concerne à decisão de direito, é concedido o prazo de 10 dias, primeiro ao mandatário do autor e depois ao mandatário do réu, para alegarem por escrito e, em seguida, é proferida sentença, julgando-se a causa conforme for de direito. Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa: «Nos termos gerais, e sem prejuízo das exceções referidas no art.º 568.º, não tendo o réu contestado e considerando-se confessados os factos alegados pelo autor, restará apenas decidir a causa “conforme for de direito” (n.º 2, in fine). Com efeito, confessados que passam a ter-se os factos articulados na petição (não assim quanto aos que designadamente exijam prova documental), deixa de haver controvérsia nessa sede, limitando-se a questão à valoração jurídica desses mesmos factos. É de notar que o estado de revelia operante em que se encontra o réu, embora seja suscetível de potenciar tal desfecho, não conduz, sem mais, à procedência da ação.»2 Trata-se de conclusão indiscutível, porquanto o processo declarativo é um processo de cominatório semipleno, o que significa que a revelia operante nunca implica, por si mesma, a condenação do réu. Nesse sentido, sublinham Lebre de Freitas e Isabel Alexandre: «(…) apesar de os factos alegados pelo autor se considerarem admitidos, o juiz fica liberto para julgar a ação materialmente procedente (como se admite que seja a hipótese mais vulgar), mas também para se abster de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (quando verifique a falta insanável de pressupostos processuais), para julgar a ação apenas parcialmente procedente (quando, por exemplo, o autor tiver formulado dois pedidos, sendo um deles manifestamente infundado) para a julgar totalmente improcedente (se dos factos admitidos não puder resultar o efeito jurídico pretendido) e até para reduzir aos justos limites determinada indemnização peticionada (art. 566-2 CC).»3 6. Consequentemente, a omissão do cumprimento do n.º 2 do artigo 567.º do CPC não é uma mera formalidade sem consequências, pois das alegações das partes pode surgir um contributo valioso no que concerne à aplicação do direito aos factos, tudo e sempre sem prejuízo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC. A maior dificuldade ocorre, porém, na qualificação e tratamento jurídico desta violação do princípio do contraditório, mormente no que concerne à sua invocação, como já supra se deixou aflorado. Como se refere no Ac. da Relação de 20-06-20244, fazendo uma resenha da jurisprudência sobre a questão, para a qual remetemos por razões de economia processual: «Quanto à natureza jurídica da omissão do contraditório prévio imposto pelo artº 3º/3 do CPC, a jurisprudência tem-se dividido, incluindo a do STJ. Há duas posições distintas sobre esta temática. Uma considera que se trata de uma nulidade processual, integrando-a no artº 195º do CPC, tratando-se da omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei impõe, que conduz à nulidade porque tal irregularidade é suscetível de influir no exame ou na decisão da causa. A arguição da nulidade processual faz-se na própria instância em que é cometida, salvo o disposto no artº 199º/3 do CPC, de imediato ou no prazo geral de 10 dias. 7. A existência de divergências jurisprudenciais sobre esta questão, indica-nos claramente que, quando a violação do princípio do contraditório durante a fase da instrução/tramitação dos autos tem reflexos na sentença proferida e, desse modo, a nulidade processual que decorre da violação daquele princípio é absorvida e consumida pela sentença recorrida, deve ser invocada em sede de recurso enquanto nulidade da sentença (nos casos em que há recurso, como sucede no casos dos autos), pois o que acaba por se verificar é a emissão de uma decisão de mérito que não deveria ter sido emitida e, nesse sentido, existe um «excesso de pronúncia» suscetível de ser reconduzida à nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a qual, por sua vez, tem na sua génese, à proibição de decisão surpresa por ter havido violação do princípio do contraditório. Embora haja dissídio jurisprudencial sobre a questão, a compatibilização as duas teses também se afigura plausível, como ocorreu, por exemplo, no Acórdão da Relação de Évora de 16-12-20245, lendo-se no seu sumário: «3. A violação do princípio do contraditório tem sido apreciada sob distintas perspetivas na doutrina e na jurisprudência: - como nulidade procedimental, enquanto omissão do ato legalmente devido de audição das partes previamente à tomada de decisão sobre aspetos adjetivos ou substantivos, seja no plano dos factos, seja no plano da aplicação do direito, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil; - como nulidade de sentença, enquanto excesso de pronúncia, por conhecimento de questão que o tribunal não podia apreciar, em virtude de não ter previamente auscultado as partes sobre a mesma, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil; - sob as duas vestes de nulidade procedimental e de nulidade de sentença, em concurso; - como nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais. 4. Compatibilizando as duas nulidades evidenciadas, pode dizer-se que: - a inobservância do princípio do contraditório começa por constituir uma nulidade procedimental, que se subsume ao disposto no artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil; - se a parte arguir a nulidade e a mesma for indeferida, assiste-lhe a faculdade de recorrer dessa decisão de indeferimento, ao abrigo do disposto no artigo 630.º, n.º 2 do Código de Processo Civil; - se a parte não arguir a nulidade, pode recorrer da decisão proferida com inobservância do contraditório, invocando a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.» 8. Afigura-se-nos que a arguição da nulidade em sede de recurso, na veste de nulidade da sentença enquadrável no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, é a que melhor se adequa à falta de exercício do contraditório pelas partes na tramitação processual e deve ser conhecida e apreciada em sede de recurso. Muitos casos evidenciam o acerto desta interpretação, até pela economia processual que a mesma implica. Veja-se, por exemplo, no caso presente, tendo sido proferido um despacho imediatamente antes da prolação da sentença, se a nulidade não for arguida nos termos em que o foi, significaria que a parte teria de arguir em requerimento autónomo a nulidade processual do despacho prévio e interpor recurso da sentença (em prazos diferentes, mas a correr em simultâneo) quando o fundamento da arguição da nulidade processual é o mesmo que iria ser invocado no recurso da sentença. Sendo que a arguição de nulidade não suspenderia o prazo de interposição do recurso e, potencialmente, estariam as duas instâncias a decidir questão semelhante. Ou, então, sendo deferida a arguição da nulidade processual, ficaria inutilizado o recurso interposto da sentença e constituiria um ato inútil cuja prática a lei não acolhe (artigo 130.º do CPC). Não cremos que essa possa ser a interpretação que deva ser acolhida. Deste modo, conclui-se, como noutros arestos que analisaram a mesma questão, destacando-se, ainda que exemplificativamente: - Ac. Relação de Lisboa de 26-09-20196 constando do seu sumário: «A. A arguição de nulidade de decisão final, por violação do princípio do contraditório, apenas pode ser efectuada em sede de recurso (sendo este admissível) e não em incidente próprio, perante o tribunal que proferiu aquela decisão, nos termos do art. 615º, nºs 1, d), in fine e 4 do Cód. Proc. Civil.» - Ac. Relação de Évora de 09-04-20257 lendo-se no seu sumário: «II – Apesar de a violação do princípio do contraditório configurar uma nulidade processual prevista no art. 195.º do Código de Processo Civil, quando tal nulidade é sedimentada por uma decisão judicial surpresa, tal vício afeta a própria decisão judicial, consubstanciando uma situação de excesso de pronúncia, prevista na al. d) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil, uma vez que o tribunal pronuncia-se sobre algo que não podia pronunciar-se sem antes ter dado cumprimento ao princípio do contraditório.» - Ac. Relação de Évora de 10-10-20248, lendo-se no seu sumário: «No caso de omissão, ou preterição, do exercício do contraditório, traduzida na não audição prévia das Partes, ou de alguma delas, que se revele apenas na sentença proferida através de decisão sobre questão relevante não debatida anteriormente nos autos é de considerar que aquela padece do vicio de nulidade por excesso de pronúncia, prevista na segunda parte do n.º 1, da alínea d), do artigo 615.º, do CPC.» 9. Em face do exposto, considerando que foi violado o disposto no artigo 567.º, n.º 2, do CPC, que corresponde a uma emanação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, preceito que visa assegurar o direito à defesa constitucionalmente consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa na vertente da proibição da emissão de decisões-surpresa, tal violação projetou-se sobre a sentença em si mesma, que acabou por a incorporar e absorver, justificando-se que a nulidade seja apenas arguida e conhecida em sede de recurso enquanto nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Consequentemente, impõe-se a anulação do despacho donde emerge a violação do princípio do contraditório, bem como a subsequente sentença, devendo ser retomada a tramitação processual em conformidade com o disposto no artigo 567.º, n.º 2, do CPC. 10. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelado (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP. III- DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, anulam o despacho proferido previamente à sentença que dispensou o cumprimento do artigo 576.º, nº 2, do CPC e, consequentemente, igualmente anulam a sentença a seguir proferida, ordenando, outrossim, o cumprimento do disposto no referido preceito legal, prosseguindo os autos a sua posterior tramitação. Custas pelo recorrido. Évora, 10-07-2025 Maria Adelaide Domingos (Relatora) António Fernando Marques da Silva (1.º Adjunto) José António Moita (2.º Adjunto)
____________________________________________ 1. Proc. 507/10.1T2AVR-C.C1 (Carvalho Martins), em www.dgsi.pt, site a que pertencem todos os acórdãos citados sem outra específica menção.↩︎ 2. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina 2018, 630 (4).↩︎ 3. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Almedina, 3.ª ed., p. 535 ss (4 a7).↩︎ 4. Proc. 31078/22.5T8LSB.L1-6 (Rel. Jorge Almeida Esteves).↩︎ 5. Proc. 1946/19.8T8SLV-D.E1 (Sónia Moura).↩︎ 6. Proc. 6141/17.8T8ALM.L1.L1-6 (Nuno Lopes Ribeiro).↩︎ 7. Proc. 8261/22.8T8STB.E1 (Maria Emília Costa).↩︎ 8. Proc. 310/19.3T8PTG-C.E1(José António Moita).↩︎ |