Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
606/23.0T8LAG.E1
Relator: FILIPE AVEIRO MARQUES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
REPRESENTANTE FISCAL
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
1. Cabe ao recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto a indicação dos meios probatórios que impunham decisão diversa.

2. A eventual falta de cumprimento dos deveres da ré, enquanto representante fiscal, de entregar a declaração de rendimentos do autor junto da autoridade fiscal e para efeitos de liquidação do imposto pode gerar responsabilidade civil contratual.

3. Mas a prova de que a declaração foi entregue fora de prazo não permite ter por demonstrados todos os requisitos da responsabilidade civil se o autor não provou ter comunicado (ou alguém por ele) à ré, atempadamente, a existência de rendimentos tributáveis em Portugal que necessitassem de ser declarados.

Decisão Texto Integral: Apelação n.º 606/23.0T8LAG.E1
(1.ª Secção)

Relator: Filipe Aveiro Marques


1.º Adjunto: José António Moita


2.ª Adjunta: Sónia Kietzmann Lopes


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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


AA intentou acção declarativa de condenação contra BB e pediu a condenação desta:

Ao pagamento ao AUTOR da quantia de €8.574,09 (oito mil quinhentos e setenta e quatro euros e nove cêntimos), correspondente aos juros compensatórios, que aqueles tiveram de pagar, a mais, a título de IRS relativamente ao ano de 2021, em função da atuação culposa da Ré, a que acrescem juros à taxa legal de 4% a contar da citação– artigos 805º, n.º a e 806º do Código Civil.

A ré contestou a acção e, em reconvenção, pediu a condenação do autor a pagar‑lhe a quantia de 1750,00€.


Após julgamento foi proferida sentença pelo Juízo de Competência Genérica de Lagos - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que terminou com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto, o Tribunal decide:

a) Absolver totalmente a Ré BB do pedido contra si formulado pelo Autor AA.

b) Condenar o Reconvindo AA, a pagar à Reconvinte a quantia de 600,00€ (seiscentos euros), a título de honorários de representação fiscal referente aos anos de 2020, 2021 e 2022, acrescida de juros de mora à taxa legal comercial, contados desde 2 de fevereiro de 2024 até integral e efetivo pagamento;

c) Absolver o Reconvindo AA do demais peticionado na reconvenção.

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Registe e notifique.

Custas: condena-se o Autor e a Ré a pagar as custas processuais, na proporção de 89% e 11%, respetivamente”.

I.B.

O autor veio recorrer dessa sentença e apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I- Ficou provado que a Recorrida foi nomeada representante fiscal do Recorrente “para o representar e cumprir as suas obrigações fiscais junto da AT” e que manteve tal representação, formalmente na AT, pelo menos até 17/01/2024 (factos 2 e 11; art. 130.º/1 CIRS).

II- Ficou provado que o prazo legal para entrega da IRS/2021 ocorreu de 01/04/2022 a 30/06/2022 (facto 3; art. 60.º/1 CIRS) e que a declaração não foi entregue em prazo (facto 7).

III- Ficou provado que a AT liquidou juros compensatórios de € 8.574,09, os quais — afirma a própria sentença — “não teriam sido liquidados” se a entrega tivesse sido tempestiva (facto 8/motivação).

IV- Ficou provado e documentalmente fixado que em 28/06/2022, 14:13, o Autor escreveu para ... e que às 14:14 a caixa da Recorrida respondeu “Acusamos a receção do vosso email (…)” (factos 5–6).

V- À luz da teoria da receção (art. 224.º CC), das regras da experiência (art. 607.º/5 CPC) e das presunções judiciais (arts. 349.º e 351.º CC), tal auto-reply comprova receção dos documentos e a tomada de conhecimento do teor dos mesmos antes do termo do prazo.

VI- A sentença reconhece expressamente o dever de assegurar a entrega em prazo (representação fiscal/mandato oneroso: arts. 57.º e 60.º/1 CIRS; 1157.º e 1158.º/1 CC); a violação objetiva desse prazo; o dano (pagamento dos Juros Compensatórios) e e o nexo causal (“juros não teriam sido liquidados”).

VII- Assim, opera a presunção de culpa do art. 799.º/1 CC a cargo da Recorrida; competia-lhe ilidir tal presunção (arts. 342.º/2 e 350.º/2 CC), o que não logrou fazer.

VIII- A tese exculparia de que a Recorrida “apenas soube em dezembro” é incompatível com a prova escrita e contemporânea (email 14:13 + auto-reply 14:14 de 28/06), com a manutenção do mandato e com o conhecimento prévio da venda (depoimentos valorados na motivação da Sentença e facto 15: a própria Recorrida afirmou ter pedido documentos em 2021).

IX- A valoração da prova mostra-se assimétrica e irrazoável: o Tribunal a quo, desvaloriza prova documental existente (por ser “automática”) e sobrevaloriza um telefonema de Dezembro, assente para aferir cumprimento de prazo fiscal,

X- O conteúdo funcional da representação fiscal não depende de a Recorrida ter intermediado a compra e venda (facto 13). Cabia-lhe, como representante e profissional, exigir elementos, planear e praticar o ato (entrega) em tempo (arts. 57.º e 60.º/1 CIRS; 1157.º e 1158.º/1 CC);

XI- Mesmo na hipótese de faltar algum elemento, a lei prevê a via conservatória: entregar em prazo (no limite, “a zeros”) e substituir depois (art. 59.º/3 CPPT).

XII- A não utilização deste mecanismo, que teria evitado a mora, configura omissão culposa, tal como o Recorrente alega na sua Petição Inicial.

XIII- A referência genérica da sentença à “dispensa do art. 58.º/1-b CIRS” é inidónea e um erro de aplicação do direto ao caso concreto: estando provada a alienação em 2021 (Categoria G, facto 1), existe obrigação declarativa em IRS/2021. Tal menção não afasta o dever de entrega nem a culpa presumida, e a sua utilização contraria, frontalmente o consignado nos arts. 57.º, 60.º/1 e 130.º/1 CIRS e 798.º/799.º/1 CC.

XIV- Não houve renúncia eficaz (art. 130.º-A CIRS), pelo que os deveres da Recorrida permaneceram integrais durante todo o período relevante (facto 11) e não pode, portanto, invocar “contexto” /“falta de intermediação” para se desonerar.

XV- A decisão recorrida encerra contradição valorativa: remunera a representação (honorários de € 200/ano para 2020–2022; factos provados 16–17) mas absolve a mandatária do dever nuclear dessa função (entregar em prazo). Ou é representante - com obrigações e responsabilidade por incumprimento- ou não há representação e, então, não há honorários.

XVI- O nexo causal está reconhecido na motivação: os juros decorreram exclusivamente do atraso na entrega - ajustando-se o art. 563.º CC (causalidade adequada).

XVII- Devem ser alterados os factos A, B, C e D para provados,

XVIII- A Douta sentença em mérito violou o CIRS: 57.º (dever de declarar), 60.º/1 (prazo), 130.º/1 (deveres do representante), 130.º-A (renúncia — não praticada), e utilizou indevidamente 58.º/1-b como excludente da culpa da Recorrida

XIX- Mais violou o Código civil: 1157.º, 1158º; 224.º; 342.º/2, 350.º/2 (ónus/presunções), 563.º (nexo causal), 798.º (incumprimento), 799.º/1 (presunção de culpa), 805.º–806.º (juros de mora);

ASSIM, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença mérito, na parte em que absolveu a Recorrida, e deve a mesma ser substituída por outra que a condene a pagar ao Recorrente a quantia de € 8.574,09, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento”.

I.C.

Não houve contra-alegações.


I.D.


O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.


Após os vistos, cumpre decidir.


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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


Assim, no caso, impõe-se apreciar:

a. Impugnação da matéria de facto;

b. Eventual erro de julgamento quanto aos requisitos da responsabilidade civil.


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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Fundamentação de facto:

III.A.1 Impugnação da matéria de facto:

O recorrente cumpriu minimamente os requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que se impõe a análise das questões suscitadas na sua impugnação da matéria de facto.


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III.A.1.a) O recorrente impugna os pontos A), B), C) e D) dos factos não provados, mais dizendo (no corpo das alegações) que eles devem ficar como provados com a seguinte redacção:

“– A’ (provado): “À data de julho de 2021, a Ré era representante fiscal do Autor e incumbia-lhe assegurar a submissão da IRS/2021.”

– B’ (provado): “Em 28/06/2022 foi remetida comunicação eletrónica à Ré relativa à entrega da IRS/2021.”

– C’ (provado): “Em 28/06/2022, às 14:14, a Ré acusou a receção do e-mail.”

– D’ (provado): “Entre 28 e 30/06/2022, a Ré dispunha de elementos/alerta suficientes para assegurar a entrega em prazo, exigindo o que faltasse ou submetendo com substituição posterior (art. 59.º/3 CIRS).

Invoca, para tanto, o doc. 1 junto com a petição inicial (PI), doc. 1 junto com a réplica, doc. 2 junto com a PI, tudo conjugado com o depoimento da testemunha CC e, ainda, o teor dos factos provados com os n.ºs 2, 3, 11 e 15.


A sentença recorrida fundamentou a resposta a esses pontos da matéria de facto nos seguintes termos:

o facto não provado em A resultou assim porque contraditado pelo facto provado em 1 e a prova que o sustentou, para onde se remete.

Os factos não provados em B, C e D, por seu turno, assumiram lugar de destaque em toda a instrução da causa, já que respeitam à afirmação, por parte do Autor, de que, em 27 de junho de 2022, às 15 horas e 8 minutos, foi enviada à Ré uma comunicação eletrónica com a documentação necessária para a submissão da declaração de IRS relativa ao ano de 2021, comunicação eletrónica recebida pela Ré em 28 de junho de 2022, pelas 14:14 horas, e que, em consequência, em 28 de junho de 2022, pela 15 horas, a Ré encontrava-se munida de todos os documentos necessários para instruir e submeter a declaração de IRS do Autor, cujo prazo de submissão terminaria em 30 de junho de 2022, factualidade esta negada pela Ré e que, a final, resultou como não provada.

Ora, aqui diremos que tal conclusão resultou desde logo da prova documental.

Assim, no que respeita ao facto não provado em B (de que, em 27 de junho de 2022, às 15 horas e 8 minutos, foi enviada uma comunicação eletrónica à Ré com a documentação necessária para a submissão da declaração de IRS do Autor relativa ao ano de 2021), o próprio Autor pretendeu sustentar tal factualidade no documento 1 junto com a petição inicial, cuja tradução foi junta com o requerimento de 08/03/2024. Destarte, analisado tal documento constata-se que o mesmo tem a mencionada data de 27 de junho de 2022, mas o horário das 17 horas e 11 minutos, e corresponde a uma comunicação eletrónica remetida através do endereço ...”, dos escritórios do então mandatário do Autor que tratou, separadamente, da alienação do imóvel, para o endereço de correio eletrónico ...”, isto é, dirigida ao Autor, de cujo teor consta a seguinte mensagem: “Caro Senhor Priestner” “Apenas para conhecimento, informo-o que enviamos para a sua representante fiscal a documentação de modo a ser possível submeter a sua declaração fiscal. O seu endereço de email (caso a queira contactar vial email) é: ...”. “Cumprimentos CC Secretária”. Ou seja, confrontado o documento junto constatamos que se trata de uma comunicação eletrónica da parte dos escritórios do então advogado do Autor para o próprio Autor, e não de qualquer comunicação dirigida, nem remetida à Ré, e ainda menos da qual conste que lhe foi solicitada a submissão da declaração de IRS do Autor, referente ao ano de 2021, instruída com a documentação competente para o efeito. Trata-se, em suma, de uma mera comunicação informativa por parte do escritório de advogados ao seu cliente, o Autor, comunicação essa completamente alheia à Ré, na qual não teve qualquer intervenção, nem foi destinatária.

De outro lado, o Tribunal não deixou de ter presente o depoimento da testemunha CC, secretária do escritório do então advogado do Autor, a qual confirmou ter remetido à Ré uma comunicação eletrónica com os elementos necessários à submissão da declaração de IRS do Autor. Destarte, cabe referir que confrontada com o documento 1 da petição inicial, a testemunha referiu ser esse o email por si remetido à Ré. No entanto, o email em causa, conforme vimos, sequer foi dirigido à Ré, ademais, também não é expectável que decorridos mais de dois anos a testemunha pudesse recordar-se concretamente das correspondências eletrónicas trocadas a propósito dos clientes do escritório de advogados. Acresce que a prova do alegado não se afigura de especial dificuldade já que para tanto bastaria, em princípio, a junção aos autos da comunicação eletrónica que tivesse sido remetida à Ré, com a solicitação da submissão da declaração de IRS e contendo os documentos pertinentes, em resumo, a junção do email que o Autor afirmou ter sido remetido à Ré, mas que em nenhum momento juntou aos autos. E nesta aceção, na ausência de prova documental adequada, que não poderemos ter por suprida pelo mero depoimento da testemunha CC, em face do já mencionado, teve-se por concluir o facto identificado em B como não provado.

No que respeita ao facto não provado em C (o de que a comunicação mencionada em B foi recebida pela Ré em 28 de junho de 2022, pelas 14:14 horas, tanto mais que a Ré acusou a receção do email, comprometendo-se a responder em tempo oportuno), pretendeu o Autor a sua sustentação no documento 2 junto com a petição inicial. No entanto, analisado tal documento, constata-se que o mesmo corresponde a uma comunicação datada de 28/06/2022, pelas 14:14 horas, remetida do endereço ...” da Ré para o endereço ...” do Autor, do qual constam os seguintes dizeres: “Subject: Re: Vivenda 1” “Caro(a) Senhor(a)” “Dear Mr(s)” “Acusamos a recepção do vosso email e manifestamos o nosso agrado em prestar a devida assistência. Dada a elevada quantidade de emails a responder apelamos à vossa compreensão caso não obtenha resposta imediata, sendo certo que responderemos em tempo oportuno para a resolução do assunto. Contamos com a vossa confiança e paciência! (…) Cumprimentos, Best Regards”.

Confrontado tal documento constatamos que se trata de uma comunicação eletrónica, automatizada, da parte do correio eletrónico da Ré dirigida para o endereço de correio eletrónico ao Autor, em resposta a um email do mesmo.

De outro lado, analisado o documento 1 junto com a réplica apresentada em 04/03/2024, com tradução junta com o requerimento de 08/03/2024, verificamos que tal documento corresponde a uma comunicação eletrónica datada de 28/06/2022, pelas 14:13 horas, remetida do endereço eletrónico ...” do Autor para o endereço eletrónico ...” da Ré, do qual consta a seguinte mensagem: “Subject: Vivenda 1” “Caros Senhores” “Acredito que estão a prestar assistência ao Dr. Borges no cálculo da minha situação fiscal entendo em conta a revenda da Vila mencionada acima. Mão tenho um nome no contacto no entanto, podem entrar em contacto comigo caso seja necessário” “Cumprimento AA”.

Posto isto, resulta à evidência que estamos perante um email enviado pelo Autor dirigido à Ré, datado de 28/06/2022, pelas 14:13 horas (documento 1 junto com a réplica) e de um email de resposta automática da Ré àquele primeiro do Autor, datado de 28/06/2022, pelas 14:14 horas (documento 2 junto com a petição inicial). Não se trata, ao contrário do alegado na petição, de uma comunicação do correio eletrónico da Ré em resposta a uma comunicação eletrónica que alegadamente lhe foi remetida no dia anterior, datada de 27/06/2022, às 15:08 horas (mencionada no facto não provado em B), a confirmar que seria dada assistência em tempo oportuno. E assim, porquanto se mostra manifestamente contrariado pela prova documental trazida aos autos, deu-se como não provado o facto identificado em C.

No que respeita ao facto não provado em D (o de que, em 28 de junho de 2022, pela 15 horas, a Ré encontrava-se munida de todos os documentos necessários para instruir e submeter a declaração de IRS do Autor, cujo prazo de submissão terminaria em 30 de junho de 2022), em virtude de não se terem provado os factos identificados em B e C e em face da total ausência de qualquer factualidade ou prova que o sustentasse, deu-se como não provado o facto identificado em D.

Dir-se-á, ainda, que o ponto 1 dos factos provados (com o seguinte teor: “O Autor AA, em julho 2021, alienou um imóvel de sua propriedade denominado “Vivenda 1”” e agora não impugnado) foi considerado como assente, pela sentença recorrida, em face do acordo das partes.


Já quanto aos pontos 2 e 11 dos factos provados (o 2 com o seguinte teor: “Pelo menos desde o ano de 2015, a Ré BB foi nomeada representante fiscal do Autor, residente no estrangeiro, para o representar e cumprir as suas obrigações fiscais junto da Autoridade Tributária” e o 11 com o seguinte teor: “A Ré manteve a representação fiscal do Autor mencionada em 2) formalmente na Autoridade Tributária, pelo menos, até à data da contestação, 17 de janeiro de 2024”) a sentença recorrida apresenta a seguinte fundamentação:

Os factos provados em 2 e 11 resultaram da conjugação das posições assumidas pelo Autor e pela Ré nos respetivos articulados, e bem ainda do depoimento de parte da Ré. Com efeito, ao longo da petição inicial o Autor veio sempre a afirmar que a Ré foi nomeada sua representante fiscal, porém, embora a redação por si utilizada sugerisse que tal nomeação teria ocorrido depois da venda do imóvel de que era proprietário no ano de 2021 (o que resulta do facto não provado em A), a Ré/Reconvinte, em sede de contestação, afirmou que entre as partes foi celebrado o acordo de representação fiscal com início no ano de 2015 e que perdurava formalmente na Autoridade Tributária, ao mesmo tempo que o Autor/Reconvindo posteriormente, em sede de réplica reiterou a existência do vínculo de representação fiscal ali alegando que a mesma remontava ao ano de 2011. Posto isto, conjugadas tais posições, a primeira conclusão a extrair é que se mostra aceite por ambas as partes que por acordo das mesmas, a Ré foi nomeada representante fiscal do Autor, o que sucedeu, pelo menos desde o ano de 2015, cabendo-lhe, por isso, a sua representação junto da Autoridade Tributária, factualidade assente por acordo (art. 574.º, n.º 2, primeira parte, do Código de Processo Civil). Já sobre a concreta data em que se iniciou tal acordo – se em 2015, como aludiu a Ré, ou se em 2011, como aludiu o Autor na réplica – não se logrou alcançar prova cabal nem no depoimento de parte da Ré, nem qualquer outra trazida para os autos, razão pela qual se teve por provado a data de, “pelo menos” “desde o ano 2015”, já que a existência do acordo, nessa data, está assente. Por último, não deixaremos de referir que a factualidade em causa não ficou infirmada pelo depoimento de parte da Ré, quando a dada altura aludiu à representação fiscal do Autor meramente “formal” junto da Autoridade Tributária, isto porque a própria admitiu que a representação se mantinha junto da Autoridade Tributária; de outro lado, o art. 130.º-A, do Código de IRS, dispõe que a renúncia ao cargo de representante pode ser efetuada “nos termos gerais, mediante comunicação escrita ao representado, enviada para a última morada conhecida deste”, não constando demonstrado que a Ré o tenha efetuado em algum momento. No que tange à data da contestação, resulta do processado nos autos, nomeadamente, da contestação junta ao processo em 17/01/2024.

Apreciando.


Dir-se-á, em primeiro lugar, que o recorrente não apresenta nenhum elemento de prova que não tenha sido expressamente considerado pelo Tribunal a quo. Por outras palavras, o recorrente não indicou meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto, mas pretende que, com os mesmos elementos de prova considerados na fundamentação da decisão recorrida, este Tribunal de recurso chegue a diferente convicção daquela a que se chegou na Primeira Instância.


No entanto, o que mais ressalta de toda a prova junta aos autos é que, podendo fazê-lo (até porque o alegou), o autor não juntou qualquer email ou outra comunicação em que ele próprio ou alguém por ele tenha enviado à ré as informações necessárias (o único email que consta nos autos como tendo sido enviado à ré é o doc. 1 junto com a réplica – e esse, enviado pelo autor, não tem quaisquer informações ou documentos anexos). Nem o teor desse documento (que até está transcrito na fundamentação da sentença recorrida) aponta no sentido pretendido: é que um “prestar assistência no cálculo da situação fiscal” é bem distinto de enviar informação concreta e/ou os documentos da venda e pedir à ré (ou esperar) que esta proceda à sua declaração à autoridade fiscal.


Não existindo nenhum documento de comunicação directa do autor (ou de alguém por ele) para a ré com a informação em causa, restava o depoimento de CC. De notar que o recorrente não indicou as passagens da gravação do depoimento em que funda o seu recurso. Ainda assim, em face do depoimento e do doc. 1 junto com a petição inicial (que, tal como referido na sentença recorrida, não foi dirigido à ré), não se vislumbram motivos para alterar a decisão sobre a matéria de facto.


Não se vê, por isso, como a alínea B) dos factos não provados e, por decorrência, as alíneas C) e D) dos factos não provados, poderiam ter a resposta pretendida pelo recorrente.


Quanto à redacção pretendida neste recurso quanto à alínea A) dos factos não provados importa notar que, perante o que já resultou provado (e não foi impugnado) nos pontos 2 e 11 do elenco dos factos provados da sentença recorrida, a alteração é perfeitamente inútil (nada acrescenta ao que já resulta provado).


Improcede, por isso, a impugnação do recorrente quanto à matéria de facto.


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III.A.2. Factos provados:

Considera-se, por isso, a seguinte matéria de facto provada:

1. O Autor AA, em julho 2021, alienou um imóvel de sua propriedade denominado “Vivenda 1”.

2. Pelo menos desde o ano de 2015, a Ré BB foi nomeada representante fiscal do Autor, residente no estrangeiro, para o representar e cumprir as suas obrigações fiscais junto da Autoridade Tributária.

3. O prazo para as pessoas singulares entregarem a declaração de IRS (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) relativa ao ano de 2021, decorreu entre o dia 1 de abril e 30 de junho de 2022.

4. Em 27 de junho de 2022, pelas 17 horas e 11 minutos, pelos escritórios do então mandatário do Autor que tratou, separadamente, da alienação do imóvel, através do endereço ...” foi remetida uma comunicação eletrónica ao Autor, com o endereço ...”, do qual consta o seguinte:

“Caro Senhor Priestner

Apenas para conhecimento, informo-o que enviamos para a sua representante fiscal a documentação de modo a ser possível submeter a sua declaração fiscal.

O seu endereço de email (caso a queira contactar vial email) é: ...

Cumprimentos

CC

Secretária” – junto como documento 1 da petição inicial, com tradução junta com o requerimento de 03/04/2024, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. Em 28 de junho de 2022, pelas 14:14 horas, do endereço ...” da Ré foi remetida uma comunicação eletrónica para o endereço ...” do Autor, do qual consta o seguinte:

“Subject: Re: Vivenda 1

Caro(a) Senhor(a)

Dear Mr(s)

Acusamos a recepção do vosso email e manifestamos o nosso agrado em prestar a devida assistência. Dada a elevada quantidade de emails a responder apelamos à vossa compreensão caso não obtenha resposta imediata, sendo certo que responderemos em tempo oportuno para a resolução do assunto. Contamos com a vossa confiança e paciência!

(…)

Cumprimentos,

Best Regards” - junto como documento 2 da petição inicial, com tradução junta com o requerimento de 03/04/2024, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. O Autor, sabendo que em consequência da venda do imóvel, feita no ano anterior, haveria imposto a pagar tentou, em 28 de junho de 2022, contactar a Ré.

7. A Ré não submeteu a declaração de IRS do Autor, relativa ao ano de 2021, até ao dia 30 de junho de 2022, a qual foi submetida em 9 de janeiro de 2023.

8. Essa entrega da declaração de IRS após o prazo gerou na nota de liquidação do imposto a pagar, emitida pela Autoridade Tributária, juros compensatórios no valor de 8.574,09€, que não teriam sido liquidados caso a declaração tivesse sido submetida até 30 de junho de 2022.

9. Em janeiro de 2023, o Autor liquidou o montante constante da nota de liquidação do imposto a pagar, incluindo os juros compensatórios mencionados em 8).

10. A Ré é advogada.

11. A Ré manteve a representação fiscal do Autor mencionada em 2) formalmente na Autoridade Tributária, pelo menos, até à data da contestação, 17 de janeiro de 2024.

12. A Ré estabelecida o contacto com o Autor através da intermediação de DD, a qual tratava de todos os assuntos do Autor em Portugal e era quem pagava à Ré.

13. A Ré não teve qualquer intermediação no negócio de compra e venda do imóvel mencionado em 1), não podendo por isso, por si, ter acesso aos documentos necessários para preencher a declaração de IRS referente ao ano de 2021.

14. Em dezembro de 2022, EE, esposa do Autor, contactou telefonicamente a Ré alertando-a de que era necessário entregar a declaração de IRS do Autor.

15. No telefonema referido em 14), a Ré disse-se sua surpresa, dizendo que em 2021 tinha pedido os documentos e nada lhe tinha sido entregue nessa data e questionou-a ainda sobre a falta de pagamento de honorários.

16. No acordo de representação fiscal celebrado entre o Autor e a Ré, mencionado em 2) as partes acordaram que o primeiro pagaria à segunda o valor de 200,00€ anuais como contrapartida dos serviços de representação fiscal.

17. Encontram-se por pagar os honorários de representação fiscal referentes aos anos de 2020, 2021 e 2022.

18. O Réu foi notificado do pedido reconvencional apresentado nesta ação em 2 de fevereiro de 2024.


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III.A.3. Factos não provados:


Do elenco dos factos não provados continuará a constar:

A. O Autor nomeou a Ré sua representante fiscal, na sequência de ter vendido o imóvel de sua propriedade, em julho de 2021, e para efeitos de submeter a respetiva declaração de IRS no ano de 2022.

B. Em 27 de junho de 2022, às 15 horas e 8 minutos, após acordo entre o Autor e a Ré, e o então mandatário do Autor que tratou, separadamente, da alienação do imóvel, foi enviada à Ré uma comunicação eletrónica com a documentação necessária para a submissão da declaração de IRS relativa ao ano de 2021.

C. Tal comunicação eletrónica mencionada em B) foi recebida pela Ré em 28 de junho de 2022, pelas 14:14 horas.

D. Em 28 de junho de 2022, pelas 15 horas, a Ré encontrava-se munida de todos os documentos necessários para instruir e submeter a declaração de IRS do Autor, cujo prazo de submissão terminaria em 30 de junho de 2022.

E. No referido em 6), entre 28 de junho de 2022 e dezembro de 2023, o Autor tentou, sem sucesso contactar a Ré para obter informações sobre o estado da submissão da declaração de IRS e do eventual imposto a liquidar.

F. Apesar da diversa correspondência e tentativas de contacto da Ré para com o Autor, esta nunca conseguiu obter por parte do segundo qualquer resposta em relação aos mais variados assuntos relacionados com a representação fiscal.

G. A Ré, por diversas vezes tentou junto da Autoridade Tributária renunciar ao cargo de representante fiscal, sem sucesso, por as comunicações por si enviadas não terem sido consideradas válidas e eficazes para esta entidade.

H. A Ré mal soube da venda do imóvel mencionado em 1), contactou em junho de 2021, o advogado do Autor Dr. FF, solicitando os documentos para instruir o IRS de 2021, e bem assim questionando-o sobre a vontade do Autor em ter a Ré como sua representante fiscal, sem que tivesse obtido resposta.

I. Em agosto de 2021, a Ré obteve a informação através de DD que o Autor já não tinha mais fundo de maneio senão o valor de 1.000,00€ e que os transferiria para a Ré, uma vez que previa que o Autor não pagasse mais qualquer quantia e iria cessar a atividade económica em Portugal, tendo também sido informada pela mesma pessoa que a partir daquele momento, agosto de 2021, cessaria o contrato de representação fiscal e que o Autor iria alterar a sua situação mas finanças.

J. No referido em 15), a Ré pediu à esposa do Autor o pagamento do valor de 1.750,00€ relativo às despesas e honorários.

K. No referido em 16), as partes convencionaram o pagamento de 700,00€ anuais a pagar pelo Autor pela representação fiscal.

L. Em 2021, depois do referido em I), o Autor tinha de pagar à Ré 2.750,00€ e na sequência de um pagamento no valor de 1.000,00€ ficou em dívida a quantia de 1.750,00€.

M. Os honorários de representação fiscal referidos em 16), relativos aos anos de 2020, 2021 e 2022 venceram-se nos dias 1 de Janeiro de 2020, 1 de Janeiro de 2021, e 1 de Janeiro de 2022.


*


III.B. Fundamentação jurídica:


Mantida a matéria de facto, não se pode afirmar que exista erro de julgamento quanto aos pressupostos da responsabilidade civil.


Parece claro que, tal como referido na sentença recorrida, entre pelo menos 2015 e Janeiro de 2024 a ré era, por via de contrato de mandato oneroso com o autor, representante fiscal deste, para o representar e cumprir as suas obrigações fiscais junto da Autoridade Tributária (cf. artigo 19.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro e sucessivas alterações, a última das quais pelo Decreto-Lei n.º 49/2025, de 27 de Março).


Apesar de não o ter alegado de forma directa (o autor falhou na alegação dos pormenores da venda, designadamente a data e os valores envolvidos), parece resultar dos factos provados que o autor obteve, em 2021, um rendimento em Portugal originado pela venda de um bem imóvel – ver ponto 6 dos factos provados.


Assim, entre 1 de Abril e 30 de Junho de 2022 (cf. artigo 57.º, n.º 1, do Código do IRS e ponto 3 dos factos provados) teria de entregar a declaração de rendimentos junto da autoridade fiscal e para efeitos de liquidação do imposto. Também se sabe que a declaração não foi apresentada tempestivamente (ver ponto 7) e que tal gerou a liquidação adicional de juros no valor de 8.574,09€ e que não seriam devidos em caso de apresentação atempada da declaração (ver pontos 8 e 9).


Tudo está em saber se esses factos são suficientes para que se tenha por verificado o incumprimento culposo de uma obrigação contratual por parte da ré.


Ora, nas relações entre o autor (mandante) e a ré (mandatária), a eventual falta de cumprimento do mandato por parte desta pode gerar responsabilidade civil contratual, nos termos dos artigos 798.º e ss. do Código Civil. Os elementos constitutivos da responsabilidade civil por factos ilícitos estão enunciados no artigo 483.º, n.º 1, do mesmo diploma. Pressupostos da obrigação de indemnizar são, por isso: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.


Mas a simples prova de que a declaração foi entregue fora de prazo não permite, por si só, ter por demonstrados todos os requisitos da responsabilidade civil.


A pedra de toque está, naturalmente, na comunicação (ou sua falta) à ré de que foram obtidos, pelo autor, rendimentos tributáveis em Portugal no ano de 2021.


A prestação a que se obrigou a ré, de proceder à entrega da declaração de rendimentos do autor, pressupunha que este lhe comunicasse (ou alguém por ele) e atempadamente a existência de rendimentos tributáveis em Portugal, para poderem ser declarados.


Neste tipo de contrato de mandato, parece claro que o representante fiscal não tem qualquer intervenção na obtenção de rendimentos nem na gestão do património do sujeito passivo do imposto, sendo apenas o interlocutor entre este e a administração fiscal (neste sentido ver o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 3/05/2018, processo n.º 711/11.5BELRS[1]).


Não resulta dos factos que a ré seria gestora dos bens do autor, pelo que não lhe cabendo a direcção dos negócios deste não se vislumbra como poderia ter conhecimento, se não lhe fosse comunicado, que o autor teria rendimentos cuja declaração fosse necessária.


Assim, não tendo resultado provado que, até 30 de Junho de 2022, à ré tivesse sido dado conhecimento de que o autor tinha tido rendimentos tributáveis em Portugal no ano anterior (e quais), não se pode dizer que aquela incumpriu (muito menos culposamente) a obrigação de declarar esses rendimentos dentro do prazo.


Não se vislumbra, por outro lado, qualquer “contradição valorativa” entre a remuneração da representação (que existiu e deve ser remunerada – como o autor não deixa de reconhecer, ao não recorrer dessa parte da decisão) e a falta de prova dos deveres de comunicação que cabiam ao autor no âmbito do contrato de mandato que ligou ambas as partes.


Não existe, por isso e em face dos factos provados, qualquer fundamento para reverter a decisão recorrida que absolveu a ré do pedido do autor.


Improcede, por isso, o recurso.


*


As custas do presente recurso deverão ficar a cargo do recorrente, por ter ficado vencido, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.


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IV. DECISÃO:


Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirmar a decisão recorrida.


Condena-se o autor/apelante nas custas do recurso.


Notifique.



Évora, 10 de Dezembro de 2025


Filipe Aveiro Marques


José António Moita


Sónia Kietzmann Lopes

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1. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/886F02A3FF52F5E780258289004A5EA8.↩︎