| Acórdão do Tribunal da Relação de  Évora | |||
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| Relator: | VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS | ||
| Descritores: | PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS DELIBERAÇÃO SUPRIMENTO JUDICIAL | ||
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| Data do Acordão: | 10/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
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| Sumário: | 1 – A sentença recorrida não foi proferida com violação do princípio do contraditório. 2 – É nula a deliberação, tomada em assembleia de condóminos, que determinou a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal de forma a que quatro fracções autónomas pertencentes a um condómino passassem a integrar as partes comuns do edifício, apesar do consentimento desse condómino. 3 – Atenta essa nulidade, não é admissível o suprimento judicial do consentimento dos condóminos que não votaram favoravelmente. (Sumário do Relator) | ||
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| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 696/23.5T8STR.E1 * O Condomínio dos lotes 35, 36, 37 e 38 da Quinta da (…), sito na Rua do (…), s/n, 2135-184 Samora Correia, representada pelos seus administradores (…) e (…), propôs acção especial de suprimento de consentimento contra (…) e mulher, (…), (…) Moda (…), Lda., (…), (…), (…), (…), (…) – Sociedade Imobiliária, Lda., Nova (…) – Unipessoal Lda., (…) e Filhos – Sociedade de (…), Lda., Crédito (…), Unipessoal, Lda., (…), Évora (…), Sociedad Limitada, (…), S.A. e Caixa Geral de Depósitos, S.A., pedindo: 1) Que seja suprida a falta de consentimento dos réus para a alteração do título constitutivo de propriedade horizontal, de forma a que 4 fracções autónomas, propriedade da condómina Sociedade Imobiliária (…), (…), (…), Lda. (…), passem a ter a natureza de partes comuns; 2) Ser a administração composta por (…) e (…), em representação do condomínio, autorizada a outorgar a escritura de alteração do titulo constitutivo e, bem assim, a requerer todos os actos tendentes à pretendida alteração da propriedade horizontal. Por sentença proferida em 11.12.2023, foi homologada a desistência da instância relativamente aos réus (…) e Évora (…), Sociedad Limitada. Os réus (...) e (…) contestaram, alegando, nomeadamente, que a (…) não transmitiu ao autor ou aos condóminos, o direito de propriedade sobre as 4 fracções que se pretende transformar em partes comuns, sendo certo que o autor não poderia adquiri-las, por falta de personalidade jurídica; continuando as fracções a pertencer à (…), não pode o título constitutivo da propriedade horizontal ser alterado por forma a transformá-las em partes comuns. Por sentença proferida em 10.02.2025, a acção foi julgada improcedente. O autor interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões: 1 – Entendeu o tribunal a quo declarar a nulidade da deliberação da assembleia de condóminos, de 24.09.2022, uma vez que o seu objecto é contrário à lei, fundamentando tal decisão ao abrigo do artigo 280.º do CC. 2 – Com o devido respeito por opinião contrária, mas é a própria sentença recorrida que padece desse grave vício – nulidade – decorrente, desde logo, por violação da omissão do contraditório prévio, constante no artigo 3.º, n.º 3, do CPC. 3 – O tribunal a quo não podia declarar a nulidade de tal deliberação tal como o fez, sem que a autora fosse convidada para, querendo, se pronunciar, por se tratar de uma questão nova que nunca foi levantada pelas partes ou pelo sr. juiz do processo. 4 – A sentença é nula, nulidade que, aqui, expressamente, se invoca para todos os efeitos, nos termos da aplicação conjugada do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) e n.º 4, do CPC, devendo ser dada sem qualquer efeito, devendo ser substituída por outra que permita à recorrente se pronunciar sobre a questão da nulidade da deliberação da assembleia geral de condóminos de 24.09.2022. 5 – Foram violados os artigos 3.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. 6 – A sentença recorrida erra, com o devido respeito por opinião diversa, igualmente, na determinação da norma aplicável ao presente caso, pois ao declarar a nulidade da deliberação da assembleia de condóminos em causa, por o seu objecto ser contrário à lei, e consequentemente, ser impossível, a falta de consentimento dos réus ser suprida judicialmente, não aplicou o regime previsto no artigo 1419.º do CC. 7 – Com as alterações introduzidas pela Lei 8/22, de 10 Janeiro, passou a ser possível suprir judicialmente a falta de acordo dos condóminos que não consintam na alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. 8 – Assim, a deliberação aqui em causa, e declarada nula pela sentença aqui recorrida, não é nada contrária à lei. Não contraria qualquer norma legal imperativa. Não é nula. 9 – É, sim um negócio jurídico, actualmente, legalmente possível ao abrigo da nova redação do artigo 1419.º do CC. 10 – É, ao contrário do entendimento da sentença recorrida, legalmente possível, ao abrigo da nova redacção do artigo 1419.º do CC, suprir judicialmente a falta de acordo dos condóminos que não consintam na alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. 11 – Contudo, a decisão recorrida, ao decidir como decidiu, negou à autora essa possibilidade. Cometeu grave erro de julgamento e consequente injustiça. 12 – Pretende provar a autora, em sede de audiência de julgamento, que a alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal acordada na deliberação tomada em 24.09.2022, é legalmente possível e uma vez sujeita à forma de escritura pública, que tal alteração está de acordo com as leis e regulamentos de urbanização em vigor. 13 – Foi violado o artigo 1419.º do CC, pois deveria ter sido esta norma aplicada ao presente caso concreto. 14 – Deve por isso ser a decisão recorrida ser alterada por outra que ordene o seguimento dos ulteriores termos do processo, até decisão final, agendando-se, desde já, audiência de julgamento. O recurso foi admitido. Os factos julgados provados na sentença recorrida são os seguintes: 1 – No dia 7 de Abril de 2022, os sócios da Sociedade Imobiliária do (…), (…) e (…), Lda., aprovaram em deliberação a transformação da propriedade horizontal do prédio sito na Rua do (…), (…) CNS, Quinta da (…), 35/38, 2135-184 Samora Correia, no sentido das fracções detidas pela sociedade, ou seja, as fracções EL, EM, EN e EO, passarem a partes comuns do prédio. 2 – Tal deliberação foi aprovada por 25 votos a favor e 2 contra. 3 – O prédio acima identificado encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Benavente com o n.º (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), sendo composto por um edifício de um piso, com 125 lojas, um restaurante no piso zero e no piso um, três zonas destinadas a serviços e um logradouro. 4 – Encontra-se ainda registado que o mesmo foi constituído em propriedade horizontal, dele resultando as fracções A a EJ com a permilagem de 5,6 cada uma, a fracção EL com a permilagem de 150, e as fracções EM, EN e EO, cada uma com a permilagem de 50. 5 – No dia 24 de Setembro de 2022, na assembleia de condóminos do mesmo prédio, deliberou-se autorizar que as fracções EL, EM, EN, EO, propriedade da Sociedade Imobiliária (…), (…) e (…), Lda., fossem integradas no prédio constituído em propriedade horizontal, como partes comuns do mesmo, mais se autorizando os administradores do condomínio a outorgarem a escritura de alteração da propriedade horizontal. 6 – Tal deliberação foi aprovada pela maioria dos condóminos presentes, contando com dois votos contra dos dois primeiros réus, não se encontrando presentes nem representados os restantes réus. As questões a resolver são as seguintes: 1 – Se houve violação do princípio do contraditório; 2 – Se é legalmente admissível o suprimento da falta de consentimento dos recorridos para a alteração do título constitutivo de propriedade horizontal no sentido de as fracções autónomas em questão passarem a ter a natureza de partes comuns. * 1.ª questão: O recorrente considera que a sentença recorrida é nula por violação do princípio do contraditório, consagrado no n.º 3 do artigo 3.º do CPC. Segundo o recorrente, essa violação decorre do seguinte:  - O tribunal a quo declarou a nulidade da deliberação da assembleia de condóminos referida nos pontos 5 e 6 do enunciado dos factos provados;  - Nunca a questão da nulidade dessa deliberação foi suscitada no processo, pelas partes ou pelo tribunal, pelo que se trata de uma questão nova;  - Pelo que a sentença recorrida é uma decisão-surpresa. O recorrente não tem razão. Desde logo, a forma como ele enuncia a questão deturpa a essência desta.  A afirmação de que o tribunal a quo declarou a nulidade da deliberação da assembleia de condóminos não é rigorosa. A sentença recorrida julgou a acção improcedente por considerar que a falta de consentimento dos réus para a alteração do título constitutivo de propriedade horizontal é insusceptível de suprimento. É essa a parte propriamente decisória da sentença recorrida. Nem podia ser outra, atento o teor do que o autor, ora recorrente, peticionou. A nulidade da deliberação da assembleia de condóminos surge na sentença recorrida como um dos elementos da argumentação desenvolvida pelo tribunal a quo para concluir pela referida insusceptibilidade de suprimento. Constituiu uma mera razão de decidir e não a decisão em si mesma.  A questão da nulidade da deliberação da assembleia de condóminos nem sequer surge com autonomia na fundamentação da sentença. A verdadeira questão era a da conformidade do conteúdo daquela deliberação com a lei substantiva, tendo em conta que as fracções que se pretendia transformar em partes comuns são propriedade de apenas um dos condóminos. Foi na sequência da resposta negativa a esta questão que o tribunal a quo concluiu que a deliberação é nula. Assim enquadrada, a questão da nulidade não pode ser considerada como não debatida, pelas partes, na fase dos articulados. Atente-se nos seguintes artigos da contestação: «9 – Acontece que o Autor parece ignorar (…) 10 – Que a dita Sociedade Imobiliária (…), (…), (…), Lda., não cedeu, doou ou transmitiu, por qualquer outra forma, as ditas fracções a favor do Autor ou dos seus condóminos, (…) 13 – Não obstante sempre se dirá que, perante a inexistência de aquisição, pelo Autor, das mencionadas fracções, jamais o Condomínio em causa poderia diligenciar pela alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, de forma a fazer integrar, como partes comuns, as fracções que ainda são propriedade da aludida sociedade comercial, 14 – Isto é, as fracções autónomas designadas pelas letras “EL, “EM”, “EN” e “EO”, 15 – As quais continuam a ser propriedade da Sociedade Imobiliária (…), (…), (…), Lda., 16 – E, como tal, o título constitutivo da propriedade horizontal do prédio do qual o Autor é o Condomínio, não pode ser alterado de forma a integrar as fracções acima identificadas, que são propriedade de uma sociedade comercial, em liquidação, como parte comum do prédio, 17 – Situação que, salvo melhor entendimento, determina a total improcedência da presente acção e importa a absolvição dos RR da instância e do pedido. 20 – Ora, da deliberação supra não resulta, em nossa modesta opinião, qualquer transmissão das ditas fracções a favor do Autor, nem tal se pode presumir». Esta transcrição evidencia que a questão da validade substantiva da deliberação da assembleia de condóminos, tendo em conta a titularidade das fracções que se pretendia transformar em partes comuns, foi suscitada na contestação. Daí que o recorrente haja tido oportunidade para se pronunciar acerca dela, não havendo razão para que, antes de proferir a sentença, o tribunal a quo o notificasse para esse efeito. Ao proferir a sentença recorrida sem proceder a tal notificação, o tribunal a quo não violou o n.º 3 do artigo 3.º do CPC. 2.ª questão: O tribunal a quo concluiu que a deliberação da assembleia de condóminos é nula e, consequentemente, que a falta de consentimento dos recorridos para a alteração do título constitutivo de propriedade horizontal é insusceptível de suprimento judicial, com fundamentação que assim se resume: - Um condómino não pode decidir, sozinho, que as suas fracções passem a integrar as partes comuns; - Um condomínio não pode deliberar que fracções pertencentes a um único condómino passem a integrar as partes comuns; - Pelo que a (…) deliberou sobre objecto que não lhe concerne e o recorrente deliberou sobre bens que não lhe pertencem; - Para que um condomínio possa transformar uma fracção em parte comum, através da alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, essa fracção terá de pertencer, em compropriedade, a todos os condóminos; - Não tendo havido, por qualquer forma, a transmissão das fracções para a totalidade dos condóminos, individualmente considerados (os quais passariam a ser comproprietários), não podia o recorrente deliberar que as mesmas passassem a integrar as partes comuns; - A deliberação da assembleia de condóminos visava, por via da alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, que a propriedade individual de um condómino se transferisse para a propriedade comum, sem um título translativo subjacente; - Pelo que tal deliberação é nula, por contrariedade do seu objecto à lei, nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do CC (diploma ao qual pertencem todas as normas legais doravante referenciadas); - Sendo nula a deliberação, não poderá a falta de consentimento dos réus ser suprida por via judicial. O recorrente contrapõe, em síntese, o seguinte: - Quando a alteração respeitar à estrutura do edifício, isto é, ao número de fracções, aos espaços considerados partes comuns, às percentagens ou permilagens, ao destino de cada fração, etc., é possível modificar o título constitutivo da propriedade horizontal, desde que haja acordo de todos os condóminos; - Na ausência de unanimidade, se houver acordo de condóminos que representem um capital superior a 9/10 e a alteração não modificar as condições de uso, o valor relativo e o fim a que as fracções dos condóminos que não consentem se destinam, a falta de consentimento destes últimos pode ser suprida judicialmente, nos termos do n.º 2 do artigo 1419.º; - Ao recusar o suprimento da falta de consentimento dos recorridos, o tribunal a quo deixou, indevidamente, de aplicar o regime previsto no n.º 2 do artigo 1419.º; - O tribunal a quo afirma que a deliberação da assembleia de condóminos é contrária à lei, mas não especifica as concretas normas legais supostamente violadas; - Existe uma forte probabilidade de o recorrente provar, em sede de audiência de julgamento, a verificação cumulativa de todos os pressupostos estabelecidos no artigo 1419.º, pelo que a sentença recorrida deverá ser substituída por decisão que ordene o seguimento dos ulteriores termos do processo, até decisão final, agendando-se, desde já, audiência de julgamento. Analisemos a questão. A possibilidade de suprimento judicial da falta de consentimento de determinadas pessoas pressupõe a validade do negócio jurídico para cuja perfeição tal consentimento é necessário. O suprimento é apenas da falta de consentimento de quem o não deu, não da falta de qualquer outro elemento necessário para a perfeição do negócio.  Esta regra decorre de todas as normas legais que admitem o suprimento judicial da falta de consentimento de determinadas pessoas, entre as quais se conta o n.º 2 do artigo 1419.º. Regra diversa seria absurda. Se um negócio jurídico que reúne o acordo de todas as pessoas que nele têm de intervir deve cumprir todos os requisitos de validade decorrentes da lei, não faria sentido que, nas situações excepcionais em que a lei permite o suprimento judicial da falta de consentimento de algumas dessas pessoas, se prescindisse dos referidos requisitos de validade. O mecanismo legal do suprimento judicial da falta de consentimento visa colmatar exclusivamente essa falta, donde decorre que têm de se verificar todos os requisitos de validade do negócio. Assente esta ideia, fica facilitada a tarefa que temos em mãos. A questão que analisamos desdobra-se em dois níveis sucessivos. Em primeiro lugar, teremos de analisar se se verificam os requisitos de validade da deliberação do condomínio. Apenas na hipótese de concluirmos que tais requisitos se verificam, então sim, terá cabimento a análise da verificação dos pressupostos do suprimento da falta de consentimento dos recorridos, estabelecidos no n.º 2 do artigo 1419.º. Não faz sentido, como o recorrente parece pretender, dar por resolvido o primeiro problema mediante a aplicação do regime estabelecido nesta norma legal, que apenas releva para a resolução do segundo problema. Na fundamentação da sentença recorrida, o tribunal a quo cumpriu o percurso argumentativo que preconizámos. Considerou que não se verificam os pressupostos de validade da deliberação do condomínio e, em face disso, logo concluiu que a falta de consentimento dos réus não pode ser suprida por via judicial. Cumpre verificar o acerto da sua primeira conclusão. O n.º 1 do artigo 1419.º estabelece que, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1422.º-A e em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos. Esta norma limita-se a estabelecer os requisitos formais da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal e a exigência, como princípio geral, do acordo de todos os condóminos. Pressupõe, naturalmente, a verificação dos pressupostos da validade substantiva da modificação, resultantes de outras normas legais, desde logo daquelas que integram o regime jurídico da propriedade horizontal. Não pode, através do mecanismo da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, obter-se um resultado proibido na configuração inicial deste. Daí o disposto no n.º 4 do artigo 1419.º, de acordo com o qual a inobservância do disposto no artigo 1415.º importa a nulidade do acordo. Pelas razões que anteriormente referimos, se é assim quando houver acordo de todos os condóminos, seria absurdo que deixasse de o ser quando esse acordo não exista e se verifiquem os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 1419.º para o suprimento da falta de consentimento de um ou mais condóminos.  Atentemos na situação dos autos à luz do exposto. Está em causa uma deliberação da assembleia de condóminos, aprovada pela maioria dos condóminos presentes, mediante a qual se determinou que quatro fracções autónomas, propriedade da condómina (…), passassem a ser partes comuns, ficando os administradores do recorrente autorizados a outorgarem a escritura de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal. A execução desta deliberação, através da realização da escritura de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, consubstanciaria uma transferência do direito de propriedade sobre a área do edifício correspondente às quatro fracções em questão, da esfera jurídica da (…) para as dos restantes condóminos, por via do disposto no n.º 1 do artigo 1420.º. Mais precisamente, a (…) deixaria de ser proprietária exclusiva dessas partes do edifício e passaria a ser uma mera comproprietária, a par dos restantes condóminos. Estes últimos, por seu turno, adquiririam uma quota do direito de propriedade sobre as mesmas partes do edifício por efeito de uma modificação do título constitutivo da propriedade horizontal. Tal efeito translativo do direito de propriedade sobre as partes do edifício hoje correspondentes às quatro fracções da (…) por efeito da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal é incompatível com a natureza deste, a qual se infere das funções que o artigo 1418.º lhe atribui.  A função essencial do título constitutivo da propriedade horizontal consiste na especificação das partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma a que estas fiquem devidamente individualizadas, e do valor relativo de cada uma delas, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio (n.º 1). As funções eventuais do mesmo título encontram-se previstas, de forma não taxativa, nas diversas alíneas do n.º 2: a) menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum; b) regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição, e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas; c) previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio.  Este elenco legal das funções do título constitutivo da propriedade horizontal permite caracterizá-lo como «o pacto conformador do estatuto real do condomínio», estabelecendo «o leque de regras, direitos e deveres de cada condómino aos quais se terá que adicionar ainda as normas imperativas da lei civil que nem o pacto pode sequer derrogar» (STJ 06.07.2004 – Noronha do Nascimento). Não é, pois, o mecanismo jurídico adequado para, através da sua modificação, se operar uma transmissão do direito de propriedade sobre uma ou mais fracções entre condóminos, através da sua transformação em partes comuns, como se pretendeu através da deliberação da assembleia de condóminos do recorrente descrita no ponto 5 do enunciado dos factos provados. Corrobora esta conclusão a possibilidade de suprimento da falta de consentimento de um ou mais condóminos uma vez verificados os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 1419.º. A admitir-se a transmissão do direito de propriedade sobre as partes do edifício correspondentes às quatro fracções da (…) nos termos delineados na deliberação, haveria condóminos que se tornariam seus comproprietários (ex vi artigo 1420.º) sem o concurso da sua vontade e, inclusivamente, contra a sua vontade expressa, o que, além do mais, seria incompatível com o princípio da necessidade de aceitação da aquisição de direitos por parte do adquirente, ainda que a título gratuito, que decorre do valor essencial da liberdade individual e se infere, nomeadamente, dos artigos 457.º[1] 2050.º e 2249.º[2], bem como da natureza necessariamente contratual da doação (artigos 940.º a 979.º). Concluímos, assim, secundando o tribunal a quo, que a deliberação da assembleia de condóminos referida no ponto 5 do enunciado dos factos provados viola os princípios e normas legais anteriormente referidos, pelo que é nula nos termos do n.º 1 do artigo 280.º.  Consequentemente: - Não poderá ser suprida a falta de consentimento dos recorridos para a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal nos termos deliberados pela assembleia de condóminos do recorrente; - Deverá julgar-se o recurso improcedente e confirmar-se a sentença recorrida. * Dispositivo: Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida. Custas a cargo do recorrente. Notifique. * Sumário: (…) * 02.10.2025 Vítor Sequinho dos Santos (relator) Maria Emília Melo e Castro (1ª adjunta)  José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2º adjunto) __________________________________________________ [1] Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5.ª edição, págs. 136-138. [2] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora - 1998, págs. 78-81, em anotação ao artigo 2050.º. |