Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
55/09.2TBODM.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
CONHECIMENTO NO SANEADOR
VENDA DE CORTIÇA
DIREITO DE PROPRIEDADE
ACÇÃO DIRECTA
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A cortiça, por ser a produção periódica de uma coisa que não afecta a sua substância, integra o conceito jurídico de fruto natural, tal como se encontra definido nos nºs. 1 e 2 do artigo 212º do CC. E os frutos naturais são de considerar coisas imóveis, como se refere na alínea c) do n. 1 do artigo 204º do mesmo Código.
II - Contudo, apenas pertencem a essa categoria enquanto ligados ao solo.
III - Assim, se o terreno for vendido, a menos que haja declaração em contrário, a venda abrangerá a cortiça dos sobreiros do terreno.
IV - Abrangendo a aquisição do terreno pela Ré a cortiça das árvores nele implantadas, perante a iminente extracção por quem não era seu dono, não pode deixar de ser admitida a defesa do direito de propriedade por quem o era na realidade.
V - Decorre expressamente do art.º 1314º ser admissível a defesa da propriedade mesmo por meio de acção directa, nos termos do art.º 336º, ambos do Cód. Civil, o que significa que o seu exercício legítimo terá de respeitar os requisitos enunciados nesta norma, a saber: A existência de um direito privado próprio, a impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais (judiciais ou policiais), a não existência de outro meio de impedir a perda do direito, não exceder o agente o que for necessário para evitar o prejuízo e não importar a acção directa o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
I- RELATÓRIO
1. BB – Comércio de Transportes de Gado Lda. demandou CC - Construções Lda. pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 13.882,50€, acrescida dos respectivos juros de mora, desde a citação até integral pagamento, a título de prejuízos decorrentes de ter sido impedida pela Ré de proceder atempadamente a extracção de cortiça cuja aquisição havia ajustado com o promitente comprador e arrendatário do prédio onde as respectivas árvores se encontravam implantadas.
Contestou a Ré, por impugnação, e deduziu reconvenção contra a Autora e contra DD, cuja intervenção como reconvindo requereu, porquanto este não poderia ter vendido a cortiça pois o prédio não era seu mas sim da própria Ré, conforme aquisição que fez oportunamente registar, e que, por isso, tendo a Autora acabado por retirar a cortiça do prédio da mesma Ré, sem autorização desta peticiona a sua condenação e do dito DD a indemnizá-la.
Quer a Autora, quer DD deduziram réplica, impugnando os factos da reconvenção e pugnando pela sua improcedência.
Realizou-se audiência prévia na qual o Tribunal, entendendo que o estado dos autos já lhe permitia conhecer do mérito da acção, proferiu saneador sentença no qual a considerou totalmente improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

2. É desta decisão que vem interposto recurso pela Autora e pelo interveniente DD.
Os mesmos formularam, na sua apelação, as seguintes conclusões:
2.1. A Autora, BB – Comércio de Transportes de Gado Lda.:
a) Vem o presente recurso interposto do douto saneador-sentença que julgou improcedente a ação de responsabilidade civil, intentada pela aqui recorrente, contra a recorrida “CC – Construções, Lda” e absolveu do pedido.
b) Considerou a Mmª Juiz que a decisão de mérito a tomar se bastava com a mera apresentação dos documentos ora juntos, dispensando a realização da audiência de julgamento.
c) Entendeu que o contrato de arrendamento sobre o prédio Vale da Aldeia … é nulo uma vez que foi celebrado tendo por base uma procuração que não lhe conferia poderes para tal, sendo que esta a nulidade afetava a validade do contrato de compra e venda da cortiça, pelo que estaria a recorrida legitimada a obstar à extração da cortiça, na qualidade de proprietária.
d) No entanto, e salvo melhor opinião, não assiste razão à douta julgadora quanto aos poderes conferidos pela aludida procuração, pelo que a análise da mesma e bem assim da relação material subjacente à sua outorga impunham decisão diversa.
e) Da análise da procuração resulta claro que o interveniente DD tinha poderes para “(…) vender e prometer vender, a quem (…) e sob as cláusulas, condições e obrigações que tiver por convenientes, o prédio rústico sito no Vale da Aldeia … (…).”[sic.], pelo que Sr. DD se limitou, ao abrigo do mandato que lhe foi conferido, pela aludida procuração, a alienar parte do prédio Vale da Aldeia …, isto é, os seus frutos (enquanto parte integrante do prédio).
f) Porquanto, e salvo o devido respeito por opinião diversa, impunha-se aqui a análise da aludida procuração à luz do postulado lógico de que determina que “Quem pode o mais pode o menos”. Isto é, se a referida procuração confere poderes ao procurador para alienar em definitivo a totalidade do prédio rústico, não fará sentido não admitir que este se limite a alienar parte, ou seja, os frutos da mesma.
g) Ademais, o interveniente DD veio a estes autos alegar a posse do prédio, que explora desde 1993, a qual não foi de resto impugnada e que poderia ser provada em sede de audiência de julgamento, se esta não tivesse sido dispensada pela Mmª Juiz.
h) Também quanto ao contrato de arrendamento se impugna raciocínio análogo, isto é, se a procuração confere poderes ao Sr. DD para alienar em definitivo o aludido prédio e sobre ele celebrar negócio consigo mesmo, impunha- se novamente a consideração de que “quem pode o mais pode o menos”, e ainda a interpretação no sentido de que o negócio consigo mesmo diz respeito a negócio lato sensu.
i) Sendo certo que tal procuração deveria ser enquadrada na relação material subjacente, isto porque, conforme se referiu, a posse do prédio tinha já sido transmitida ao interveniente e o preço tinha já sido depositado.
j) Há que acrescentar que o representante da mandante conhecia este contrato e nunca invocou a falta de poderes ou o abuso de representação do mandatário para esta celebração.
k) Ora, considera a recorrente que a douta julgadora fez uma errada apreciação da matéria de Direito, uma vez que, ainda que por mera hipótese académica se admitisse que a procuração outorgada a favor de DD não lhe conferia poderes para este celebrar contrato de arrendamento consigo mesmo, estaríamos perante um caso de abuso de representação e não de falta de poderes.
l) Mas ainda que o fosse, não poderia este abuso ferir de nulidade o negócio celebrado com a Recorrente ao abrigo do contrato de arrendamento.
m) De todo o modo, há que referir que a subsunção dos fatos ao direito, impunha decisão diversa da Mmª Juiz, sendo que não podia a recorrente ser prejudicada.
n) A consideração da posse como elemento alegado e não contestado e a consideração dos poderes consignado na procuração enquanto legitimadores do negócio celebrado com a recorrente, bem como, em alternativa, a imposição do regime do abuso de poderes nestes autos, ao invés da representação sem poderes, comporta a condenação da recorrida no pagamento da indemnização consignada na alínea A) do pedido formulado pelo recorrente na petição inicial, ao abrigo do instituto da responsabilidade civil.
o) A douta sentença recorrida fez assim uma errada apreciação da prova documental, aplicou incorretamente o direito violando o disposto nos artigos. disposto nos.236.º a 239.º, 261.º, 269.º, 342º, 344.º, 349º, 350º, 562º, 563º, 564º, 566º, 798º, 799º, todos do Código Civil, bem como os arts. 410.º a 415.º607º, nº 4 e 5 do CPC, pelo que se impõe a sua revogação. (…)
Nestes termos e nos demais de Direito que Vªs Exªs mui doutamente suprirão devem ser recebidas as presentes alegações e revogada a sentença recorrida por violação dos normativos legais supra invocados, condenando-se a Ré recorrida na totalidade do peticionado na alínea A) da petição inicial.
Fazendo-se deste modo a costumada Justiça!!

2.2. O interveniente principal, DD:
1-Vem o presente recurso interposto do douto saneador-sentença que julgou improcedente por não provado e, em consequência, absolveu a Ré “CC – Construções Lda”, do pedido formulado pela Autora BB – Comércio de Transportes de Gado, sendo interveniente DD.
2-O douto saneador-sentença refere o seguinte:
“Uma vez que a decisão da causa depende apenas da aplicação e da interpretação de normas jurídicas, sendo indiferente a prova dos factos que permanecem controvertidos e, na medida em que, sem necessidade de mais provas, o estado do processo permite proferir decisão segura, ir-se-á de imediato conhecer do pedido formulado pela A., ficando o presente despacho a ter, para todos os efeitos, valor de sentença, nos termos do artigo 595.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.”
3-Desde logo a douta decisão proferida muito embora muito clara e concisa, merece censura, mais precisamente pela seguinte conclusão : “ tal contrato de arrendamento é ineficaz em relação à R. já que o contrato de arrendamento foi celebrado pelo DD, sem que ao mesmo tivessem sido concedidos os poderes para o efeito. E assim sendo, não poderia aquele celebrar o aludido contrato porquanto o mesmo não assumia a qualidade de proprietário ou de arrendatário do prédio.”
4-O elenco dos factos descritos nos documentos apresentados está muito longe de ser suficiente para determinar a nulidade do contrato arrendamento do prédio “Vale da Aldeia …”, para o exclusivo fim de exploração silvícola, pelo Recorrente.
5-Tendo decidido com base unicamente em documentos “sem necessidade de mais provas”, o douto Tribunal não agiu bem.
6-Não podendo excluir, ab initio, a apreciação de outras provas, máxime a testemunhal e a tomada das declarações de parte.
Na verdade,
7-O estado do processo não permitia, nesta fase, “proferir decisão segura”, por se tratar de uma questão complexa.
Senão vejamos:
8-O Recorrente, desde 1993, explora o referido prédio, ali mantendo uma exploração de montado/sobreiros;
9-Em 17 de Maio de 2001, o anterior sócio gerente da Recorrida, EE, sócio gerente da FF e posteriormente sócio gerente da “CC - Construções, Ld.ª” celebrou contrato- promessa de compra e venda com o co-autor DD e dele recebeu integralmente o preço acordado para a venda da referido prédio.
10-O preço acordado e integralmente pago por DD foi de 40 000 000$00 ( quarenta milhões de escudos).
11-A primeira contraente “FF – Empreendimentos Imobiliários Lda” reservou o direito à exploração florestal do referido prédio até ao final do ano de 2006.
12-Em 17 de Maio de 2001 o anterior sócio gerente da Recorrida e sócio gerente da FF, EE, celebrou um Acordo referente à compra e venda dos prédios do “Cargouçal” e do “Vale da Aldeia …” com o co-autor DD.
13-Em 28 de Junho de 2002, a FF, através do seu sócio gerente, EE, emitiu a favor do Recorrente uma procuração irrevogável, conferindo-lhe poderes para realizar escritura definitiva, autorizando-o expressamente a celebrar negócio consigo mesmo,
14-Passando o promitente comprador a exercer todos os poderes inerentes à sua condição de proprietário.
15-Em 19-2-2003 a “FF - Empreendimentos Imobiliários, Lda” constituiu hipoteca voluntária sobre o referido prédio a favor do Banco Nacional de Crédito Imobiliário, SA, bem sabendo que tinha recebido o preço acordado e emitido a favor do Recorrente uma procuração irrevogável, conferindo-lhe poderes para realizar escritura definitiva, autorizando-o expressamente a celebrar negócio consigo mesmo.
16-Em 16-5-2005 a sociedade “FF- Empreendimentos Imobiliários, Lda”, transmitiu, o prédio “Vale da Aldeia …”- à sociedade “CC - Construções, Ld.ª” apesar deste se encontrar integralmente pago pelo Recorrente;
17-Para além disso, o Recorrente foi lesado pela FF, por esta lhe ter passado um cheque sem provisão no valor de 10 000 000$00 ( dez milhões de escudos) ainda referente ao contrato celebrado.
18-Desta forma, ambas lesaram o Recorrente, porquanto este já não conseguiu efectuar a escritura de compra e venda do prédio que já tinha pago.
19-Em 20 de Fevereiro 2005, o Recorrido, valendo-se da autorização contida na procuração que o autorizava a celebrar “ negócio consigo mesmo”, celebrou o contrato de arrendamento florestal do “Vale da Aldeia …”.
20-O contrato de arrendamento nesse mesmo ano de 2005 deu entrada nos Serviços de Desenvolvimento Florestal e na Repartição de Finanças de Ourique,
21-Tendo o Recorrente pago, até à presente data a renda estabelecida de 500,00 ( quinhentos euros) aos “proprietários” do prédio, bem como os correspondentes impostos.
22- Posteriormente, o prédio foi transmitido a terceiros, sendo que, neste momento, integra a massa insolvente de GG Proc. 1898/11.2TBVNO-D.
23-Tendo o montante das rendas anuais sido depositadas à ordem desse processo.
Destarte,
24-Os factos estão longe de revestirem a simplicidade alegada na douta decisão, não podendo a prova documental ser suporte bastante para a fundamentação da mesma.
Acresce que,
25-Apesar dos vários processos instaurados em tribunal, até à presente data, não foi invocada pela Recorrida a nulidade do contrato de arrendamento pela via processual adequada.
26-Pois, como se descreveu, não se trata de um processo simples mas sim de um intrincado e urdido processo em que o Recorrente saiu seriamente lesado.
27-Em bom rigor, o Recorrente não seria um mero arrendatário mas sim proprietário do prédio “Vale da Aldeia …”, o que só não ocorreu pelo comportamento inqualificável da FF e da Recorrida.
Na verdade,
28- A sociedade “CC - Construções, Ld.ª” NIPC: … foi constituída em 2002, tendo como sócios gerentes EE igualmente sócio da “FF- Empreendimentos Imobiliários, Lda”), Sérgio M…, Alfredo M… e Manuel J….
29- Razão pela qual a Recorrida CC não pode alegar, desconhecimento do historial da aquisição do prédio.
30-Pois como se pode provar, o seu antigo sócio gerente EE foi interveniente em todo estes negócios.
31-Dispõe o Art. 268.º (Representação sem poderes):“1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.”
32-A proibição do negócio consigo mesmo, comporta três excepções no sentido da validade do negócio quando:
- uma disposição especial da lei permita o negócio;
- o representado consentir, em determinados termos, na realização do negócio;
- “o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses” (art. 261.°, n. °l, in fine, do Código Civil)”
Assim,
33-O negócio negotium a semet ipso , em representação de terceiro, é meramente anulável, excepto se o negócio excluir , por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses – n.º 1 do art. 261º do Código Civil – ( Vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.06.2003, Proc. 1826/03, da 2ª secção, Relator Conselheiro Ferreira de Almeida).
34-Pelo que, tendo o Recorrente celebrado tal contrato após o pagamento do preço do prédio e não tendo outorgado a escritura de compra e venda do prédio por culpa exclusiva da Recorrida e da FF, não se vislumbra qualquer conflito de interesses nem abuso de representação.
35-Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado” –
vol. I, pág. 249: “Há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado”.
36-Ora, o Recorrente não se prevaleceu dos poderes conferidos pela procuração para elaborar um contrato de arrendamento com o intuito de lesar patrimonialmente a Recorrida,
37-Tendo passado a exercer todos os poderes inerentes à sua condição de proprietário após a celebração do contrato promessa.
38-E estranhamente nunca foi intentada nenhuma acção em que fosse pedida a declaração de ineficácia do negócio consubstanciado nesse contrato de arrendamento.
39-Pois tanto a FF, como a Recorrida sabiam que tal culminaria numa decisão judicial manifestamente contrária aos seus interesses,
40-Por terem adoptado uma conduta ilegal e violadora do princípio geral da Boa Fé e Bons Costumes, que impõe às partes deveres de confiança e lealdade.
41-À Recorrida cabia provar que, que existiu abuso de representação, em sede própria e pela via processual adequada, mas não o fez.
42-O negócio consigo mesmo, celebrado pelo Recorrido que interveio, simultaneamente, a título pessoal e como representante da FF não é anulável, tendo em conta que o negócio, pela sua natureza, não envolveu a possibilidade de um conflito de interesses.
43-O Tribunais podem fiscalizar a legalidade dos actos praticados no exercício de direitos que os legitimam, se houver evidente abuso, o que in casu sucedeu.
44- O Recorrente tem o direito de ver apurados os factos relacionados com o negócio consigo mesmo celebrado com base na procuração outorgada pela FF, que era do inteiro conhecimento da Recorrida.
45-Devem, assim, ser apreciadas as demais provas, designadamente a testemunhal, a tomada das declarações de parte e os restantes documentos cuja junção aos autos se requereu, tendo em vista o interesse no apuramento da verdade material para a administração da justiça, com a efectiva realização dos fins da actividade judicial, pelos meios processuais legalmente admissíveis e adequados, ao abrigo do disposto nos arts. 2.º n.º 2, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, do CPC e arts. 13.º, 16.º 17.º 18.º e 20.º da CRP!
NESTES TERMOS, Deve anular-se ou revogar-se a douta decisão em recurso, ordenando-se o prosseguimento dos autos.


3. Contra-alegou a Ré pugnando pela improcedência do recurso.

4. Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam, são as seguintes:
- Se o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito da acção no saneador;
- Se os factos apurados conduzem de per si à improcedência da presente acção de responsabilidade civil.

II- FUNDAMENTAÇÃO

i. É a seguinte a factualidade inserta na decisão recorrida e que nenhum dos recorrentes impugnou:
1- Em 12 de Maio de 2001, entre FF – Empreendimentos Imobiliários Lda., representada pelo seu sócio gerente EE, na qualidade de promitente vendedora e DD, na qualidade de promitente comprador foi celebrado contrato-promessa de compra e venda do prédio rústico sito no Vale da Aldeia …, freguesia de Santa Luzia, Concelho de Ourique, inscrito na matriz respectiva sob o art.º2º, secção D, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob o n.º ….
2 – No dia 28.06.2002, EE, na qualidade de sócio-gerente da FF – Empreendimentos Imobiliários. Lda. constituiu bastante procurador DD.
3- Da procuração consta: (…), a quem confere os poderes necessários para, por ele mandante, em representação da referida Sociedade, vender e prometer vender, a quem, e até ao preço de cento e vinte cinco mil Euros, e sob as cláusulas, condições e obrigações que tiver por convenientes, o prédio rústico sito no Vale da Aldeia de Cima (…), receber o preço e outorgar as necessárias escrituras ou contratos promessa de compra e venda.
Os poderes contidos nesta procuração só poderão ser exercidos caso o mandatário faça prova através da exibição de um original válido de uma certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Odemira, na qual conste que o prédio misto denominado “Monte do Cargouçal”, sito em Odemira (…) se encontra registado definitivamente a favor de FF – Empreendimentos Imobiliários, Lda.
O referido mandatário poderá fazer negócio consigo mesmo, nos termos do artigo 261ºdo Cód. Civil.
Esta procuração é irrevogável, nos termos dos artigos 265º n.º 3, 1170º n.º 2 e 1175º, todos do Cod. Civil e não caduca por morte nos termos do artigo 1.175 do mesmo Código (…) ” – conforme documento junto a fls. 94 e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos.
4- Por escrito datado de 20.02.2005, a FF Lda. declarou dar de arrendamento o prédio “Vale da Aldeia de Cima”, para o exclusivo fim de exploração silvícola, por um período de 50 anos, automaticamente renovável.
5 – De tal documento consta que o contrato foi celebrado entre a “FF, Lda. (…), representada neste contrato pelo seu procurador EE (…) conforme procuração irrevogável que se junta ao presente contrato (…) e DD” – conforme documento junto a fls. 92 e seguintes, que no demais se dá por integralmente reproduzida.
6 - Através da Ap. 1 de 2005/0516 encontra-se registada a aquisição do prédio rústico denominado Vale da Aldeia de Cima, inscrito na matriz sob o n.º 2 Secção D, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique, freguesia de Santa Luzia sob o n.º …/19990129, a favor de CC – Construções Lda. por permuta com FF – Empreendimentos Imobiliários – conforme certidão junta a fls. 98 e seguintes, que no demais se dá por integralmente reproduzida.

ii) Do mérito dos recursos

1. Entendeu-se na decisão recorrida que o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito da acção no saneador, opção que a alínea b) do nº1 do art.º 595º do CPC contempla quando não haja necessidade de produzir mais provas.

Como proficientemente se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 21.1.2014 (proferido à luz do revogado CPC mas que neste conspecto mantém perfeita actualidade) o “conhecimento do mérito em sede de despacho saneador pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas não se coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada.
Por isso, tal conhecimento só deve ocorrer se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.”.

Vejamos então.

No caso sub judice, a A. pretende que a R. seja condenada no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos que lhe causou ao impedi-la de retirar cortiça de um prédio na época própria para o efeito.

Para o efeito, alegou, em síntese, que celebrou com DD um contrato de compra e venda de cortiça, tendo-lhe este exibido um contrato promessa de compra e venda do prédio do qual seria retirada a cortiça, uma procuração irrevogável e um contrato de arrendamento sobre o mesmo imóvel para exploração silvícola por um período de 50 anos.

Apesar da Ré ter conhecimento do contrato de arrendamento, começou a deslocar-se ao local com vista a evitar a retirada da cortiça, o que levou a que os trabalhos só se realizassem mais tarde, causando-lhe diversos prejuízos.

A Ré contestou, por impugnação e, por excepção, referindo que mesmo que se viesse a demonstrar a existência de um contrato de compra e venda de cortiça celebrado entre a A. e o DD, tal venda seria nula porquanto aquele nunca foi dono do imóvel ou dos sobreiros e o contrato de arrendamento que invoca é igualmente nulo já que o mesmo carecia de poderes para o celebrar, sendo que a dona do referido prédio é a Ré, desde o dia 12/05/2005, conforme consta da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Ourique que juntou.

Apuradas que ficaram as diversas relações jurídicas existentes e estabelecidas entre as partes, nenhuma ulterior prova se revelava necessária para aferir da (i)licitude da conduta da Ré, afinal proprietária do imóvel no qual estão implantadas as árvores de onde a cortiça veio a ser retirada.

Evidentemente que caso se conclua, ao invés do que ficou decidido, ser a conduta da Ré ilícita deverá o processo prosseguir para aferir se se verificam os alegados danos e, consequentemente, se há lugar à indemnização peticionada.
É o que apreciaremos de seguida.

2. Vejamos então se os factos apurados conduzem de per si à improcedência da presente acção de responsabilidade civil.
Como se viu, o facto ilícito que a Autora imputou à Ré consistia em a mesma, “sem qualquer direito que o legitimasse”, ter impedido, entre Abril e Agosto de 2008, que o A. extraísse a cortiça que alegadamente teria adquirido ao ora interveniente no momento adequado para o efeito.

Aliás, na petição inicial a Autora refere (cfr. art.º 27º) que tal impedimento foi ilícito “ pois que a R. sabia não reunir a qualidade de proprietária que legitimaria eventualmente a adopção de tal procedimento”.

Porém, a Ré logrou provar ter adquirido tal prédio tendo feito registar tal aquisição em 16.5.2005.

Ora, a revelação do registo feito a seu favor é suficiente para comprovar o seu direito de propriedade.

De acordo com o princípio fundamental da publicidade conferida pelo registo - a que o art. 7.º do Código de Registo Predial dá acolhimento – presume-se ser o seu conteúdo certo e verdadeiro i.e. que a verdade que nele se publicita é coincidente com a verdade material.

Portanto, sendo inquestionavelmente a Ré dona do prédio em questão fenece um dos pressupostos em que assentava o pedido indemnizatório contra a mesma formulado.

Na verdade, de acordo com a configuração fáctica dada à lide pela Autora, a conduta “ilícita” da Ré traduziu-se na deslocação reiterada ao prédio acompanhada das autoridades locais “ forçando o vendedor DD a fazer prova da titularidade do seu direito” (cfr.11, 12 e 13 da petição inicial).

Como bem se salienta na decisão recorrida, “impunha-se então à A. demonstrar que a conduta da R., ao entrar no imóvel e perturbar a retirada da cortiça era ilícita. No entanto, os factos já demonstrados nos autos evidenciam o contrário.
Com efeito, resulta dos autos que, à data da celebração do alegado contrato de compra e venda de cortiça, a propriedade do imóvel do qual foi retirada a cortiça encontrava-se inscrita a favor da ora R. .”

Com efeito, a A. alegou que o contrato de compra e venda da cortiça das árvores desse imóvel que celebrou verbalmente com DD teve lugar em Março de 2008 (cfr. artº 8º da petição inicial).

Não beneficiando esse mesmo recorrente, DD, de registo de propriedade a seu favor, revela-se despicienda, para o caso, a apreciação do contrato promessa de compra e venda que terá celebrado com o anterior proprietário.

Como se revela igualmente inútil a divagação sobre a (in) validade de um contrato de arrendamento outorgado com o mesmo recorrente pois é apodíctico que um arrendatário não pode alienar o que lhe foi locado.

De facto, como se pode ler no Acórdão do STJ de 28.5.96 [1] «sabe-se que a cortiça, por ser a produção periódica de uma coisa que não afecta a sua substância, integra o conceito jurídico de fruto natural, tal como se encontra definido nos ns. 1 e 2 do artigo 212º do CC. E os frutos naturais são de considerar coisas imóveis, como se refere na alínea c) do n. 1 do artigo 204 do mesmo Código.
Contudo, apenas pertencem a essa categoria enquanto ligados ao solo.
Assim, se o terreno for vendido, a menos que haja declaração em contrário, a venda abrangerá a cortiça dos sobreiros do terreno. » - sublinhado nosso.

Não havendo notícia nos autos (nem tal foi alegado) que a aquisição do terreno pela Ré não tenha abrangido a cortiça das árvores nele implantadas, perante a iminente extracção por quem não era seu dono, não pode deixar de ser admitida a defesa do direito de propriedade por quem o era na realidade.

Aliás, decorre expressamente do art.º 1314º ser admissível a defesa da propriedade mesmo por meio de acção directa, nos termos do art.º 336º, ambos do Cód. Civil, o que significa que o seu exercício legítimo terá de respeitar os requisitos enunciados nesta norma, a saber: A existência de um direito privado próprio, a impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais (judiciais ou policiais), a não existência de outro meio de impedir a perda do direito, não exceder o agente o que for necessário para evitar o prejuízo e não importar a acção directa o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.

Apesar de na própria petição inicial, a Autora revelar que a Ré solicitou a presença da GNR perante a qual invocou a qualidade de proprietária visando impedir a retirada da cortiça ali existente ( art.º 16º) o que bem inculca que esta recorreu aos meios coercitivos normais para defesa do seu direito, sempre se diga que, ainda que assim não fosse, estaria a eventual ilicitude da sua conduta excluída por via deste instituto pois não é exigível que perante a iminência do sucedido , assistisse “ impávida” e “serena” à consumação de tal acto danoso da sua propriedade.

Por isso, não podemos deixar de acompanhar a conclusão alcançada pela 1ª instância de que “os factos que já se mostram demonstrados afastam a ilicitude da conduta da R., o que tem como consequência a improcedência do pedido formulado pela A”.

III-DECISÃO
Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Évora, 12 de Junho de 2019
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

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[1] Relatado pelo Conselheiro Amâncio Ferreira e consultável na Base de Dados do IGFEJ.