Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2126/20.5T8PTM.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: CONTRATO DE ALOJAMENTO
CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR
COVID
RISCO NAS OBRIGAÇÕES
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Não tendo resultado provado ser a Autora uma agência de viagens e turismo ou um operador de animação turística, devidamente credenciada nos termos da legislação que os regula, fenece um pressuposto da aplicação do disposto no artigo 5º do D.L. 17/2020, de 23.4.;
II. As partes fizeram constar do contrato uma cláusula de força maior que dispõe sobre as consequências da impossibilidade superveniente da prestação em decorrência dos eventos nela elencados (e que não são imputáveis ao devedor) que congregam os seus pressupostos clássicos: imprevisibilidade, irresistibilidade e exterioridade à vontade das partes.
III. Nada impede que uma cláusula de força maior preveja os moldes em que se fará a distribuição do risco da frustração do negócio por cada uma das partes.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

1. KISLEV OF NEW YORK, sociedade registada no Registo do Comércio e das Sociedades de Paris (Registre du Comerce et des Societes de Paris) intentou contra ELEGANT FAMILY HOTELS MANAGEMENT, S.A., acção declarativa constitutiva e de condenação na qual pediu:
a) Sejam excluídas as cláusulas contratuais gerais contidas no contrato de alojamento, não comunicadas nos termos do artigo 5.º da LCCG, em concreto, a cláusula de força maior invocada pela Ré, nos termos e para os efeitos no artigo 8.º, alínea a) da LCCG;
Ou, subsidiariamente:
b) Seja declarada proibida a cláusula de força maior invocada pela Ré, na medida em que traduz uma cláusula penal desproporcionada ao dano a ressarcir, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 19.º da LCCG; Ou ainda:
c) Seja reduzida a cláusula penal equitativamente para um valor equivalente ao dos prejuízos que, eventualmente, a Ré possa ter sofrido, nos termos do artigo 812.º, n.º 1 do Código Civil; Em qualquer um dos casos, deve ser:
d) Declarada a resolução do contrato sub judice, com fundamento na perda de interesse na realização da prestação;
e) Deve ser condenada a Ré a pagar à Autora a quantia de € 257.090,00 (duzentos e cinquenta e sete mil e noventa euros);
f) Deve ser condenada a Ré a pagar à Autora os juros de mora, vencidos e vincendos, contabilizados à taxa legal, desde a data de constituição em mora até integral e efetivo pagamento.

Alegou, para tanto e em síntese, que celebrou de um acordo denominado “Contrato de hospedagem” com a Ré, pretendendo ser reembolsada dos valores que entregou à Ré, na sequência do cancelamento das reservas decorrente da pandemia COVID 19 que impediu os seus clientes de viajar e concretizar o evento “KNY Special event Kosher”, a realizar no “Martinhal Lisbon Cascais Family Resort Hotel”, sito na Rua do Clube, Quinta da Marinha, Cascais, pelo facto da Ré ter encerrado o hotel.
Procedeu-se à citação tendo a Ré apresentado contestação, declinando a obrigação de indemnizar a Autora.
Procedeu-se à elaboração do Despacho Saneador, no qual foi indicado o objeto do litígio e organizados os temas de prova.

2. Realizou-se audiência final, vindo, subsequentemente, a ser proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:
1) Declaro resolvido o contrato de hospedagem celebrado entre a Autora e a Ré, a 10.02.2020.
2) Absolvo a Ré do pedido de exclusão da cláusula de força maior constante do contrato.
3) Absolvo a Ré do pedido de proibição da cláusula de força maior constante do contrato.
4) Condeno a Ré a devolver à Autora o valor global de 145.794 euros, acrescido de juros de mora vincendos a contar do trânsito em julgado da presente sentença.
5) Decido que o valor de 55.648 euros será utilizado numa futura reserva.
6) Decido que a Ré tem direito ao valor de 55.648 euros a título de indemnização pelo incumprimento.
7) Absolvo a Autora do pedido de condenação como litigante de má fé.
8) Condeno a Ré e a Autora nas custas, na proporção do seu decaimento.”.

2. É desta sentença que a Autora recorre, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida no passado dia 24.10.2022, com a qual a Recorrente não se conforma.
B. O Tribunal a quo mal andou ao decidir, como decidiu, tendo incorrido num evidente erro de julgamento, quer quanto à matéria de facto erradamente dada como provada, quer quanto à aplicação do direito. Em concreto:
C. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que “A Autora, no âmbito da sua atividade, “organiza viagens Kosher de prestígio em hotéis de luxo, cadeias de hotéis de renome mundial há mais de 40 anos”, na medida em que o mesmo resultou provado através do documento n.º 1 junto com a contestação, cujo teor não foi impugnado, tendo sido alegado pela Recorrida e expressamente aceite pelo mandatário da Recorrente, ora signatário. Por outro lado,
D. Entende ainda a Recorrente que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provado o facto constante do ponto 26. dos factos provados nos termos em que o fez, na medida em que resulta da certidão comercial da Recorrente junta como documento n.º 1 junto com a petição inicial, que o Sr. AA não é gerente da Recorrente, tendo o mesmo sido indicado e aceite como testemunha e esclarecido, em sede do seu depoimento, que é director comercial da Recorrente, não dispondo de poderes de gerência.
E. Ao invés, deverá ser dado como provado apenas que “Na sequência do início da exploração do estabelecimento hoteleiro pela aqui Ré, a Autora, representada por AA, visitou as instalações do estabelecimento hoteleiro no final de 2015, tendo, na sequência dessa visita e por e-mail datado de 20 de novembro de 2015, transmitido à aqui Ré (na pessoa de BB), o interesse na realização daquele que seria o primeiro evento no estabelecimento hoteleiro sob a gestão da aqui Ré, a concretizar-se em 2016.”.
F. Entende ainda a Recorrente que, em face dos factos dados como provados, incluindo os factos cuja reapreciação se requer, o Tribunal a quo mal andou ao não condenar a Recorrida no pagamento da quantia de € 257.090,00 (duzentos e cinquenta e sete mil e noventa euros). De facto,
G. Em face da actividade exercida pela Recorrente, nomeadamente a organização de seminários e todos os eventos, bem como a organização de viagens Kosher dever-lhe-á ser aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de Abril, o qual se aplica, de acordo com o disposto no artigo 2.º, às viagens organizadas por agências de viagens e turismo, ao cancelamento de reservas em empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local e às relações entre agências de viagens e turismo, operadores de animação turística e os empreendimentos turísticos e os estabelecimentos de alojamento local.
H. Nos termos do artigo 5.º, n.º 1 do citado Decreto-Lei n.º 17/2020, “As reservas de serviços de alojamento em empreendimentos turísticos e em estabelecimentos de alojamento local situados em Portugal, para o período de 13 de março de 2020 a 30 de setembro de 2020, efetuadas por agências de viagens e turismo ou operadores de animação turística, portugueses ou internacionais a operar em Portugal, que não sejam efetuadas ou que sejam canceladas por facto relacionado com a declaração de estado de emergência decretado no país de origem ou em Portugal ou ainda com o encerramento de fronteiras imputável ao surto da pandemia da doença COVID -19, na modalidade de não reembolso das quantias pagas, conferem, excecional e temporariamente, a esses operadores o direito de crédito do valor não utilizado”.
I. Crédito esse que, de acordo com o n.º 2 da citada disposição legal, deveria “ser utilizado para a liquidação de custos com qualquer outra reserva de serviços junto do mesmo empreendimento turístico ou do mesmo estabelecimento de alojamento local, em data definida pela agência de viagens e turismo ou pelo operador de animação turística, mediante disponibilidade de serviços de alojamento, até ao dia 31 de dezembro de 2021”. Porém,
J. Nos termos do n.º 4 da mesma disposição legal, “Se a agência de viagens e turismo ou o operador de animação turística não conseguirem efetuar nova reserva de serviço de alojamento em empreendimento turístico ou em estabelecimento de alojamento local situados em Portugal, até ao dia 31 de dezembro de 2021, o valor do depósito deve ser devolvido no prazo de 14 dias após esta data”.
K. Se, por um lado, é evidente que a actividade exercida pela Recorrente reconduz- se à actividade de agência de viagens e turismo ou mesmo de operador de animação turística, por outro lado, face às especificidades religiosas do evento e, bem assim, ao facto de a Recorrida entender ser aplicável a cláusula de força maior, não foi possível efectuar uma nova reserva.
L. Motivo pelo qual estava a Recorrida obrigada a devolver à Recorrente o valor adiantado no prazo de 14 dias a contar de 31 de Dezembro de 2021, ou seja, até ao dia 14 de Janeiro de 2022, o que não fez.
M. Não tendo a Recorrida procedido à devolução da quantia paga até 14 de Janeiro de 2022, a mesma constituiu-se em mora e, consequentemente, na obrigação de indemnizar a Recorrente pelos danos causados (cfr. artigos 804.º e seguintes do Código Civil).
N. Estando em causa uma obrigação pecuniária, a indemnização é a correspondente aos juros sobre a quantia em dívida, contados à taxa legal aplicável, desde o momento da constituição em mora até efectivo e integral pagamento (cfr. artigo 806.º do Código Civil).
O. Assim, ao capital em dívida, titulado pelas facturas acima indicadas, acresce ainda juros de mora, à taxa legal de 8%, contabilizados desde a data do respectivo vencimento, ou seja, 14 de Janeiro de 2022, até integral e efectivo pagamento.
P. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, sempre se dirá que a cláusula de força maior contém em si uma cláusula penal manifestamente desproporcionada a favor da Recorrida, no valor correspondente a 25% do valor da reserva, independentemente de culpa da Recorrente, no valor de € 55.648,00, o qual o tribunal decidiu que seria devido à Recorrida a título de indemnização, devendo, em consequência, ser reduzida equitativamente nos termos do disposto no artigo 812.º do Código Civil. De facto,
Q. Se tivermos em consideração que (i) o evento organizado pela Recorrente teria a duração de 12 noites, entre 7 e 19 de Abril de 2020 e (ii) o mês de abril de 2020 teve 29 noites, o evento organizado pela Recorrente apenas ocuparia o estabelecimento hoteleiro em cerca de 41% das noites disponíveis e, logo, o custo “imputável” à Recorrente deveria ser proporcional, ou seja, tendo por base os valores apresentados pela Recorrida, o valor de € 66.816,88.
R. Equivale isto a dizer que, na prática, o Tribunal a quo imputou à Recorrente um custo praticamente idêntico ao prejuízo que a Recorrida teve com o cancelamento do evento por motivo de força maior (€ 55.648,00 vs € 66.816,88)!
S. É, pois, desadequada e desproporcional a cláusula penal!
T. Sobretudo se tivermos em causa que a Recorrente não deu causa à situação pandémica e o risco deveria ter sido suportado, pelo menos, em parte igual entre a Recorrente e a Recorrida.
U. Entende assim a Recorrente que a cláusula penal contida na cláusula de força maior deverá ser equitativamente reduzida para o valor de € 33.408,44 (trinta e três mil, quatrocentos e oito euros e quarenta e quatro cêntimos), correspondente a metade do prejuízo proporcionalmente “imputável” ao evento organizado pela Recorrente.
V. Em consequência, deverá o Tribunal a quo condenar a Recorrida no pagamento à Recorrente da quantia de
W. Violou, pois, o Tribunal a quo o disposto no artigo 812.º do Código Civil.
NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser:
a) Dados como provados os factos constantes das alíneas a) e b) do capítulo II, nos termos supra citados; e
b) revogada a decisão recorrida e a mesma substituída por outra que (i) condene a Recorrida ao pagamento da quantia de € 257.090,00 (duzentos e cinquenta e sete mil e noventa euros), acrescida dos respectivos juros de mora a contar de 14 de Janeiro de 2022 ou, ainda que assim não se entenda, o que não se concede, mas por mero dever de patrocínio se admite, (ii) reduza equitativamente a cláusula penal para um valor equivalente ao dos prejuízos sofridos pela Recorrida, ou seja, € 33.408,44 (trinta e três mil, quatrocentos e oito euros e quarenta e quatro cêntimos), condenando-se a mesma no pagamento da quantia de € 168.033,56 (cento e sessenta e oito mil e trinta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), correspondente à soma da quantia de € 145.794,00, já decidida pelo Tribunal a quo, e da quantia de € 22.239,56 (vinte e dois mil, duzentos e trinta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos), correspondente à diferença entre o valor da indemnização decidida pelo Tribunal a quo (€ 55.648,00) e o valor da cláusula penal entretanto reduzida (€ 33.408,44).
Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!


3. Contra-alegou Ré defendendo a manutenção do decidido.

4. OBJECTO DO RECURSO

Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam, são as seguintes:

- Se deve ser ampliada a decisão de facto nos moldes enunciados pela apelante;

- Impugnação da matéria de facto: Se o facto vertido no ponto 26 deveria ter sido considerado provado com a redacção sugerida pela Recorrente;

- Reapreciação jurídica da causa: se a recorrida deveria ter sido condenada no pagamento de € 257.090,00 - correspondente ao montante que a recorrente lhe entregou - em decorrência do disposto no art.º 5º do Decreto-Lei nº 17/2020, de 23.4. e, em caso negativo, se a cláusula de “força maior” contem disposição desproporcionada e se deve ser reduzida equitativamente para o valor de € 33.408,44.


II. FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:

A – Factos provados
Com relevância para a decisão da causa, consideram-se demonstrados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade que se dedica à organização de seminários e todos os eventos, importação e exportação de todos os produtos e mercadorias relacionados a essas atividades.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras, à administração, gestão e promoção de estabelecimentos de hotelaria, de unidades hoteleiras, de aldeamentos turísticos, de conjuntos turísticos e de estabelecimentos de restauração e similares.
3. No âmbito da sua atividade, a Ré explora o estabelecimento hoteleiro, denominado “Martinhal Lisbon Cascais Family Resort Hotel”, sito na Rua do Clube, Quinta da Marinha, Cascais, Portugal.
4. No âmbito da sua atividade, a Autora organiza anualmente viagens de grupo, para diversos destinos, incluindo Portugal, no âmbito das comemorações do Pessach1.
5. Em 10.02.2020, a Autora celebrou com a Ré um acordo, no âmbito do evento denominado “KNY Special event Kosher”, nos termos do qual a Ré se obrigou a proporcionar o gozo de um total de 84 (oitenta e quatro) quartos, de diferentes tipologias, bem como a prestar um conjunto de serviços, entre os dias 7 e 19 de Abril de 2020.
6. O Pessach, também conhecido como "Páscoa judaica" ou a "Festa da Libertação", celebra a libertação dos hebreus da escravidão no Egito.
7. Por conta do acordo referido em 5, a Autora obrigou-se a entregar à Ré a quantia global de 278.240,00 euros (duzentos e setenta e oito mil, duzentos e quarenta euros).
8. Nos termos do acordo referido em 5, o valor acordado seria entregue da seguinte forma: a) A quantia de 111.296,00 euros, correspondente a 40% do preço, em Dezembro de 2019; b) A quantia de 55.648,00 euros, correspondente a 20% do preço, em Janeiro de 2020; c) A quantia de 55.648,00 euros, correspondente a 20% do preço, em Fevereiro de 2020; e d) A quantia de € 55.648,00, correspondente a 20% do preço, em 15 de Março de 2020.
9. A Autora entregou, até 12 de Março de 2020, a quantia de 257.090,00 euros (duzentos e cinquenta e sete mil e noventa euros).
10. No dia 30 de Janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o surto provocado pelo vírus SARS-COV-2 (também conhecido como novo coronavírus) uma emergência de saúde pública de âmbito internacional.
11. A declaração de uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional, de acordo com a OMS cumpre três critérios: tem de ser um acontecimento extraordinário, com risco de representar um perigo elevado à Saúde Pública de outros países e exigir uma resposta internacional coordenada.
12. A Organização Mundial da Saúde decidiu, no dia 11 de Março de 2020, classificar a doença COVID-19, provocada pelo vírus SARS-COV-2, como uma pandemia.
13. A classificação da COVID-19 como pandemia teve reflexos imediatos nos mais variadíssimos sectores de atividade económica, em especial, na indústria do turismo, pois a Organização Mundial da Saúde (“OMS”) recomendou que se evitassem viagens desnecessárias, face à necessidade de conter a propagação da doença COVID-19.
14. Os governos dos diversos países decidiram aplicar diversas medidas com vista à prevenção, contenção e mitigação da COVID-19, desde o encerramento de fronteiras, a medidas de confinamento e restrição da liberdade de circulação dos seus cidadãos ou a sujeição a isolamento profilático a todos os que se deslocavam e/ou regressavam do estrangeiro.
15. O receio de contágio pelo novo coronavírus, motivou uma forte diminuição da procura de viagens, bem como o cancelamento abrupto das reservas de alojamento em diversos empreendimentos turísticos.
16. Nos dias subsequentes à classificação da doença COVID-19 como pandemia, verificou-se o cancelamento generalizado de voos por parte das companhias áreas, incluindo em Portugal.
17. Em virtude da situação pandémica, os clientes da Autora, todos residentes no estrangeiro, foram impedidos ou fortemente desincentivados a viajar para Portugal.
18. Em 1 Abril 2020, data anterior ao início do evento denominado “KNY Special event Kosher”, a 7 de Abril de 2020, a Ré decidiu encerrar os seus estabelecimentos hoteleiros, incluindo o estabelecimento identificado em 3 por período não concretamente apurado.
19. A Autora contactou a Ré no sentido de ser reembolsada da quantia entregue a título de adiantamento do valor global acordado.
20. A Ré recusou-se a reembolsar a Autora, alegando que alguns dos pagamentos foram realizados diretamente pelos clientes da Autora, com recurso a cartão de crédito, o que poderia motivar reclamações por parte destes junto das respetivas entidades bancárias/financeiras, tendo chegado a haver pelo menos duas reclamações, inexistindo mais reclamações até à presente data.
21. A Autora reembolsou montantes adiantados pelos seus clientes, que comunicou à Ré, não tendo a Ré procedido ao reembolso da quantia entregue a título de adiantamento do valor global acordado, alegando que verificou que existia desconformidade entre os valores cobrados pela Ré a alguns clientes e os montantes reembolsados.
22. Pese embora as sucessivas solicitações nesse sentido, diretamente ou através dos mandatários da Autora, a Ré continua sem proceder ao reembolso da quantia entregue a título de adiantamento do valor global acordado, invocando, em seu benefício, a cláusula de força maior prevista de acordo denominado “contrato de hospedagem” utilizado pela Ré no âmbito da sua atividade.
23. Desde a data em que a Ré iniciou a exploração do estabelecimento hoteleiro em causa – o que ocorreu em finais de 2015 – a Autora organiza o evento denominado Kosher naquele estabelecimento hoteleiro.
24. A Autora já utilizava aquele mesmo estabelecimento hoteleiro para a organização do evento em causa antes daquela data, com a anterior entidade exploradora.
25. O evento organizado pela Autora tinha uma forte componente religiosa e implicava a organização específica e detalhada do estabelecimento hoteleiro, inclusive quanto à decoração, animação, refeições (alimentação Kosher), horários e dias temáticos – tudo previamente definido pela Autora.
26. Na sequência do início da exploração do estabelecimento hoteleiro pela aqui Ré, a Autora, representada[1] por AA, visitou as instalações do estabelecimento hoteleiro no final de 2015, tendo, na sequência dessa visita e por e-mail datado de 20 de novembro de 2015, transmitido à aqui Ré (na pessoa de BB), o interesse na realização daquele que seria o primeiro evento no estabelecimento hoteleiro sob a gestão da aqui Ré, a concretizar-se em 2016.
27. Por e-mail datado de 20 de novembro de 2015, a Autora deu indicações precisas à Ré sobre a organização do evento, dizendo o seguinte: “Na sequência da aquisição do «Onyria» pelo Grupo Martinhal e após o vosso telefonema de 9 de novembro e a minha visita de 12 de Novembro de 2015 ao «Onyria» e as nossas conversas telefónicas, tomámos boa nota e agradecemos o vosso empenho em aceitar que a KNY organize no vosso Hotel «Onyria Cascais» o seu evento da Páscoa judaica (Kosher), em regime de pensão completa, de 21 de abril a 1 de maio de 2016. (…) Encontra-se abaixo um resumo das nossas necessidades, que vos descrevi durante a minha visita. O sucesso desta operação não pode ser alcançado sem uma colaboração perfeita e total confiança entre profissionais do turismo (Grupo Martinhal e Sociedade KNY). Todos os compromissos recíprocos enumerados no contrato previamente estabelecido com o Onyria. (…) Os serviços hoteleiros serão de acordo com os padrões internacionais de um serviço 5 estrelas. Receção, Início, Concierge, Serviços de Quarto, etc... Chefes de cozinha e de pastelaria, Chefes de festas, pessoal de cozinha, Responsável do hotel e empregados de mesa para um serviço topo de gama com tudo incluído adaptado ao número de clientes. Todas estas especificações serão desenvolvidas e explicadas durante a minha visita conjuntamente com o meu cozinheiro, em Fevereiro de 2016. Compromissos da KNY: A KNY pagará, após a receção do contrato assinado pelas 2 Partes (Martinhal e KNY), um depósito de 100.000 euros ao Martinhal. Os restantes 90% do montante total do contrato serão pagos pela KNY antes de 21 de março de 2016. Todos os ingredientes e bebidas para este quadro completo serão fornecidos pela KNY. A KNY trará todos os pratos, talheres para o Pequeno-Almoço, Almoço, Jantar e Bar. A KNY vai trazer uma grande parte do equipamento de cozinha. KNY trará para o bom funcionamento e para o respeito das regras kosher (Um chef, um Rabino e 2 Supervisores). 5 Todos os produtos necessários para a realização dos menus, tais como frutas, legumes e peixe comprados localmente serão cobrados à KNY. (…) Compromissos Martinhal: Colocação das cozinhas à disposição, para as tornar Kosher, a partir do dia 19 de Abril, à noite. Esta operação será feita pelo nosso rabino, o nosso cozinheiro e os nossos 2 supervisores, que terão de ser acompanhados pelo pessoal do hotel. A descarga das mercadorias do camião, que chegará na manhã do dia 19 de Abril. O armazenamento de todos os produtos congelados, frescos e secos. O «Onyria» terá de disponibilizar todo o Hotel Onyria exclusivamente para este evento. Os 68 Quartos + as 4 Suites + as 12 Vilas Duplex. Todos os lounges e restaurantes. A piscina atlântica. O equipamento de cozinha necessário adaptado a um catering à la carte. O pessoal necessário e suficiente para fornecer este serviço de 5 estrelas. A decoração floral do Lobby, do Restaurante, dos acessórios do restaurante e a decoração das 2 grandes salas no primeiro andar (assim como um equipamento de cozinha adequado para servir refeições no primeiro andar). Coberturas e objetos de vidro para todas as refeições. Chapéus-de-sol para os terraços dos restaurantes e para a piscina atlântica. Serviços de Spa com tarifas preferenciais para os nossos clientes”.
28. A Ré, na pessoa de CC (Responsável de vendas da Ré), transmitiu à Autora, na pessoa de AA, por e-mail datado de 30 de novembro, que o acordo a celebrar entre as partes estava a ser elaborado pela Ré e seria remetido à Autora para análise em data próxima.
29. A Ré, por e-mail de 4 de dezembro de 2015, comentou cada um dos pedidos que a Autora havia efetuado em 20 de novembro de 2015.
30. Após vários contactos telefónicos entre as partes, por e-mail datado de 17 de dezembro de 2015, a Ré, na pessoa de CC, remeteu à Autora a minuta de acordo a celebrar entre as partes, salientando especificamente que o seu teor deveria ser “lido com cuidado e para confirmação de que tudo estava de acordo com o plano”.
31. No e-mail datado de 17 de dezembro de 2015 a Ré salientou à Autora, na pessoa de AA, que carecia de respostas da Autora por escrito, não obstante a preferência do Sr. AA em estabelecer contactos telefónicos “Compreendo que prefira falar do que escrever, embora a resposta aos nossos emails seja solicitada como prova de compreensão e compromisso com o que está a ser discutido. Como é do seu conhecimento, por telefone pode haver mal-entendidos e podemos esquecer os detalhes dos tópicos discutidos”.
32. A minuta de acordo remetida à Autora por e-mail datado de 17 de dezembro de 2015, incluía uma cláusula de força maior (clause of force majeure) com teor idêntico ao dos demais contratos que viriam a ser (posteriormente) celebrados entre as partes, sendo o seguinte o seu teor: “O cumprimento das obrigações estabelecidas no presente contrato está sujeito a fenómenos naturais, guerras, atos governamentais, terrorismo, catástrofe, greves (exceto as que envolvam os funcionários do Hotel), desordem civil, restrição de meios de transporte ou a qualquer outra situação de emergência não controlável pelas partes, tornando desaconselhável, ilegal ou impossível o cumprimento das suas obrigações nos termos do presente contrato. Em caso de cancelamento por motivo de Força Maior, o Hotel apenas cobrará 50% do valor total da reserva. 50% desta penalização será considerada como um adiantamento para uma reserva futura, a qual deverá ser realizada no prazo de um ano”.
33. A Autora, confrontada com aquela minuta de contrato, que lhe foi remetida por e-mail datado de 17 de dezembro de 2015 e do qual constava a menção expressa para a sua apreciação detalhada, respondeu por e-mail de 28 de dezembro de 2015, dizendo expressamente ter “(…) reparado que vocês copiaram o contrato que fizemos com a Onyria Hotels em anos anteriores”, dizendo concretamente o seguinte: “Notei que copiou o contrato que fizemos com o Hotel Onyria nos anos anteriores. Mas não menciona implicitamente que todo o Hotel Onyria é reservado exclusivamente para a KNY. Durante as nossas várias discussões tínhamos deixado claro que os salões do primeiro andar seriam convertidos num restaurante com um layout e decoração digna de um 5 estrelas (como foi feito no ano passado). Ficou acordado que seria instalada uma cozinha no 1.º andar para servir refeições à la carte. Não ESPECIFICA nem o número nem as qualificações das pessoas para a cozinha e para a pastelaria. É muito importante e essencial a qualidade da preparação das refeições. Entende-se que todos os menus serão estabelecidos em estreita cooperação com os seus chefs de cozinha, conforme nossa visita de fevereiro. Estamos de acordo quanto às modalidades, mas queremos ter a certeza de que teremos a mesma qualidade de benefícios e serviços, como no ano passado. Gostaria de ter uma conferência telefónica consigo antes de enviar de volta o contrato (com certos esclarecimentos). Agradeço a gentileza de me dizer quando poderia telefonar-lhe. Envie-nos também as suas referências bancárias para efetuar uma transferência de dinheiro”.
34. Por e-mail datado de 19 de dezembro de 2016, a Ré, na pessoa de DD, remeteu à Autora, na pessoa de AA, o teor da minuta de contrato a celebrar entre as partes e relacionado com o evento que ocorreria no ano de 2017.
35. Na sequência daquele e-mail, a Autora, na pessoa de AA, por e-mail datado de 10 de janeiro de 2017, teceu comentários à mencionada minuta de contrato e comentou-a (conforme minuta de contrato comentada pela Autora, dizendo concretamente o seguinte: “Se nos limita ao número de hóspedes no hotel (que está abaixo da capacidade dos quartos do hotel) Embora tenha recebido as novas tarifas apenas muito tardiamente, esse aumento de 30% nas vossas tarifas e que apenas recebi o contrato em 19 de dezembro de 2016. Que acrescentou um suplemento para pagar pelos clientes que ficariam no exterior. Aceitei provar-vos a nossa boa fé e a nossa seriedade. No entanto, ao ler o contrato, descobri muitas novas restrições para a KNY que não eram esperadas face à nossa reunião em meados de Novembro. Se nos limita ao número de hóspedes no hotel (que está abaixo da capacidade dos quartos do hotel) Saiba que o seu contrato, que deveria ter sido semelhante ao do ano passado, me aterrorizou tanto que há mudanças e restrições especialmente para a KNY sem equivalência para o hotel. Especialmente porque metade dos quartos não serão ocupados na noite de 9 de Abril. Espero ter feito todas as modificações necessárias. 8 Acredito que a reunião de Fevereiro trará mais clareza ao contrato Encontre em anexo o contrato com as nossas retificações”.
36. À semelhança do que já havia ocorrido quanto ao acordo referente ao evento de 2016, também a minuta do acordo atinente ao evento de 2017 incluía uma cláusula de força maior, cuja redação era exatamente a mesma que já havia sido feita constar do contrato de 2015, com seguinte teor: “O cumprimento das obrigações estabelecidas no presente contrato está sujeito a fenómenos naturais, guerras, atos governamentais, terrorismo, catástrofe, greves (exceto as que envolvam os funcionários do Resort), desordem civil, restrição de meios de transporte ou a qualquer outra situação de emergência não controlável pelas partes, tornando desaconselhável, ilegal ou impossível o cumprimento das suas obrigações nos termos do presente contrato. Em caso de cancelamento por motivo de Força Maior, o Resort apenas cobrará 50% do valor total da reserva. 50% desta penalização será considerada como um adiantamento para uma reserva futura, que tem de ser efetuada no prazo de um ano”.
37. A Autora aceitou a cláusula de força maior, não tecendo qualquer comentário quanto ao seu teor ou ao equilíbrio que lhe estava (e está) subjacente;
38. A Autora teceu comentários àquela minuta de acordo, que se encontram marcados a encarnado na minuta, relativamente às questões que queria ver alteradas.
39. O acordo veio a ser assinado pela Autora em 10 de março de 2017, com a cláusula de força maior.
40. O modus operandi que Autora e Ré seguiram na negociação dos eventos de 2016 e de 2017 foi mantido na negociação dos eventos que se realizaram nos anos de 2018 e de 2019 e do evento que estava agendado realizar-se em 2020.
41. Quanto ao evento que teria lugar em 2018, a minuta de acordo foi remetida pela Ré, na pessoa de DD, à Autora, na pessoa de AA, por e-mail datado de 9 de agosto de 2017.
42. A Autora respondeu no dia 14 de setembro de 2017, sem qualquer referência à minuta de contrato que lhe havia sido remetida, dizendo o seguinte “Por favor, informe-me sobre o meu pedido relativo a melhorias na cozinha, bem como no serviço e nas condições de pagamento dos ingredientes O BB tinha-me garantido que o aumento para 2018 seria mínimo, dado o que fez para 2017”.
43. Entre 26 de setembro de 2017 e 11 de outubro de 2017 as partes trocaram e-mails tendo em vista fixar uma data para a realização de uma reunião para discussão dos termos do evento de 2018, na sequência do que, por e-mail de datado 11 de outubro, a Ré, na pessoa de DD, questiona a Autora se já tinha tido oportunidade de analisar a minuta de acordo que lhe havia sido remetida.
44. A Autora não respondeu por escrito àquele e-mail, mas na sequência da reunião ocorrida entre as partes, no estabelecimento hoteleiro explorado pela Ré, em 7 de novembro de 2017, a Autora solicitou algumas alterações à minuta de acordo que havia sido por si recebida.
45. A Ré, por e-mail datado de 14 de novembro de 2017, remeteu à Autora a dita versão do acordo, já com as alterações solicitadas pela própria Autora, na pessoa de AA.
46. Por a Autora não remeter o acordo já assinado à Ré (quando o mesmo já incluía as alterações solicitadas pela Autora), por e-mail datado de 10 de janeiro de 2018, a Ré, na pessoa de BB, solicitou à Autora, na pessoa de AA, o envio da versão assinada do acordo.
47. O referido acordo apenas foi assinado no dia 21 de fevereiro de 2018.
48. Tanto as minutas de acordo remetidas pela Ré à Autora por e-mails datados de 9 de agosto de 2017 e de 14 de novembro de 2017, como a versão assinada do acordo, incluíam a mesma cláusula de força maior que já constava dos acordos anteriormente celebrados entre as partes.
49. Quanto ao evento que teria (e teve) lugar em 2019, a minuta de acordo foi remetida pela Ré, na pessoa de DD, à Autora, na pessoa de AA, por e-mail datado de 5 de setembro de 2018.
50. Na sequência do envio daquela minuta de acordo, Autora e Ré trocaram impressões telefónicas na semana de 15 a 19 de outubro, tendo a Ré voltado a remeter à Autora a minuta de acordo anteriormente enviada por e-mail datado de 19 de outubro de 2018.
51. A Autora respondeu por e-mail datado de 21 de outubro de 2018, comentando cada uma das páginas da minuta de contrato que lhe havia sido remetida, dizendo concretamente o seguinte, com referência específica a cada uma das páginas da minuta do contrato por si recebido (Doc. n.º 16 que se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais): “(…) Gostaria e espero ter uma resposta positiva sobre os seguintes pontos: Os quartos livres para o meu pessoal e para mim que terei de chegar na terça-feira 16, quarta-feira 17 e domingo 28 de Abril. Decoração floral para toda a estadia O Martinhal encarrega-se dos camiões frigoríficos A não faturação dos 10% para as compras efetuadas no Martinhal Nenhum aumento para 2020 Uma contribuição em equipamento de cozinha para melhorar o serviço Abaixo estão as alterações a serem feitas ao contrato: Página 1 Os hóspedes podem ficar até 29 de Abril. O equipamento Martinhal não deve ser retirado até 28 de Abril após o pequeno almoço, depois de o equipamento KNY ter sido arrumado. Página 2 A cozinha terá de ser limpa e disponível para kosherisation na quarta-feira, 17 de Abril, o mais tardar às 19 horas. A instalação terá de ser feita para o saco na quinta-feira ao meio-dia. Deve haver pessoal do Martinhal com o Rabino para a kosherização das cozinhas. Página 3 11 Seria desejável para um melhor serviço ter 1 empregado de mesa para 12 clientes e ter bons maitres d'hotel. As datas do Seder são sexta-feira à noite, 19 de Abril e sábado à noite, 20 de Abril. Refeições para as crianças nas noites do Seder no Pavilhão. Ponto B De 17 a 28 de Abril Página 4 Programa Point E KNY antes de 28 de Fevereiro Ponto G Aluguer de espaço Seder Jantares até 1h30 Ponto L Teste de vinho Diner/cocktail Decoração especial tem de ser incluída Página 5 Ponto O Para recolher todos os materiais até 60 dias e 15 euros por hora por funcionário por hora Ponto P a partir de 18 de Abril às 11:00 A cozinha terá de ser limpa e disponível para kosherisation na quarta-feira, 17 de Abril, o mais tardar às 19 horas. Deve ser preparado para o lanche na quinta-feira 18 de Abril ao meio-dia. Página 6 242 pessoas ( Sem o nosso pessoal e a minha família) Quartos gratuitos para o meu pessoal e para mim, que terei de chegar na terça-feira 16 e quarta-feira 17 e domingo 28 de Abril. Página 7 Agenda de pagamentos 20% em 30 de Novembro 20% Em 31 de Dezembro 20% em 31 de Janeiro 20% Em 28 de Fevereiro 20% Em 31 de Março”.
52. Entre 30 de outubro de 2018 e 11 de dezembro de 2018 as partes discutiram detalhadamente sugestões de alteração ao contrato: a Ré comentou o e-mail anterior da Autora por e-mail datado de 30 de outubro de 2018 (remetido à Autora por DD, e correspondente aos comentários sombreados a amarelo); a Autora teceu comentários sobre os comentários da Ré por e-mail datado de 21 de novembro de 2018 (devidamente identificados a cor encarnada); a Ré, por e-mail datado de 23 de novembro de 2018, remetido por BB, comentou os mais recentes comentários da Autora (tecendo tais comentários a cor verde); a Autora, por e-mail datado de 26 de novembro de 2018, respondeu às dúvidas anteriormente suscitadas pela Ré (e fê-lo a cor azul); a Autora solicitou mais alterações ao contrato por e-mail datado de 11 de dezembro de 2018; a Ré, na pessoa de DD, comentou tais alterações por e-mail datado de 11 de dezembro de 2018.
53. Na sequência daquelas negociações detalhadas, por e-mail datado de 21 de dezembro de 2018 (reiterado a 9 de janeiro de 2019), a Ré, na pessoa de DD, remeteu à Autora a minuta de acordo a celebrar, a qual já refletia o entendimento alcançado entre as partes quanto às alterações a introduzir em tal acordo.
54. O acordo, relativamente ao evento que se realizou em 2019, foi assinado no dia 25 de fevereiro de 2019.
55. O acordo assinado em 25 de fevereiro de 2019 incluía a mesma cláusula de força maior que já constava dos acordos anteriormente negociados e celebrados entre Autora e Ré.
56. Antes da celebração do acordo correspondente ao evento que se realizaria no ano de 2020, Autora e Ré também negociaram os termos e condições do evento e, bem assim, o teor do acordo a celebrar entre as partes (muito ao contrário do alegado pela Autora).
57. Por e-mail de 13 de novembro de 2019, a Ré, na pessoa de DD, remeteu um e-mail à Autora, na pessoa de AA, solicitando o esclarecimento de algumas dúvidas necessárias à elaboração da minuta de contrato.
58. Face aos esclarecimentos solicitados no e-mail anterior, e na sequência de contactos telefónicos havidos entre as partes para a especificação dos detalhes solicitados pela Autora, por e-mail datado de 23 de dezembro de 2019, a Ré, na pessoa de DD, remeteu à Autora, na pessoa de AA, a minuta de acordo a celebrar – a qual apenas foi possível, como se disse, após os contactos havidos entre as partes e os esclarecimentos e comentários da Autora à Ré.
59. Na ausência de resposta da Autora à minuta de acordo remetida pela Ré, por e-mails datado de 3 de janeiro e de 21 de janeiro de 2020, a Ré, na pessoa de DD, reiterou à Autora que o acordo ainda não se encontrava assinado, mais solicitando que a Autora clarificasse se se deslocaria a Portugal previamente à realização do evento.
60. Em resposta, a Autora, por e-mail datado de 27 de janeiro de 2020, confirmou à Ré que se deslocaria a Portugal e solicitou o agendamento de uma reunião para o dia 10 de fevereiro de 2020.
61. A reunião foi confirmada por e-mail da Ré, na pessoa de DD, daquele mesmo dia 27 de janeiro de 2020.
62. Na reunião havida entre as partes a Autora aceitou os termos do acordo a celebrar entre as partes e a minuta de acordo que lhe havia sido anteriormente remetida, tendo o acordo sido assinado naquele mesmo dia 10 de fevereiro de 2020 e à Autora logo entregue uma cópia do acordo por si assinado.
63. As partes convencionaram e aceitaram a mesma cláusula de força maior que já constava dos acordos anteriormente negociados e celebrados entre Autora e Ré.
64. No que concerne às datas de realização do evento, ao número de pessoas, aos dias concretos de realização de eventos ou de animação, o que consta do acordo assinado pelas partes em 2020 resulta das informações e especificações que a Autora detalhou à Ré.
65. As condições e cláusulas do acordo de 2020, foram precedidas de negociações detalhadas entre as partes desde a data em que a Autora organizou, pela primeira vez, o evento em causa no estabelecimento hoteleiro já sob a gestão da Ré.
66. A cláusula de força maior, foi sugerida pela Ré e aceite pelas partes em todos os acordos celebrados, desde o acordo negociado desde 2015 e celebrado em 2016.
67. Desde 2015 que a Autora, em negociações com a aqui Ré, teceu muitos comentários sobre o teor integral das minutas de acordo que anualmente a Ré remetia à Autora para que esta comentasse.
68. Desde 2015 que a Autora aceitou, não fez qualquer reparo, nem pediu a eliminação, alteração ou modificação daquela cláusula de força maior que consta dos acordos aceites e assinados pela Autora desde o ano de 2016.
69. Inexistiu imposição, à Autora, da cláusula de força maior, nem a Autora solicitou à Ré a sua eliminação, alteração ou modificação.
70. Todas as cláusulas do acordo estavam, e sempre estiveram, na disponibilidade da Autora, para sobre elas negociar, razão pela qual a Ré sempre remeteu à Autora a minuta dos acordos, na sua totalidade, nunca tendo a Ré limitado quaisquer dos comentários, considerações ou sugestões da Autora quanto ao que quer que fosse.
71. A Autora tinha tempo para analisar as minutas de acordo que lhe eram remetidas pela Ré, com muitos meses de antecedência antes da sua assinatura final.
72. Vários foram os contactos telefónicos e as reuniões havidas entre as partes em que todo o conteúdo de cada uma das minutas de contratos foi explicado pela Ré à Autora, na pessoa do seu gerente AA.
73. A Autora é uma sociedade cujo objeto implica a celebração de acordos semelhantes ao celebrado com a Ré, bem como contratos diretos com os seus clientes, que usufruem dos eventos que organiza.
74. A Autora, no seu próprio site e a propósito dos termos e condições das viagens que organiza, diz expressamente aos seus clientes que: “Em caso de eventos excecionais fora do nosso controlo, reservamo-nos o direito de alterar ou cancelar os nossos pacotes. Recomendamos-lhe que faça um seguro de cancelamento”.
75. Todos os acordos celebrados entre Autora e Ré, incluindo o celebrado em 2020, foram alvo de negociação entre as partes, pelo que as cláusulas foram comunicadas à Autora, assim como foi discutido o seu conteúdo, tendo a Autora toda a liberdade para colocar quaisquer questões ou discutir quaisquer alterações.
76. A versão final do acordo para o ano de 2020, negociado pelas partes durante meses, foi enviado ao gerente da Autora em 23.12.2019, ficando, desde logo, na disponibilidade deste para qualquer comentário ou para o assinar, se assim o entendesse.
77. O acordo previa o uso exclusivo de todo o estabelecimento hoteleiro para o evento da Autora, nos aludidos dias 7 a 19 de abril de 2020.
78. Face às repercussões financeiras, para a Ré, de manter as respetivas instalações abertas ao público, sem qualquer ocupação, ou com ocupação residual, a Ré decidiu, numa por questões financeiras e motivada pela inexistência de reservas, encerrar o estabelecimento hoteleiro em causa.
79. O estabelecimento hoteleiro gerido pela Ré destina-se a viagens de lazer – e não a viagens de negócio –, pelo que na medida em que foi imposto, nos acima referidos Decretos 2-A/2020, 2-B/2020 e 2-C/2020, um dever geral de recolhimento dos cidadãos (exceto para as situações ali identificadas, que não incluíam menção a viagens de lazer, mas apenas a deslocações para o exercício de atividades que a tal obrigassem), também por este fundamento se não justificava a manutenção do estabelecimento hoteleiro da Ré aberto.
80. Quanto ao período da Páscoa, o Decreto 2-B/2020, no seu artigo 6.º, proibiu os cidadãos de circular “para fora do concelho de residência habitual no período compreendido entre as 00:00h do dia 9 de abril e as 24:00h do dia 13 de abril, salvo por motivos de saúde ou por outros motivos de urgência imperiosa”.
81. A Ré estava em condições de disponibilizar o estabelecimento hoteleiro à Autora, e em exclusivo (como acordado), prestando os respetivos serviços nos termos do acordo, porém a Autora comunicou à Ré que não era possível a realização do evento pois os seus clientes estavam impedidos de viajar.
82. A Ré dedicou tempo e esforço, nas semanas que antecederam a reserva efetuada pela Autora, a fim de assegurar que o estabelecimento hoteleiro estaria preparado e os funcionários treinados e preparados para receber os clientes da Autora.
83. Na sequência da situação pandémica provocada pelo SARS-CoV-2, a Ré sofreu um prejuízo de 162.968 euros por referência ao mês de abril de 2020, pois a Ré registou uma taxa de ocupação total do estabelecimento hoteleiro de 0%, correspondente a um total de 0 (zero) hóspedes.
84. No mês de abril de 2020 a Ré ainda assim conseguiu obter uma receita mínima de € 2.573, das quais € 548 em Alojamento, € 3.111 em Alimentação e Bebidas (F&B, food and beverage), € 0 no SPA e nos serviços a crianças e lazer, e € 11 em serviços operacionais menores (entre os quais venda de jornais, serviços telefónicos e internet, vídeos).
85. As despesas efetuadas naquele mês atingiram o total de € 85.541, sendo que € 1.250 correspondem a custos de vendas, € 59.417 a despesas com salários e outro, e € 24.874 a outras despesas (que incluem custos com os quartos de hotel, alimentação e bebidas, serviços de SPA, crianças e lazer, com serviços operacionais menores, custos administrativos, serviços de venda e marketing, recursos humanos, manutenção do estabelecimento e custos relacionais com segurança, utilitários, lavandaria e restauração).
86. Acresce o valor de € 80.000 de renda paga pela Ré para a utilização do estabelecimento hoteleiro.
87. Foi na sequência do cancelamento do evento da Autora que implicava a exclusividade do estabelecimento hoteleiro da Ré entre 7 e 19 de abril de 2020 e da circunstância de a Ré já não conseguir garantir níveis de ocupação mínimos para o seu estabelecimento hoteleiro, que a Ré avaliou os custos-benefícios de manter o estabelecimento hoteleiro em funcionamento, procedendo ao seu encerramento.
88. Em face do cancelamento do evento, a Ré apresentou à Autora, uma minuta de acordo relativo a 2021, que já considerava a aplicação do montante de € 69.560,00, apesar de aquela minuta fazer referência a uma transferência de € 139.120,00, montante que partia do pressuposto errado de que o preço total do contrato havia sido pago pela Autora à Ré, o que não era, nem foi, o caso (pelo que o valor que poderia ser recebido pela Autora, nos termos do acordo, seria apenas € 117.970,00, conforme resulta do anexo II daquele acordo, e quanto a esta minuta de acordo a Ré a Autora não a aceitou.
89. Parte do preço convencionado pelas partes no acordo, havia sido recebido pela Ré de pessoas singulares (alegadamente clientes da Autora) e a Autora apenas havia procedido ao pagamento diretamente à Ré da quantia de € 40.000,00.
90. A Ré apenas aceitava proceder ao pagamento à Autora da quantia de € 117.970,00 conquanto a Autora formalmente se responsabilizasse perante qualquer pagamento a qualquer pessoa singular que houvesse procedido à transferência de quantias para a Ré para pagamento do preço previsto no contrato.
91. A Ré pretendia acautelar que não se encontraria, futuramente, numa situação em que os clientes da Autora viessem disputar os montantes que a Ré já houvesse entregue à Autora, nos termos do acordo, não tendo a Autora assumido perante a Ré tal responsabilidade.
92. Em execução dos acordos celebrados entre Autora e Ré era habitual que parte do preço acordado fosse transferido para a Ré diretamente de algumas pessoas singulares, clientes da Autora, por meio de pagamentos efetuados através dos respetivos cartões de crédito daquelas pessoas singulares.
93. Por comunicações recebidas pela Ré dos Serviços a Estabelecimentos American Express, datadas de 20.03.2020 e de 08.04.2020, a Ré foi interpelada para remeter a tais serviços “documentação justificativa para a transação” (uma correspondente à transação de 05.12.2019, no montante de € 2.000,00, e outra correspondente à transação de 20.02.2020, no montante de € 3.280,00), considerando que em tais casos aqueles concretos clientes da Autora (pessoa singulares) alegavam, respetivamente, “ter cancelado a reserva em 04.03.2020, devido ao coronavírus” e “estar a aguardar o reembolso do valor desta transação”.
94. No e-mail datado de 10.09.2020, remetido pela Ré, na pessoa do seu colaborador, EE, à Autora, na pessoa do Ilustre Advogado, a Ré referiu expressamente o seguinte: “Por favor, forneça-nos a respetiva documentação, pois, por razões óbvias, só podemos proceder à transferência de fundos depois de termos podido rever tal documentação. Deixem-me ser muito claro, se tal documentação for recebida e tivermos visibilidade suficiente de que os clientes do vosso cliente foram satisfeitos, comprometemo-nos a transferir imediatamente os fundos devidos ao seu cliente tendo em conta a situação de «Força Maior»”.
95. Na sequência de contactos entre as partes a propósito dos pagamentos efetuados pelas aludidas pessoas singulares, a Autora, na pessoa do seu Advogado, remeteu à Ré um e-mail com documentos demonstrativos dos alegados comprovativos de pagamentos de valores às pessoas singulares que haviam liquidado à Ré parte do preço do acordo.
96. A Ré, recebeu os comprovativos de pagamento que a Autora havia efetuado às pessoas singulares, procedeu à respetiva análise, comparando tais valores com aqueles que haviam sido por si (Ré) recebidos das pessoas singulares.
97. Apesar da Ré ter logrado compatibilizar os comprovativos de pagamento efetuados pela Autora a algumas das pessoas singulares, a verdade é que foram identificadas pela Ré várias incongruências em relação aos pagamentos recebidos e aos reembolsos efetuados pela Autora.
98. O que motivou que a Ré, na pessoa do seu colaborador EE, remetesse à Autora, na pessoa do seu Advogado, um documento Excel identificando as concretas discrepâncias entre os valores recebidos da Ré de pessoas singulares e os valores pagos pela Autora a tais pessoas singulares, ao qual não respondeu a Autora.
99. Em todos os contratos de grupo celebrados com clientes do hotel, existe a mesma cláusula de força maior.
B - Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa não resultou demonstrado:
1) Que as cláusulas contidas no acordo denominado “contrato de hospedagem” utilizado pela Ré no âmbito da sua atividade, em especial a cláusula de força maior invocada pela Ré para obstar ao reembolso da quantia paga a título de adiantamento do preço, foram elaboradas sem prévia negociação individual, pois a Autora se limitou a subscrever o acordo.
2) Que a Ré não concedeu à Autora possibilidade de sugerir quaisquer alterações ao conteúdo do acordo celebrado, tendo a Autora se limitado a aceitar, em bloco, as condições propostas.
3) Que as cláusulas contidas no acordo denominado “contrato de hospedagem”, em especial a cláusula de força maior, não foram comunicadas pela Ré à Autora, ou que a Ré tenha recusado explicar à Autora o sentido e o alcance das cláusulas contratuais inseridas no referido acordo denominado “contrato de hospedagem, assim como que a Autora tenha solicitado qualquer esclarecimento.
4) Que a Ré tenha recusado explicar à Autora as consequências da verificação de uma situação de caso fortuito ou de força maior, designadamente, o pagamento, pela Autora, de uma cláusula penal, assim como que a Autora tenha solicitado qualquer esclarecimento.
5) Que à Autora não foi explicado o que estava a aceitar, sendo que a comunicação das cláusulas contratuais gerais não foi feita de forma adequada e efetiva o que impediu a Autora de ter compreensão das consequências que para si adviriam no caso da verificação de situação de força maior.
6) Que a cláusula de força maior não admitia negociação.
7) Quais os prejuízos, em concreto, que a Ré sofreu pelo facto de não ter sido realizado o evento acordado com a Autora.
8) Que a Autora, devolveu a totalidade do valor cobrado a cada um dos seus clientes, ou se foi subscrito e assinado algum seguro pelos clientes da Autora.


6. Do mérito do recurso


7.1. Da ampliação da matéria de facto:

Entende a apelante que o facto alegado pela recorrida no art.º 7º da contestação (A Autora no âmbito da sua actividade organiza viagens Kosher de prestígio em hotéis de luxo, cadeias de hotéis de renome mundial há mais de 40 anos ) e, no seu entender, demonstrado no documento nº1 junto com tal articulado deveria ter sido contemplado no rol dos factos provados.

Não justifica a razão de tal entendimento, nem a mesma se descortina já que nos pontos 1, 4 e 23 está bem descrita a actividade da Autora, sendo que neles está contemplada a organização de viagens de grupo dentre as quais as viagens Kosher , pelo menos desde 2015.

Além do mais, o seu objecto social está provado por certidão.

Termos em que improcede a ampliação requerida.

7.2. Impugnação da matéria de facto

Refere a apelante que no ponto 26 dos factos provados ficou indevidamente consignado ser o senhor AA gerente da Autora, o que é contrariado pelo doc. 1 junto com a petição inicial.

Tem razão a apelante. Do documento em apreço não se extrai ser tal pessoa o legal representante da Autora (se bem que tenha um apelido idêntico) mas sim FF ( cfr. fls. 478).

Assim elimina-se a referência a gerente passando a constar que a Autora esteve representada por aquela pessoa.

7.3. Reapreciação jurídica da causa

7.3.1. Entende a recorrente que a recorrida deveria ter sido condenada no pagamento de € 257.090,00 - correspondente ao montante que a recorrente lhe entregou - em decorrência do disposto no artigo 5º do Decreto-Lei nº 17/2020, de 23.4. que considera ser aplicável ao caso.

A recorrida insurge-se contra a aplicação de tal diploma- entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de Setembro – porque acolhe um regime específico dirigido às viagens organizadas por agências de viagens e turismo, ao cancelamento de reservas em empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento e às relações entre agências de viagens e turismo, operadores de animação turística e os empreendimentos turísticos e os estabelecimentos de alojamento local, sendo inaplicável à Autora.

Com efeito, as agências de viagens e turismo estão definidas no art.º 2º, nº1, al. b) do Decreto-Lei 17/2018, de 8 de Março[2] como “as pessoas singulares ou coletivas que actuem como operador e desenvolvam as actividades referidas no n.º 1 do artigo seguinte”, ou seja, que desenvolvam, a título principal, as seguintes actividades próprias : “a) A organização e venda de viagens organizadas e a facilitação de serviços de viagem conexos, quando o facilitador receba pagamentos do viajante, respeitantes aos serviços prestados por terceiros; b) A representação de outras agências de viagens e turismo, nacionais ou estrangeiras, bem como a intermediação na venda dos respetivos produtos; c) A reserva de serviços em empreendimentos turísticos e em estabelecimentos de alojamento local; d) A venda de bilhetes e reserva de lugares em qualquer meio de transporte; e) A recepção, transferência e assistência a turistas”.

Acresce que, nos termos do art.º4º, nº1 do mesmo diploma, apenas as pessoas inscritas no Registo Nacional das Agências de Viagens e Turismo (RNAVT) ou que operem nos termos do artigo 10.º ( i.e. As agências de viagens e turismo legalmente estabelecidas noutro Estado-Membro da União Europeia ou do espaço económico europeu para a prática da atividade de agência de viagens e turismo podem exercer essa mesma atividade em território nacional, de forma ocasional e esporádica, devendo apresentar previamente ao Turismo de Portugal, I. P., a documentação, em forma simples, comprovativa da contratação de garantias equivalentes às previstas nos artigos 37.º, 38.º, 41.º e 42.º) podem, em regra, exercer em território nacional as actividades referidas.

Por seu turno, o regime de acesso e exercício da atividade das Empresas de Animação Turística, incluindo os operadores Marítimo-Turísticos, encontra-se regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 108/2009, de 15 de maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 95/2013, de 19 de julho e pelo Decreto-Lei n.º 186/2015, de 3 de setembro.

A empresa de animação turística é a pessoa singular ou coletiva que desenvolva, com caráter comercial, alguma das atividades de animação turística prevista no artigo seguinte “, a saber :“actividades lúdicas de natureza recreativa, desportiva ou cultural, que se configurem como atividades de turismo de ar livre ou de turismo cultural e que tenham interesse turístico para a região em que se desenvolvam, tais como as enunciadas no anexo ao presente decreto -lei, que dele faz parte integrante.”- cfr. art.º 2º, nº1 e art.º3º, nº1 do citado regime.

Para desenvolver atividades de animação turística ou operador marítimo-turístico, com carácter comercial, é necessário estar registado no Registo Nacional dos Agentes de Animação Turística (RNAAT) – cfr. art.º 5º.

Tratando-se de as pessoas singulares ou coletivas estabelecidas noutro Estado -Membro da União Europeia ou do espaço económico europeu e que aí exerçam legalmente atividades de animação turística podem, por regra, exercê-las livremente em território nacional, de forma ocasional e esporádica, em regime de livre prestação de serviços, devendo, no entanto, antes do início da atividade, apresentar, ao Turismo de Portugal, I. P., mera comunicação prévia de onde conste a sua identificação, assim como a sede ou estabelecimento principal, acompanhada de documentação, em forma simples, comprovativa da contratação, em Portugal ou noutro Estado -Membro, dos seguros obrigatórios, ou de seguros, garantias financeiras ou instrumentos equivalentes ( cfr. art.º 29º, nº1).

Ora, como resultou provado, a Autora é uma sociedade que se dedica à organização de seminários e de todos os eventos, importação e exportação de todos os produtos e mercadorias relacionados com essas actividades e é no âmbito da sua actividade que organiza anualmente viagens de grupo, para diversos destinos, incluindo Portugal, no âmbito das comemorações do Pessach.

Por conseguinte, a Autora é essencialmente uma empresa de organização de eventos não sendo a organização e venda de viagens, nem a animação turística a sua actividade principal mas tão só eventual ou complementar.

Não tendo resultado provado ser a Autora uma agência de viagens e turismo ou um operador de animação turística, devidamente credenciada nos termos da legislação que os regula, fenece um pressuposto da aplicação do disposto no artigo 5º do D.L. 17/2020, de 23.4.

Por conseguinte, este regime não lhe é aplicável, improcedendo a pretensão recursiva da apelante nesse sentido.

7.3.2. Como se viu, a recorrente e Autora na acção peticionou que lhe fosse restituída a integralidade da quantia que havia entregue à recorrida/ré em decorrência do contrato entre ambas ajustado, tendo o Tribunal “ a quo” , fazendo aplicação da cláusula “ de força maior” nele contemplada, determinado que do valor entregue pela Autora até 12.3.2020 (€ 257.090,00) a Ré apenas teria de lhe devolver 145.794 euros, acrescido de juros de mora vincendos a contar do trânsito em julgado da sentença, e que 55.648 euros deveriam ser utilizados numa futura reserva. Os outros 55.648 euros quedariam para a recorrida a “a título de indemnização pelo incumprimento”.

Entende, a recorrente – e como vimos é este apenas o objecto do recurso – que a “indemnização” atribuída à recorrida na sentença deve descer para o valor de € 33.408,44.

Atentemos no teor da cláusula em apreço e que é o seguinte: “O cumprimento das obrigações estabelecidas no presente contrato está sujeito a fenómenos naturais, guerras, atos governamentais, terrorismo, catástrofe, greves (exceto as que envolvam os funcionários do Resort), desordem civil, restrição de meios de transporte ou a qualquer outra situação de emergência não controlável pelas partes, tornando desaconselhável, ilegal ou impossível o cumprimento das suas obrigações nos termos do presente contrato. Em caso de cancelamento por motivo de Força Maior, o Resort apenas cobrará 50% do valor total da reserva. 50% desta penalização será considerada como um adiantamento para uma reserva futura, que tem de ser efetuada no prazo de um ano.”

Trata-se efectivamente de uma cláusula de força maior uma vez que dispõe sobre as consequências da impossibilidade superveniente da prestação em decorrência dos eventos nela elencados (e que não são imputáveis ao devedor).

Aliás, tal elenco de eventos reconduzíveis à noção de “força maior” contemplam todos os seus pressupostos clássicos: imprevisibilidade, irresistibilidade e exterioridade à vontade das partes.

Ambas estão de acordo que a pandemia de Covid 19 é um dos eventos contemplados na cláusula que pode, por isso, ser accionada e aplicada ao caso (uma vez que a declaração da sua nulidade pretendida pela autora, ora recorrente, foi improcedente).

Porém, a recorrente entende que a mesma contem uma “cláusula penal” desproporcionada requerendo a sua redução.


Desde já se diga que não estamos em presença de uma cláusula penal porquanto a mesma pressupõe o incumprimento culposo da prestação pelo devedor.

Aliás, um dos modos de o devedor se eximir à indemnização estipulada numa cláusula penal é provando que o incumprimento se não deveu a culpa sua…

Não sendo a cláusula em apreço (também) uma cláusula penal não vemos que a sua redução possa ter lugar nos termos do art.º 812º do Cód Civil.

Nada impede que uma cláusula de força maior preveja os moldes em que se fará a distribuição do risco da frustração do negócio por cada uma das partes.
E não há dúvidas que no caso o negócio se frustrou !

Nesta cláusula, como se viu, previu-se que a recorrida “apenas cobrará 50% do valor total da reserva. 50% desta penalização será considerada como um adiantamento para uma reserva futura, que tem de ser efetuada no prazo de um ano.”
Ora, o valor total da reserva era, como resultou provado, de 278.240,00 euros (duzentos e setenta e oito mil, duzentos e quarenta euros)- cfr. ponto 7.
Metade deste valor, ou seja, 139.120,00 euros ficaria para a Ré/recorrida mas metade do mesmo, ou seja, 69.560,00 euros, seria passível de ser aplicado numa reserva futura a ter lugar no prazo de um ano.
Tendo a Recorrente entregue à Recorrida 257.090,00 euros, teria esta de lhe devolver 117.970,00 euros.

Em conclusão: A aplicação da cláusula determina uma perda para a recorrida de 75% do valor total da reserva (50% a devolver e 25% a aplicar numa futura reserva) e de apenas 25% para a recorrente, o que não se revela minimamente iníquo.

É que não se pode deixar de ponderar que a Ré/recorrida estava em condições de disponibilizar o estabelecimento hoteleiro à Autora, e em exclusivo (como acordado), prestando os respetivos serviços nos termos do acordo ; porém a Autora comunicou à Ré que não era possível a realização do evento pois os seus clientes estavam impedidos de viajar ( ponto 81) ; que a Ré/recorrida dedicou tempo e esforço, nas semanas que antecederam a reserva efetuada pela Autora/recorrente, a fim de assegurar que o estabelecimento hoteleiro estaria preparado e os funcionários treinados e preparados para receber os clientes da Autora/recorrente (ponto 82) e que foi na sequência do cancelamento do evento da Autora que implicava a exclusividade do estabelecimento hoteleiro da Ré entre 7 e 19 de abril de 2020 e da circunstância de a Ré já não conseguir garantir níveis de ocupação mínimos para o seu estabelecimento hoteleiro, que a Ré avaliou os custos-benefícios de manter o estabelecimento hoteleiro em funcionamento, procedendo ao seu encerramento ( ponto 87).

Aliás, o tribunal “a quo” interpretou a cláusula em termos mais favoráveis para a recorrente uma vez que condenou a recorrida a devolver-lhe o valor global de 145.794 euros e determinou que “o valor de 55.648 euros será utilizado numa futura reserva”.

Não tendo a própria Ré/recorrida impugnado o assim decidido e estando este Tribunal impedido de modificar oficiosamente o que foi decidido na sentença da 1ª instância que é objecto de recurso, em termos que se revelam mais desfavoráveis para o próprio apelante ( Cfr. o nº 5 do art.º 635º do CPC) a conclusão a retirar é a de que a pretensão da apelante não tem como proceder.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, se acorda em julgar a apelação improcedente e em manter a sentença recorrida.

Custas pela apelante.
Évora, 16 de Março de 2023
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

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[1] Em razão da procedência da impugnação da matéria de facto.

[2] Que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos.