Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | ANABELA RAIMUNDO FIALHO | ||
| Descritores: | ALTERAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA MENORES NULIDADE DA SENTENÇA | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I. Tendo os processos tutelares cíveis natureza de jurisdição voluntária, é admissível a prolação de decisão provisória, nos termos do artigo 28.º do RGPTC, que verse sobre questão distinta do pedido inicial, se o interesse da criança e a dinâmica da vida a demandarem. II. A audição da criança, nos termos dos artigos 4.º e 5.º do RGPTC, enquanto expressão do direito que lhe assiste a expressar a sua opinião e sentir quanto a questões que afetem a sua vida, é obrigatória, desde que se lhe reconheça capacidade para compreender os assuntos em discussão, em função da sua idade e maturidade. III. Por isso, antes de tomar qualquer decisão que afete a vida da criança – provisória ou final – o tribunal tem que proceder à sua audição ou proferir despacho, expondo os motivos pelos quais considera desaconselhável tal audição. IV. A falta de audição da criança, sem que a mesma seja devidamente justificada, afeta a validade da decisão, por violação de um princípio geral com relevância substantiva, tornando-a nula, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1639/18.3T8FAR-E.E1 Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Família e Menores de Faro- Juiz 3 Recorrente: … (Requerida) Recorrido: … (Requerente) * Sumário (elaborado em conformidade com o previsto no artigo 663.º, n.º 7, do CPC):* Acordam os Juízes na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora:1. Relatório (…) instaurou a presente ação contra (…), pedindo a alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais quanto à filha comum, (…), nascida a 2 de maio de 2015, no sentido de ser fixado um regime de residência alternada, em vez da residência junto da mãe, que se encontra fixada. A 3 de junho de 2024 realizou-se conferência de pais, na qual não foi alcançado acordo, tendo as partes sido remetidas para audição técnica especializada. A 31 de agosto desse ano, perante a informação prestada pela Requerida que pretendia alterar a sua residência e a da filha de Loulé, onde todos residiam, para Santo António dos Cavaleiros, o Requerente pediu que a criança fosse ouvida com urgência e que, também com urgência, fosse alterada a residência da mesma para junto de si. O Ministério Público pronunciou-se favoravelmente quanto à audição da criança. A 17 de setembro, a senhora juíza proferiu o seguinte despacho: “Para realização de conferência designa-se o próximo dia 05 de Novembro de 2024, pelas 11 horas e 30 minutos. Apesar de o acordo entre os progenitores constituir sempre uma possibilidade, dos elementos constantes do processo não resulta como muito provável que tal acordo seja alcançado em sede da conferência a realizar, perspectivando-se que o processo prossiga os seus termos. Assim, e sem prejuízo da apreciação da possibilidade/necessidade de fixação de regime provisório, não se determina a audição da menor em sede de conferência, antes relegando-se tal diligência para momento ulterior”. Na continuação da conferência de pais, realizada na data acima apontada, não tendo sido alcançado acordo, o Ministério Público reiterou o pedido para que se ouvisse a criança, ao que os pais não se opuseram. A 14 de novembro, o Requerente informou que, após a conferência de pais, deixou de conviver regularmente com a filha, nos termos que se encontravam fixados no regime de exercício das responsabilidades parentais, porquanto a Requerida deixou de levá-la até si, como sucedia até então. Pediu, por isso, que fosse fixado um regime provisório que garantisse o convívio regular da filha consigo, o qual, para além do mais, deveria contemplar a obrigação da mãe em assegurar as deslocações da criança entre o local da nova residência – Santo António dos Cavaleiros – e a sua, em Loulé. A 20 de novembro, a senhora juíza proferiu despacho, ordenando a realização de perícias psicológicas à criança e aos pais e também psiquiátrica, à mãe. Para além disso, consta ainda desse despacho o seguinte: “Oportunamente, proceder-se-á à audição da menor”. A 15 de janeiro de 2025, a sra. juíza proferiu o seguinte despacho, através do qual alterou, em termos provisórios, o regime de convívio da criança (…) com o pai: “Requerimentos de 3-12 e 6-12, e requerimento de 4-12: O regime vigente prevê, quanto aos convívios da menor com o pai, que este conviverá com a menor semanalmente à quarta-feira com pernoita, devendo recolhê-la no estabelecimento de ensino e entregá-la no mesmo local na quinta-feira; o progenitor passará com a menor 15 dias interpolados do período das férias escolares, a definir, por acordo, entre os progenitores, até 30 de Abril de cada ano; na época natalícia, a menor passará, alternadamente e em cada ano, o dia 24 e 31 de Dezembro e o dia 25 de Dezembro e 1 de Janeiro com os progenitores, sendo que no dia 24 e 31 de Dezembro a menor pernoitará com o progenitor a quem o dia pertencer, entregando-a no dia seguinte antes da hora de almoço ao outro progenitor (21-10-2019). No mais, manteve-se o anteriormente acordado (12-09-2018). A progenitora mudou a sua residência para a zona de Loures, solução que não foi consensual, e o regime de convívios assim previsto tornou-se desadequado. Perante o quadro factual actual, requer o progenitor o seguinte: - convívios da menor consigo de 15 em 15 dias, de sexta-feira a domingo, com entrega da menor pela progenitora na casa do progenitor até às 21H de sexta-feira, e recolha no domingo a partir das 18H; - a progenitora fica responsável pelas deslocações da menor; - a progenitora deverá fomentar e possibilitar privacidade à menor para que esta possa contactar telefonicamente com o seu progenitor diariamente ou sempre que esta manifestar essa vontade; - a menor passará o período de uma semana com o progenitor durante as férias escolares de Natal e Páscoa, mantendo-se o já estipulado em relação ás férias de Verão. A requerida não se opôs, mas alega que é a menor quem não quer conviver ou contactar com o pai, por consequência dos comportamentos do mesmo. O que se impõe, neste momento, é a adequação provisória do regime de visitas/férias à situação de facto verificada. Por ser provisória, deverá acautelar de forma eficaz o interesse da menor, no sentido de não causar uma ruptura abrupta com o contexto vivencial actual (e ponderando-se com cautela as deslocações longas que a menor tenha de efectuar), mas garantindo, por outra via, a frequência dos convívios com o pai, por forma a que o afastamento físico não tenha reflexos na proximidade afectiva e relacional com o progenitor com quem não reside. A fixação de regras que ambos os progenitores se vejam obrigados a cumprir trará o estabelecer de uma rotina (provisória), conhecida para a menor e que pode ser por si esperada, permitindo-lhe desenvolver os mecanismos de adaptação necessários, bem como desenvolver as expectativas de inexistência de conflitos entre os progenitores para que tais convívios se proporcionem, em ambiente são. O regime provisório proposto pelo progenitor revela-se, quase no seu todo, exequível e adequado às necessidades da menor. No que respeita à recolha da menor ao domingo, deverá ocorrer pelas 16:00 horas, considerando a duração da viagem (cerca de 2h30), e que a menor deverá ter ainda algum tempo de descanso após a realização da viagem, e antes de iniciar uma nova semana de aulas. No que respeita aos contactos telefónicos diários, dependem de um compromisso difícil de conjugar com as actividades do quotidiano, pelo que se afigura como mais viável intercalar tais contactos, ou seja, dia sim, dia não, e sempre com a ressalva de que pode ser a própria menor a não pretender mantê-los em termos tão estritos. As deslocações deverão ser suportadas pela mãe, na medida em que a mudança de residência para localidade distante daquela em que residia, sem o acordo do pai, apenas a si pode ser imputada. A melhor solução seria os convívios serem proporcionados com o mínimo de intervenção dos progenitores, de forma a evitar ocasiões de encontro entre estes, e a exposição da menor a ocasiões de conflitos entre ambos, com ou sem intervenção de quem os esteja a acompanhar. Todavia, por força da mudança de residência da progenitora por sua única iniciativa, não pode estabelecer-se que recolha e entrega tenham lugar na escola, ao final e início das actividades escolares da menor, pois isso implicaria que fosse o progenitor a suportar os custos das deslocações, sem que o mesmo tenha contribuído para as actuais circunstâncias, além de que às 2.as feiras, a menor seria sujeita a uma viagem longa antes do início das aulas. Assim, atender-se-á aos seguintes fundamentos para fixação de regime provisório: - actual permanência da menor na zona de Loures, onde reside e estuda, por exclusiva iniciativa da mãe; - proposta de convívios pelo progenitor para adequação a essa circunstância; - posição da progenitora, alegando não pretender dificultar os convívios da menor com o pai; - inexistência de qualquer facto que, comprovadamente, obste ao convívio da menor com o pai. Pelo exposto, e ao abrigo do artigo 28.º da Lei n.º 141/2015, de 8-9, fixa-se o seguinte regime provisório, relativamente aos convívios da menor com o pai, sem prejuízo da continuação da vigência do mais anteriormente homologado que não contenda com este regime: - o progenitor conviverá com a menor em fins de semana alternados, de quinze em quinze dias, indo a progenitora deixar a menor na casa do progenitor até às 21:00 horas de sexta-feira, e indo buscá-la no domingo, a partir das 16:00 horas; - a progenitora fica responsável pelas deslocações da menor; - a progenitora deverá fomentar e possibilitar privacidade à menor para que esta possa contactar telefonicamente com o seu progenitor, em dias alternados, e sempre que a menor manifestar essa vontade; - sem prejuízo do regime vigente quanto aos dias 24 e 25 de Dezembro, 31 de Dezembro e 1 de Janeiro, e sexta-feira santa e Páscoa, o tempo de férias escolares da menor pela Páscoa e pelo Natal será a repartir igualmente entre os progenitores. - o presente regime provisório vigora de imediato, iniciando-se os fins de semana com o pai no próximo dia 24-01. Registe e notifique.” A Requerida recorreu deste despacho, culminando as suas alegações com as seguintes conclusões: “i) (…) ii) O presente Recurso de Apelação engloba a matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, por se entender que a decisão é nula por violação das alíneas d) e e) do Código do Processo Civil. iii) Para a fixação do regime provisório o Tribunal a quo atendeu à atual permanência da menor na zona de Loures, onde reside e estuda, por exclusiva iniciativa da mãe, à proposta de convívios pelo progenitor para adequação a essa circunstância, à posição da progenitora, alegando não pretender dificultar os convívios da menor com o pai e à inexistência de qualquer facto que, comprovadamente, obste ao convívio da menor com o pai. iv) Nos presentes Autos o Requerente, ora Recorrido, requereu / peticionou a alteração das responsabilidades parentais da menor (…) no que respeita à residência e guarda, no sentido de se fixar a guarda conjunta com residências alternadas. v) O regime até então vigente homologado por sentença de 12 de setembro de 2018, previa que: “1. Fixa-se a residência da menor junto da mãe, a quem compete decidir sobre os actos da vida corrente da mesma. 2. As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da menor são exercidas em conjunto por ambos os progenitores, salvo no caso de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores poderá agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível, sendo questões de particular importância, designadamente as seguintes: a) A fixação da residência da menor no estrangeiro; (…)”. vi) Para a fixação do regime provisório o Tribunal a quo não levou em consideração o regime em vigor onde, por acordo de ambos os progenitores, foi fixada a residência da menor (…) junto da mãe, e considerada uma questão de particular importância, a fixação da residência da menor no estrangeiro e não em outra localidade do país, nomeadamente em Santo António dos Cavaleiros, atendendo à previsibilidade de a Recorrente um dia retornar àquela que sempre foi a sua residência habitual e fiscal, em Santo António dos Cavaleiros, o que veio a ocorrer em setembro de 2024, motivada por um estado de necessidade. vii) A Recorrente padece de várias patologias, que obrigam a Recorrente a frequentes deslocações para exames, tratamentos e consultas aos Hospitais de Santa Cruz, em Carnaxide e Beatriz Ângelo, em Loures e que, em consequência das mesmas, lhe foi atribuída uma incapacidade de 86%. viii) Para cumprimento dos convívios com o pai fixados pelo Tribunal, a Recorrente deslocou-se a Loulé, por dois fins-de-semana, a fim de a menor (…) passar os fins-de-semana na companhia do pai, deslocações que, atenta a sua debilidade física pelas patologias que padece, deixaram a Recorrente extremamente cansada e exausta, o que a terão levado a sugerir ao Recorrido entregar a menor (…) a meio caminho, indicando o cruzamento com a Estrada de Ferreira, ao km 120 da A-2 como o local de entrega da menor (…), fazendo cada um metade da viagem, o que, salvo o devido respeito e melhor opinião, seria a solução menos cansativa e dispendiosa para a Recorrente. ix) A Recorrente tem uma remuneração mensal base de € 820.00 e uma obrigação mensal com a prestação do crédito a habitação junto do Banco (…), no valor de € 432,42, não tendo, pois, recursos financeiros que lhe permitam suportar as deslocações da menor duas vezes por mês, que rondam os € 428.00. x) Pese embora o Ministério Público ter promovido a tomada de declarações à menor (…), para a fixação do regime provisório o Tribunal a quo não levou em consideração o superior interesse da menor (…) ao fixar provisoriamente um regime sem que previamente lhe fossem tomadas as suas declarações. xi) O Tribunal a quo não teve em consideração o facto de ser a menor (…) que se recusa a conviver com o progenitor. xii) A Recorrente desconhece qual é a morada de residência do Recorrido constando dos autos 2 moradas – Largo de (…), 10, 1º-Esq., Loulé e Monte (…), Campina de (…), Loulé. xiii) Na decisão em apreço o Tribunal não levou em consideração e não se pronunciou sobre questões que devia ter apreciado; xiv) Na decisão em apreço decide-se/condena-se para além do peticionado, em violação do Princípio do Pedido; xv) Motivos pelo qual a sentença recorrida será nula nos termos do disposto nas alíneas d) e e) do artigo 615.º do Código do Processo Civil”. O Requerente contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso. O Ministério Público junto do tribunal a quo também apresentou contra-alegações, das quais contam as seguintes conclusões: “1.ª - Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, a sentença é nula, além do mais, quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido; 2.ª - O processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais é considerado de jurisdição voluntária, razão pela qual não está o tribunal sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cfr. artigos 12.º do RGPTC e 987.º do CPC); 3.ª - Nesta matéria o interesse da criança assume-se, pois, como o valor fulcral ou fundamental do processo que deve presidir a qualquer decisão no âmbito da regulação das responsabilidades parentais; 4.ª - O Tribunal podia, e devia, apreciar e decidir de qualquer alteração do regime de regulação das responsabilidades parentais, ainda que provisório, e ainda que de forma oficiosa, sendo que inclusive nos presentes autos foram efectuados requerimentos para o efeito pelo progenitor, conforme ref.ª Citius n.º 13141110 de 03.12.2024 e n.º 13153858 de 06.12.2024; 5.ª - A decisão não padece da nulidade invocada prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC; 6.ª - Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a sentença é nula, além do mais, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de outras cujo conhecimento lhe estava vedado; 7.ª - Com efeito, tal nulidade encontra-se conexionada com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC: o juiz deve conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe caiba conhecer; 8.ª - A audição e participação da criança constitui um dos princípios orientadores do RGPTC; 9.ª - Ou seja, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão, e nos termos ali determinados, tem obrigatoriamente que permitir que a criança exprima a sua opinião; 10.ª - O Tribunal a quo admitiu a audição da criança na sequência de requerimento para o efeito, relegando, a sua audição para momento oportuno, cfr. despacho datado de 20.11.2024; 11.ª - O Tribunal deveria ter procedido à audição da criança em momento anterior ao despacho que determinou o regime provisório, o que não sucedeu; 12.ª - A decisão proferida será nula por violação do previsto nos artigos 4.º, n.º 1, alínea c), 5.º, n.º 3 e 35.º, n.º 3, aplicável in casu ex vi do artigo 42.º, n.º 5, todos do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, mas não por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC; 13.ª - A Apelante, e nos termos da sentença homologatória proferida no processo principal, podia alterar a residência da criança para a zona de Lisboa sem a autorização do progenitor, pelo que não deveria ter sido de alguma forma penalizada por tal alteração da morada como parece resultar do despacho recorrido; 14.ª - O Tribunal não conheceu de factos que se entendem como necessários para estipular um regime provisório no que concerne ao regime de convívios, nomeadamente as circunstâncias pessoais da Apelante, trazidas aos autos pela própria conforme ref.ª Citius n.º 13146030 de 04.12.2024 – debilidade física, condições económicas, factos vertidos aos autos no que concerne à forma como os convívios estavam a decorrer (existindo inclusive factos alegados que constituirão a eventual prática de ilícito criminal), e alegada resistência da criança em ter convívios nos termos determinados que importaria averiguar em sede de audição de criança; 15.ª - A decisão recorrida é completamente omissa sobre todos estes factos, sendo que se entende que todo este circunstancialismo deveria ser melhor apurado por forma a salvaguardar o superior de interesse da criança que passa também, necessariamente, não só pela qualidade dos convívios com o progenitor não residente, como também pelas próprias condições pessoais dos progenitores para conseguirem prover à criança os respectivos cuidados e afecto; 16.ª - Salvo melhor e douta opinião, a decisão recorrida deverá ser anulada e, após ser realizada a audição da criança, ser proferida nova decisão que verse sobre a alteração, ainda que provisoriamente, do regime de convívios, a qual aprecie toda a situação factual já constante dos autos e bem assim a que resultar da audição da criança; 17.ª - O Ministério Público conclui que assiste razão, em parte, à Apelante no que concerne ao mérito da decisão, devendo ser dado provimento parcial ao recurso apresentado”. No despacho em que foi admitido o recurso, o tribunal a quo pronunciou-se quanto às alegadas nulidades, admitindo que a decisão recorrida é nula, com fundamento na falta de audição da criança. 1.1. Questões a decidir São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (doravante, CPC), delimitam objetivamente a esfera de atuação do Tribunal ad quem, sendo certo que, tal limitação, não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso. No presente caso e tendo em conta as Conclusões da Recorrente importa decidir (pela seguinte ordem, por razões de lógica processual) se o despacho recorrido é nulo: a) com fundamento no artigo 615.º, alínea e) e/ou b) com fundamento no artigo 615.º, alínea d), ambos do CPC. * Colhidos os Vistos, há, pois, que decidir.2. Fundamentação 2.1. A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório que antecede, para o qual se remete. 2.2. O objeto do recurso 2.2.1. A nulidade do despacho, com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC As “Causas de nulidade da sentença” (aplicáveis aos despachos “com as necessárias adaptações”, por via do artigo 613.º, n.º 3, do CPC), encontram-se taxativamente consagradas no referido preceito, que prevê o seguinte: “1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”. As nulidades da sentença constituem vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento de facto ou de direito. No presente caso, entende a Recorrente que o tribunal a quo decidiu “para além do peticionado, em violação do Princípio do Pedido”, porquanto o pedido original do Requerido consiste na alteração do regime da “guarda” da filha. Assim, no que diz respeito ao vício previsto na alínea e) do n.º 1 do citado artigo 615.º do CPC, na parte em que prevê a apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso – a condenação ultra petitum –, resultará na violação do disposto no artigo 609.º, n.º 1, do CPC (vide Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., 2025, pág. 794). A este propósito, escreveu a senhora juíza do tribunal a quo, no despacho a que alude o artigo 617.º, n.º 1, do CPC: “Com respeito, ao invocado excesso de pronúncia, com fundamento em ter o tribunal extrapolado o peticionado, visto que o progenitor requereu a alteração da regulação das responsabilidades parentais, nomeadamente a fixação de residência alternada, mas nada requereu no articulado inicial relativamente ao regime de convívios, entendemos que inexiste o invocado excesso de pronúncia. E assim porque, o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais é um processo de jurisdição voluntária, não estando o tribunal, por isso, sujeito a critérios de legalidade estrita, antes devendo adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (artigos 12.º do RGPTC e 987.º do Código Processo Civil). Por isso, o tribunal pode decidir qualquer alteração do regime das responsabilidades parentais, ainda que de forma provisória, e mesmo de forma oficiosa, o que nem foi o caso, pois que o progenitor dirigiu aos autos requerimentos com tal propósito (vide ref.ª Citius n.º 13141110, de 03.12.2024, e n.º 13153858, de 06.12.2024). Assim sendo, entende-se não padecer a decisão em crise invocada nulidade, prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil”. E, desde já se avança que esta posição, também sufragada pelo Ministério Público nas suas contra-alegações ao recurso, merece acolhimento. Com efeito, o processo tutelar cível (categoria em que se inserem os procedimentos tendentes à regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas, como é o caso dos autos) é um processo de jurisdição voluntária, conforme prevê o artigo 12.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (doravante, RGPTC). Enquanto nos processos de jurisdição contenciosa existe um conflito de interesses entre as partes que ao tribunal compete dirimir de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo, nos processos de jurisdição voluntária verifica-se, diversamente, um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes) que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes e oportunos. Como escreveu Tomé de Almeida Ramião (in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentado, 2016, pág. 57): “No âmbito destes processos, mais do que decidir segundo critérios estritamente jurídicos, o tribunal irá proferir um juízo de oportunidade ou conveniência sobre os interesses em causa”. Da apontada natureza dos processos de jurisdição voluntária decorre um particular regime processual, que se afasta do regime do processo contencioso, “amovendo determinados princípios que enformam o processo civil por modo a que o tribunal avoque a defesa do interesse que a lei lhe entrega” (vide acórdão do STJ de 29/04/2021, Processo n.º 4661/16.0T8VIS-R.C1.S1, in Jurisprudência do STJ). Assim, em termos processuais, a regra é a da simplificação processual (cfr. artigo 986.º do CPC), vigora o princípio do inquisitório, cabendo ao juiz um papel ativo na indagação e apuramento dos factos (cfr. artigo 986.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal sujeito a critérios de legalidade estrita mas devendo, antes, adoptar em cada caso a solução mais conveniente e oportuna (cfr. artigo 987.º do CPC). Para além disso, as resoluções não são “definitivas”, podendo ser alteradas em face da alteração das circunstâncias – é o que prevê o artigo 988.º do CPC. A esse particular regime geral acrescem as especificidades processuais estabelecidas no RGPTC, designadamente: - o ‘superior interesse da criança’ como critério decisório primordial (cfr. artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança; artigos 1.º, n.º 1 e 6.º, alínea a), da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças; artigo 4.º, alínea a), da Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo, por remissão do n.º 1 do artigo 4.º do RGPTC); - a audição da criança (cfr. artigos 4.º e 5.º do RGPTC); - a conjugação e harmonização de decisões (cfr. artigos 11.º e 27.º do RGPTC e 81.º da LPCJP); - o respeito pelo contraditório relativamente à informação e provas (cfr. artigo 25.º do RGPTC); - a possibilidade de serem proferidas decisões provisórias ou de alterar provisoriamente decisões já adotadas (cfr. artigo 28.º do RGPTC). Como se referiu o ‘superior interesse da criança’ é o critério primordial de decisão nos processos tutelares cíveis. Trata-se de um conceito indeterminado, sem definição legal, a preencher de acordo com as circunstâncias de cada caso, tendo o legislador optado por um conceito desta natureza por entender que uma norma legal não pode apreender o fenómeno familiar na sua variedade e complexidade. Tal conceito concretiza-se, pois, no direito da criança a um desenvolvimento saudável no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, “em condições de liberdade e de dignidade” (Almiro Rodrigues, Interesse do Menor, contributo para uma definição, Infância e Juventude, n.º 1, 1958, págs. 18-19). Tal significa que, no confronto das várias posições possíveis, deve dar-se preferência àquela que melhor garanta o exercício dos direitos da criança (quanto a este conceito, cfr. Tomé de Almeida Ramião, op. cit., págs. 21-22). Do estabelecimento do ‘superior interesse da criança’ como critério primordial de decisão resulta, desde logo, a necessidade de conjugação e harmonização, em função daquele interesse, de todas as decisões que apliquem medidas tutelares ou de promoção e proteção que venham a ser decretadas (cfr. artigo 27.º do RGPTC), estabelecendo-se ainda a possibilidade de o juiz, em qualquer estado da causa, decidir provisoriamente sobre as questões que devam ser apreciadas a final ou alterar provisoriamente decisões já tomadas a título definitivo (cfr. artigo 28.º do RGPTC). Cabe, assim, ao juiz um amplo poder de, para cabal promoção do ‘superior interesse da criança’, ao longo do desenrolar do processo e seus incidentes, a qualquer momento, proferir decisões provisórias, quer inovatórias, quer modificativas de regimes já decididos, conforme as concretas circunstâncias do caso se mostrem convenientes e oportunas. A dinâmica da vida e, consequentemente, o bem-estar da criança a cada momento concreto do seu desenvolvimento, a tal obrigam. No presente caso, no âmbito da sua atividade inquisitória no decorrer deste processo de alteração das responsabilidades parentais, constatando-se que os termos da execução do regime fixado de convívio da criança com o pai deixaram de ser adequados a garantir uma convivência regular entre ambos e concluindo pela necessidade de intervenção sobre esse regime, impunha-se, de facto, alterar provisoriamente tal regime, tanto mais que, por estarem ainda em curso diligências relevantes (como a realização de perícias psicológicas e psiquiátrica), não era possível encaminhar o processo para a sua rápida finalização, como seria desejável. Aliás, tal decisão surge na sequência de vários pedidos nesse sentido apresentados pelo Requerido e de a própria Recorrente ter manifestado a sua posição, designadamente, quanto à forma de concretização da entrega da filha ao pai para que com ele pudesse conviver regularmente. Assim sendo, o estabelecimento de um regime provisório de convívio da criança (…) com o seu pai, alterando o que se mostrava fixado naquele preciso momento processual, é conforme ao regime legal acima exposto, concluindo-se, pois, não se verificar a apontada nulidade quanto ao despacho recorrido (cfr., neste sentido, o mencionado acórdão do STJ de 29/04/2021). 2.2.2. A nulidade do despacho, com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC Entende a Recorrente que o despacho recorrido padece da referida nulidade, porquanto o tribunal a quo não procedeu à prévia audição da criança. A senhora juíza pronunciou-se quanto a esta questão, no despacho a que alude o artigo 617.º, n.º 1, do CPC, nos seguintes termos: “Compulsados os autos, verifica-se que: - Ambos os progenitores requereram que a criança fosse ouvida, o mesmo tendo promovido o Digno Magistrado do Ministério Público. - Foi proferido despacho determinando a audição de 20.11.2024. - No entanto, no dia 15.01.2025, e sem que a criança tivesse sido ouvida, proferiu-se decisão de fixação provisória do regime das responsabilidades parentais. Ora, o princípio da audição da criança é a materialização do direito à palavra e expressão da vontade daquela no direito à participação activa nos processos que lhe digam respeito, e ainda do direito a que a sua opinião seja tomada em consideração. Este princípio decorre de um conjunto de normas supranacionais, de onde se destacam: (…) No ordenamento jurídico nacional, a audição e participação da criança é um dos princípios, orientadores dos processos tutelares cíveis, em decorrência do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, do RGPTC, que também se encontra consagrado no artigo 4.º, n.º 1, alínea j), da LPCJP, (…) Importa ainda atentar no disposto no artigo 5.º do RGPTC, quando refere: “1 - A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz promove a audição da criança, a qual pode ter lugar em diligência judicial especialmente agendada para o efeito. (…)”. E prevê ainda o artigo 35.º (sob a epígrafe «Conferência») do: “(…) 3 - A criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4.º e no artigo 5.º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar (…)”. Dos preceitos legais enunciados decorre que, a lei consagra o princípio-regra da audição obrigatória da criança, ou seja, a regra é ouvir a criança, sendo que a sua não audição apenas se justificará em três situações, que deve ser sempre motivada e fundamentada, a saber: se ela livremente manifestar interesse em não ser ouvida; se for considerado inconveniente ouvir a criança face ao assunto em discussão; ou se for reconhecido que ela não dispõe de capacidade de discernimento ou de maturidade para o efeito. A falta da audição da criança quando é devida, ou a falta de justificação para a sua não audição, afecta a subsistência da decisão que não a admitiu ou que a admitiu mas depois não a observou, como é o caso. No âmbito dos processos tutelares cíveis, a falta de audição da criança configura um vício processual que afecta a própria validade das decisões proferidas nestes processos (seja definitiva, seja provisória), porquanto corresponde à violação de um princípio geral com relevância substantiva, uma vez que as razões que fundamentam a audição de uma criança em juízo são de natureza substantiva e respeitam ao superior interesse da criança, não sendo enquadrável no regime das nulidades processuais, conforme já decidiu o STJ, em Acórdão proferido em 04.12.2016, onde se concluiu que “A falta de audição da criança afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais”. Por ser assim, consideramos que a decisão é nula, devendo ser revogada”. Efetivamente, o artigo 4.º do RGPTC prevê como um dos critérios orientadores dos processos tutelares cíveis a audição da criança, dispondo a alínea c) do n.º 1 que “a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse”. Para além disso, dispõe o artigo 5.º, no n.º 1, que “A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse” e, no n.º 6, que “Sempre que o interesse da criança o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos atos processuais posteriores, incluindo o julgamento”. Tais orientações, expressas na nossa legislação, constavam já de textos como a Convenção sobre os Direitos da Criança, acolhida na ordem jurídica portuguesa pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 8 de junho de 1990 e pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de setembro, que, no seu artigo 12.º prevê que “Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. Para esse fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional”. No mesmo sentido, o artigo 3.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança adotada em Estrasburgo em 25 de janeiro de 1996, acolhida na nossa ordem jurídica pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13 de dezembro de 2013 e pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27 de janeiro, prevêem que “À criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar: (…) b) ser consultada e exprimir a sua opinião” e o artigo 6.º que “Nos processos que digam respeito a uma criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá: (…) Permitir que a criança exprima a sua opinião e (…) Ter devidamente em conta as opiniões expressas pela criança”. A propósito deste assunto, escreveu ainda Rui Alves Pereira: “O princípio da audição da criança traduz-se: (i) na concretização do direito à palavra e à expressão da sua vontade; (ii) no direito à participação ativa nos processos que lhe digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração; (iii) numa cultura da Criança enquanto sujeito de direitos” (in Revista Julgar, setembro de 2015). Tal direito pressupõe, pois, que em assuntos como a fixação da residência em caso de separação parental ou a fixação de um regime de convívio com um ou ambos os pais, a criança deva ser ouvida e a sua opinião tida em conta, sem que tal signifique, porém, que a opinião manifestada pela criança seja, por si só, decisiva (neste sentido, acórdão do TRG, de 16/03/2023, relatora Raquel Rego, ou acórdão do TRL, de 10/11/2020, relator Diogo Ravara). E a ratio desta obrigatoriedade percebe-se facilmente: como se escreveu no acórdão do TRC, de 4/06/2024 (processo n.º 3322/22.6T8LRA-D.C1, in dgsi), “a matéria em causa está imbuída de aspetos pessoais, emocionais e afetivos que relevam de sobremaneira para a boa decisão da causa, sempre na perspetiva da defesa dos superiores do menor, sendo que apenas a sua audição e a dos pais melhor e com maior acuidade e profundidade permite conhecer e intuir.” Em suma, a audição da criança, como princípio, é, salvo circunstâncias excecionais, de efetivação obrigatória, sendo que, quando o tribunal entender que não deve ouvi-la, deverá explicar a sua decisão, fundamentando-a. No presente caso, não obstante ambas as partes e o Ministério Público se tenham pronunciado favoravelmente quanto à audição da (…) relativamente às questões a decidir nos autos – relacionadas com a fixação da sua residência e do convívio, em particular, com o pai – e de o próprio tribunal ter avançado com a possibilidade de a ouvir, acabou por proferir decisão sem colher previamente a opinião da criança ou esclarecer a razão pela qual não a ouvia. Importa, assim, analisar as consequências da preterição desta audição, sem despacho justificativo da mesma. Quanto às várias soluções possíveis, escreveu-se no acórdão do TRL de 10/11/2022 (processo n.º 3007/22.3T8LRS-B.L1-6, in dgsi): “Literalmente, a situação pode enquadrar-se no regime das nulidades processuais enquanto omissão de um acto que a lei prescreve – artigo 195.º, n.º 1, CPC. Assim, o acórdão desta Relação e Secção de 14 de Abril de 2005, proferido no processo n.º 1634/2005-6 (Manuel Gonçalves). Enquadramento possível é o de considerar a omissão de audição como integrando vício da previsão do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, determinando a anulação da decisão para ampliação da sua base fáctica. Assim, o acórdão desta Relação de 9 de Novembro de 2021, proferido no processo n.º 1117/14.0TMLSB-F.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa), e o da Relação do Porto de 8 de Outubro de 2020, proferido no processo n.º 2970/19.0T8PRT-C.P1 (Filipe Caroço). Numa terceira posição, a jurisprudência vem tratando amiudadamente a omissão de que nos ocupamos como de direito material, com consequência de invalidade da decisão, excluindo o seu tratamento no âmbito das nulidades processuais, fazendo repercutir o vício directamente na decisão enquanto invalidade desta. Encontramos enunciada esta posição no acórdão do STJ de 14 de Dezembro de 2016, proferido no proc. n.º 268/12.0TBMGL.C1.S1 (Maria dos Prazeres Beleza) e no desta Relação e Secção de 14 de Julho de 2020, proferido no proc. n.º 24889/19.0T8LSB-A.L1-6 (Nuno Ribeiro). Refere o aresto do STJ: “Não é adequado aplicar o regime das nulidades processuais à falta de audição. Entende-se antes que essa falta afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual.” Seguimos esta última posição. Como dissemos, a omissão em causa não é a omissão de um acto enquanto trâmite processual previsto pela lei, mas o desrespeito por um princípio enformador do direito das crianças, com repercussão processual, mas natureza substantiva, enquanto direito a ser ouvido, a ser-lhe proporcionada a liberdade de expressão de um verdadeiro sujeito de direitos e direito a fazer ouvir a sua voz no que lhe respeita, segundo a sua maturidade e capacidade de compreensão. O que afasta o enquadramento enquanto nulidade processual. Por outro lado, embora sejam configuráveis situações de possível enquadramento no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, quando a audição da criança sirva os propósitos do artigo 5.º, n.º 6, do RGPTC, não é menos certo que o direito da criança a ser ouvida, a dimensão fundamental do princípio, mantém-se íntegro mesmo quando considerações de necessidade probatória não intervenham. No caso dos autos, aliás, não se coloca uma questão de falência probatória a demandar nova produção de prova, mas a violação do direito da criança a ser ouvida, o que sempre excluiria o enquadramento na previsão da norma do artigo 662.º do CPC. Trata-se assim da prolação de uma decisão com omissão de um acto que a lei estabelece como essencial seja previamente respeitado”. Na doutrina, esta solução é defendida, por exemplo, por Miguel Teixeira de Sousa, que, segundo citação ínsita no mesmo acórdão, escreveu: “Uma sentença só pode constituir uma nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC se o que estiver em causa não for a sentença como acto, mas antes a sentença como trâmite. Se, a seguir à fase dos articulados, o juiz proferir, em processamento normal, a sentença final, este proferimento constitui uma nulidade processual, porque a sentença é proferida num momento que não é o estabelecido pela lei. Sempre que o que esteja em causa seja o conteúdo da sentença (e em que, portanto, a sentença tenha de ser vista como acto), o que pode haver é uma nulidade da sentença, nunca uma nulidade processual”. No mesmo sentido, Paulo Guerra escreve que “fácil é de concluir que o regime das nulidades processuais não é, de facto, o mais adequado à catalogação do vício da falta de audição de uma criança em sede judiciária. (…) Na realidade, e para finalizar, se é verdade que a criança não tem, em regra, capacidade de exercer sozinha os seus legais direitos, também o é que haverá certos direitos ligados à substância e ao «ser» da criança que só podem gozados por ela própria, de viva voz, sem interferência de terceiros. E aí basta-lhe a sua capacidade regra de gozo de direitos. E bastará ao tribunal afirmar essa essência e substância para declarar que a omissão da audição de uma criança com maturidade para o efeito, quando conveniente, afeta a subsistência da decisão que não a admitiu, não por força da constatação de uma nulidade processual civil de natureza secundária, mas por aplicação direta do princípio básico (de essência) da existência de uma criança – ter direito a ser ouvida por quem vai decidir relevantes aspetos da sua vida” (“A Audição de Crianças em Tribunal – e quando não se ouvem?”, in “Questões do Regime Geral do Processo Tutelar Cível”, caderno de “Colecção Formação Contínua”, E-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Julho 2019). E, a nosso ver, esta solução é a que melhor densifica, em termos processuais, um princípio que se entende como basilar de todo o sistema da justiça das crianças – o reconhecimento do direito a serem ouvidas sobre os assuntos que lhes digam respeito, se para tal tiverem maturidade e, acrescente-se, se tal não for contrário aos seus próprios interesses. Com efeito, as consequências processuais de tal falta de audição não se reconduzem à aplicação do regime das nulidades processuais civis secundárias, pois, correspondendo a um princípio geral com relevância substantiva, afeta a validade das decisões proferidas no processo. A não audição configura, pois, para além de uma falta processual, uma clara violação das regras de direito material, que se traduz em violação da intrínseca validade substancial da decisão, isto é, faz-se repercutir o vício diretamente na decisão enquanto causa da sua invalidade. Assim, verificando-se a omissão de audição, sem que exista despacho que a justifique, tal tem efetiva repercussão na decisão proferida, que será nula por se ter decidido sobre matéria a que lhe estava vedada pronúncia, sem aquela audição, assim traduzindo a prática do vício de excesso de pronúncia inscrito na 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (vide também neste sentido, acórdão do TRL de 8/05/2025, proc. n.º 7642/24.7T8LSB.L1-2 e acórdão do TRL de 25/01/2024, processo n.º 5474/23.9T8ALM-A.L1-6, ambos in dgsi , e acórdão do TRC de 6/02/2024, processo n.º 878/14.0TBMGR-N.C1, in Jurisprudência.pt). Em consequência, impõe-se determinar a anulação da decisão recorrida, de forma a proceder-se à omitida audição da criança (…) ou, em alternativa, a ser prolatado despacho que fundamente e justifique a dispensa da sua audição, com consequente prolação de nova decisão. Aliás, neste momento, estando já disponíveis os relatórios periciais (inclusive, o da avaliação psicológica da criança) e tendo decorrido cerca de nove meses desde a prolação da decisão provisória em causa, estará até o tribunal a quo melhor habilitado a proferir decisão capaz de alcançar os objetivos a que se propôs – assegurar um relacionamento regular e gratificante entre a (…) e o pai – esperando-se que para tal possa contar com a colaboração de ambas as partes que deveriam, também eles (sobretudo, eles!), procurar ultrapassar as suas divergências, a bem do superior interesse da sua filha. 3. DECISÃO Pelas razões expostas, acordam os Juízes nesta 2ª Secção do Tribunal da Relação de Évora, em julgar procedente o recurso e, em conformidade, anular a decisão recorrida, determinando que, previamente à prolação de nova decisão, se proceda à audição da criança ou se justifique a não audição da mesma. Custas pelo Recorrido. Notifique. * Évora, 30 de outubro de 2025(Acórdão assinado digitalmente) Anabela Raimundo Fialho (Relatora) Rosa Barroso (1ª Adjunta) Miguel Teixeira (2º Adjunto) |