Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1544/18.3T8PTM.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
CADUCIDADE DA ACÇÃO
PREÇO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 06/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) elementos essenciais da alienação para efeitos do decurso do prazo de caducidade previsto no artigo 1410.º do CC, são o conhecimento da venda, o preço e a identidade do terceiro adquirente.
ii) concretizado o projeto de venda, com a realização da escritura de compra e venda, o prazo para realização da escritura, a data de pagamento do preço e a modalidade de pagamento não relevam para a ação de preferência que tem como condição o depósito do preço nos 15 dias seguintes à propositura da ação e visa a substituição do preferente ao adquirente, ou seja, a ação de preferência tem prazo e modalidade de pagamento próprios e dispensa a realização de nova escritura pública
iii) a A. ficou a saber que o imóvel iria ser vendido ao R., mas só veio a conhecer o preço acordado para a venda mais tarde quando obteve a escritura de compra e venda, pelo que a ação foi tempestivamente instaurada.
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. U…, instaurou acção comum contra RS Real Estate (Activities) LLC, e E…, com vista ao exercício de direito de preferência na compra do imóvel adquirido pelo 2º R. à 1ª R..
Para tanto, alegou, em síntese, que é proprietária de dois imóveis que se encontram onerados com uma servidão de passagem a favor do prédio adquirido pelo réu Egon e vendido pela ré RS.; que, para além de o prédio transaccionado entre os RR. não ter acesso à via pública, tendo de ser feita passagem pelos seus para lhe aceder; que a servidão existe por ter sido constituída por destinação do pai de família, uma vez que todos os imóveis faziam parte de um único prédio, maior, que anteriormente pertencia ao mesmo dono; que, ainda que assim não se considerasse, então existiria uma servidão por usucapião a favor do dito prédio do réu vendido; e que, atenta a existência de servidão, tem direito de preferência a seu favor na alienação do referido prédio, o qual não foi respeitado, posto que os réus venderam o imóvel um ao outro e não a notificaram para preferir, com conhecimento dos elementos essenciais do negócio.
Concluiu, pedindo que se declare:
a) Que foi constituída uma servidão de passagem por destinação do pai de família, nos termos do artigo 1549º do Código Civil, a favor do prédio do 2º R sobre os prédios da A;
Ou, caso assim não se entenda,
b) Que os prédios da A. se encontram onerados com uma servidão de passagem a favor do prédio do 2º R., constituída por usucapião;
c) Que a A. é titular de um direito real de preferência na venda do prédio rústico identificado em 4 e 5, nos termos do artigo 1555º do Código Civil;
d) A substituição do 2º R, pela A, na titularidade do direito de propriedade sobre o referido prédio objecto da compra e venda pela 1ªR, ao 2º R.;
e) O cancelamento do registo do direito de propriedade a favor do 2ºR feito pela inscrição/Ap. 2.486, de 2017/10/02, a favor do 2º R., do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o nº 196 e a sua substituição por um registo de propriedade a favor da A.

2. A R. RS Real Estate (Activities) LLC contestou, alegando que a A. teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio por conversa com o réu Egon ainda em Setembro de 2017, mostrando-se caducado o direito de acção, pois quando a mesmo foi intentada, em 8 de Junho de 2018, já tinham decorrido os seis meses previstos na lei para o efeito.
Quanto ao mais, alegou que não existe servidão a favor do prédio vendido, antes existindo no local um caminho público, utilizado por todos para transitar por ali, até para além do prédio vendido, pelo que, atenta a natureza pública do caminho, não assiste à demandante o invocado direito de preferência.

3. O R. E… contestou separadamente, arguindo também a excepção da caducidade e que não existe servidão a favor do prédio vendido, mas sim um caminho público, concluindo que não assiste à demandante o pretendido direito de preferência.
Alegou ainda que o depósito feito pela A. não pode ser aceite, posto que não engloba as despesas que teve com IMT, Imposto de selo, emolumentos de registo e custos notariais, tudo no total de € 3.648,37.

4. A A. respondeu, pugnando pela improcedência da excepção de caducidade, uma vez que não lhe foi feita qualquer comunicação contendo os elementos essenciais do negócio, nomeadamente da parte do vendedor, que era quem a isso estaria obrigado.
Em sede de saneamento foi decidido relegar para final o conhecimento da invocada excepção de caducidade.
5. Realizada a audiência final veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu julgar improcedente a excepção de caducidade e a presente acção procedente e declarar:
- Que foi constituída uma servidão de passagem por destinação do pai de família, nos termos do artigo 1549º do Código Civil, a favor do prédio rústico situado em Pincho, União de Freguesias de Bensafrim e Barão de São João, Concelho de Lagos, composto por cultura arvense, matos e sobreiros, inscrito na matriz predial rústica, sob o Artigo nº … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, com o número … os prédios A referidos no nº 1 dos factos provados;
- Que a A. é titular de um direito real de preferência na venda do prédio rústico situado em Pincho, União de Freguesias de Bensafrim e Barão de São João, Concelho de Lagos, composto por cultura arvense, matos e sobreiros, inscrito na matriz predial rústica, sob o Artigo nº …da Secção B e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, com o número … onde se encontra, actualmente, inscrito a favor do 2º R., Egon, pela Ap.2486, de 02/10/2017, pelo preço de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).
- A substituição do 2º R, pela A, na titularidade do direito de propriedade sobre o referido prédio rústico situado em Pincho, União de Freguesias de Bensafrim e Barão de São João, Concelho de Lagos, composto por cultura arvense, matos e sobreiros, inscrito na matriz predial rústica, sob o Artigo nº …da Secção B e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, com o número …;
- O cancelamento do registo do direito de propriedade a favor do 2ºR feito pela inscrição/Ap. 2.486, de 2017/10/02, a favor do 2º R., do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o nº … e a sua substituição por um registo de propriedade a favor da A.

6. Inconformado veio o R. E… interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das respectivas conclusões]:
1.ª O recorrente considera incorrectamente julgados os pontos 4) e 5) dos factos provados, pois o Tribunal a quo não colheu com segurança as declarações do recorrente e das testemunhas M… e W…, fundando a decisão dessa matéria de facto, sobretudo pelo facto de não haver para considerar uma das versões apresentadas ser mais credível do que a outra;
2.ª Face à prova produzida, designadamente das declarações de parte do recorrente, bem como, das testemunhas M… e de W…, houve da parte do Tribunal a quo, uma má apreciação da prova produzida;
3.ª O depoimento do recorrente, que foi corroborado pelos depoimentos das testemunhas M… e W…, mostrou um relato autêntico e espontâneo, tendo procedido a uma contextualização pormenorizada e plausível dos vários contactos e conversas mantidos com a recorrida, o qual colhe uma credibilidade acrescida ao seu depoimento, em contraposição com um relato seco, defensivo e genérico efectuado pela recorrida;
4.ª Em face do depoimento do recorrente ouvido na sessão de 11/09/2019, da audiência final, que se encontra gravado (cfr. minuto 5:56 a 11:56; minuto 12:53 a 13:28; minuto 13:41 a 17:00 e minuto 34:12 a 37:35), das testemunhas M…(cfr. minuto 3:35 a 10:01) e W… (cfr. minuto 2:05 a 10:15), ouvidas na sessão de 11/09/2019 da audiência final que se encontra gravado, deveria ter sido considerado como provado no ponto 4) dos factos provados que, “Antes da outorga da escritura de compra e venda do terreno identificado em 2 destes factos provados, foi a A. por duas vezes informada, verbal e informalmente, pelo R. Egon, de que o mesmo lhe iria ser vendido pelo preço de € 55.000,00, o que voltou a acontecer, cerca de dois meses após a compra, quando o 2º Réu se deslocou ao terreno com a sua namorada, tendo conversado com a autora, a quem informou de que tinha outorgado escritura pública de compra e venda com o Sr. Robert Snapper, conforme lhe havia já transmitido antes.”;
5.ª Em face dos depoimentos do recorrente (cfr. minuto 13:41 a 17:00) e da testemunha M… (cfr. minuto 3:35 a 10:01), o ponto 5), dos factos provados deveria ter sido considerado como não provado pelo Tribunal a quo, e nessa medida, ter sido considerado como provado, que, “Em data anterior a 29 de Setembro de 2017, a A. tomou conhecimento verbal pelo R. E… da data da venda, e dos restantes elementos essenciais da alienação (preço e identidade do comprador).”
6.ª A credibilidade do depoimento do recorrente, tem de ser aferido em concreto e não em observância de máximas abstractas pré-constituídas, sob pena de estarmos a esvaziar a utilidade e a potencialidade do depoimento prestado pela parte nos autos.
7.ª Num sistema processual civil, em que o cerne da questão é a busca da verdade material, relativamente aos factos trazidos ao processo pelas partes, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação, não pode ser condicionada a máximas abstractas pré-assumidas quanto à sua pouca uma muita credibilidade, mesmo se venha a tratar de declarações de parte;
8.ª O tribunal a quo na sua decisão recorrida considerou incorrectamente improcedente a excepção de caducidade invocado pelo recorrente;
9.ª A recorrida teve conhecimento da venda, do preço e da identidade do comprador (recorrente) em data anterior a 29 de Setembro de 2017, mais concretamente dois meses antes, na véspera da outorga da escritura de compra e venda (28 de Setembro de 2017), no próprio dia da outorga da escritura de compra e venda (29 de Setembro de 2017), e cerca de dois meses após essa data;
10.ª Os “Elementos essenciais da alienação para efeitos do decurso do prazo de caducidade previsto no artº 1410º, do CC, em casos como o dos autos, são o conhecimento da venda, o preço e a identidade do terceiro adquirente e isto porque concretizado o projecto de venda, com a realização da escritura de compra e venda, o prazo para a realização da escritura, a data do pagamento do preço e a modalidade de pagamento não relevam para a acção de preferência que tem como condição o depósito do preço nos 15 dias seguintes à propositura da acção e visa a substituição do preferente ao estranho adquirente, ou seja, a acção de preferência tem data e modalidade de pagamento próprios e dispensa a realização de nova escritura pública.” – Ac. TRE, de 12/07/2018, proc. 2382/11.0TBSTR.E1, Francisco Matos, disponível em www.dgsi.pt (cfr. no mesmo sentido Ac. TRE, de 07/11/2019, 1350/12.9TBTNV.E1, Jaime Pestana, disponível em www.dgsi.pt);
11.ª Ao contrário do que é aferido pelo Tribunal a quo na sua decisão recorrida, nos pontos 4) e 5) dos factos provados, mostra-se suficientemente provado que a Autora tinha conhecimento de todos os elementos essenciais da alienação, em data anterior a 29 de Setembro de 2017, sendo que, quando veio intentar a presente acção (08/06/2018), já havido decorrido o prazo de seis meses para validamente exercer o seu direito legal de preferência (art. 1410.º, n.º 1, do CC);
12.ª Salvo o devido respeito, a factualidade dada por provada na sentença recorrida, não corresponde à prova produzida, tendo o Tribunal a quo feito uma apreciação errada da provada produzida (testemunhal e de parte), e errada aplicação do direito aplicável à matéria em causa;
Pelo exposto e pelo que doutamente for suprido por V.Ex.as, deve ser dado provimento ao presente recurso, procedendo-se à efectiva reapreciação dos pontos de facto expressamente impugnados, revogando-se a douta sentença recorrida, e julgando-se a acção intentada pela Autora contra o aqui recorrente improcedente por extemporânea, fazendo-se deste modo a costumada JUSTIÇA!

7. Contra-alegou a A. pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença.

8. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Delimitação do Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da Impugnação da matéria de facto;
(ii) Da reapreciação jurídica da causa, no sentido de saber se ocorreu o prazo de seis meses, previsto no n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil, para a instauração da acção de preferência.
Note-se que, de acordo com as conclusões apresentadas, apenas são impugnados os factos relevantes para o cômputo do prazo para a instauração da acção de preferência pela A., na compra e venda do imóvel em causa nos autos, pelo que, nada mais se aduzindo quanto ao direito aplicável, a questão essencial a decidir, nesta sede, prende-se com a verificação do prazo de caducidade previsto no artigo 1410º do Código Civil.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A A. é dona de dois prédios rústicos, sitos em Pincho, União de Freguesias de Bensafrim e Barão de São João, Concelho de Lagos, ambos adquiridos por compra, respectivamente:
a) Prédio rústico com área de 122.750m2, sito no Pincho, União de Freguesias de Bensafrim e Barão de São João, Concelho de Lagos, inscrito na matriz predial rústica, sob o Artigo nº …, Secção B e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, com o número …, onde se encontra inscrito a favor da A. pela Ap. 06, de 14/12/1999, por ter sido adquirido, por escritura pública de compra e venda em 29/11/1999; e
b) Prédio misto, sito no Pincho, União de Freguesias de Bensafrim e Barão de São João, Concelho de Lagos, inscrito na matriz predial rústica, sob o Artigo nº …, da Secção B e, na matriz predial urbana, sob o artigo 1810, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o número …, onde se encontra inscrito a favor da A., pela Ap.16 de 13/01/2000, por ter sido adquirido, por escritura pública de compra e venda em 14/12/1999 (resposta aos artºs 1º, 2º, 3º e 47º da p.i.).
2. Por seu turno, a 1ª R., RS, foi dona do prédio rústico, também situado em Pincho, União de Freguesias de Bensafrim e Barão de São João, Concelho de Lagos, composto por cultura arvense, matos e sobreiros, inscrito na matriz predial rústica, sob o Artigo nº … da Secção B e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, com o número … onde se encontra, actualmente, inscrito a favor do 2º R., E…, pela Ap.2486, de 02/10/2017 (resposta aos artºs 4º e 5º da p.i.).
3. No dia 29 de Setembro de 2017, a 1ª R., representada por Robert Marinus Louis Snapper, vendeu ao 2º R, o prédio identificado em 2 destes factos provados, pelo preço de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), por Escritura Pública de Compra e Venda, exarada de fls 86 a 87 do Livro nº 2 - A, do Cartório Notarial da Dra. Isabel Maria de Sousa Mendes, em Lagos (resposta aos artºs 6º e 7º da p.i.).
4. Antes da outorga da escritura de compra e venda do terreno identificado em 2 destes factos provados, foi a A., por duas [vezes] informada, verbal e informalmente, pelo R. E…, de que o mesmo lhe iria ser vendido, o que voltou a acontecer, cerca de dois meses após a compra, quando o 2º Réu se deslocou ao terreno com a sua namorada, tendo conversado com a autora, a quem informou de que tinha outorgado escritura pública de compra e venda com o Sr. R…, conforme lhe havia já transmitido antes (resposta aos artºs 8º e 9º da p.i., 3º a 6º da contestação da R. RS, 4º a 7º, 9º, 10º, 12º e 13º da contestação do R. Egon e 11º da resposta da A.).
5. A A. deslocou-se à Conservatória do Registo Predial de Lagos em 11 de Dezembro de 2017, onde tomou conhecimento do conteúdo da escritura pública de compra e venda com os detalhes do negócio celebrado entre a 1ª e o 2º R. (resposta aos artºs 10º da p.i. e 13º e 15º da resposta da A.)
6. Os prédios de qual a A. e o 2º R são actualmente donos foram no passado um só (resposta ao artº 38º da p.i.).
7. A divisão deste prédio uno, foi tratada por sucessão hereditária, no âmbito da qual se procedeu à divisão do referido prédio, sito no Pincho, então Freguesia de Bensafrim, entre os herdeiros por escritura pública, datada de 14 de Fevereiro de 1978, que se encontra junta com a p.i. como doc. 17 (resposta ao artº 39º da p.i.).
8. Por essa escritura pública de partilha e divisão da herança de…, casados sob o regime da comunhão geral de bens, deixaram o prédio sito no Pincho, Freguesia de Bensafrim, Lagos, inscrito na matriz predial sob o artigo …, aos seus herdeiros, em comum (resposta ao artº 40º da p.i.).
9. Os herdeiros indicados na escritura são os filhos do casal, J…, I…, J, na proporção de um quinto para cada um e, como netos, em representação da sua mãe, já falecida, herdaram um quinto em comum, …(resposta aos artºs 41º e 42º da p.i.).
10. Como os herdeiros não quiseram permanecer numa situação de indivisão os herdeiros …, casados sob o regime da comunhão geral; …, casados sob o regime da comunhão geral, em…, viúva adquiriram o prédio, hoje descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o número … e inscrito na matriz predial sob o artigo …, Secção B de acordo com a Apresentação número 14 de 09/06/1987 (resposta ao artº 43º da p.i.).
11. Por sua vez, constam no registo predial relativamente ao prédio indicado supra, as Apresentações 09 de 29/09/1989, registando a aquisição a favor de MIRO PINCHO AGRÍCOLA, Lda, e a aquisição a favor da 1ª R, por sua vez, registada pela Apresentação 17 de 29/09/2006 (resposta ao artº 44º da p.i.).
12. Os prédios que são actualmente propriedade da A., tiveram também a sua origem no prédio original e na divisão aludida de 7 a 11 destes factos provados, vindo a ser adquiridos por C…. casada sob o regime da comunhão geral de bens com J…, por divisão de coisa comum da herança de M… (resposta aos artºs 46º e 46º da p.i.).
13. O prédio pertencente à A., registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1322, também teve a sua origem no prédio original e na divisão aludida de 7 a 11 destes factos provados, vindo a ser adquirido em comum a favor dos herdeiros de …, e pela AP. 16 encontra-se registada a aquisição pela A. (resposta ao artº 48º da p.i.).
14. O prédio rústico identificado em 2 destes factos provados, por não dispor de qualquer ligação de acesso à via pública, leva a que os seus donos, actuais e anteriores, necessitem de passar pelos terrenos da A., que lhe são adjacentes, para que possam entrar ou sair do mesmo, acesso à via pública que é, e sempre foi feito, através dos prédios de que a A é proprietária (resposta aos artºs 11º e 12º da p.i.).
15. A Passagem referida em 14 destes factos provados, utilizada, pelos donos do terreno do 2º R., era, incluindo já antes da divisão do prédio referida em 6 e 7 destes factos provados, feita por dois caminhos de terra, desde sempre existentes nos terrenos referidos em 1 destes factos provados, sendo que nesses terrenos que hoje pertencem à A. os caminhos eram utilizados, indistintamente, um ou outro, pelas pessoas, para aceder a uma destilaria de medronho que existia para lá do terreno que hoje pertence ao R., e sendo também que, quando a A. adquiriu os seus imóveis, fechou um desses caminhos e depois o outro deixou de ser usado pelas pessoas para se dirigirem para lá do terreno do R. Egon, porque a destilaria que existia deixou de funcionar, e o caminho que ficou passou apenas a permitir o acesso do proprietário do terreno confinante, o R., à via pública (resposta aos artºs 15º e 51º da p.i., 12º, 13º, 32º e 33º da contestação da R. RS e 29º, 30º, 49º e 50º da contestação do R. Egon).
16. A A. sempre permitiu, sem que exigisse qualquer contrapartida, a passagem de pessoas e veículos por aquele caminho que restou, referido em 15 destes factos provados, sendo que os anteriores donos dos terrenos identificados em 1 destes factos provados sempre permitiram a passagem pelos dois caminhos referidos em 15 destes factos provados (resposta ao artº 13º da p.i.).
17. O caminho que restou é utilizado, à vista de todos, pelo dono do prédio identificado em 2 destes factos provados, por ser hoje o único acesso a via pública, o que ocorre sem oposição da A. (resposta ao artº 14º da p.i.).
18. Após a aquisição dos terrenos identificados em 1 destes factos provados, pela A. a mesma procedeu ainda, por sua conveniência, tal como para conveniência de quem lá passasse, a obras de manutenção do caminho, que incluíram, nomeadamente a construção de uma pequena ponte (resposta ao artº 16º da p.i.).
19. Dado não se tratar de uma passagem com qualquer tipo de revestimento, nomeadamente asfalto, o caminho é sujeito a actos de manutenção, sempre levados a cabo pela A. (resposta ao artº 17º da p.i.).
20. Nomeadamente, R…, seja na qualidade de gerente da sociedade M…Lda, seja como representante da 1ª Ré, e na qualidade de pessoa individual, com quem a A. mantinha boas relações de vizinhança, sempre utilizou a referida passagem desde que primeiramente adquiriu o prédio, em representação da sociedade Miro Pincho, em 1989, porque o seu terreno não tem qualquer outro acesso à via pública (resposta aos artºs 18º, 19º, 21º a 23º, 62º e 65º da p.i., 34º da contestação da R. RS e 51º da contestação do R. Egon).
21. E, desde que a A. adquiriu os seus terrenos, em 14 de Dezembro de 1999, sempre avistou Robert Snapper, efectuando o trajecto através do caminho existente no imóvel da A. por forma de aceder ao prédio rústico, identificado em 2 destes factos provados (resposta ao artº 20º da p.i.).
22. A 1ª R aquando da divulgação e promoção da venda do terreno identificado em 2 dos factos provadas, anexou fotografia do referido caminho para demonstrar o acesso a tal terreno (resposta ao artº 24º da p.i.).
23. A A., em 15 de Dezembro de 2017, requereu à Presidente da Câmara Municipal de Lagos, declaração comprovativa da natureza do caminho que atravessa os seus terrenos e permite o acesso ao prédio rústico identificado em 2 destes factos provados (resposta ao artº 25º da p.i.).
24. A 29 de Janeiro de 2018, na sequência de tal pedido, a A. foi informada pela Câmara Municipal de Lagos do seguinte:
“(…) não é possível afirmar que o caminho é público.
As referidas cartas apenas atestam a existência de um caminho não classificado, que será utilizado por algumas pessoas para acederem às suas propriedades, mas não define a sua dominialidade de público.” (resposta aos artºs 26º da p.i., 14º da contestação da R. RS e 31º da contestação do R. Egon).
25. Nem anteriormente à Escritura, nem posteriormente à venda do terreno em questão entre os 1ª e 2º RR. foi enviada à A. notificação para que exercesse o direito de preferência, querendo, com indicação dos termos do negócio, nomeadamente, do preço (resposta aos artºs 28º a 30º da p.i. e 1º, 2º e 7º da resposta da A.).
26. O preço divulgado publicamente pela R. RS para a venda era de € 89.000,00 (resposta ao artº 21º da contestação do R. Egon).
27. A A. não quis admitir perante o 2º Réu interesse na compra do terreno em causa, mas veio intentar a presente acção de preferência contra a aqui 1º Ré e 2º Réu, no dia 8 de Junho de 2018 (resposta aos artºs 8º da contestação da R. RS e 11º, 15º e 20º da contestação do R. Egon).
28. O companheiro da Autora, S…, chegou a admitir ao 2º Réu a divisão no futuro dos custos de manutenção do caminho (resposta ao artº 8º da contestação do R. Egon).
29. A A. procedeu no dia 19 de Junho de 2018 ao depósito autónomo da quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) referente ao preço de venda acordado e declarado pelos Réus na escritura pública de compra e venda outorgada entre ambos celebrada, no dia 29 de Setembro de 2017 (resposta ao artº 21º da contestação do R. Egon).
30. O 2º Réu para além do montante pago à 1º Ré relativo ao preço de venda, no valor de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), suportou ainda as seguintes despesas (que não foram abrangidas pelo depósito autónomo efectuado pela A.), no total de € 3.648,37 (três mil seiscentos e quarenta e oito euros e trinta e sete cêntimos):
i) O valor de € 2.750,00 (dois mil setecentos e cinquentas euros) relativo ao IMT – Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas (5% sobre o valor de compra);
ii) O valor de € 440,00 (quatrocentos e quarenta euros), relativo ao imposto de selo (0,8% sobre o valor de compra);
iii) O valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) relativo aos emolumentos de registo predial relativo ao registo de aquisição do prédio em seu nome;
iv) O valor de € 208,37 (duzentos e oito euros e trinta e sete cêntimos), de custos notariais (resposta aos artºs 23º e 24º da contestação do R. Egon).
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B) – O Direito
1. Da impugnação da matéria de facto
1.1. O R. E… discorda da matéria de facto, no que se reporta aos pontos 4 e 5 dos factos provados, os quais entende deverem ter outra formulação, que indica, com fundamento nas declarações de parte do R. e nos depoimentos das testemunhas M… e W….
Nas contra-alegações, a A. pede a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, invocando que o Recorrente não deu integral cumprimento aos ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, referindo a falta de transcrição dos depoimentos que servem de suporte à impugnação da matéria de facto.
Vejamos:
Nos termos do disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão da matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, alínea a)); - os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b)); e – a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (n.º 1, alínea c)).
Acresce que, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na parte respectiva, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (cf. n.º 2, alínea a)).
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/10/2015 (proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1), disponível, como os demais citado sem outra referência, em www.dgsi.pt: «Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do n°1 do art. 640° do CPC; e um ónus secundário - tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do artigo 640°, n°2, al. a) do CPC).»
Relativamente ao sentido e alcance dos requisitos formais de cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, veja-se a síntese jurisprudencial que nos é dada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/03/2016 (proc. n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1).
No caso, o Recorrente indicou nas conclusões do recurso quais os concretos pontos da matéria de facto que tinha por incorrectamente julgados – os factos provados sob os pontos 4 e 5 –, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da proferida – as suas declarações de parte e os depoimentos das testemunhas M… e W… – e a decisão que, no seu entender, devia ser proferida, pelo que deu adequado cumprimento aos ónus previstos nas alínea a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil.
Contudo, diz a Recorrida que não foi cumprido o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, porquanto, o Recorrente não procedeu à transcrição dos excertos da gravação que considerava relevantes.
Porém, não lhe assiste razão, porquanto o Recorrente identificou as passagens da gravação que tinha por relevantes, por referência aos respectivos suportes magnéticos. É certo que não procedeu à transcrição dessas passagens da gravação, mas, embora a transcrição permita logo ter uma percepção do fundamento da impugnação, não constitui uma obrigação, mas mera faculdade concedida ao impugnante. Numa leitura funcional que fazemos da norma, o que importa é que as passagens da gravação em que o recorrente se funda estejam identificadas, seja pela delimitação temporal com referência aos suportes magnéticos (indicando-se as concretas passagens), seja por transcrição.
Deste modo, entende-se que foi dado adequado cumprimento aos ónus previstos no artigo 640º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, pelo que se irá apreciar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.

1.2. Mas, antes de entrarmos na análise das questões colocadas, importa sublinhar que, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova (REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638 -641).
Assim, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
Como ensina Miguel Teixeira de Sousa, “[a]lgumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 347).
E, como nos dá conta o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 25/01/2016 (processo n.º 05P3460), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt: “(…) VII - O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
VIII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. (…)”
Deste modo, a Relação aprecia livremente as provas, de acordo com o princípio constante do n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido.
Por outro lado, não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.
Não se pode, porém, esquecer que nesta sua tarefa a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.
Assim, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais, e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
Vejamos o caso concreto.

1.3. O Recorrente discorda da matéria de facto constante dos pontos 4 e 5 dos factos provados, onde se deu por assente que:
«4. Antes da outorga da escritura de compra e venda do terreno identificado em 2 destes factos provados, foi a A., por duas [vezes] informada, verbal e informalmente, pelo R. Egon, de que o mesmo lhe iria ser vendido, o que voltou a acontecer, cerca de dois meses após a compra, quando o 2º Réu se deslocou ao terreno com a sua namorada, tendo conversado com a autora, a quem informou de que tinha outorgado escritura pública de compra e venda com o Sr. R…, conforme lhe havia já transmitido antes (resposta aos artºs 8º e 9º da p.i., 3º a 6º da contestação da R. RS, 4º a 7º, 9º, 10º, 12º e 13º da contestação do R. Egon e 11º da resposta da A.).
5. A. deslocou-se à Conservatória do Registo Predial de Lagos em 11 de Dezembro de 2017, onde tomou conhecimento do conteúdo da escritura pública de compra e venda com os detalhes do negócio celebrado entre a 1ª e o 2º R. (resposta aos artºs 10º da p.i. e 13º e 15º da resposta da A.)»

1.4. O Tribunal recorrido fundamentou a sua convicção do seguinte modo:
«O tribunal formou a sua convicção com base na ponderação conjugada da prova por declarações de parte da A., do R. Egon, testemunhal, documental e por percepção directa dos factos, em virtude de inspecção ao local, tudo apreciado à luz das regras de experiência comum, nos termos que se passam a explicar.
A presente acção assenta em dois pressupostos básicos, com vista ao estabelecimento do direito de preferência invocado pela demandante: por um lado a venda de prédio encravado e, por outro, a inexistência de notificação feita à sua pessoa, enquanto proprietária de prédio onerado com a servidão, para preferir na venda do prédio encravado.
Quanto à não existência de uma notificação formal para preferência, temos que os réus acabam por admitir tal circunstância. Aquilo que é invocado é que houve uma conversa informal com o réu comprador, tendo tal assunto sido abordado em mais de uma ocasião, estando presentes, num caso, a companheira do mesmo e, noutro, a sua mãe.
Ora, a companheira do réu, M…, e a mãe do réu, W…, confirmaram efectivamente a ocorrência de conversas informais com a autora e o companheiro desta, S….
Na verdade, afigura-se-nos que a própria autora não nega a existência dessas conversas, embora não seja consensual entre as partes e as referidas testemunhas a extensão da abordagem ao negócio feita nessas conversas, nomeadamente se foi mencionado o preço de € 55.000 como o preço de venda (o que o R. e as testemunhas por si indicadas afirmam e a A. nega).
Note-se que, de acordo com o declarado pelo ex-gerente da vendedora, e R. RS, R…, o imóvel estava publicitado para venda na sua página de “internet” pelo preço de € 89.000, sendo que o mesmo confirma que nunca transmitiu à autora que ia vender o imóvel por e € 55.000.
Não se nos afigura como possível, nesta conformidade, convocar para a apreciação deste ponto de facto o normal das regras de experiência comum, na medida em que, nalguns casos, as pessoas poderão achar oportuno referir o preço que pagaram e noutros não, dependendo da disposição e características pessoais de cada um.
O que efectivamente se nos afigura resultar do teor dos depoimentos e declarações prestadas como razoavelmente claro é que a autora se terá mantido numa postura que se pode classificar como um pouco defensiva em relação às informações que lhe eram prestadas, porventura evitando, ou procurando evitar, expressar ou assumir qualquer posição que pudesse vir futuramente prejudicar a tutela de direitos seus, como fossem, nomeadamente, o de intentar a presente acção de preferência.
De qualquer modo, e não havendo razão para considerar uma das versões apresentadas neste particular mais credível do que a outra, posto que todos os declarantes aparentaram depor com convicção, mas sendo igualmente certo que, pela sua natureza de familiares, como é o caso da mãe do R., ou companheiros, do R. e da A. (vivendo em união de facto com a A. e o com o réu), os próprios interessados na decisão se exprimiram, de algum modo, pela boca desses outros intervenientes, o que poderemos ter por certo é que não ocorreu nenhuma notificação formal para preferência à autora, nem se colheu com segurança das declarações em causa que tenha havido da parte desta, por um lado, um conhecimento total dos elementos do negócio (até porque a mesma pode nem ter tomado por sério tudo quanto possa ter-lhe sido dito, o que se ignora), mas, menos ainda, e este é um ponto que se nos apresenta como mais importante, que tenha havido qualquer tipo de comportamento da A. que permitisse ter por tacitamente aceite o negócio, para efeitos de se considerar que, por alguma forma, havia renunciado ao exercício do direito de preferência.»

1.5. O Recorrente discorda deste entendimento e, com fundamento nas suas declarações de parte e nos depoimentos das testemunhas M… e W…, pretende a alteração da factualidade impugnada, dando-se como provado que:
4. “Antes da outorga da escritura de compra e venda do terreno identificado em 2 destes factos provados, foi a A. por duas vezes informada, verbal e informalmente, pelo R. E…, de que o mesmo lhe iria ser vendido pelo preço de € 55.000,00, o que voltou a acontecer, cerca de dois meses após a compra, quando o 2º Réu se deslocou ao terreno com a sua namorada, tendo conversado com a autora, a quem informou de que tinha outorgado escritura pública de compra e venda com o Sr. R…, conforme lhe havia já transmitido antes.”; e
5. “Em data anterior a 29 de Setembro de 2017, a A. tomou conhecimento verbal pelo R. E… da data da venda, e dos restantes elementos essenciais da alienação (preço e identidade do comprador).”

1.6. No essencial, o Recorrente pretende que se dê como provado que, em data anterior a 29 de Setembro de 2017 a A. teve conhecimento do preço da compra e venda do imóvel e da identidade do comprador.
Não subsistem dúvidas de que a A. sabia que o terreno ia ser comprado pelo R. Egon, pois este comunicou-lhe tal pretensão. A questão pertinente que se coloca é se lhe comunicou também o preço da compra e venda, ou se a A. apenas teve conhecimento do preço quando, em 11/12/2017 obteve a certidão da escritura de compra e venda.
Auditadas integralmente as declarações do R. E… e os depoimentos das testemunhas M… e W…, verifica-se que a versão por estes apresentada dos factos em causa é contrária à relatada pela A. nas suas declarações e à da testemunha S…, cujas declarações e depoimentos também se ouviram a analisaram.
O R., referiu que teve conhecimento através da internet que o terreno estava à venda por € 89.000, e, por estar interessado em comprar um terreno, veio a Portugal no verão de 2017, acompanhado pela mãe. Disse que, nessa altura, esteve 2 vezes com a A. quando estava a ver o terreno. No 1º encontro referiu que disse à A. que ia comprar por € 50.000, tendo esta referido que o preço era muito caro para aquele terreno, porque era muito barulhento, por causa de uma estação eólica que havia lá, e que noutros locais havia terrenos mais bonitos, tendo-lhe sugeridos vários sites para consultar.
No 2º encontro disse que já estava definido o preço e também data para realização da escritura e que disse à A. que ia comprar por € 55.000, e que a data já estava fixada: 29/09/2017. Acrescentou que a sua mãe (a testemunha W…) estava presente neste 2º encontro. Confirmou também que o companheiro da A. (a testemunha S…) também estava presente.
Disse ainda que, após terem feito a escritura, encontrou-se com a A., à entrada do terreno desta, e disse-lhe que tinha comprado o terreno por € 55.000. Disse que estava acompanhado da namorada (M…) e a A. com o companheiro (S…).
A testemunha W…, mãe do R., confirmou que, quando foi ao terreno com o filho e falaram com a A., disseram que iam comprar o terreno por € 55.000.
Por sua vez, a testemunha M…, namorada do R., disse que foi com o R. ao terreno 2 vezes. A primeira vez foi em 28/09, e disseram que iam comprar o terreno e que estavam dispostos a comprar por € 55.000; a segunda foi depois de terem comprado o terreno e disseram que já tinham comprado, tendo a A. respondido: “Ok. Bom para vocês”. Acrescentou que informaram que tinham comprado por aquele preço: € 55.000. O companheiro da A. estava presente.
Ora, esta versão dos factos, em especial, quanto à comunicação do preço da compra e venda, não coincide com o relato feito pela A. e pelo companheiro, que dizem só ter tido conhecimento do preço e dos detalhes da venda quando pediram em Dezembro a certidão na CRP.
A A. disse que não teve qualquer contacto com o vendedor com respeito à venda do terreno, nem este nada lhe comunicou, embora soubesse pela internet que o terreno estava à venda, há muito tempo, por € 89.000. Disse que falou com o R. E… e a mãe em Agosto/2017, quando estes passaram pelo caminho para ver o terreno, e o R. disse-lhe que estava à procura de um terreno para comprar e que queria com uma barragem. Falaram sobre o preço de € 89.000 que o vendedor pedia pelo terreno, tendo a declarante dito que esse preço era muito caro para um terreno rústico, que só tinha mato e não tinha grande coisa, e indicou-lhe o contacto de um vizinho, o Sr. Ricardo, que tinha muitos terrenos, com barragens, e que podia ver outros.
Disse que nunca lhe foi dito que o terreno ia ser vendido por € 55.000.
Confirmou que no final de Setembro, quando ia a sair de carro, com o namorado, encontrou-se com o R. Egon à entrada do terreno, que vinha de carro com uma senhora, que pensa que era a namorada, e que, no meio do caminho, muito rápido cumprimentou-os, e disse “eu sou o novo vizinho”.
Disse ainda que depois não voltou a ver o R. Egon, que pensou que tinha voltado para a Áustria e que ficou na dúvida se ele tinha feito um contrato promessa ou se já tinha feito a escritura. Disse também que na altura ficou a pensar que o Sr. R… (o então representante da vendedora) teria chegado a acordo com o Sr. E… e que aparentemente já ia vender agora o terreno, e, depois, pensou “o sr. R… é agente imobiliário profissional, então estive à espera que ele me enviasse uma carta”, percebendo-se que se está a referir à carta para a preferência, que nunca recebeu.
A testemunha S…, companheiro da A., prestou depoimento coincidente com as declarações da A., confirmando que houve conversas sobre o preço que estava publicitado para a venda do terreno, mas que não falaram sobre o preço da compra feita pelo R. Egon, referindo que só quando pediram em Dezembro de 2017 a escritura é que tiveram conhecimento do negócio.
E, esclareceu que, quando em Setembro o R. lhes disse “nós já somos vizinhos, eu comprei o terreno”, não foram logo confirmar este facto porque pensaram que o R. ia voltar lá e que talvez tivesse feito um contrato promessa. Acrescentou que, naquele momento, não deduziram que o Sr. E… já tivesse assinado a escritura, tendo pensado que num caso destes as pessoas antes de comprar dizem aos vizinhos “eu vou comprar”, de modo a que os vizinhos possam exercer a preferência.

1.7. Concordamos com a decisão recorrida, no sentido que estamos perante duas versões contraditórias dos factos, quanto à questão essencial da comunicação do preço da venda e, ao contrário do que pretende o Recorrente não vemos quaisquer elementos probatórios que imponham decisão diversa da alcançada na 1ª instância.
Na verdade, em face das declarações e depoimentos prestados ficamos com sérias dúvidas quanto a saber se o R. efectivamente informou a A. de que ia comprar o terreno pelo preço de € 55.000 e se depois lhe disse que já tinha feito a compra por esse valor. Não encontramos qualquer elemento que permita ter as declarações do R. como mais credíveis do que as prestadas pela A. (ambas corroboradas pelas testemunhas que indicaram), que até apresentou uma justificação para o facto de só em Dezembro terem ido confirmar se o prédio tinha efectivamente sido vendido.
Acresce que, como acima se referiu, a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.
Deste modo, perante a fundada dúvida quanto à prova dos factos em causa, na versão pretendida pelo Recorrente, não ocorre fundamento para alteração da matéria de facto em causa (cf. artigos 342º, n.º 2, do Código Civil e 414º do Código de Processo Civil).
Assim, improcede o recurso quanto à matéria de facto.

2. Da caducidade do direito de acção.
2.1. Com apresente acção pretendia a A. que fosse reconhecido o seu direito de preferência na alienação do prédio identificado no ponto 2 dos factos provados, invocando ter preferência no negócio ao abrigo do disposto no artigo 1555º do Código Civil, onde se estabelece que:
“1. O proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência, no caso de venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio dominante”, acrescentando-se
2. É aplicável a este caso o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º (…)”
No caso concreto, entendeu-se na sentença que, em face dos factos provados, a A. logrou demonstrar que os seus prédios estavam onerados por uma servidão de passagem, constituída por destinação do pai de família, nos termos do artigo 1549º do Código Civil, assistindo, por conseguinte, à A. o direito de preferir na compra e venda efectuada pela escritura pública de 29/09/2017 (cf. ponto 3 dos factos provados).

2.2. Como se vê das alegações de recurso, o Recorrente não questiona a constituição da servidão, nem que assistia à A. o direito de preferir na compra do terreno em causa, ao abrigo do disposto no artigo 1555º do Código Civil.
A sua discordância para com a sentença reside no facto de entender que a acção foi intentada para além do prazo de 6 meses, previsto no n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil.
Porém, para que assim fosse necessário seria que se tivesse alterado a matéria de facto, no sentido de se dar como assente que a A. teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio, em data anterior à obtenção da certidão da escritura de compra e venda, a que se reporta o ponto 5 dos factos provados, concretamente que tivesse sabido antes o preço da transacção, de modo a que se pudesse concluir que a acção foi instaurada após decurso do prazo legal, o que não sucedeu.
Como resulta do n.º 2 do artigo 1555º do Código de Processo Civil, são aplicáveis ao direito de preferência, previsto no n.º 1, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil.
Assim, não tendo sido feita à A. a comunicação para o exercício do direito de preferência, a que se reporta a norma do n.º 1 do artigo 416º do Código Civil, tinha a A. que instaurar a acção para exercício desse direito, “… dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção.”
Ora, no caso concreto, não está demonstrado que a A. tenha sido notificada pela R. vendedora para o exercício da preferência, e apenas se provou que “antes da outorga da escritura de compra e venda do terreno identificado em 2 destes factos provados, foi a A., por duas [vezes] informada, verbal e informalmente, pelo R. E…, de que o mesmo lhe iria ser vendido, o que voltou a acontecer, cerca de dois meses após a compra, quando o 2º Réu se deslocou ao terreno com a sua namorada, tendo conversado com a autora, a quem informou de que tinha outorgado escritura pública de compra e venda com o Sr. R…, conforme lhe havia já transmitido antes” e que “a A. deslocou-se à Conservatória do Registo Predial de Lagos em 11 de Dezembro de 2017, onde tomou conhecimento do conteúdo da escritura pública de compra e venda com os detalhes do negócio celebrado entre a 1ª e o 2º R.”
Como se diz no acórdão desta Relação de Évora, de 12/07/2018 (proc. n.º 2382/11.0TBSTR.E1), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt: «Elementos essenciais da alienação para efeitos do decurso do prazo de caducidade previsto no artigo 1410.º do CC, são o conhecimento da venda, o preço e a identidade do terceiro adquirente».
De facto, concretizado o projecto de venda, com a realização da escritura de compra e venda, o prazo para realização da escritura, a data de pagamento do preço e a modalidade de pagamento não relevam para a acção de preferência que tem como condição o depósito do preço nos 15 dias seguintes à propositura da acção e visa a substituição do preferente ao adquirente, ou seja, a acção de preferência tem prazo e modalidade de pagamento próprios e dispensa a realização de nova escritura pública.
No caso, em face da matéria de facto provada, apura-se que a A., das conversas que manteve com o R. Egon, ficou a saber que o imóvel iria ser vendido ao R., mas só veio a conhecer o preço acordado para a venda, quando em 11 de Dezembro de 2017, obteve a escritura de compra e venda.
Assim, tendo a acção dado entrada em 8 de Junho de 2018, foi a mesma tempestivamente instaurada, pelo que não operou a invocada caducidade do exercício do direito.
Deste modo, verificando-se que a A. tinha o direito de preferência na alienação em causa, em face do disposto no n.º 1 do artigo 1555º do Código Civil, e que procedeu ao depósito do preço, como exigido na norma do n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil como condição do exercício do direito de preferência, tinha a acção que ser julgada procedente, como sucedeu.

3. Em face do exposto, improcede a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
*
Évora, 30 de Junho de 2021
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)