Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
359/24.4T8LLE-A.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: CASO JULGADO
EXECUÇÃO
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
1. A exceção de caso julgado pressupõe a tríplice identidade prevista no artigo 581.º do CPC: sujeitos, pedido e causa de pedir.

2. Não se verifica a exceção de caso julgado, dada a causa de pedir não ser a mesma, quando na execução pretérita foi invocada como causa de pedir a relação cambiária e na execução em curso foi invocada a relação subjacente por os títulos cambiários valeram apenas como documentos quirógrafos dada a prescrição da relação cambiária.

3. Encontra-se suficientemente alegada a relação subjacente quando foi invocada a relação comercial existente entre as partes, a qual esteve na origem das letras prescritas; o fornecimento pela exequente à executada de diversos materiais relacionados com a atividade comercial daquela; a emissão da correspondente faturação onde consta a discrição dos bens fornecidos, data dos fornecimentos, os valores e as datas do vencimento das faturas, bem como o não pagamento dos valores em dívida.

Decisão Texto Integral: Processo n.º 359/24.4T8LLE-A.E1 (Apelação)

Tribunal recorrido: TJ Comarca Faro, Juízo de Execução de Loulé – J1

Apelante: Algarve Mobilar – Comércio de Mobiliário do Algarve, Ld.ª

Apelada: Odeveiga, Negócios, Unipessoal, Ld.ª

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

1. ALGARVE MOBILAR-COMÉRCIO DE MOBILIÁRIO DO ALGARVE, LDA, executada na ação executiva em que é exequente ODEVEIGA, NEGÓCIOS, UNIPESSOAL, LDA, deduziu embargos de executado, formulando que se seja reconhecida e declarado:

a. A prescrição da obrigação cambiária;

b. Que a executada não assumiu qualquer acordo no assumindo o pagamento da dívida fora da relação cambiária;

c. Que as letras não podem valer como mero quirógrafo contra a executada;

d. Caso assim não se entenda, então que seja reconhecido e declarado que as letras enquanto documentos quirógrafos da relação causal subjacente à sua emissão, só titulam o valor de €6.508,35 decorrente dos encargos bancários referidos nas faturas juntas sob docs. 14 a 22, acrescido dos juros moratórios à taxa legal de 4%, indeferindo-se o requerimento executivo na parte restante.

2. Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese apertada, que as 12 letras apresentadas com o requerimento executivo, correspondem a reformas de outras letras; que a relação cambiária se encontra prescrita por a execução ter sido intentada para além dos 3 anos dos respetivos vencimentos das letras reformadas (artigo 70.º da LULL); que para as letras em causa valerem como título executivo enquanto documento quirógrafo, tinha de ser alegada a relação subjacente; que as faturas apresentadas no requerimento executivo correspondem a «Encargos bancários vencidos» e nada têm a ver com os produtos fornecidos pela exequente à executada; que a exequente não alega de forma discriminada quais os produtos que forneceu à executada; que existe uma disparidade entre o valor do crédito exequendo (valor do capital, depreendendo-se que o mesmo inclui o valor dos encargos bancários - €13.432,80) e o valor das faturas (€6.508,35), pelo que, valendo as letras como documentos quirógrafos só o seriam em relação ao valor mencionado nas faturas; que na execução n.º 832/16.8..., finda por deserção da instância, a executada deduziu oposição tenho impugnado e colocado em causa as letras e as faturas apresentadas na presente execução.

3. Os embargos foram contestados pedindo a exequente a improcedência dos mesmos, alegando, em suma, que já pediu a retificação do valor da quantia exequenda para €15.000,00; que as letras foram reformadas por terem sido pagas parcialmente, o que implica encargos bancários resultantes do desconto, que foram debitados à executada que os aceitou tacitamente ao assinar as letras reformadas; que a embargante entrou em incumprimento como foi reconhecido na ação executiva referida pela embargante, improcedendo os embargos nas duas instâncias em relação aos encargos.

4. Por despacho proferido na execução datado de 23-05-2024 (Ref.ª 132233486), foi admitida a retificação do valor «€13.432,80» para «€15.000,00», «que corresponde à soma dos valores das letras apresentadas como títulos executivos.»

5. Em 21-10-2024 (Ref.ª 133974682), o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho a determinar a notificação da exequente para «(…) suprir as irregularidades do requerimento executivo, nomeadamente discriminando os produtos que forneceu à executada, com a indicação das datas dos referidos fornecimentos, e que determinaram a emissão das letras dadas à execução para pagamento dos mesmos.»

6. Em cumprimento do ordenado, a exequente, em 01-02-2025 (Ref.ª 51216877) veio juntar aos autos um requerimento e dois documentos (conta corrente da exequente com a executada desde 2009, faturas, recibos e notas de débito), alegando que os mesmos correspondem à «relação detalhada dos produtos fornecidos à Executada, incluindo a descrição específica de cada item, as datas dos fornecimentos e a indicação das faturas e demais documentos comprovativos que fundamentam a emissão das letras dadas à execução.» requerendo «(…) que se digne a admitir os documentos agora apresentados, regularizando-se assim o requerimento executivo e permitindo o normal prosseguimento da presente execução.»

7. A executada exerceu o contraditório através do requerimento de 10-02-2025 (Ref.ª 51315593), impugnando o documento intitulado “conta corrente” por não ter tido qualquer intervenção na sua feitura e ser um documento «pré-fabricado à medida dos interesses da exequente apenas e só para colmatar informações com mais de 10 anos em programa informático desatualizado e de difícil acesso» e, em relação aos demais, impugna-os por não conterem a sua assinatura, concluindo que o requerimento e os documentos «não sana as irregularidades do requerimento executivo», reiterando o alegado na oposição que deduziu nos embargos de executado.

8. Em 03-05-2025 (Ref.ª 135657885) foi proferido saneador-sentença que julgou os embargos parcialmente procedentes, ordenando que «seja abatido ao valor da quantia exequenda o montante de 8.973,92 € (oito mil, novecentos e setenta e três euros e noventa e dois cêntimos) referente aos encargos bancários e respectivos juros de mora, devendo a execução prosseguir os seus trâmites normais para cobrança coerciva dos restantes montantes peticionados pela Exequente, o que se determina;».

9. Inconformada, apelou a embargante pugnando pela revogação da sentença recorrida, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:


A) Os presentes autos de recurso vêm interpostos da aliás douta sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal a quo, proferida em 03/05/2025 que julgou os embargos de executado parcialmente, procedentes por provados e, em consequência determinou que seja abatido ao valor da quantia exequenda o montante de 8.973,92€ referente a encargos bancários e respetivos juros de mora, devendo a execução prosseguir os seus trâmites normais para cobrança coerciva dos restantes montantes peticionados pela Exequente.


B) A recorrente não se conforma com a sentença proferida, entendendo que a mesma não julgou corretamente os pontos dados como provados e não provados e não ter feito a avaliação correta dos factos ao direito.


C) Com efeito, a exequente nos factos do requerimento executivo começa logo por referir em ponto 1 “A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto a comercialização de produtos promocionais e brindes tendo no exercício da sua atividade comercial fornecido à Executada diversos produtos, cujo pagamento foi assegurado com a emissão de diversas letras, todas no valor total de €13.432,80 (…), conforme …”


D) Depois, contrariando o que refere em 1, vem a exequente dizer que “3- O pagamento das suprarreferidas letras foi solicitado à Executada através da emissão das faturas F691, F797, F822, F 867, F951, F1116, F1143 e F1177, que se juntam em anexo como docs. 14 a 22.”


E) Compulsando tais Faturas (DOCS. 14 a 22) verifica-se que as mesmas descrevem “Encargos bancários vencidos…”.


F) As faturas em causa e as que mais tarde vieram a ser juntas aos autos nada têm a ver com os produtos fornecidos pela Exequente à Executada no exercício dessa sua atividade de comercialização de produtos promocionais e brindes referida em 1 do requerimento executivo e cujo pagamento, segundo a exequente, foi assegurado pelas letras dadas à execução.


G) Aliás, o valor das faturas iniciais totaliza o montante de 6.508,35€, nada tendo a ver com o valor inscrito nas letras dadas à execução e o valor das subsequentes totalizam um valor de 39.914,42€ e as notas de débito 4.313,23€.


H) No entanto, resulta das letras (prescritas) que elas foram entregues para reforma de outras letras e sendo alegado no requerimento executivo que essa entrega teve como causa o fornecimento de diversos produtos, salvo melhor entendimento, não se mostra suficientemente invocado o fundamento do pedido executivo contra a ora recorrente.


I) Há ainda que considerar que a recorrida anteriormente já havia instaurado uma outra execução contra a recorrente com base nas mesmas letras, execução essa que correu termos pelo Juízo de Execução de Loulé – Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Processo n.º 832/16.8...


J) A ora recorrente nessa execução deduziu embargos e em 04/03/2019 foi proferido Despacho Saneador-Sentença que se transcreveu na integra em ponto 41 desta motivação de recurso (DOC. 1).


K) Dessa decisão foi interposto recurso para esse douto tribunal, tendo o Acórdão confirmado a sentença recorrida (DOC. 2).


L) A ação executiva terminou por deserção da instância.


M) O Mmo. Juiz a quo, não teve em consideração o caso julgado formado pelo Saneador-Sentença confirmado pelo Acórdão de 24/10/2019 proferido por este douto, aliás, Tribunal da Relação de Évora, na decisão ora recorrida.


N) Sendo certo que não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (artigo 412.º, 2 do CPC).


O) A violação do caso julgado é de conhecimento oficioso.


P) Temos, pois, de discordar frontalmente da posição assumida na sentença recorrida.


Q) Conclui-se assim, que mal andou o tribunal “a quo” ao considerar que se encontrava invocada a relação subjacente ao título dado à execução, e assim verificados os requisitos da al. c) do nº 1, do artigo 703º do CPC.


R) Na nossa modesta opinião, não podem restar quaisquer dúvidas que o exercício formal que está na base do silogismo judiciário se encontra viciado na sua conclusão.»

10. Com o recurso juntou dois documentos: a sentença e o acórdão proferido na execução n.º 832/16.8....

11. Não foi apresentada resposta ao recurso.

12. O recurso foi admitido por despacho de 28-09-2025.

13. Foram colhidos os vistos.


II- FUNDAMENTAÇÃO

A. Objeto do Recurso


Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:


- Caso julgado formado pela sentença proferida na n.º 832/16.8...;


- Da (in)suficiência da alegação da relação subjacente dada a prescrição da obrigação cambiária valendo as letras apenas como documentos quirógrafos.


B- De Facto


A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:


Factos Provados


«1. A exequente «Odeveiga Negócios, Unipessoal, Lda» intentou em 31/01/2024 contra «Algarve Mobilar-Comércio de Mobiliário, Algarve, Lda» a execução que corre termos neste Juízo de Execução de Loulé sob o nº 359/24.4..., apresentando como títulos executivos, as Letras de câmbio nº Z ...12 no valor de 855,00 €, com data de vencimento de 16/05/2014; nº Z ...86 no valor de 750,00€, com data de vencimento de 18/02/2015; nº AA ...98 no valor de 1.830,00€, com data de vencimento de 06/06/2014; nº Z ...20 no valor de 1.530,00€, com data de vencimento em 02/06/2014; nº Z ...71 no valor de 1.800,00€, com data de vencimento em 20/06/2014; nº Z ...63 no valor de 1.500,00€, com data de vencimento de 18/06/2014; nº Z ...28, no valor de 1.000,00€, com data de vencimento de 10/11/2014; nº AA ...47 no valor de 1.210,00€,com data de vencimento de 24/06/2014; nº AA ...00 no valor de 1.200,00€, com data de vencimento de 07/07/2014; nº AA ...18 no valor de 1.850,00€, com data de vencimento de 10/07/2014; nº AA ...26 no valor de 630,00€, com data de vencimento de 10/07/2014 e nº AA ...34 no valor de 845,00€, com data de vencimento de 17/07/2014 perfazendo o total de 15.000,00€;


2. No requerimento executivo, no campo denominado “Factos” a Exequente alegou, além do mais “1- A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objecto a comercialização de produtos promocionais e brindes tendo no exercício da sua actividade comercial fornecido à Executada, diversos produtos, cujo pagamento foi assegurado com a emissão de diversas letras, todas no valor total de €13.432,80 (treze mil quatrocentos e trinta e dois euros e oitenta cêntimos), conforme documentos que se juntam em anexo enumerados como docs. 1 a 13. 2 – As supra referidas letras emitidas pela Exequente e sacadas sobre a Executada continham, para além do mais, o valor devido à data da emissão e a data do vencimento, bem como a assinatura do sacado. 3- O pagamento das supra referidas letras foi solicitado à executada através da emissão de faturas F691, F761, F822, F867, F951, F1116, F1143 e F1177 que se juntam como docs. 14 a 22 4- Sobre o valor em divida titulado pelas letras acrescem os juros moratórios civis às taxas legais (…);


3. No requerimento executivo a Exequente indicou como valor da quantia exequenda 28.134,74€ e após efectuada a correcção dos lapso de escrita existentes no requerimento executivo, nomeadamente no que respeita ao montante total das letras de câmbio dadas à execução, a quantia exequenda passou a assumir o valor de 29.701,94€, correspondendo 15.000,00 € ao capital, soma dos valores das letras de câmbio, 5.728,02€ aos juros de mora incidentes sobre aquele valor, 6.508,35€ a encargos bancários e 2.465,57€ aos juros de mora incidentes sobre os encargos bancários;


4. A Exequente “Odeveiga” emitiu em nome da Executada “Mobilar” a factura nº F691, datada de 11/12/2013, relativa a encargos bancários, no montante de 842,96€; a factura nº F761, datada de 31/01/2014 relativa a encargos bancários, no montante de 466,99€; a factura nº F797, datada de 28/03/2014 relativa a encargos bancários, no montante de 331,93€; a factura nº F822, datada de 29/04/2014, relativa a encargos bancários, no montante de 537,76€; a factura nº F867, datada de 09/07/2014, relativa a encargos bancários, no montante de 1.279,49€; a factura nº F951, datada de 09/10/2014, relativa a encargos bancários, no montante de 1.005,69€; a factura nº F116, datada de 19/01/2025, relativa a encargos bancários, no montante de 1.469,09 €; a factura nº F1143, datada de 12/03/2015, relativa a encargos bancários, no montante de 455,97€ e a factura nº F117, datada de 15/05/2015, relativa a encargos bancários, no montante de 118,48€, perfazendo o montante total de 6.508,36€; 5. A Exequente “Odeveiga” emitiu em nome da Executada “Mobilar” a factura nº 97, datada de 05/12/2009, no montante de 8.142,00€ constando na mesma, além do mais, “descrição. Calendários de parede 12 folhas, bases de secretária em MSD Ref 102, agendas de bolso Ref Cal 18, calendários de secretaria triangular, EM PP…”; a factura nº 173, datada de 21/04/2010, no montante de 2.880,00€ referente a 1.000 camisolas brancas; a factura nº 314, datada de 27/12/2010, no montante de 2.456,30€, constando na mesma, além do mais, “descrição. Bases de secretária ref. F102, Calendários de Parede 12 folhas, Agenda de Bolso ref Cal.18, Calendários Secretária ref. Cal.60…”; a factura nº 315, datada de 27/12/2010, no montante de 4.089,56€, constando na mesma, além do mais, “descrição. Herdade Perdigão tinto 0,75 cx 6, Terras do Marquês tinto 0,75 cx-6, Terras do Marquês tinto 0,75-cx-6…”; a factura nº 136, datada de 23/01/2012, no montante de 1.777,35€, constando na mesma, além do mais “Descrição. Calendário de parede com 12 folhas, calendário de secretária triangular em pvc, agendas de bolso…”; a factura nº F 209, datada de 07/08/2012, no montante de 484,13€; a factura nº F 236, datada de 30/08/2012, no montante de 4.724,60€; a factura nº F295, datada de 14/11/2012, no montante de 1.749,06€; a factura nº F404, datada de 21/12/2012, no montante de 1.992,44 €; a factura nº F431, datada de 11/01/2013, no montante de 249,53€; a factura nº F487, datada de 23/05/2013, no montante de 1.560,64€; a factura nº F497, datada de 21/06/2013, no montante de 463,11€; a factura nº F535, datada de 11/07/2013, no montante de 349,60€; a factura nº F546, datada de 26/07/2013, no montante de 680,19€ e a factura nº F742, datada de 09/01/2014, no montante de 1.986,45€, perfazendo o total de 31.500,83€ (trinta e um mil e quinhentos euros e oitenta e três cêntimos); 6. As letras de câmbios referidas em 1) não foram pagas nas datas dos respectivos vencimentos, nem posteriormente.»


Factos Não Provados


«Inexistem quaisquer factos não provados, porquanto provaram-se todos os factos alegados pelas partes e com interesse para a decisão.


Quanto ao mais alegado pelas partes, tratam-se de factos sem relevância para a decisão ou de matéria conclusiva e/ou de direito.»

C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso


Identificadas as questões decidendas, a passamos à sua análise.


1.ª Questão: Caso julgado formado pela sentença proferida na execução n.º 832/16.8...


1. Nas Conclusões I) a O), a recorrente vem invocar que na execução n.º 832/16.8... que correu termos no Juízo de Execução de Loulé, onde foram apresentadas as mesmas letras como título executivo, deduziu embargos de executado não tendo a sentença recorrida atendido ao caso julgado formado pela sentença ali proferida, confirmada em sede de recurso.


Vejamos.


Na oposição à execução, a embargante fez alusão ao referido processo executivo alegando que deduziu «oposição à execução tendo impugnado e colocado em causa as letras e as faturas sub judice». (artigo 26.º da oposição por embargos de executado).


Embora não tenha invocado expressamente o caso julgado, esta alusão, algo equívoca, é certo, remetia para essa figura jurídica, cabendo ao tribunal a quo fazer a respetiva subsunção jurídica (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil – CPC).


O que não vemos espelhado na fundamentação da sentença recorrida.


Porém, agora em sede de recurso é claramente colocada a questão do caso julgado.


Tratando-se de uma questão de conhecimento oficioso (artigo 578.º do CPC), sendo sempre admissível o recurso quando é invocada a ofensa do caso julgado (artigos 5 629.º, n.º 2, alínea a), parte final, do CPC) e tendo a contraparte a oportunidade de sobre ela se pronunciar em sede de contestação dos embargos, bem como na resposta ao recurso, nada obsta ao seu conhecimento.


2. Como previsto no artigo 581.º do CPC verifica-se a exceção dilatória de caso julgado, na sua vertente negativa, quando ocorre a tríplice identidade a li referida, ou seja, dos sujeitos (quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica), do pedido (quando em ambas as causas se visa obter o mesmo efeito jurídico) e da causa de pedir (quando a pretensão deduzida em ambas procede do mesmo facto jurídico).


A exceção de caso julgado tem como finalidade evitar a repetição de causas (artigo 580.º n.ºs 1 e 2 do CPC).


Consequentemente, não existe violação do caso julgado quando as ações têm por objeto diferentes pedidos e causas de pedir.


No caso presente, analisada a sentença e o acórdão proferido nos embargos de executado deduzidos na execução n.º 832/16.8... verifica-se que as partes são as mesmas; que foi apresentado como título executivo as 12 letras reformadas que estão mencionadas no ponto 1 dos factos provados da sentença recorrida em apreciação neste recurso, estando ali em discussão a relação cambiária referente àqueles títulos de crédito, bem como o seu incumprimento no que se refere ao pagamento dos «encargos bancários», «despesas extrajudiciais» e taxa dos «juros» de mora aplicáveis às letras.


Tendo os embargos sido julgados procedentes apenas quanto às despesas extrajudiciais, tendo-se determinado a aplicação ao caso da taxa de 4% dos juros moratórios.


Ou seja, as despesas bancárias e respetivos juros de mora não foram excluídas daquela execução.


Na presente execução, dada a prescrição da relação cambiária (como a sentença recorrida reconheceu, sem que tal venha impugnado no presente recurso), a causa de pedir não é a relação cambiária, mas sim a relação subjacente, funcionando as letras apenas como documentos quirógrafos, pelo que, em rigor, não funciona um dos elementos identitários para a formação de caso julgado previstos no artigo 581.º do CPC. Ou seja, não se verifica existir caso julgado enquanto exceção dilatória. Poderia quanto muito questionar-se a existência de autoridade de caso julgado, que não exige aquela tripla identidade1, estando em causa a função positiva do caso julgado, por via da qual o anteriormente decidido surge como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito2.


Mas tal discissão é irrelevante, porquanto a sentença ora em recurso julgou procedente os embargos de executado em relação aos encargos bancários e respetivos juros de mora referentes ao valor das reformas das 12 letras juntas com o requerimento inicial (as mesmas que foram invocadas como título executivo na execução pretérita) dada a prescrição da relação cambiária e por as faturas emitidas para cobrança do respetivo valor (F691, F761, F797, F822, F867, F951, F116, F143 e F117) não serem título executivo (cfr. ponto 1 e 4 o valor dos factos provados). Ou seja, e como consta do dispositivo da sentença recorrida, a execução prossegue para cobrança da quantia exequenda com exclusão do valor encargos bancários e respetivos juros de mora.


Consequentemente, improcede a invocação da exceção de caso julgado


2.ª Questão: Da (in)suficiência da alegação da relação subjacente dada a prescrição da obrigação cambiária valendo as letras apenas como documentos quirógrafos


1. Previamente à análise da questão decidenda, cabe fazer um esclarecimento.


Na Conclusão B), a recorrente alega que não se conforma com a sentença proferida por a mesma, no seu entender, não ter julgado «corretamente os pontos dados como provados e não provados e não ter feito a avaliação correta dos factos ao direito».


Esta afirmação é algo equívoca porque, na verdade, não se percebe se a recorrente apenas invoca erro de julgamento ao nível da aplicação do direito aos factos inseridos na decisão de facto, ou se, para além dessa discordância, também não concorda com a decisão de facto.


Porém, como nada é alegado no recurso (motivação e conclusões) quanto à impugnação da decisão de facto, não sendo sequer feita qualquer referência à alteração aos pontos da decisão de facto, nem aos meios de prova que suportariam tal pedido, nem tão pouco à decisão de facto que deveria ter sido proferida, como imposto pelo artigo 640.º do CPC, conclui-se que a recorrente não pretendeu impugnar a decisão de facto.


Por conseguinte, é com base no quadro fático exarado na sentença que temos de apreciar a segunda questão.


2. Decorre das Conclusões C) a H) que a recorrente não impugna a sentença no segmento em que conclui que as letras apresentadas como título executivo, à data da instauração da execução na qual foram deduzidos os presentes embargos de executado, se encontravam prescritas, atento o disposto no artigo 70.º da LULL, pelo que, não podem valer como títulos cambiários, mas apenas como documentos quirógrafos.


O que a recorrente vem questionar é se os factos alegados «são suficientes para caracterizar a relação subjacente», entendendo que não.


Alegando de forma concretizada nas Conclusões F) a H):

«F) As faturas em causa e as que mais tarde vieram a ser juntas aos autos nada têm a ver com os produtos fornecidos pela Exequente à Executada no exercício dessa sua atividade de comercialização de produtos promocionais e brindes referida em 1 do requerimento executivo e cujo pagamento, segundo a exequente, foi assegurado pelas letras dadas à execução.

G) Aliás, o valor das faturas iniciais totaliza o montante de 6.508,35€, nada tendo a ver com o valor inscrito nas letras dadas à execução e o valor das subsequentes totalizam um valor de 39.914,42€ e as notas de débito 4.313,23€.

H) No entanto, resulta das letras (prescritas) que elas foram entregues para reforma de outras letras e sendo alegado no requerimento executivo que essa entrega teve como causa o fornecimento de diversos produtos, salvo melhor entendimento, não se mostra suficientemente invocado o fundamento do pedido executivo contra a ora recorrente.»

3. Em relação a esta questão, na parte da fundamentação de direito expressa na sentença recorrida escreveu-se o seguinte:

«No requerimento executivo a exequente descreve, os factos constitutivos da relação subjacente de onde emergem as letras de câmbio dadas à execução alegando que é uma sociedade comercial que tem por objecto a comercialização de produtos promocionais e brindes, tendo no exercício da sua actividade comercial fornecido à executada diversos produtos, cujo pagamento foi assegurado com a emissão de diversas letras.

(…) mas apesar de prescritas, as letras de câmbio podem servir de base à execução como meros quirógrafos, porquanto no requerimento executivo a Exequente alegou a relação causal, subjacente à emissão das letras de câmbio, alegando que tem por objecto a comercialização de produtos promocionais e brindes e que no exercício dessa sua actividade comercial forneceu à Executada diversos produtos cujo pagamento foi assegurado com a emissão de diversas letras, e para além disso a Exequente juntou aos autos diversas facturas emitidas em nome da Executada, referentes ao fornecimento de produtos promocionais, nomeadamente calendários, agendas e camisolas, em montante superior a trinta e um mil euros, pelo que inexistem quaisquer dúvidas de que as letras dadas à execução se destinam ao pagamento dos produtos fornecidos à Executada pela Exequente no âmbito dessa relação comercial estabelecida entre ambas (…).»

4. Importa, pois, aferir se a exequente alegou, ou não, de forma suficiente a relação subjacente, pois da prescrição da relação cambiária incorporada no título cambiário resulta que a causa de pedir não é a relação abstrata e autónoma decorrente dos negócios cambiários, mas a relação subjacente/causal que há de ter existido entre o exequente e os executados».


Como se sintetizou no Acórdão do STJ de 30-11-20233, após se fazer uma incursão sobre a polémica da exequibilidade dos documentos quirógrafos no âmbito da vigência do CPC 1961, a questão da invocação da relação subjacente quando a relação cambiária se encontra prescrita, à luz do atual CPC, coloca-se nos seguintes termos:

«A reforma de 2013 suprimiu, é certo, a regra da genérica exequibilidade dos documentos particulares (que antes constava do art. 46.º/1/c)); mas, quanto à ressalva/exceção estabelecida – possibilidade dos títulos de crédito poderem ser títulos executivos como quirógrafos – permanece válido o entendimento jurisprudencial/doutrinal antes firmado (em relação ao anterior art. 46.º/1/c)).

Assim, sintetizando:

- o exequente tem o ónus de alegação no requerimento executivo dos factos constitutivos da relação subjacente;

- deve estar-se no domínio das relações imediatas;


- o negócio subjacente não pode ser solene; e

- havendo oposição, o ónus da prova da existência da relação subjacente fica a cargo do exequente.»

Sublinhando de seguida:

«(…) perdida a qualidade de título executivo enquanto título de crédito, pela extinção cambiária, as livranças passam a ser usadas enquanto quirógrafos da obrigação que lhe está subjacente; enfim, o “manto” da obrigação cambiária é usado tão só para servir de “manto” à obrigação subjacente.»

No caso sub judice a exequente, para além de invocar a relação cambiária juntando com o requerimento executivo as letras reformadas, também alegou em conformidade com o que ficou a constar nos pontos 2, 3 e 4 dos factos provados, ou seja, a sua natureza de sociedade comercial e respetivo objeto; que, no âmbito dessa atividade comercial, forneceu à executada, diversos produtos que se encontram discriminados (melhor identificados após aperfeiçoamento do requerimento executivo) e faturados (com menção de data de vencimento e montante) através das seguintes faturas: F97, F173, F314, F135, F136, F209, F236, F295, F404, F431, F487, F497, F535, F546, F742, perfazendo o valor total de €31.500,83.


Esta alegação corresponde, sem margem para dúvida, à alegação da relação subjacente à emissão das letras prescritas, ou seja, corresponde à alegação da existência de uma relação de natureza comercial entre a exequente e a executada, mediante a qual, nas datas e pelos valores constantes da faturação acima referida forneceu à executada diversos objetos que comercializa no âmbito da sua atividade comercial, que a executada não pagou apesar do vencimento das obrigações que assumiu ao adquirir tais produtos.


Tendo a exequente alegado os factos constitutivos da relação subjacente, e não tendo sido invocado que as letras prescritas saíram do domínio das relações imediatas, não existindo exigências formais legais em relação ao negócio subjacente à emissão das letras prescritas, tendo havido oposição, o ónus de prova da existência da relação subjacente fica a cargo da exequente (artigo 342.º, n.º 1, do CC), o que cumpriu, cabendo à executada o ónus de prova da extinção da mesma mormente através do pagamento (artigo 342.º, n.º 2, do CC), o que não logrou cumprir.


Nestes termos, bem andou a 1.ª instância ao julgar os embargos de executado parcialmente procedentes nos termos que constam do dispositivo da sentença recorrida.


Improcede, pois, a apelação.


5. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


III- DECISÃO


Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


Custas nos termos sobreditos.


Évora, 27-11-2025


Maria Adelaide Domingos (Relatora)


Elisabete Valente (1.ª Adjunta)


Susana Cabral (2.ª Adjunta)

_____________________________________

1. Cfr., exemplificativamente, Ac. STJ, de 21-03-2013, proc. n. 3210/07.6TCLRS.L1.S1, em www.dgsi.pt.↩︎

2. Cfr., ANTUNES VARELA et al., Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p. 685, nota (1); LEBRE DE FREITAS et al., Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2ª ed., p. 354; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 579.↩︎

3. Ac. STJ, de 30-11-2023, proc. n.º 6816/14.3YYLSB-A.L1.S1, em www.dgsi.pt.↩︎