Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2152/23.2T8FAR.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário do Acórdão

(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663º, nº 7, do CPC)


Não tendo os Réus logrado fazer suficiente prova do circunstancialismo excepcional previsto na segunda parte da alínea a), do artigo 1381.º, do Código Civil, mormente que os Autores destinariam o prédio adquirido por si a um fim diverso da cultura, impõe-se reconhecer, a final, a inexistência de fundamento de exclusão do gozo do direito de preferência invocado pelos Autores, procedendo, como tal, a acção interposta pelos mesmos.

Decisão Texto Integral: Apelação nº 2152/23.2T8FAR.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Cível de Faro - Juiz 2


Apelantes: AA


BB


Apelados: CC


DD


*


***


Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:


I – RELATÓRIO


CC, casado e DD, solteira, vieram intentar a presente ação declarativa de condenação contra EE, casado, AA, solteiro e BB, solteiro.


Alegaram os Autores serem proprietários de prédio confinante com o do 1.º Réu acrescentando que este último decidiu vender o seu prédio aos 2.º e 3.º Réus sem que tivesse sido conferido a si, Autores, o direito de preferência na aquisição do mesmo.


Terminam a pedir que lhes seja reconhecido o direito de preferência, a fim de haver para si o prédio que foi objeto de contrato de compra e venda, pelo preço de 45.000,00€ e que, em consequência, lhes seja reconhecido o direito de propriedade sobre o dito prédio rústico, ordenando-se o cancelamento do registo e inscrição matricial que, com base na aquisição efetuada pelo 2.º e 3.º réus tenham sido efetuadas, revertendo a favor deles, as quantias por si depositadas à ordem dos autos.


Os Réus contestaram e reconheceram não ter sido concedida a preferência aos Autores, argumentando, contudo, que não tinha que ser dada aos Autores a possibilidade de exercerem tal direito uma vez que o direito de preferência relativo aos prédios rústicos depende do exercício da atividade agrícola no prédio do preferente, esclarecendo que os Autores não exerciam (nem era sua intenção exercer) qualquer atividade agrícola no respectivo prédio.


Os 2.º e 3.º Réus deduziram ainda reconvenção pedindo que os Autores sejam condenados a indemnizar o 2.º Réu pela perda de oportunidade, danos emergentes e lucros


cessantes, em valor não inferior a 5.000,00€ e, subsidiariamente, caso a ação dos Autores seja procedente a condenação dos mesmos a indemnizar o 2.º Réu pelas benfeitorias necessárias efetuadas no prédio objeto da preferência, no valor de 4.028,00€.


Na réplica os Autores pugnaram pela improcedência do primeiro pedido reconvencional formulado alegando, em síntese, não poderem ser responsáveis por quaisquer prejuízos que advenham para os 2.º e 3.º Réus, uma vez que se limitaram a exercer o seu direito legal de preferência, não devendo, como tal, ser responsabilizados pela omissão de um ato cuja prática não lhes competia e sustentaram igualmente a improcedência da pretensão reconvencional subsidiária por entenderem que os trabalhos efectuados no prédio não podem ser considerados benfeitorias necessárias, dado não terem carácter permanente, assim como não terem a virtualidade de evitar a perda, destruição ou deterioração do prédio em causa.


Agendou-se e realizou-se a audiência prévia tendo nela sido proferido despacho saneador, identificado o objecto do litigio e enunciados os temas de prova.


Designou-se data para a realização da audiência final, que se realizou, após o que foi proferida sentença, que inclui o seguinte dispositivo:


“Pelo exposto, decide-se:


1. Reconhecer o direito dos Autores, CC e DD, preferirem aos 2.º e 3.º Réus, AA e BB, na compra do prédio rústico, situado na Local 1, composto por terra de cultura e mato com alfarrobeiras, oliveiras e amendoeiras, inscrito na matriz sob o artigo 112 da Secção D, o qual está descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º ...652/19880413, com a área de 1,952000 hectares, e de, pelo preço de 45.000,00€, depositado à ordem dos autos, haver para si o referido prédio em substituição dos Réus compradores.


2. Ordenar o cancelamento da inscrição de aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º ...652/19880413, da Freguesia de Vila 1, a favor dos Réus AA e BB feita pela AP 3513 de 21/12/2022.


3. Condenam-se os Autores no pagamento da quantia de 4.028,00€ ao Réu, AA, a título de benfeitorias necessárias realizadas no prédio objeto da preferência.


4. Absolvem-se as partes do demais contra elas peticionado.


*


Custas da ação principal pelos Réus e do pedido reconvencional pelos Autores (artigo 527.º do CPC).”


*


Inconformados com a sentença vieram os Réus AA e BB apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação, nele exarando as seguintes conclusões:


“D).- EM CONCLUSÃO


A).- A factualidade provada nos autos – concretamente a contida em 10. (“Em maio de 2023 o


Autor CC abordou os 2º e 3º Réus e nesse momento manifestou que pretendia exercer a preferência na compra do prédio referido em 2 para construir uma casa de habitação para a filha.”), em 11. (“Os Autores residem nos Estados Unidos da América.”), em 12. (“O Réu AA dedica-se à atividade agrícola, nomeadamente à cultura de frutos de casca rija, desde 26/03/2022.”) e em 13. (“ Os 2º e 3º Réus adquiriram o prédio referido em 2 tendo em vista o exercício de exploração agrícola pelo 2º Réu.”) dos FACTOS PROVADOS da sentença – conduzirá, patentemente, à exclusão do exercício do direito de preferência que, afinal, veio a ser reconhecido ao Apelados;


B).- Bem assim, a circunstância de os Apelados não terem provado que exerciam actividade agrícola ou quaisquer actos aptos à efectivação de agricultura no prédio confinante de que já eram


proprietários (alínea f. dos Factos Não Provados) nem que tivessem sido ou sejam agricultores e exerçam actividades agrícolas enquanto actividade geradora de rendimentos (alínea g. dos Factos Não Provados), reforça a conclusão de que os Apelados não se propõem utilizar o prédio preferido,


conjuntamente com o que já possuem, como uma unidade agrícola produtiva;


C).- A ratio legis dos artigos contidos na Secção VII do Título II do Livro III do Código Civil, designadamente os arts. 1380º e 1381º reconduz-se ao propósito de ampliar e concentrar terrenos


confinantes aptos para a cultura (leia-se, fins agrícolas), proibindo, por um lado, o fraccionamento e, por outro, privilegiando e promovendo o emparcelamento desses terrenos, dando-lhes maior dimensão para a sua finalidade agrícola.


D).- A provada declaração dos Autores de que apenas pretendem exercer o direito de preferência na compra e venda de terreno confinante para nele procederem à construção de uma habitação para a sua filha tem de ser entendida como séria no sentido de que não pretendem utilizar o prédio preferido para redimensionamento do seu e aí exercerem actividade agrícola.


E).- Tal declaração de intenção, emanada dos preferentes, mostra-se apta a afastar o seu direito de preferência, nos termos do disposto no art. 1381º do Código Civil, tanto mais que se mostra ser uma intenção concretizável por força não só das obrigatórias revisões dos Planos Directores Municipais, mas também das recentes alterações determinadas ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, com a criação de áreas de construção em solos compatíveis com as áreas urbanas já existentes (Decreto-Lei nº 117/2024 de 30 de Dezembro), e o regime especial de reclassificação para solo urbano, visando a finalidade de incremento de construção habitacional.


F).- Razões pelas quais, com a factualidade provada, não deveria ter sido reconhecido o exercício do direito de preferência aos Autores, por o mesmo lhes estar excluído nos termos do art. 1381º do Código Civil.


G).- Ao ter decidido como decidiu, o Tribunal recorrido violou, por ter feito uma inexacta análise crítica dos factos, e uma incorrecta e desajustada interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, o disposto nos arts. 1380º e 1381º do Código Civil, desvirtuando a finalidade e o sentido que lhes está subjacente, com isso violando também o disposto no art. 607º do Código de Processo Civil.


H).- Nessa medida, deve ser revogada a sentença proferida e aqui em recurso e ser substituída por outra que julgue improcedente e provada a acção intentada, absolvendo os Réus do pedido formulado. “


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Os Autores responderam ao recurso pugnando pela improcedência do mesmo e manutenção na íntegra da sentença recorrida.


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O recurso da sentença foi recebido na 1ª Instância, por despacho de 22/05/2025, como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão.


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O recurso é o próprio e foi correctamente admitido quanto ao modo de subida e efeito fixados nada havendo a alterar a propósito.


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Correram Vistos.


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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO


Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que no caso em apreço impõe-se apenas saber se ficou ou não demonstrada a alegada causa impeditiva/excepcional para o exercício do direito de preferência invocado pelos Apelados.


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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


Consta da sentença recorrida o seguinte quanto à matéria de facto provada e não provada:

A. “A. FACTOS PROVADOS:


Da petição inicial resultaram provados os seguintes factos:


1. De escritura pública datada de 20/12/2022 consta que “COMPRA E VENDA (…) PRIMEIRA: FF (…) outorga na qualidade de procuradora de EE, natural de ..., de nacionalidade britânica (…) SEGUNDOS: AA, solteiro, maior, natural da freguesia e concelho de ..., contribuinte fiscal número ...; e BB, solteiro, maior, natural da freguesia de ... e ..., concelho de ..., contribuinte fiscal número ..., residentes na .... (…) PELA PRIMEIRA OUTORGANTE, NA QUALIDADE EM QUE OUTORGA, FOI DITO: Que, com o parecer favorável da Câmara Municipal, e pelo preço de QUARENTA E CINCO MIL EUROS, já recebido para o seu representado, vende aos SEGUNDOS outorgantes, o prédio rústico sito em Local 1, freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 112 secção D, com o valor patrimonial tributável de 2.045,43€ e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número ...652/19880413, daquela freguesia, encontrando-se a aquisição ali registada a favor do vendedor pela inscrição AP, quatro mil novecentos e vinte e sete, de doze de maio de dois mil e nove, o que verifiquei por consulta à certidão predial (PP-2541-10070-080503-001652), às catorze horas e cinquenta e quatro minutos, que arquivo. Mais declarou a primeira: Que o seu representado não possui qualquer prédio rústico que confine com este, o que declarou sob sua inteira responsabilidade. PELOS SEGUNDOS OUTORGANTES FOI DITO: Que aceitam a presente venda nos termos exarados.


2. Pela AP 3513 de 21/12/2022, encontra-se inscrito a favor dos 2.º e 3.º Réus, AA e BB, a aquisição do prédio rústico, situado na Local 1, composto por terra de cultura e mato com alfarrobeiras, oliveiras e amendoeiras, inscrito na matriz sob o artigo 112 da Secção D, o qual está descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º ...652/19880413.


3. O prédio referido em 2 é composto por alfarrobeiras, oliveiras, cultura arvense em azinhal, cultura arvense, amendoeiras e mato, com a área de 1,952000 hectares.

1. 4. Com o negócio referido em 1 os 2.º e 3.º Réus pagaram as seguintes faturas:

a. 160022516810032 no valor de 1125,00€.

b. 160322516836031 no valor de 1125,00€.

c. 163322116317550 no valor de 180,00€.

d. 163022116317932 no valor de 180,00€.

e. N2022/3638 no valor de 319,80€.

f. FN2022/342 no valor de 225,00€.

5. Pela AP 2292 de 27/07/2012, encontra-se inscrito a favor dos Autores, CC e DD, a aquisição, por partilha da herança deixada por GG, do prédio rústico, situado na Local 1, composto por terra de cultura com alfarrobeiras e oliveiras, inscrito na matriz sob o artigo 107 da Secção D, o qual está descrito na Conservatória do Registo Predial deCidade 1 sob o n.º ...130/20120621.

6. O prédio referido em 5 confina diretamente, pela sua estrema poente, com prédio referido em 2.

7. O Autor, CC, teve conhecimento através de terceiros do referido em 1.

8. No momento referido em 7 os Autores desconheciam a identidade dos compradores, as condições do negócio, e onde e quando foi celebrada a escritura pública referida em 1.


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Das contestações resultaram provados os seguintes factos:


9. O prédio referido em 5 é constituído por mato, oliveiras e alfarrobeiras.


10. Em maio de 2023 o Autor CC abordou os 2.º e 3.º Réus e nesse momento manifestou que pretendia exercer a preferência na compra do prédio referido em 2 para construir uma casa de habitação para a filha.


11. Os Autores residem nos Estados Unidos da América.


12. O Réu AA dedica-se à atividade agrícola, nomeadamente à cultura de frutos de casca rija, desde 26/03/2022.


13. Os 2.º e 3.º Réus adquiriram o prédio referido em 2 tendo em vista o exercício de exploração agrícola pelo 2.º Réu.


14. Exploração que começou de imediato, tendo o 2.º Réu procedido à limpeza de árvores e de parte do terreno.


15. O prédio referido em 2 estava no mercado imobiliário há, pelo menos, 7 anos.


16. No mês de junho de 2022 os 2.º e 3.º RR. verificaram uma placa colocada pela imobiliária “...” no prédio referido em 2, na qual estava escrito “FOR SALE – VENDE-SE”, tendo aqueles entrado em contacto com a referida agência.


17. A placa referida em 16 esteve aposta vários meses.


18. No dia 17 de abril de 2023 o 2.º R alterou a caracterização da sua exploração para alfarrobeiras e oliveiras junto do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, onde se inclui o prédio referido em 2.


Do pedido reconvencional dos 2.º e 3.º RR resultaram provados os seguintes factos:


19. Com a citação para a presente ação o 2.º Réu decidiu não prosseguir com a remanescente limpeza do terreno.


20. O 2.º Réu pretendia adquirir e plantar novas árvores no ano de 2023.


21. O 2.º Réu procedeu à 1.ª fase da limpeza das árvores e de parte do terreno.


22. Com a limpeza referida em 22 o 2.º Réu pagou a quantia de 4.028,00€.

1. B. FACTOS NÃO PROVADOS:

a. Que o referido em 7 tenha ocorrido em abril de 2023.

b. Posteriormente ao momento referido em 7 o Autor comunicou à sua irmã, à Autora HH, do negócio referido em 1.

c. O Autor soube dos elementos referidos em 8 no dia 4 de maio de 2023, através da respetiva escritura cuja certidão foi requerida pela respetiva mandatária no Cartório Notarial onde a mesma foi celebrada.

d. O 1.º Réu tenha feito a ambos ou a qualquer um dos Autores, uma comunicação acerca do projeto de venda referido em 1.

e. O 1.º Réu comunicou a ambos ou a qualquer um dos Autores a sua intenção de vender o prédio referido em 2 ou as condições do negócio.

f. Os Autores exerciam atividade agrícola ou quaisquer atos aptos à efetivação de cultura no prédio referido em 5.

g. Os Autores eram/são agricultores e exercem atividades agrícolas enquanto atividade geradora de rendimento.

h. O prédio referido em 5 está cultivado.

i. Que o 1.º Réu nunca tenha exercido uma atividade florestal ou agrícola.

j. Que o 1.º Réu destinava o prédio referido em 2 unicamente para seu lazer e atividades afins, como pernoitar numa autocaravana, dar passeios e fazer piqueniques.

k. À data referida em 1 o 1.º Réu constatou que no prédio dos AA não se encontrava a ser exercida nenhuma cultura ou atividade agrícola.

l. Os Autores estabeleceram contacto com o 1.º Réu, com vista à aquisição do prédio.

m. O 2.º Réu pretendia adquirir e colocar uma bomba para extração de água para a rega.

n. O 2.º Réu pretendia adquirir e colocar painéis solares para o sistema de rega.

o. Que as árvores referidas no ponto 21 eram 200.

1. p. Que o 2.º Réu deixou de se poder candidatar ao projeto de investimento ao abrigo dos quadros comunitários para territórios de baixa densidade (Local 1), na qual poderia obter 50% do seu investimento.

q. O 2.º Réu, no ano de 2023, retirou rendimento agrícola do prédio referido em 2.”


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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Importa iniciar este segmento do acórdão deixando claro que o recurso interposto não visou a decisão relativa à matéria de facto discriminada na sentença recorrida, a qual, deve, assim, ser considerada como devidamente consolidada.


Por outro lado, percebemos pela enunciado das conclusões recursivas dos Apelantes que os mesmos apenas pretendem a reapreciação da questão respeitante à (in)verificação da causa de exclusão do gozo do direito de preferência dos Apelados, prevista na segunda parte da alínea a), do artigo 1381.º, do Código Civil (doravante apenas CC), entendendo que o Tribunal a quo terá feito deficiente apreciação jurídica da mesma em face de alguns dos factos considerados como provados na sentença recorrida, ou seja sustentam que aquele Tribunal terá incorrido num erro de direito no julgamento que realizou, porque terá ficado factualmente demonstrado que tal causa de exclusão se verificou no caso em apreço.


Assistir-lhes-á razão?


Cremos que não.


Mas vejamos porquê.


Decorre do artigo 1380.º do CC o seguinte:


1- Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante”.


Partindo da referida norma verifica-se que o direito real de preferência atribuído pelo artigo 1380º, nº 1, do CC, aos proprietários de terrenos confinantes depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos ou pressupostos de facto.

1. Ter sido vendido, ou objecto de dação em cumprimento, ou aforamento, prédio com área inferior à unidade de cultura,

2. Ser o preferente proprietário de prédio confinante com o prédio alienado;

3. Ter o prédio do proprietário que se apresenta a preferir área inferior à unidade de cultura;

4. Não ser o adquirente do prédio alienado proprietário confinante.

Neste sentido tem vindo a jurisprudência a manifestar-se de forma consistente desde há muito salientando-se apenas, a título exemplificativo, alguns dos acórdãos mais recentes, designadamente os proferidos pelo STJ em 28/02/2008 (Proc. 08A075), em 25/03/2010 (Proc. 186/1999.P1.S1), e em 14/01/2021 (Proc. 892/18.7T8BJA.E1.S1), a par do acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Évora em 08/05/2014 - relatora Maria Alexandra M. Santos (Proc. 2/12.4TBAVS.E1), todos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt.

Neste último aresto do TRE salientou-se expressamente a propósito dos supra elencados requisitos que os mesmos “são pressupostos de facto e como tal integrantes da causa de pedir do direito de preferência previsto no artº 1380º do CC…”.

No aresto proferido pelo STJ em 14/01/2021, acima expressamente assinalado (relatora Rosa Tching), salientou-se, logo no respectivo sumário do acórdão, a propósito da prova dos requisitos acima descriminados, ser “sobre aqueles que se arrogam titulares do direito de preferência e que pretendem que lhes seja judicialmente reconhecido esse direito que recaí o ónus de alegação e prova de todos estes requisitos, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 1 do Código Civil, impendendo sobre aqueles contra quem é invocado este direito, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do citado artigo 342º e 1381º , alíneas a) e b), do mesmo código, o ónus de provar factos dos quais se possa concluir pela verificação de alguma das exceções contidas nestas duas alíneas.”

Assim, o adquirente do prédio contra quem é invocado o direito de preferência na aquisição do mesmo só terá que alegar e provar matéria factual integrante de alguma das exceções constantes daquelas duas alíneas a) ou b), no caso de se mostrarem preenchidos todos os pressupostos de facto constitutivos do direito de preferência, sendo ainda certo que aquela prova deverá incidir sobre as características, ou sobre a destinação, do terreno do proprietário confinante, assim como sobre as características e destinação do terreno adquirido, (alínea a)) ou sobre o objecto abrangido pela alienação (alínea b).

Descendo de novo ao caso concreto sabemos não estar em causa neste recurso a (in)verificação dos requisitos, ou pressupostos de facto, previstos no n.º 1, do artigo 1380.º do CC, uma vez que se concluiu na sentença recorrida ter sido feita demonstração dos mesmos por parte dos Apelantes com apoio na factualidade considerada como provada e esse juízo não ter sido infirmado nas conclusões recursivas dos Apelantes.

Em face do exposto resta, então, apurar se perante a matéria de facto provada e considerada como consolidada neste acórdão é de considerar terem os Apelantes logrado fazer prova da excepção contida na segunda parte da alínea a), do artigo 1381.º do CC, dado que a previsão da alínea b), desse artigo não é chamada à colação no presente caso.

Relembremos o que acima já se disse sobre o critério subjacente à interpretação da mencionada alínea a), do artigo 1381.º do CC, ou seja as características, ou a destinação, do terreno do proprietário confinante, assim como as características e destinação do terreno adquirido.

Centrada a questão a reapreciar neste momento, não resistimos a espreitar e a transcrever o que, pelo notório acerto, ficou expresso na sentença recorrida a propósito da mesma:

“[…]

Desde já, importa determinar se, para que se considere verificada a exceção impeditiva, basta que se prove que, à data em que a preferência deveria ser exercida, o preferente não agricultava o seu terreno. Ou seja, o facto de o preferente não agricultar o seu terreno é bastante para que possamos afirmar que o mesmo destinava o seu prédio a um fim diverso da cultura?

Mas o que devemos entender por cultura? Para a definição do sentido normativo a atribuir ao vocábulo legal “cultura”, há que ponderar os objetivos e os fins subjacentes ao instituto do fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos e, na verdade, tem sido entendimento pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência que lhe deve ser atribuído um sentido mais amplo que o de “agricultura”, de modo a abranger os terrenos “próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários 4.

A expressão normativa “cultura” não pode ser exclusivamente identificada como a atividade agrícola em sentido estrito, podendo, também, pelo contrário, abranger quer atividades agrícolas que não impliquem o cultivo, tais como a exploração florestal ou silvo-pastorícia5.6

Ora, atendendo à factualidade dada como provada nos autos, concluímos que, à data da compra do terreno pelos 2.º e 3.º Réus, há muito que não se verificava qualquer cultivo no prédio dos Autores. Ou seja, a vegetação que compunha o prédio dos Autores é aquela que nasce no meio ambiente existente naquela região, não se verificando quaisquer sinais de exercício de qualquer atividade agrícola por parte daqueles. O prédio rústico dos Autores estava, então, no estado a que podemos apelidar de “estado natural”, característico da serra algarvia (composto por alfarrobeiras, oliveiras, cultura arvense em azinhal, cultura arvense, amendoeiras e mato).


Uma vez comprovado que o prédio dos Autores estava no seu “estado natural”, importa agora determinar se, no momento da alienação, isto é, no momento em que o preferente tem de exercer o seu direito de preferência, é necessário que o terreno do preferente esteja agricultado, ou seja, se é necessário que o preferente esteja a exercer no seu terreno qualquer atividade agrícola, de forma a que se possa afirmar que o mesmo destina o seu terreno à cultura.


Adiantemos desde já que a maioria da jurisprudência responde negativamente a tal questão.


O pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo artigo 1380º do CC aos proprietários de terrenos confinantes é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não sendo necessário que eles sejam efetivamente agricultados


Tem sido este o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, ao qual aderimos na íntegra. A ratio subjacente ao direito de preferência contemplado no artigo 1380.º do CC, é a de propiciar o emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, com vista a alcançar-se uma exploração agrícola tecnicamente rentável e evitar-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente 8.


Na verdade, o proprietário de um terreno apto para a cultura pode ainda não ter exercido nele qualquer atividade agrícola porque a área desse terreno não justificava qualquer investimento, na medida em que este poderia ser superior aos prováveis lucros a obter. Porém, se esse proprietário agregar ao seu terreno o prédio rústico confinante, poderá a exploração agrícola revelar-se rentável e, nesse caso, já o proprietário decide agricultar o terreno.


Ou seja, não é pelo facto de o prédio não estar cultivado e plantado (agricultado) que podemos concluir que o mesmo não é apto para a cultura, ou sequer que o seu proprietário o irá destinar a um fim diferente da cultura.


Ante o exposto, e pese embora o terreno dos Autores não estivesse agricultado, tal não significa que o mesmo não fosse apto à cultura, nem tampouco que o mesmo estava destinado a qualquer outro fim. Na realidade o terreno estava no seu “estado natural”, em “bruto”, pelo que, à data em que a preferência deveria ter sido exercida, não podemos considerar que os Autores destinassem o terreno deles a algum fim que não fosse a acultura.


2. Cumpre agora verificar se o segundo fundamento impeditivo do direito de preferência se encontra verificado:


Alegam os Réus que a preferência não tinha que ser dada aos Autores, uma vez que era intenção destes construir uma casa para a filha do Autor CC, pelo que, assim, entendem os Réus que os Autores iam destinar o prédio alienado a um fim diferente da cultura.


Na realidade resulta da factualidade provada que em maio de 2023 o Autor CC abordou os 2.º e 3.º Réus e, nesse momento, manifestou que pretendia exercer a preferência na compra do prédio alienado para construir uma habitação para a filha.


Desde já importa responder à seguinte questão: para que se verifique a exceção ao direito de preferência prevista no artigo 1381.º al. a) basta que se prove a intenção do preferente em destinar o prédio a um fim diferente da cultura? Ou, para além da prova de tal facto, é ainda necessário provar que esse fim é legalmente possível?


Mais uma vez, também neste âmbito a jurisprudência é praticamente unânime ao estabelecer que, para que se considere verificada a exceção, não basta a prova da intenção, tem que se provar também que tal intenção é legalmente exequível.


Nesse sentido o Tribunal da Relação de Guimarães: o direito de preferência conferido pelo artigo 1380.º do CC, é legalmente excluído quando ocorra alguma das situações previstas no art.º 1381º do CC, nomeadamente, quando o comprador destine o prédio vendido a fim diferente da cultura e que essa mudança de destino é legalmente admissível 9. Também o Tribunal da Relação do Porto: a exclusão ao exercício desse direito constante do art, 1381º, do CC basta-se com comprovação da efetiva intenção de utilização do prédio como urbano desde que esta seja legalmente possível e contemporânea da aquisição.10 E ainda o Tribunal da Relação de Coimbra: o fim do prédio transmitido a apurar é o fim tido em vista pelo comprador com a sua aquisição, podendo a prova dessa intenção (facto psicológico) ser efetuada por qualquer meio e não tendo que ser declarada no ato formal de aquisição. Contudo esta intenção não pode resumir-se a um mero estado subjetivo, devendo existir uma possibilidade real, física e legal, desse destino diferente da cultura do prédio verificar-se.11


Concluímos assim que, para que se considere verificada a exceção impeditiva do direito de preferência dos Autores, para além da prova da intenção dos Autores destinarem um dos prédios a um fim diferente da cultura, era ainda necessário que se fizesse prova que a edificação de um imóvel num desses prédios era legalmente possível, nomeadamente, por exemplo, através de uma licença administrativa para a construção do mesmo12


[…] no caso dos autos, os Réus limitaram-se a provar que a intenção do Autor CC era a de construir num dos terrenos uma casa para a filha. No entanto, os Réus não lograram demonstrar que tal construção era legalmente possível e exequível, nem tampouco que a comproprietária do prédio, a Autora DD, tinha igual intenção. A única coisa que os Réus provaram foi uma intenção subjetiva do Autor CC construir uma casa e, como vimos, para que se verifique a exceção prevista no artigo 1381.º al. a) do CC, para além da prova da intenção do preferente destinar o prédio a fim diferente da cultura, é ainda necessário que se prove que tal intenção é concretizável, pelo que, a falta de prova deste último requisito não nos permite dar como verificada a exceção impeditiva invocada.


Não nos é possível afirmar que os Autores iriam destinar o terreno a um fim diferente da cultura pelo simples facto de ser intenção do Autor CC construir uma casa para a filha. A prova da mera intenção não basta para que se conclua de tal forma. Até porque uma intenção é um mero estado subjetivo, o qual pode nunca chegar a materializar-se. A mera prova da intenção não é suscetível de contrariar a aptidão do prédio para a cultura, isto é, não demonstra que está precludida a possibilidade de, no futuro, vir a ser efetivamente desenvolvida a cultura, nem tampouco é suscetível de demonstrar que os Autores iam destinar o prédio a um fim diferente da cultura. Assim, e inexistindo nos autos quaisquer outros elementos que, conjugados com aquela intenção, nos permitam concluir que a mesma se iria efetivamente materializar, não nos é possível concluir que os Autores iam destinar o terreno a um fim diferente da cultura, pelo que, e com base neste fundamento, improcede a exceção impeditiva invocada. ue, conjugados com aquela intenção, nos permitam concluir que a mesma se iria […].”


Olhando para a matéria de facto considerada como definitivamente assente não podemos deixar de concordar com a forma lucida como foi apreciada na sentença recorrida a questão excepcional levantada pelos Apelantes, prevista na segunda parte da alínea a), do artigo 1381.º, do CC, realçando-se, ainda, o acerto interpretativo e o adequado apoio jurisprudencial em que se baseou o Tribunal a quo com vista a elucidar a posição tomada pelo mesmo na sentença recorrida, dispensando-nos, assim, por desnecessário, de adensar este aresto com acrescida argumentação.


Dito isto temos de convir que mau grado o esforço desenvolvido pelos mesmos é de considerar, como se sustentou na sentença recorrida, que os Apelantes não lograram fazer suficiente prova da causa de inexistência, ou de exclusão, do gozo pelos Apelados do direito de preferência que invocaram nos autos, prevista concretamente na segunda parte da alínea a), do artigo 1381.º do CC.


Em face de todo o exposto terá que improceder o recurso interposto pelos Apelantes contra a, aliás, douta sentença recorrida, a qual deverá, como tal, ser integralmente mantida.


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V – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso de apelação interposto por AA e BB e em consequência decidir:

a. Confirmar a douta sentença recorrida.

b. Condenar os Apelantes nas custas devidas, nos termos do disposto no artigo 527º, nº 1 e 2, do CPC.


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ÉVORA, 02/10/2025


(José António Moita-Relator)


(Francisco Xavier – 1.º Adjunto)


(Maria Adelaide Domingos – 2.ª Adjunta)