Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:
Nestes autos de recurso independente em separado proveniente do Tribunal Judicial da Comarca de Évora - Juízo de Instrução Criminal de Évora - o Mmº Juiz, por despacho de 12-01-2022, decidiu indeferir o requerimento do arguido MAT para revogar ou, ao menos, baixar o valor da caução aplicada ao arguido.
O arguido MAT foi indiciado pela prática de um crime de corrupção activa, previsto e punido pelos arts. 18º, nº 1 e 19º, nº 2 da Lei nº 34/87, redacção dada pela Lei nº 108/2001, de 28-11, Lei nº 30/2008, de 10-07, Lei nº 41/2010, de 03/09, Lei nº 4/2011, de 16-02, Lei nº 4/2013. de 14/01 e Lei nº 10/2015, de 22/04.
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Inconformado com aquela decisão dela interpôs o arguido o presente recurso, com as seguintes conclusões:
I. É objeto do presente Recurso o despacho judicial com a referência 31322041, ponto I., que indeferiu integralmente o requerido pelo arguido no dia 13 de dezembro de 2021.
II. O requerimento do arguido do dia 13 de dezembro de 2021 solicitou a revogação da medida de caução imposta por despacho do dia 15 de abril de 2021 (ou, subsidiariamente, a redução do montante em valor não superior a 50 mil euros) em virtude da alteração das circunstâncias que presidiram ao decretar, inicial, de tal medida.
III. Aquando da determinação, no dia 15 de abril de 2021, da caução, foi feito constar que a mesma se justificava para acautelar o cumprimento, para além do mais, de outras medidas de coação, como a proibição de contactos.
IV. Essa medida de proibição de contactos foi declarada extinta (despacho judicial com a referência 31205091).
V. Por outro lado, o arguido sempre compareceu em atos processuais para os quais tenha ou venha a ser chamado, dando sempre integralmente cumprimento ao disposto no artigo 196.º do Código de Processo Penal.
VI. Nos presentes autos foram apreendidos todos os bens e elementos que o detentor da ação penal entendeu serem importantes para a descoberta da verdade material, foram realizadas interceções telefónicas, foi apreendida correspondência eletrónica, vários documentos, ouvidas várias testemunhas e prestadas declarações pelos arguidos, quer perante Juiz de Instrução Criminal quer, quando para tal notificados e convocados, perante o detentor da ação penal.
VII. Atento o período já decorrido de investigação e as demarches processuais (bem como a recolha de prova acima indicada), não existe, agora, qualquer perigo concreto de perturbação de inquérito, conservação da prova, continuação de qualquer atividade (alegadamente) criminosa ou pressões de qualquer espécie sobre testemunhas e/ou arguidos (para além de tal medida já ter sido declarada extinta) que importe garantir – e é essa a natureza das medidas de coação.
VIII. Ao decidir como decidiu, o Tribunal, smo, violou o disposto no artigo 212.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, não só porque o despacho que determinou a aplicação da caução visava garantir outras medidas de coação declaradas extintas como, também, as obrigações genéricas de arguido têm sido cumpridas.
IX. Por outro lado, à presente data, não existem quaisquer perigos concretos previstos no artigo 204.º do Código de Processo Penal que justifiquem a aplicação de medidas de coação, nomeadamente a manutenção da caução.
X. Mesmo quanto ao pedido subsidiário – de diminuição do valor de caução – o Tribunal, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 212.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, igualmente tendo em conta a alteração e atenuação (até objetiva) das exigências cautelares que determinaram, no início, a caução.
XI. O Tribunal determinou, legalmente, um montante de € 300.000,00 (trezentos mil euros) face a promoção do Ministério Público de um montante não inferior a € 70.000,00 (setenta mil euros).
XII. Ao decidir como decidiu, ao justificar a manutenção da medida de caução e seu montante, com recurso ao disposto no artigo 214.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, o Tribunal não fez uma interpretação e aplicação correta de tal preceito legal.
XIII. Ao aplicar da forma como aplicou tal preceito legal, fica sem lugar a aplicação o disposto no artigo 212.º, nomeadamente os seus n.º 1, alínea b) e o n.º 3, todos do Código de Processo Penal.
XIV. Por outro lado porque a letra e teleologia da norma (artigo 214.º, n.º 4, do Código de Processo Penal) não se coaduna com a interpretação e aplicação realizadas pelo Tribunal uma vez que o arguido não foi condenado – nem sequer alvo de acusação (pressuposto daquela norma).
XV. A extinção, nomeadamente por via de revogação, ou alteração - por via de redução – da medida de caução não ocorre, apenas, por via do disposto no artigo 214.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, como erradamente feito constar no despacho objeto de recurso.
XVI. Acresce que, seguindo a interpretação e aplicação de tal preceito nos termos constantes do despacho judicial objeto de recurso, justificar-se-ia a aplicação de uma caução a qualquer arguido para cumprimento do dever genérico de obrigações a que o arguido está sujeito (como o comparecimento em atos processuais), sem concretização in casu, sendo que o Tribunal, em rigor, justificou tal aplicação para cumprimento de outra medida de coação que foi declarada extinta.
XVII. Mais: o Tribunal, ao aplicar o artigo 214.º, n.º 4, do Código de Processo Penal com a justificação de que existe possibilidade de ser condenado nos presentes autos não tem em conta, como já acima foi enunciado, a letra e espírito de tal normativo que tem como pressuposto a extinção de tal medida com o início da execução da pena se o arguido vier a ser condenado em prisão (o que objetivamente não ocorre nos presentes autos).
XVIII. Em rigor, o Tribunal ao decidir como, agora, decidiu, entra (também) em contradição com os fundamentos que presidiram à aplicação da caução (garantia de cumprimento de medidas de coação entretanto extintas, para além de acautelar perigos que, em concreto, já não existem), pelo que deverá ser revogado o despacho e substituído por outro que determine a revogação da caução prestada ou, subsidiariamente, diminuir o valor da mesma para valor não superior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
Termos em que, face ao supra exposto, deverá o despacho judicial objeto do presente recurso ser revogado e substituído por outro revogue a caução prestada ou, subsidiariamente, diminua o montante para um valor não superior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
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O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta defendendo o decidido, concluindo:
1. A medida de coação de caução (art.º 197º do Código de Processo Penal) não está sujeita a uma espécie de regime de prova de boa conduta do arguido, constituindo um garante do cumprimento de outras medidas de coação aplicadas mas igualmente de garantia de cumprimento dos deveres e obrigações processuais que globalmente recaem sobre o arguido enquanto tal (art.º 61º, n.º 6 do Código de Processo Penal) e bem assim sujeito a TIR.
2. Pese embora, no processo, a medida de proibição e imposição de condutas aplicada ao arguido recorrente se tenha extinguido (art.º 218º, n.º 2 do Código de Processo Penal), a caução aplicada continua a ser essencial dada a complexidade e vastidão da investigação, a necessidade de concluir a obtenção e análise de prova, conjugando a gravidade material da atuação do arguido, a postura por si assumida e os recortes da sua reação nomeadamente em interrogatório judicial, suscitando-se assim que seja devidamente salvaguardada a sua disponibilidade para com os atos processuais, tutelando os receios de que a todo o momento e enquanto dure o processo possa o mesmo desviar-se do rigoroso cumprimento daquelas suas obrigações e deveres.
3. Nada de novo foi trazido aos autos pelo recorrente que infirme esta necessidade, não podendo a extinção ope legis de outra medida de coação ser aproveitada como garantia de tutela de tais preocupações, em nada desagravando a posição do arguido no processo, nem retirando fundamento à manutenção da caução fixada.
4. A aplicação da medida de caução ao arguido recorrente teve por base os receios de perturbação, conservação da prova e de continuação da atividade criminosa aferíveis pela sua postura em interrogatório judicial, apresentando versões implausíveis quando confrontado com elementos de prova muito esclarecedores, pela identificada ambição de lucro decorrente da atividade imobiliária, valendo-se da sua capacidade de atuação e conformação de decisores políticos, sendo sério o receio de atuação sobre testemunhas ainda a inquirir.
5. Estes receios não foram infirmados porquanto as dificuldades decorrentes de finalizar uma investigação de dimensão e complexidade muito relevantes, incidindo sobre pessoas de estatuto económico, político e académico superior, muito avisadas e cuidadosas, impõe que se preserve a todo o custo a garantia de minimização de todas e quaisquer interferências na fidedignidade dos depoimentos a recolher, nas análises documentais, digitais e contabilístico-financeiras, a realizar.
6. As identificadas abordagens, interferências e condicionamentos decisórios de intervenientes, em atropelo de regras legais, o forte investimento e valores já despendidos pelo arguido recorrente (e também em representação da coarguida “SA”) na compra de terreno municipal para edificação de unidade hoteleira de grandes dimensões, e as ameaças às elevadas expetativas de potenciar ao máximo os lucros, são fatores que fazem recear levar o arguido a adotar comportamentos similares.
7. O facto de a medida de proibição de contactos com coarguidos e outras pessoas na Câmara Municipal de (…) ter cessado, reforça o temor de o arguido atuar sobre estes naquele mesmo intuito, afastadas que estão agora as barreiras processuais que impediam tais contactos e abordagens, pecando a medida de caução e o TIR por defeito para acautelar integralmente tais receios.
8. As necessidades cautelares saem assim reforçadas, justificando a manutenção da medida de caução de forma a realçar que permanece um controlo judicial incidente sobre a postura e atuação do arguido recorrente, dissuadindo a reiteração de atos similares, preservando a boa obtenção de prova, constituindo um fator de estabilização e segurança, chamando o arguido à razão da legalidade penal e lisura processual, tudo reclamado em nome da justiça.
9. Mantendo-se concretamente a necessidade de salvaguardar o receio de reiteração de atos delituosos similares e de atuação sobre a prova a obter, a mesma gravidade da atuação imputada (crime de corrupção ativa agravado) e o mesmo grau de danosidade social adveniente da conduta corruptiva consubstanciada na entrega de 300.000,00 euros para obter decisão de favor de autarca, entende-se que nada motiva alteração de graduação do valor da caução, permanecendo ajustado e adequado ao nível concreto de indiciação da atuação criminal, à luz do disposto no art.º 197º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
10. Não sendo a caução uma medida de coação que se esvazie de sentido por si própria pelo decurso do tempo, desgastando-se pela vigência e mantendo-se os critérios subjacentes à sua graduação concreta, nada motivará a sua redução, valendo também aqui a regra “rebus sic stantibus”.
11. A referência ao art.º 214º, n.º 4 do Código de Processo Penal feita pelo M.º Juiz no despacho em que manteve a caução tem o único significado possível de literalmente realçar a específica limitação temporal desta medida de coação até ao início de execução da pena de prisão em que o arguido venha a ser condenado, em exceção à regra da extinção ope legis das medidas de coação após o trânsito da sentença condenatória.
12. Em lado algum se confere que tal menção encerre um qualquer pré-juízo de condenação em pena de prisão do arguido ou que se tenha pretendido locupletar a caução ao regime do art.º 212º do Código de Processo Penal, entrando mesmo tais considerações em contradição com o teor do despacho em recurso.
Termos em que se considera inexistir qualquer violação, errada interpretação e aplicação das normas processuais penais invocadas pelo arguido MAT e concretamente dos artigos 193º, 197, 204º, 212º, ns.º 1, al.ª b), 3 e 214º, n.º 4, do Código de Processo Penal, no despacho judicial de 12 de janeiro de 2022.
Devendo por isso manter-se este despacho na íntegra e assim ser negado provimento ao recurso ora apresentado pelo arguido MAT, continuando a aguardar os subsequentes termos do processo sujeito à caução de 300.00,00 euros já prestada. Este o nosso entendimento.
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Nesta Relação o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi observado o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.
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B.1 - Fundamentação:
B.1-a) - Teor do Despacho recorrido:
«I. Requerimento de fls. 45 a 51 apenso de caução nº 209/18.0JAFAR-D e a fls. 4891 a 4893 - MAT
Vem requerida a revogação da caução nos termos do disposto no art.° 212.°, n. 1, al. b), do Cód. Processo Penal, e subsidiariamente pedida a diminuição do valor de caução prestada num montante não superior a 50 mil euros.
O Ministério Público remeteu para a prática de acto jurisdicional o requerimento em referência.
Ora tendo sido prestada a caução e mantendo-se o arguido prestador da caução ainda vinculado a obrigações processuais e não existindo qualquer infirmação dos pressupostos que se atenderam na fixação do valor (a natureza do crime, a capacidade de gerar rendimento, montante despedido com a aquisição do imóvel e a peita), somos a considerar não existe fundamento para o requerimento. A caução é de manter nos precisos moldes em que foi prestada enquanto o requente mantiver o es a to e as obrigações de arguido e a possibilidade de ser condenado nos presentes autos (cfr. art.° 214.°, n.04 do Cód. Processo Penal).
Nos termos expostos, indefere-se integralmente o requerido.
Junte cópia deste despacho ao apenso D».
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B.1-a) – Teor do despacho lavrado em 15-04-2021 em primeiro interrogatório judicial de arguido detido:
«(…) MAT, EM NOME PRÓPRIO E EM REPRESENTAÇÃO LEGAL DA SA:
Os factos indiciam fortemente a prática de um crime de corrupção activa, previsto c punido pelos arts. 18º, nº 1 e 19º, nº 2 da Lei nº 34/87, redacção dada pela Lei nº 108/2001, de 28-11, Lei nº 30/2008, de 10-07, Lei nº 41/2010, de 03/09, Lei nº 4/2011, de 16-02, Lei nº 4/2013. de 14/01 e Lei nº 10/2015, de 22/04.
No que concerne à pessoa colectiva SA, os factos indiciam fortemente a prática de um crime de corrupção activa, previsto e punido pelos arts. 374º , nº 1 e 374º·A, nº 2, em articulação com o art. 11º do Cod. Penal.
Comete o crime de corrupção activa quem, por si ou por interposta pessoa., com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a titular de cargo político ou alto cargo público, ou a terceiro por indicação ou com o conhecimento destes, vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim contrário aos deveres do cargo.
O crime de corrupção activa é punido com pena de prisão de 2 anos e 8 meses a 6 anos e 8 meses, se a vantagem patrimonial ou não patrimonial exceder €20,400,00. (arts. 18.°, nº 1 e 19º, n.2 da lei 34/87, e 202,°, al. b, do Cód. Penal ex vi artigo 19º, nº 3 da Lei 34/87).
Nos termos do art. 374.°, do Céd. Penal comete o crime de corrupção activa quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro por indicação ou com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim indicado no nº 1 do artigo 373º.
Se o fim for para a prática de acto ou omissão (que) não forem contrários aos deveres do cargo e a vantagem não lhe for devida, a penalidade é reduzida um a cinco anos para pena de prisão até três anos ou pena de multa até 360 dias (Artigo 374º, nº 2, do Cod. Penal).
Se a vantagem for de valor elevado ou consideravelmente elevado, o agente é punido com a pena aplicável ao crime respetivo agravada em um quarto nos seus limites mínimo e máximo e um terço nos seus limites mínimo e máximo, respectivamente (Artigo 374º-A, n. 1 e 2).
Constata-se assim, e face a tudo o exposto, que o arguido cometeu um facto típico, ilícito e culposo, pelo que o mesmo tem de ser punido.
Em face da factualidade considerada fortemente indiciada, inexistem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Não há lugar à atenuação especial prevista para os crimes elencados no artigo 1.°, n. 1, alíneas a) e e), da Lei n. 36/94, de 29 de Setembro, na sua versão actualizada, uma vez que o agente não auxiliou concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis (cfr. Artigo 8º da Lei n. 36/94, de 29 de Setembro).
Não se verificam os requisitos a que aludem os arts. 6º e 19º -A, da Lei nº 24/87, de 16 de Julho e art. 374° - B, nº 2 do Cód. Penal.
(…)
Impõe-se decidir em conformidade.
Pelo exposto, ao abrigo dos artigos 191º n,· I. 1, 193, 194, n. 1 a 3, 195º, 196º, nº1, 197º, 199º, 200º, n. 1, al. a) e d) e 204º, al. b) e c), todos do C.P.P. determino que:
(…)
b) o arguido MAT aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de proibição de permanecer nas Instalações ou edifícios da Camara de (…) e de contactos directos e indirectos, com os demais arguidos, GAM, funcionários, colaboradores e membros da Camara de (…), incluindo TER, à excepção dos atinentes ao arguido VIT; e proceda à entrega de caução, a prestar por depósito autónomo ordem deste processo, ou fiança bancaria prestada por uma instituição bancaria portuguesa, ou ainda por constituição de penhor e/ou hipoteca sobre os bens do arguido no valor de € 300.000,00 (trezentos mil euros), no prazo de 15 dias a contar da notificação do presente despacho.»*
B.2 - Cumpre conhecer.
O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal e a questão abordada no recurso reconduz-se a apurar, unicamente, se poderia o Mmº Juiz ter mantido a medida de caução no montante de 300.000 € e se o poderia fazer com fundamento no disposto no artigo 214º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Que o poderia fazer – manter a medida no quantum inicialmente fixado – é um dado adquirido, suposta a devida fundamentação. Que o não deveria fazer com fundamento no disposto no nº 4 do art. 214º do C.P.P. também nos parece incontroverso.
Este preceito, o nº 4 do artigo 214º do C.P.P., que assim reza «Se a medida de coacção for a de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão, aquela só se extingue com o início da execução da pena» não pode ser lido no sentido de ali se estabelecer que a medida de coacção – obrigatoriamente – só se extingue “com o início da execução da pena”, como parece supor o despacho recorrido.
Esta interpretação faria supor que as normas sobre revogação e alteração das medidas de coacção contidas no artigo 212º e as disposições gerais contidas nos artigos 191º a 194º do C.P.P. não seriam aplicáveis à caução. E não é assim!
Bem ao invés é preciso ter presente que o nº 4 do artigo 214º do C.P.P. é uma anormalidade legislativa com um sentido muito restritivo.
E isso mesmo é referido por conhecido comentador. «A Lei nº 59/98, de 25.8, consagrou uma anomalia: a caução subsiste mesmo depois do trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão, até ao início da execução da pena. O propósito é o de permitir a declaração de quebra da caução se o arguido se furtar ao cumprimento da pena, tendo-se entendido em 1998 que a declaração de contumácia do arguido era insuficiente» - Albuquerque, Paulo, “Comentário do C.P.P.”, ed. de 2007, anotação 6 ao artigo 214º do C.P.P. – igualmente as anotações dos §§ 22 e 23 ao artigo 214º do Comentário Judiciário do C.P.P. – Tomo III, 2ª Edição, pag. 489.
Isto é, o preceito tem que ser lido com este sentido: no caso de inexistência de revogação e extinção da caução por via de despacho judicial, a mesma só se extingue com o início do cumprimento da pena de prisão de forma a permitir a sua quebra se o arguido fugir ao cumprimento da pena.
Logo, tendo sido requerida a alteração da medida de coacção, o recurso ao disposto no art. 212º do C.P.P. e, naturalmente, ao disposto nos artigos 193º e 197º enquanto dispositivos gerais sempre aplicáveis, era uma necessidade. Face a isto resta analisar o pedido do recorrente à luz destes dispositivos.
Para este desiderato (como já afirmámos no nosso relato no acórdão desta Relação de Évora de 31 de Agosto de 2016, no proc. nº 27/15.8GBSTB-A.E1, que aqui seguimos) rege o princípio rebus sic stantibus.
Para ilustrar a contingência, a provisoriedade das decisões sobre medidas cautelares, a jurisprudência tem feito apelo à cláusula rebus sic stantibus, de cariz e origem contratual, renascida no século XVIII, enterrada pela codificação e pela prevalência do princípio pacta sunt servanda e ressuscitada após a primeira Guerra Mundial. (…)
A cláusula “permanecendo as coisas como estão” ou "enquanto as coisas estão assim", representa a teoria da imprevisão e constitui uma excepção à regra pacta sunt servanda, querendo significar que a ocorrência de um facto imprevisto e imprevisível, essencial e posterior à celebração de tratado ou contrato civil, diferido ou de cumprimento sucessivo permite a retirada do tratado, a alteração nas condições da sua execução ou a cessação dos seus efeitos. - É atribuída a Erich Kaufmann (1880-1972) a defesa da sua reintrodução no Direito Internacional Público, não o seu acolhimento como costume internacional. No direito civil português o artigo 437º do Código Civil teve por base a teoria da base negocial – A. Varela in “Código Civil Anotado”, vol. I, 389, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982.
Consagrado o conceito igualmente no direito internacional público - Onde se encontra consagrada no artigo 62ª da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de Maio de 1969 e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 67/2003. sob a designação “Fundamental change of circumstances” (“Alteração fundamental das circunstâncias”) e numa formulação negativa, a jurisprudência penal tem vindo a utilizar a ideia de cláusula rebus sic stantibus para definir as características cautelares das medidas de coacção em processo penal e enfrentar a inaplicabilidade, nesta sede de medidas cautelares, da noção civilística de caso julgado formal.
Na jurisdição criminal a ideia veiculada pela utilização do sentido base da cláusula assenta numa dupla vertente: a) - na ideia de inexistência de caso julgado formal; b) - na possibilidade de alteração da decisão sobre medidas cautelares, ocorrendo alteração das circunstâncias que determinaram anterior decisão sobre a mesma matéria e no mesmo caso concreto.
De onde decorrem duas asserções lógicas: a medida de coacção altera-se se ocorrer alteração das circunstâncias; mantém-se caso tal não ocorra.
Sendo certo que o recorrente não invoca qualquer facto que constitua alteração das circunstâncias em termos estritamente processuais, também é certo que a passagem do tempo é um facto notório e isso é invocado.
Desde a aplicação da medida passou mais de um ano e o Ministério Público e a polícia ainda não concluíram a análise da prova recolhida nos autos e não por actos imputáveis ao recorrente, sim devido à tradicional invocação de falta de meios, justificação que se ouve vai para quase quatro décadas, acompanhada de outra repetida realidade, o cidadão é sempre a vítima muda da falta de meios.
Ora, em termos de princípios de boa-fé, de sã política e boa (!) administração, incumbe ao Estado prover as duas entidades com os meios necessários a uma justiça célere (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem dixit) e não ao cidadão, mesmo indiciado, suportar os custos acrescidos da inépcia estadual.
Assim e porque se é verdade que a medida de coacção deve ser sempre adequada e proporcional, ter como fito os quatro parâmetros contidos no artigo 197º, nº 3, podendo ser reforçada ou modificada após a sua aplicação (artigo 207º, nº 1), mesmo considerando a gravidade do crime, vai a mesma reduzida para 70.000 € (proposta inicial do Ministério Público) devido ao decurso excessivo do tempo por acto omissivo imputável ao Estado e sem culpa do arguido.
Por isso o recurso deve proceder parcialmente nos termos acabados de expor.
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C - Dispositivo:
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento parcial ao recurso interposto, reduzindo a caução para 70.000 € (setenta mil euros), a ser regularizada em 30 dias.
Notifique.
Sem custas.
Évora, 10 de Maio de 2022
(Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa (Relator)
António Condesso (Adjunto)
Gilberto Cunha (Presidente da Secção)